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O pitagorismo como categoria historiográfica – CORNELLI (RA)
CORNELLI, G. O pitagorismo como categoria historiográfica. Tradução de Maria da Graça Gomes de Pina Col. Classica Digitalia Brasil. Coimbra: CECH- Universidade de Coimbra. São Paulo: Annablume, 2011. Resenha de: BORDOY, Francesc Casadesús. Revista Archai, Brasília, n.7, p.159-162, jul., 2011.
Os estudos que se realizaram até aos nossos dias sobre a figura de Pitágoras e sobre o pitagorismo depararam-se com um paradoxo que parece insuperável ou, em todo o caso, se mostra de muito complicada e difícil solução: isto é, a constatação de que a personagem da filosofia pré-socrática de quem possuímos, contrariamente a outras, mais informações apresenta-se-nos sob uma névoa tão espessa que impede que o estudioso extraia conclusões claras. Com efeito, e nisto consiste precisamente o paradoxo, de nenhum outro filósofo da Antiguidade nos chegaram três biografias como as que nos transmitiram Porfírio, Jâmblico e Diógenes Laércio (além de muitos outros testemunhos) e, apesar disso, acerca de nenhuma outra personagem da Antiguidade nos sentimos tão inseguros quando chega o momento de falar dos seus supostos conhecimentos, habilidades e façanhas. Sem dúvida esta frustrante realidade foi determinante no momento de abordar com critérios científicos a figura de Pitágoras e o pitagorismo. Isso porque, desde a Antiguidade, mas muito mais sobretudo a partir das pretensões científicas dos estudiosos e historiadores da filosofia grega no século XIX, a atenção dos investigadores se tem orientado para tentar dirimir a questão da credibilidade que se deve conceder às fontes que de maneira tão generosa nos falam de Pitágoras e dos seus seguidores, os pitagóricos. Por este motivo, qualquer estudo sobre o pitagorismo, após a grande quantidade de livros e artigos publicados, deve tentar esclarecer qual é a sua posição face ao que se começou a chamar de “questão pitagórica”. Dito por outras palavras, um estudo com garantias de rigorosidade científica deve informar qual a sua opinião sobre os testemunhos pitagóricos, para poder fazer um uso consequente deles. Como é bem sabido, os trabalhos que circulam sobre Pitágoras e o pitagorismo movem- se entre os extremos de uma aceitação acrítica das fontes e uma atitude hipercrítica que se nega a aceitar e, por conseguinte, a considerar como válidos a maioria dos testemunhos transmitidos, até ao extremo de pôr em dúvida a relevância do pitagorismo na história da filosofia grega.
Além do mais, a tudo isto é preciso acrescentar que os estudos sobre o pitagorismo, que, como se disse, oscilam entre a hagiografia e o ceticismo mais radical, acabaram por criar um emaranhado de interpretações hermenêuticas que o estudioso deve conhecer muito bem para poder conquistar uma posição ponderada e objetiva. É por isso que, desde já, consideramos acertado que o livro que estamos resenhando trate, como indicado no título, do pitagorismo como uma “categoria historiográfica”. De fato, é muito provável que não haja uma maneira mais lógica e consequente de aproximar-se do seu estudo, dadas as características do que conhecemos na atualidade como “pitagorismo”, e que abarca desde as abundantes fontes primárias e secundárias até as diversas leituras e interpretações que, até aos nossos dias, se têm realizado sobre elas.
Por tudo isto, resulta muito acertada a distribuição do livro em quatro grandes blocos com as divisões e subdivisões correspondentes. Aliás, pode-se afirmar que a estrutura do livro constitui já, em si mesma, toda uma declaração de princípios, pois oferece grosso modo, uma panorâmica acerca de qual é o método que o autor considera mais idóneo para adentrar-se nos meandros dos estudos sobre o pitagorismo. Assim, no primeiro deles, intitulado “História da Crítica: De Zeller a Kingsley”, oferece-se uma panorâmica ampla e atualizada da opinião dos mais importantes estudiosos do pitagorismo que, a partir do século XIX, determinaram as principais linhas de investigação. Deste modo, o leitor tem um fácil acesso ao status questionis das principais correntes e linhas de interpretação, de uma perspetiva cronológica e temática, o que faz com que seja especialmente útil para todos os leitores que desejem familiarizar-se, desde o início, com a larga e consolidada história das investigações sobre o pitagorismo. No segundo, intitulado “O pitagorismo como categoria historiográfica”, aborda-se o estudo do pitagorismo conjugando uma focalização sincrónica e diacrónica da qual sobressaem as dificuldades que apresentam as interpretações dos principais estudiosos, condicionadas em grande parte pela problemática suscitada pela transmissão das fontes que, na maioria dos casos e dadas as suas características particulares, condicionam por sua vez as possíveis interpretações do movimento pitagórico. Apoiando-se de modo crítico nessas fontes, o autor oferece uma análise pormenorizada dos traços mais característicos da organização e estrutura da escola pitagóricas. No terceiro, intitulado “Imortalidade da alma e metempsicose”, trata-se a questão da conceção imortal das almas e as suas transmigrações a partir da análise das fontes mais antigas e relevantes. Nesta questão, central no estudo do pitagorismo, oferece-se uma visão bastante completa da conceção da alma pitagórica, tal como a sua vinculação ao orfismo e a sua receção em Platão. Por último, no quarto capítulo, sob a epígrafe de “Números”, aborda-se a questão da importância do número no seio da filosofia pitagórica, com a intenção de esclarecer qual foi o seu verdadeiro estatuto, entre a numerologia e a matemática, e qual o alcance da sua consideração de princípio identificado com o conjunto das coisas, tal como fora formulado por Aristóteles. Neste último capítulo mostra-se novamente como o autor age com desenvoltura tanto no âmbito das fontes antigas, sobretudo no tratamento de uma figura-chave como Filolau, quanto no manuseio da ampla bibliografia que trata esta questão controversa.
Afirmamos que esta distribuição do livro merece ser considerada uma declaração de princípios por parte do autor, porque pressupõe algo que o torna particularmente valioso: isto é, que – de modo principal e prévio, como se se tratasse de uma lição introdutória e propedêutica, – nele se proporcionam as chaves interpretativas que os interessados pelo pitagorismo devem conhecer para obterem em primeira mão uma informação básica sobre quais foram as principais linhas de investigação, desde Zeller até aos nossos dias. Em relação a este assunto, como faz o autor, a questão capital é discernir qual foi a posição de cada estudioso ante as fontes pitagóricas para comprovar até que ponto esta determinou a orientação das investigações posteriores. Em todo o caso, deste resumo se extrai uma primeira consideração que afeta os estudos modernos sobre o pitagorismo: os comentadores tiveram muita consciência da fiabilidade problemática que as fontes apresentam, o que motivou, desde os inícios modernos dos estudos sobre o pitagorismo, a necessidade de concentrar-se sobre a sua investigação de forma rigorosa. Abriu-se assim o caminho para a Quellenforschung das vidas pitagóricas e das que dependem em boa parte das informações transmitidas.
Com esta bagagem, identificado o lugar de cada um dos estudiosos no interior da tradição dos estudos pitagóricos, o livro embarca-se na aplicação destes conhecimentos prévios, metodológicos e hermenêuticos em três âmbitos fundamentais, que serão tratados com profusão em cada um dos restantes três capítulos. O primeiro afeta a sua própria essência e identidade histórica, pois tenta elucidar o que se deve entender por pitagorismo, tendo em conta que, na Antiguidade, a existência deste movimento alcançou quase mil anos. Neste ponto o autor deixa claro que em caso algum põe em dúvida a existência do pitagorismo, desde as suas origens protopitagóricas, embora delimite com nitidez os seus contornos. Limites que se distinguem melhor se se deixarem de lado preconceitos anacrónicos e divisões dicotómicas que chegam a anular qualquer possível definição positiva. A conclusão é que, superando o ceticismo iniciado com Zeller, tal como a problemática distinção entre pitagorismo, religião e magia ou a suposta existência de dois grupos no pitagorismo (como seriam os matemáticos e os acusmáticos), este teve na Antiguidade uma continuidade histórica cheia de novas incorporações e matizes, até ao ponto de erigir-se ele mesmo como categoria historiográfica. Deste modo, o autor parece querer chegar a uma posição conciliadora que, consciente das dificuldades que a posição hipercrítica oferece, aceita que o pitagorismo, longe de apresentar uma forma rígida e unitária, é algo muito mais versátil e plural, susceptivel de ser analisado a partir de muitos pontos de vista. Em suma, o que hoje em dia entendemos por “pitagorismo”é apenas a soma dos diversos pitagorismos que, ao longo do processo histórico, se foram sobrepondo até gerar a amálgama que nos transmitiram as fontes tardias. Estratificar o processo, considerar a evolução diacrónica, tendo em conta os dados sincrónicos, é o caminho que o autor oferece para analisar com garantias a realidade histórica do pitagorismo.
Assentes estes pressupostos, e uma vez estabelecida a existência histórica assim como o seu estatuto historiográfico, o livro apresenta os dois capítulos seguintes com a intenção de analisar os dois campos temáticos que a tradição e as fontes antigas mais vincularam com o pitagorismo: a noção de imortalidade da alma e a função atribuída ao número.
No primeiro caso, e após ter examinado as fontes mais antigas, com o apoio da receção da noção de imortalidade da alma nos diálogos de Platão, assim como as suas afinidades com o orfismo, o autor conclui que essa ideia, apesar das reticências manifestadas por alguns estudiosos, formou parte central do pensamento pitagórico desde as suas origens. Ou melhor, o pitagorismo desempenhou um papel fundamental na absorção de elementos procedentes do orfismo que, convenientemente moralizados, foram desenvolvidos por Platão. Esta concepção do pitagorismo como um movimento vivo que foi evoluindo e mudando com o tempo permite compreender a passagem à noção de transmigração da alma, própria do primeiro pitagorismo, a sua transformação em conjunto órfico-pitagórico que entende o ciclo da alma imortal como uma sucessão de prémios e castigos para as almas boas e más, respetivamente.
Para finalizar, no último capítulo aborda-se o segundo aspeto tradicionalmente relacionado com o pitagorismo: a função exercida pelo número, sobre a qual tantas discussões irromperam no mundo académico. Neste âmbito, o autor volta a aplicar os mesmos critérios historiográficos já comentados na busca pela solução de síntese. Assim, se é certo que Aristóteles é uma fonte essencial para aceder ao conhecimento do que os “chamados pitagóricos”entenderam por número, não é menos certo que o seu mestre Platão fez uso, transpondo-os, de princípios matemáticos procedentes do pitagorismo (neste contexto mostra-se capital a análise da passagem do Filebo 16 C -23 C). A isto se deve acrescentar que alguns fragmentos de Filolau, que (contra a opinião da corrente mais cética que os considera uma falsificação de inspiração aristotélica) o autor aceita como genuínos e, por conseguinte, analisa com detalhe, oferecem uma informação que deve ser tida em consideração para obter uma apropriada aproximação ao conceito de número no seio do pitagorismo. Deste modo, como acontece no caso da imortalidade da alma, constata-se de novo um processo, após ter combinado o estudo sincrónico com o diacrónico, que demonstra que a concepção do número sofreu uma evolução que o levou de uma visão mística a outra muito mais epistemológica. Apesar dessa evolução, isto não significa que uma conceção se tenha imposto sobre a outra, como prova a tendência das fontes neoplatónicas a regressarem às exposições numerológicas do primeiro pitagorismo mais do que avançarem nas suas extraordinárias possibilidades científicas. Em todo o caso, após ter analisado criticamente as fontes, o autor deixa claro que é a função epistemológica do número que prevaleceu no seio do pitagorismo na época de Filolau: a conceção do número como instrumento para conhecer o mundo mais do que, como pretendia Aristóteles, uma simples identificação física entre número e a realidade das coisas, formulada com o axioma “tudo é número”e que tantas confusões criou na interpretação do seu verdadeiro sentido.
Em conclusão, o livro mostra-se muito aconselhável a quem deseje conhecer quais são as principais questões que rodeiam a investigação sobre o pitagorismo. A sua leitura garante uma rápida familiarização com os grandes temas discutidos durante mais de um século e meio, aproxima-nos de uma interpretação ponderada e crítica das fontes, ao mesmo tempo em que nos oferece uma base sólida sobre a qual procedecer, construindo em nossos dias a ampla e apaixonante história do pitagorismo.
Francesc Casadesús Bordoy – Professor da Universitat de les Illes Balears.