Metafísicas Canibais-CASTRO-(NE-C)

CASTRO, Eduardo Viveiros de. Metafísicas canibais. São Paulo: Cosacnaifty, 2015. Resenha de: PIMENTA, Pedro Paulo. A permanência da metafísica, pelas lentes de um antropólogo. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, v. 35, n.1, Mar, 2016

Desde sua publicação em meados de 2015, o livro de Eduardo Viveiros de Castro vem sendo comemorado por parte significativa da comunidade antropológica brasileira, e por boas razões. Trata-se de mais uma contribuição desse etnólogo à reflexão sobre o estatuto, o papel e a dimensão da antropologia como ciência social que não hesita em assumir também uma dimensão filosófica-vocação essa que muitos, inclusive este resenhista, consideram inerente a ela. É natural, portanto,que também os filósofos se posicionem diante do livro,de preferência sem aderir de antemão ao projeto em que ele se insere ou tampouco rechaçá-lo (só porque esse projeto se imiscui,sem pedir muita licença, nos domínios da filosofia).Desde o título,acertado e provocativo,este Metafísicas canibais tem tudo para alienar uma parcela do mundo acadêmico e cultural pouco afeita a irreverências com a filosofia (há uma razão para isso: volta e meia, ela é constrangida a se explicar, e mesmo a justificar a própria existência – por que filosofia? Por que filósofo? Pergunta que volta e meia se põe, como observava Rubens Rodrigues Torres Filho nos idos de 1974). O leque de referências filosóficas abertamente mobilizadas por Viveiros de Castro, que relê a antropologia estrutural de Lévi-Strauss pelo crivo de Deleuze e Guattari, constitui outro fator, se não alienante, certamente divisor, dada a paixão com que o pensamento destes últimos, atualmente divulgado à exaustão no Brasil, é aceito/rejeitado por leitores que por ele se interessam (num fenômeno similar ao que ocorre com Foucault).Mas, se é verdade que não se pode julgar o livro pelo título, e muito menos pela bibliografia, então não resta dúvida de que a chegada da obra em língua portuguesa (o texto de base surgiu na França em 2009) deve ser comemorada como uma boa-nova, pois não há dúvida de que Viveiros de Castro merece ser lido por todos aqueles que tomam a peito a filosofia e que, nessa condição, certamente receberão a obra criticamente – atitude que, se não me engano, ela mesma reclama de seu leitor.

A primeira coisa que observo é que Metafísicas canibais é um livro original não somente pelas teses que expõe, ou, melhor dizendo, que costura,como também pelo modo como as enuncia.O estilo de Viveiros de Castro é vivamente coloquial,sem nunca se tornar prosaico.O tom de sua voz,pessoal desde as primeiras páginas,não raro inusitadamente confessional, põe o leitor em contato direto com a inteligência do autor, marcada pelo raciocínio rápido, a virada engenhosa, o arremate inesperado, a ironia por vezes sarcástica, nunca desmesurada. Tudo isso, percebe-se logo, é estritamente necessário para a encenação de um balé arriscado, em que a antropologia estrutural e a filosofia contemporânea são os protagonistas. Seria impreciso referir-se à relação entre elas,tal como concebida por Viveiros de Castro,como um diálogo ou interlocução – situação demasiadamente relacionada ao logos que o autor quer descentrar.Trata-se antes de choque,fricção,desencontro, conflito e outras situações próximas do desacerto e da incompreensão, estratégia que as hábeis mãos do encenador julgam a mais conveniente para alargar as perspectivas da filosofia ao mesmo tempo que reforça a posição da antropologia como ciência com ambições filosóficas. Um clima de tensão, que resulta dessa abordagem, perpassa as páginas do livro e garante – o que não é pouco, em se tratando de uma obra com elevadas pretensões teóricas e extensas digressões conceituais-queo interesse do leitor se mantenha o mesmo,do início ao fim.

Uma das evidências de que estamos diante de um discípulo autêntico e original de Lévi-Strauss é a adoção por Viveiros de Castro de um viés bem determinado,que pauta os diferentes estudos que compõem este Metafísicas canibais, e que poderíamos descrever como um pendor, que se mostra, nas mais densas análises teóricas, para conclusões com consequências vultosas. Efeito notável, que infunde o texto com a promessa de que, atravessadas as páginas mais áridas de teoria propriamente dita, chegar-se-á por fim a um resultado de monta, que diz respeito a muito mais do que a teoria mesma que levou a ele. No caso de Lévi-Strauss,a dissolução da filosofia na etnologia,movimento coerente,que as Mitológicas finalmente executam,com as indicações e esquemas legados ao estruturalismo por Rousseau; no caso de Viveiros de Castro,a absorção mútua de certa filosofia (a de Deleuze e Guattari, mas também a de um Latour) e da única antropologia que no fundo lhe importa,justamente essa que Lévi-Strauss inventou,ao levar a sério as injunções lançadas por Rousseau à razão ocidental.Aqui e ali,trata-se em alguma medida da reforma (ou mesmo da sorte) de um saber ancestral,que,como se sabe,se encontra em plena crise desde o início do século XIX:a própria filosofia.A exemplo de Lévi-Strauss,Viveiros de Castro saboreia a ironia de que justamente um herdeiro dessa mesma filosofia – o antropólogo, logo ele, filho da Ilustração – venha a propor algo como uma reformulação da metafísica, essa “ciência” há muito combalida e desacreditada, porém resistente. É uma ideia irônica, mas que nenhum deles considera despropositada. Com efeito, a filosofia se encontra, tanto para Viveiros de Castro quanto para Lévi-Strauss,no banco dos réus – ou,melhor seria dizer,no leito de morte, tendo caducado em virtude de suas próprias deficiências e limitações (basicamente de perspectiva) e da arrogância que por séculos a fio a levou a ignorá-las. Daí a aliança com Deleuze e Guattari, que se inscrevem num horizonte de reflexão pós-metafísica. É o pano de fundo a partir do qual desponta o conceito central de toda a obra de Viveiros de Castro,ou pelo menos deste livro e do que o precedeu, A inconstância da alma selvagem: o perspectivismo. Um modo de simplificar ao extremo e mesmo banalizar Metafísicas canibais seria dizer que é uma obra de fundamentação filosófico-antropológica do perspectivismo, com vistas a assentar essa nova teoria no centro das reflexões teóricas e métodos de estudo, em campo e no gabinete, adotados pelos estudiosos simpáticos à antropologia estrutural. E mais. Uma vez adotado esse programa, sugere-se, a nova antropologia não somente prescindirá dos serviços dos antigos funcionários do logos como poderá reclamar para si as prerrogativas que um dia couberam a estes, desde Platão. Em suma, teríamos uma ciência que faz algo de fato singular: propõe uma visão de mundo,completa e abrangente.E o faz num movimento dos mais interessantes: a morte da filosofia como evento que traz o renascimento da metafísica, no seio da antropologia.

Sabiamente,o autor se recusa a rebaixar sua empreitada a um inquérito, como se a “história da filosofia” pudesse ser acessada, de repente, sem mais, a partir de um ponto de vista exterior que reduzisse a quase nada as aventuras da razão (e não só dela: entre suas acompanhantes, não esqueçamos aqui a imaginação, tão louvada pelos filósofos que entreviram o advento do saber etnológico).A insuficiência da filosofia,tal como diagnosticada pelo pós-estruturalismo(se me permitem o termo), não será identificada por nenhuma leitura rápida,com nenhum recurso aos antigos manuais que nos brindavam com a triunfante marcha da razão rumo a sua efetivação completa.Ao contrário,e pode-se dizer que quanto a isso Viveiros de Castro se coloca mesmo numa posição privilegiada,em relação àquela de Lévi-Strauss. Enquanto este,em meio a rompantes contra os filósofos,não conseguiu jamais apagar a impressão de que no fundo era um deles (e dos mais raros:um discípulo de Rousseau, talvez o único depois de Kant), nosso autor se dirige à filosofia como quem busca por uma aliada,ciente de que o título desse saber,e daquele que o pratica (filósofo), é um nome geral que recobre muitas ideias particulares, cada uma delas com suas nuances e sutilezas, algumas mais próximas de seus propósitos, outras que, de tão alheias a eles, podem simplesmente ser ignoradas. É uma estratégia inteligente, que contribui muito para o vigor dos argumentos expostos. (E representa um passo importante em relação a A inconstância da alma selvagem, onde o peremptório acerto de contas com alguns clássicos da filosofia era feito com um misto de má vontade e simplificação – Hume um herdeiro da reforma luterana,Kant,obscuro,porém conveniente etc.)

Para compreender Metafísicas canibais e saboreá-lo não é preciso,porém,concordar com esse diagnóstico,apenas embarcar com o autor em sua aventura intelectual, sem necessariamente se comprometer com ela (em sã consciência,ninguém lê Descartes ou Hegel em busca da verdade,mas,via de regra,porque são autores interessantes).É então que surge a questão de saber que sentimentos o livro estaria apto a despertar num leitor oriundo da filosofia que se interessa pela exposição como testemunho de uma vigorosa empreitada intelectual. Tudo depende, é claro, da formação de cada um, de suas leituras, dos filósofos que se está acostumado a frequentar,por assim dizer.Os leitores acostumados à filosofia surgida na França em fins dos anos 1950 não terão dificuldade em extrair muito proveito das páginas de Viveiros de Castro,pois é efetivamente com essa tradição que ele dialoga, inclusive no terreno da antropologia – se pensarmos que em 1966 Foucault encerra As palavras e as coisas saudando a etnologia de Lévi-Strauss como uma das formas legítimas do saber filosófico de nosso tempo (pois o tempo de então é também,em larga medida,o nosso).Mas é claro que nem todos os filósofos são herdeiros de Foucault. E questões inusitadas podem surgir,a partir de uma posição mais distante em relação a tudo isso.

Por exemplo, um leitor de Kant (como este resenhista) poderia observar, já no próprio título do livro, a filiação do projeto de Viveiros de Castro a uma tradição especificamente moderna, que consiste na elevação, a objeto de reflexão filosófica, de um tema raramente estudado antes do século XVIII,e em todo caso tido como de importância marginal: acuriosa permanência da metafísica, a despeito de todos os ataques e contestações sofridos por essa pretensa ciência – ou por esse saber,se quisermos simplificar as coisas.É um tema fascinante:outrora “rainha de todas as ciências”,ela se vê contestada,declara a Crítica da razão pura, por todas as partes. Mas mesmo os céticos, que a rechaçam com mais contundência, concedem a ela algum valor, que seja relativo à configuração específica da razão humana, e logo lhe concedem uma perenidade. É claro que o título cunhado por Viveiros de Castro tem um forte sabor irônico, mas nem por isso é menos sério. Em suas lições no Collège de France,Lévi-Strauss advertia:o canibalismo,estritamente falando,não existe como instituição social. O que seriam então essas “metafísicas canibais”? Precisamente isto, eu arrisco dizer: sistemas de leitura e interpretação, que surgem não da cogitação do indivíduo a respeito do mundo, mas do lugar mesmo que ele ocupa em relação a outros indivíduos, na trama das relações que perfazem isso que por conveniência se chama de mundo, natureza, totalidade, cosmos, gaia etc. Muito se discutiu, na época moderna, acerca dos limites da razão e da possibilidade ou impossibilidade da metafísica como ciência;mas,como alerta Kant, haverá metafísica enquanto houver relação e enquanto essas relações forem concomitantes a ações – ou seja, haverá metafísica enquanto houver seres (não necessariamente humanos) que atuam em consequência de necessidades sentidas, sejam elas transcendentais (Kant), sejam empíricas (Condillac, Rousseau). A esse respeito, cabe lembrar a lição de Lebrun,intérprete de Kant:pode-se esperar pelo fim da metafísica comociência,mas seria uma grande tolice aguardar por sua dissolução como instinto próprio,resultante do fato de que o homem é uma espécie de animal que cogita e pensa abstratamente;logo,sempre haverá uma metafísica, como presença surda e incontornável na constituição de todo e qualquer pensamento ou saber positivo – seja ele abstrato ou civilizado, seja concreto ou selvagem (Lévi-Strauss), seja ainda, como sugere Viveiros de Castro (na trilha de um Iluminismo expandido),animal,vegetal,pós-humano etc.Não custa muito,assim, à antropologia estrutural reiterar algo que o século xviii apenas esboçara: a equivalência entre esses múltiplos sistemas, quanto ao valor da interpretação que eles sugerem (e cada um deles sugere sua própria interpretação como única, verdadeira e necessária, ainda que restrita a um só evento ou fenômeno: logo, como relativa a quem interpreta). Que se afirme a existência de classes reais na natureza;que estas sejam reduzidas a uma síntese da imaginação,que sejam elevadas a princípios transcendentais, dissolvidas e anuladas pela perspectiva de um indivíduo qualquer – em todo caso,articula-se uma visada sobre indivíduos e relações, e é prudente deixar em suspenso qual delas deve ter prioridade ou se seriam mesmo excludentes.

Com isso, Metafísicas canibais reforça o convite, que já fora feito indiretamente pelo autor em A inconstância da alma selvagem e diretamente em conferências (que eu saiba,não publicadas por escrito) para que os filósofos sejam lidos do mesmo modo como quem se encontra diante da enunciação de uma concepção de mundo essencialmente alheia ao senso comum (teórico ou não) de cada um – experiência com que o etnógrafo/etnólogo se depara o tempo inteiro, se estiver aberto ao que a experiência, direta ou indireta, tem a lhe oferecer. Assim como seria uma perda de tempo deslocar-se até o Alto Xingu ou a Itanhaém apenas para reforçar o que os manuais de outrora e de hoje dizem sobre “povos primitivos”, de que valeria abrir as páginas de um Espinosa ou de um Aristóteles, se é apenas para confirmar o que cada um tem na cabeça e toma como verdades intocáveis a respeito do que é relevante ou não para o atual debate filosófico? É preciso conceder a um filósofo que parece falar e pensar como nós, e que parecemos compreender, a possibilidade de que aquilo que ele diz seja uma articulação estranha, de verdades cujasimplicações nos escapam, que, para ser compreendidas, exigiriam realmente algo como um descentramento de nossa razão, uma abertura tal que levasse a considerar cada sistema filosófico como a expressão de uma singularidade completa quanto ao modo de pensar.É preciso,em suma, que a ideia de uma razão ocidental seja posta em suspenso, para que a filosofia associada a essa alcunha venha a ressurgir em todo o seu esplendor e riqueza. Aceita essa premissa, na verdade bastante sensata, e silenciosamente em operação na melhor historiografia filosófica (como a de um Deleuze ou de um Lebrun, como nas leituras de um Foucault), fica difícil falar, sem mais, em logos e em razão ocidental. Por mais que os filósofos da tradição compartilhem de certos pressupostos,seriam estes suficientes,como se costuma pensar,para sustentar a unidade dessa entidade rarefeita,a razão ocidental,diante do peso e da força das singularidades de cada um? Pensamento selvagem ou pensamentos selvagens? Daí a pertinência do título escolhido por Viveiros de Castro, que fala em metafísicas, não em metafísica: se é verdade que esta morreu,com a revolução kantiana ou com a Revolução Francesa,pouco importa aqui,sua posteridade é igualmente irrecusável.Encontram-se metafísicas por toda parte – das ciências da natureza às da linguagem, da medicina à economia,da história à política e,é claro,em toda filosofia que se preze (mesmo nas pós-metafísicas, que pretendem atravessar a antiga ciência).Com as ciências humanas não é diferente,e uma lição silenciosa de Metafísicas canibais é esta: basta que se ignore ou, pior, se faça pouco da presença de uma metafísica num saber positivo qualquer para que este adquira, inadvertidamente, as feições de uma metafísica única, centralizada, pronta para suprimir a pluralidade de saberes, possíveis e existentes, às voltas com as condições de possibilidade de sua efetivação como saberes.

A sugestão que se depreende da leitura de Viveiros de Castro para a compreensão da reflexão filosófica em relação com a historicidade da própria filosofia é tão mais pertinente quando se pensa que o próprio Deleuze, cuja obra perpassa as páginas desse livro, foi antes de tudo um exímio leitor de Hume (1953), Nietzsche (1962), Kant (1963), Espinosa (1968) e Leibniz (1986). Essa série de livros pode inclusive ser vista como uma espécie de mitologia filosófica do autor, teia de referências sobre a qual repousa sua própria reflexão – ela mesma,mais um capítulo das mitológicas filosóficas que vislumbrei aqui, a partir de Metafísicas canibais. Em vista disso, uma frustração que o leitor de cabeça filosófica poderá eventualmente experimentar ao percorrer as páginas de Metafísicas canibais é a relutância mostrada pelo autor sempre que tem diante de si a possibilidade de explorar as sendas percorridas por Deleuze em sua historiografia (indissociável de sua filosofia). É o caso, por exemplo, de uma sugestão feita por Viveiros de Castro, porém não explorada, de que o perspectivismo teria afinidades com a monadologia de Leibniz. Parece indubitável que, se uma abertura como essa fosse aproveitada, o livro seria bastante diferente, embora não necessariamente melhor. Em todo caso, fica a tentação de pensar o que seria esse outro livro, que um leitor entusiasmado de Leibniz (ou de Borges) poderia inclusive supor como realmente existente – correlato metafísico, determinação complementar da mônada que é o Metafísicas canibais que temos diante de nós. (Seria esse livro aquele a que o autor se refere nas páginas iniciais – o anti-Narciso?) A etnologia de Viveiros de Castro,ousada e sugestiva, deixa assim no leitor a impressão de ser um pensamento que se estrutura à maneira do organismo leibniziano – totalidade encerrada em si mesma, máquina vital cujas partes remetem a determinações infinitas de uma substância una (cujo equivalente, no plano da exegese crítica, seria a tradição antropológico-filosófica, em constante evolução, que serve de pano de fundo ao autor).

Como toda mônada,essa se encerra em si mesma no mesmo movimento em que se abre para outras,e o leitor de filosofia tirará proveito do modo como Viveiros de Castro se posiciona em relação à tradição estruturalista e seus desdobramentos;e quem sabe se,estimulado por esse embate, não mergulhará (ou se perderá?) nos escritos de Clastres, Descola, Ingold, Sahlins, Strathern, Wagner e tantos outros que aí comparecem – incluindo, evidentemente, o saber dos “povos da selva”.É um enfrentamento estimulante,conduzido por um pensador que se põe à altura de uma corrente de pensamento para a qual sua própria obra vem contribuindo, pelo menos desde Araweté: os deuses canibais (1986).Sem mencionar que é impossível não retornar,ainda uma vez,ao Lévi-Strauss de Opensamentoselvagem e das Mitológicas – ponto de partida e de retorno de Viveiros de Castro, em sua etnografia bem como em sua própria “metafísica” (aqui já com as devidas aspas).Essa (re)descoberta de fontes poderá inclusive reforçar esta indagação, a que a leitura do livro progressivamente dá corpo:e quanto aos limites dessa metafísica tão singular, que, na pena de Viveiros de Castro, pretende contestar a metafísica clássica? Não estariam eles na articulação discursiva,na formulação dos conceitos,na leitura e interpretação das fontes, orais, escritas, simbólicas – enfim, numa certa presença, talvez incontornável,daquela racionalidade que tanto incomoda e que se pretende superar? Se essa indagação tiver sentido, o livro de Viveiros de Castro se mostrará também,entre muitas outras coisas,como uma confirmação da atualidade de Kant e de Nietzsche. E, nessa exata medida, poderá ser inscrito numa mitologia que, felizmente para todos nós, não parece dar sinais de esgotamento.

Pedro Paulo Pimenta– Professor do Departamento de Filosofia da USP.

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Oeuvres Complètes – TRACY (C-FA)

TRACY, Destutt de. Oeuvres Complètes. Ed. Claude Jolly. Volume I Premiers écrits. Sur l’éducation publique. Paris: Vrin, 2011. Volume III Élements d’idéologie, 1L’idéologie proprement dite. Paris: Vrin, 2012. Resenha de: PIMENTA, Pedro Paulo. Os antípodas franceses de Kant. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, n.19 Jan./Jun., 2012.

A publicação na França pela editora Vrin dos primeiros volumes de uma edição das obras completas de Destutt de Tracy 1, promete preencher uma lacuna importante nos estudos de história da filosofia moderna, ao tornar acessível a obra do principal representante da corrente filosófica autodenominada “Ideologia”, que vicejou durante os turbulentos anos da Revolução Francesa e prosperou sob a égide das instituições republicanas – primeiro a Escola Normal, posterior mente o Instituto – que substituíram as antigas academias e escolas reais. Entre 1794 e 1815 a Ideologia (“ciência das ideias”, ou da “análise das ideias”) dominou inconteste a paisagem intelectual francesa, que logo a seguir seria conquistada por outra espécie de ideologia – a dos alemães. A hostilidade do Idealismo (e do Materialismo) frente à escola francesa pode ser medida pela condenação da Ideologia por Engels: a exemplo do Iluminismo, a nova filosofia burguesa apenas reifica, ao querer criticá-la, a realidade 2. Em que medida uma afirmação como essa se aplicaria, por exemplo, a uma obra como o monumental Tratado de economia política (1804), de Jean-Baptiste Say, ligado à Ideologia, responsável pela libertação do pensamento econômico francês em relação aos dogmas dos fisiocratas, não nos cabe aqui examinar 3. Certo é que o ataque de Engels passa ao largo do mais importante, pois o grande legado na Ideologia não é teórico, mas institucional. Graças ao empenho dos idéologistes (que Napoleão jocosamente apelidará de idéologues ), o projeto de uma educação nacional pública e universal, formulado pelos deputados da Convenção (divisado por Condorcet), começa a se tornar realidade na época do Diretório (sob os auspícios de Garat e Lakanal); e sem o empenho dos Ideólogos não teríamos visto a “reorganização institucional da medicina” 4 que marca a França do período revolucionário e define as feições modernas da clínica.

O projeto de uma ciência analítica das ideias não chega a ser original. Como reconhecem os seus principais adeptos (Tracy, Cabanis), a nova filosofia é inaugurada por Condillac, que, a partir de 1746, com a publicação do Ensaio sobre as origens do conhecimento humano, se projetara, nas palavras de Voltaire, como “o grande metafísico” da França do século XVIII. A essa obra inicial, Condillac acrescentaria, notadamente, o Tratado das sensações (1754), a Lógica (1780) e, por fim, A língua dos cálculos, que, publicada postumamente em 1798, representa a suma dos esforços do filósofo para forjar uma liga entre a ciência dos signos (gramática geral) e a ciência das ideias (lógica geral). A enorme influência de Condillac se faz sentir já nos artigos sobre linguagem e gramática que Dumarsais, e, posteriormente, Beauzée, redigem para a Encyclopédie, e torna-se decisiva quando, em 1794, após o golpe do Termidor, a Convenção institui em Paris a École Normale, academia de ensino destinada à formação de professores para os liceus nas províncias. Os pilares da educação pública são o ensino da língua francesa (em detrimento dos dialetos locais) e o da matemática (geometria, álgebra). Programa perfeitamente conveniente à filosofia de Condillac, que concebe a análise e a invenção como os métodos (complementares) de todo pensamento como forma, que se constitui, articula-se e se expande por meio do recurso a signos – sejam eles verbais, sejam algébricos. Na base dessa ciência dos signos encontra-se uma crítica da metafísica e do conhecimento em geral, que, como mostra Condillac ( Tratado dos sistemas, 1742), muitas vezes não passa de uma deturpação metódica, mas falsa, dessa espécie de instinto natural dos homens que os leva, no conhecimento das coisas, do mais simples ao mais complexo. Educar nada mais é do que reconstituir os passos que os homens dão quando seguem a natureza – o que está ao alcance de todos, desde que devidamente orientados pelo filósofo (que conhece os caminhos que conduzem, no interior da cultura, ao encontro da natureza).

No curtíssimo período de sua existência (janeiro a maio de 1795), a Escola Normal, situada em Paris, mais exatamente no Jardin des plantes (no prédio que atualmente abriga a Galeria da Evolução), ofereceu cursos de matemática, física, química, história natural, geografia, história, moral, economia política, literatura, arte de falar e análise do entendimento, alguns deles ministrados por grandes nomes, como Laplace, Monge ou Daubenton. Transcritos por inspetores nomeados pela Convenção, tais cursos foram parcialmente publicados no século XIX, e, a partir desse material, encontram-se atualmente disponíveis em cuidadosas edições críticas 5. A partir deles, podemos ter uma ideia da efervescência intelectual da França revolucionária. Embora a presença da filosofia de Condillac se encontre inequivocamente em outros cursos, em especial nos de geometria (Laplace), história (Volney) e economia política (Vandermonde), é nas classes de arte da fala (Sicard) e de análise do entendimento (Garat) que o seu legado é mais presente.

O paralelismo entre arte da fala e gramática, de um lado, análise do entendimento e lógica, de outro, simplifica um arranjo na verdade mais interessante. Como explica Garat em sua segunda lição, “à teoria das ideias está unida, de maneira imediata e íntima, a teoria da linguagem ou das línguas”, que examina “os meios de exprimir as nossas ideias”, ou seja, que determina o modo como o pensamento se articula, adquire precisão e acabamento 6. Já Sicard, desde a primeira lição de seu curso, adverte que

Falar é uma arte, mas nem todos os povos, mesmo os civilizados, falam com a mesma pureza, com a mesma exatidão, com a mesma riqueza de expressões e de formas de frases. Os que mais avançaram nas artes são também os mais ricos em nomenclatura; os que desenvolveram mais o entendimento e tiveram oportunidade de receber mais impressões, e têm, por conseguinte, mais ideias, têm também mais signos para exprimi-las e mais variedade na maneira de expô-las e de comunicá-las 7.

O repertório de ideias enriquece a língua, que, por meio de analogias, forma termos e aumenta o vocabulário e as maneiras de expressão, tornando-se apta para abarcar cada vez mais fenômenos. Sem os signos, como advertira Condillac, não há progresso do conhecimento.

O curso de Sicard tem, porém, uma peculiaridade, que o destaca daquele de Garat, que é bastante convencional quanto à abordagem da questão. Para ensinar a arte da fala, ele ministra aulas dedicadas à formação de uma língua dos surdos-mudos. Maneira engenhosa de ensinar uma ciência que, por definição, parece estar ligada ao signo verbal, emitido pela voz (assim compreendem a gramática os grandes acadêmicos dos séculos XVII e XVIII). Para Sicard, na esteira de Condillac e dos gramáticos da Encyclopédie, o essencial da arte de falar não é a voz, mas os signos e o modo como eles ordenam e exprimem o pensamento 8. Constitui-se, ao longo de suas lições (preservadas quase que integralmente), uma doutrina original, de caráter pragmático e finalidade republicana, cujo intuito é a educação dos surdos-mudos, visando a inclusão destes na esfera política ou na vida pública nacional francesa. Ao mesmo tempo, Sicard toma posição num debate que agita os estudiosos da linguagem na virada do século. Trata-se de saber se uma possível língua dos surdos-mudos seria feita a partir das línguas faladas ou se teria uma gramática própria 9. Ora, para Condillac e os seus, uma língua nada mais é que um sistema de signos; que ela seja falada ou não, é uma contingência, que não tem força suficiente para alterar o encadeamento necessário dos signos, encontre-se ele nas línguas verbais ou na língua dos cálculos.

O ambicioso projeto a que tais doutrinas estavam vinculadas foi abortado com o fechamento da Escola Normal após poucos meses de atividade. Com a criação do Instituto Nacional, que funciona entre 1796 e 1803 (quando é dissolvido pelo Consulado), a tarefa da filosofia é outra, menos pragmática, trata-se agora de produzir “trabalhos científicos e literários que tenham por objetivo a utilidade geral e a glória da república” 10. Apesar da mudança, permanece a marca da nova filosofia, que reclama para si a herança de Condillac ao mesmo tempo em que se vincula a instituições republicanas. No Instituto, encontraremos em atividade Sicard, Garat e Volney, ao lado de Destutt de Tracy e Cabanis, que se conheceram no salão de madame Helvétius (que atravessa incólume a Revolução), e aos quais caberá renovar o pensamento de Condillac e reinventar a ciência dos signos como “Ideologia propriamente dita”. A denominação – ausente em Garat ou em Sicard – representa uma virada importante, como explica Laurent Clauzade em seu estudo magistral, L’idéologie ou la révolution de l’analyse :

A palavra Ideologia, por implicar uma oposição à metafísica e postular uma identidade entre pensamento e percepção, inscreve diretamente a ciência que ela designa no paradigma inaugurado por Condillac. No entanto, contrariamente ao que acontece com Garat, esse enquadramento não representa uma restrição. Além das modificações significativas que Tracy introduzirá na concepção de análise de Condillac, a Ideologia dará a essa doutrina um sentido radicalmente diferente, ao abrir um horizonte de pesquisa que não se limita à análise racional. (…) A Ideologia pretende realizar a doutrina de Condillac. Isso significa que ela não é mais, como em Garat, uma ciência cujo único fim é estabelecer um método universal (a análise), mas deve também se inscrever, segundo as palavras de Cabanis, numa “ciência do homem”, numa “antropologia” 11. O que se entende em Paris, no ano IV da República, por “antropologia” ou “ciência do homem” é algo bem diferente do que Hume chamara de “ciência da natureza humana” e não tem nada a ver com o que Kant chama de “antropologia”. Para Cabanis como para Tracy, o homem é, antes de tudo, um ser natural, que age por instinto antes de ter o conhecimento de regras. Condillac, Garat e Sicard haviam dito o mesmo, sem, contudo, dar o passo seguinte. Mantendo-se prudentemente dentro das fronteiras da filosofia como discurso que versa a condição de possibilidade do conhecimento, Condillac jamais ousara afirmar a pertença integral do homem ao mundo natural a ponto de considerar, como faz Cabanis, que o estudo do homem é um ramo da filosofia experimental (ligado ao tronco da fisiologia), ou, como Tracy, de concluir que a Ideologia é “uma parte da zoologia”. Essa última afirmação, feita no “Extrato ponderado dos Elementos de ideologia ” (1804), prenuncia a Philosophie zoologique de Lamarck (1809)

O engate da Ideologia na zoologia nos põe bem distantes da semiótica projetada por Condillac a partir das indicações de Locke na conclusão do Ensaio sobre o entendimento humano. Com efeito, em Tracy a ciência dos signos é subordinada a uma teoria da sensação, em que o pensamento, que Condillac deduzira da sensação mesma, desponta agora como potencialidade independente da afecção sensível, e que se exerce, portanto, em algum grau, anteriormente à aquisição de signos (dado que esta resulta da interação entre imaginação e sensação) 12. Uma tese similar a essa fora sugerida por Condillac no Tratado das sensações, mas não fora desenvolvida nas obras que se seguiram. Na versão proposta por Tracy, encontra-se o germe de certo dualismo, que o filósofo se empenhará em resolver nos Elementos e que está na origem do espiritualismo de antigos adeptos da Ideologia, em especial Degérando e Maine de Biran. Ora, como mostra Élisabeth Schwarz em estudo definitivo a respeito 13, esse aparente retrocesso no campo da teoria dos signos consagra, ao mesmo tempo, o fim da gramática geral, de que Condillac fora o derradeiro representante, e anuncia uma ruptura com o saber clássico, ou mais precisamente com uma de suas vertentes, o empirismo, que, desde Locke, andava de mãos dadas com uma ciência dos signos. A elaborada reflexão de Tracy, nos Elementos de ideologia, sobre a natureza dos signos e da linguagem, está ancorada não numa teoria da sensação, mas sim no postulado – esboçado por Condillac – de que toda atividade humana se explica, em última instância, pelo “feitio” ( organisation ) natural do homem. A afecção de objetos exteriores não incita a utilização de signos; esta decorre de capacidades fisiológicas, de uma configuração natural que o homem amplia e desenvolve, num movimento do qual nasce o mundo da cultura.

A tese de que haveria uma ruptura entre Ideologia e saber clássico não é, porém, consensual entre os estudiosos. Foucault, numa das poucas passagens de As palavras e as coisas que está ao abrigo da pecha de imprecisão histórica, traçou um vivo painel do contraste entre “a última das filosofias clássicas” e a filosofia que inaugura a modernidade:

A coexistência, no final do século XVIII, da Ideologia e da Filosofia Crítica – de Destutt de Tracy e de Kant – partilha, sob a forma de dois pensamentos exteriores um ao outro mas simultâneos, o que as reflexões científicas mantêm numa unidade destinada a dissociar-se dentro em breve. Em Tracy ou Degérando, a Ideologia se apresenta ao mesmo tempo como a única forma racional e científica que a filosofia possa revestir e como o único fundamento filosófico que possa ser proposto às ciências em geral e a cada domínio singular do conhecimento. Ciência das ideias, a Ideologia deve ser um conhecimento do mesmo tipo que aqueles que se dão por objeto os seres da natureza, ou as palavras da linguagem, ou as leis da sociedade. Mas, na medida mesma em que tem por objeto as ideias, a maneira de exprimi-las em palavras e de ligá-las em raciocínios, ela vale como gramática e lógica de toda ciência possível. A Ideologia não interroga o fundamento, os limites ou a raiz da representação; percorre o domínio das representações em geral; fixa as sucessões necessárias que aí aparecem; define os liames que aí se travam; manifesta as leis de composição e decomposição que aí podem reinar. Aloja todo o saber no espaço das representações e, percorrendo esse espaço, formula o saber das leis que o organizam. É, em certo sentido, o saber de todos os saberes. (…) A análise da representação, no momento em que atinge sua maior extensão, toca, em sua orla mais exterior, um domínio que seria mais ou menos – ou antes, que será, pois não existe ainda – o de uma ciência natural do homem. Por diferentes que sejam pela forma, pelo estilo e pelo intento, a questão kantiana e a dos ideólogos têm o mesmo ponto de aplicação: a relação das representações entre si. Mas essa relação – o que a funda e a justifica –, Kant não a requer ao nível da representação, interroga-a na direção do que a torna possível em geral.

Ao invés de fundar o liame entre as representações por uma escavação interna que o esvaziasse pouco a pouco até a pura impressão, estabelece-o sobre as condições que definem a sua forma universalmente válida. Dirigindo assim sua questão, Kant contorna a representação e o que nela é dado, para endereçar-se àquilo mesmo a partir do qual toda representação, seja qual for, pode ser dada 14.

Concorde-se ou não com a tese geral defendida por Foucault nessa passagem, permanece válido o contraste proposto entre Ideologia e Crítica. Além de instrutivo, o quadro desenhado fornece o programa de uma investigação, de cunho histórico-filosófico, sobre eventuais documentos que pudessem atestar, de fato, a rivalidade entre os dois projetos filosóficos que rivalizam no ocaso do Século das Luzes. Pois, em certa medida, é da herança das Luzes que se trata em ambos. Infelizmente, Kant nunca disse palavra acerca dos idéologues, nem mesmo de Condillac (muito lido na Alemanha de seu tempo).

Em compensação, a crescente reputação do filósofo alemão não tardou a chegar a Paris, onde a Crítica foi examinada justamente por aqueles que mais razão tinham de recear a sua influência.

O fato de a Alemanha ser um país periférico no mapa das Luzes talvez explique porque os franceses não tenham se dado ao trabalho de ler Kant no original. Com pouquíssimas exceções, contentaram-se com exposições de segunda mão. Será preciso esperar por Madame de Stäel para advertir os franceses de que Kant, por ser um grande estilista da língua alemã, só pode ser compreendido adequadamente pelos conhecedores desse idioma 15. Para os idéologues, porém, o ato da leitura não deixa de ser um embaraço. Como diz Tracy, “os signos, por mais vantajosos que sejam, têm inconvenientes”, o principal deles sendo a opacidade desses meios de representação, que não têm nada em comum com as ideias 16. Mais vale, portanto, na leitura de uma obra de filosofia, guiar-se por certo tino conceitual do que se deter na forma da exposição. Um abregée competente da Crítica da razão pura pode valer mais do que a obra mesma, principalmente se o objetivo de quem o lê for não refutar uma doutrina e sim marcar posição em relação a ela. Por isso, Tracy, autor de um “Extrait raisonée” dos Elementos de ideologia (a título de “tableau analytique” da obra) não hesita em recorrer, em sua comunicação “De la métaphysique de Kant” (1802), ao livro de J. Kinker, “Essai d’une exposition succinte de la Critique de la raison pure ” (Amsterdam, 1801) 17, em busca de um tableau analytique que Kant não ofereceu (os Prolegômenos são outro livro, não um apanhado da Crítica da razão pura ).

Tracy, endereçando-se aos “cidadãos da república” (estamos no sétimo floreal do ano 10 da Revolução), começa elogiando as virtudes de Kant, que além de “célebre por um grande número de obras, justamente estimadas, de muitos gêneros”, contribuiu “para o progresso das luzes e para a propagação de ideias saudáveis e liberais”. Os alemães, contudo, parecem não ter compreendido esse espírito, pois “professam a doutrina de Kant como se estivessem professando a doutrina teoló gica de Jesus, de Maomé ou de Brama”. Confundem assim a qualidade do pensamento com a “autoridade do homem”, e na virada do século estão na mesma situação que os franceses de outrora, embasbacados com o pensamento de Descartes, cegos para a ciência de Newton 18.

Por essa mesma razão, os alemães condenam em bloco os franceses como “discípulos de Condillac”, ignorando, todavia, que “não são as decisões de Condillac que nós respeitamos, é o seu método que mais nos importa (…), por mostrar, melhor que qualquer outro, no que consistem a clareza das ideias e a justeza do raciocínio”. Essas considerações justificam que se submeta, como fará Tracy ao longo de sua conferência, “o sistema alemão” ao crivo do “método francês” 19.

O exame da filosofia de Kant empreendido por Tracy é marcado por numerosas imprecisões e erros, que poderiam ter sido facilmente evitados com a leitura, mesmo que superficial, da Crítica da razão pura (que Tracy alega ter consultado, na versão em latim). O mais flagrante é a declaração de que Kant nada diz acerca da faculdade que Tracy considera a mais importante na formação dos conhecimentos: o juízo 20.

Mesmo supondo que Tracy tivesse lido a “Analítica dos princípios”, não encontraria ali motivos para rever substancialmente essa posição, dado que aquilo que Kant chama de juízo não é bem “a faculdade elementar e radical (…) de sentir a conveniência ou inconveniência ou, numa palavra, as relações entre uma representação e outra” 21. Em vista de um “erro” tão acertado como esse, não surpreende encontrar, no cerne da conferência de Tracy, uma afirmação que mostra, de maneira incontestável, que o filósofo francês estava perfeitamente ciente do que opõe a Ideologia à Crítica. Foucault está certo: a rivalidade entre esses dois projetos filosóficos é explicada pela aspiração, compartilhada por ambos, de se elevar à condição de árbitro supremo nas decisões referentes à natureza, à origem e aos limites do conhecimento humano. Tracy reconhece que Kant faz contribuições valiosas para a filosofia. Não é o conteúdo da Crítica que o incomoda; é a pretensão de examinar o conhecimento a partir de uma instância exterior à experiência.

O que se entende por esse conhecimento puro que possuímos em nós mesmos antes que a experiência tenha ativado a nossa faculdade de conhecer ? Seria o conhecimento dessa faculdade em si mesma, tomada no exame de seus próprios atos? Mas então seria o resultado da ação de nossas faculdades intelectuais, empregadas na descoberta de seus procedimentos, de suas leis, de seus limites, por meio do estudo de seus efeitos. Esse conhecimento pretensamente puro constituiria, e na verdade constitui, a ciência ideológica. Pode-se, se assim se preferir, classificar sob o nome de conhecimentos de experiência todas as outras partes da física, vale dizer, o conhecimento de todos os seres que afetam a nossa inteligência. Mas o primeiro desses conhecimentos é um conhecimento experimental, uma ciência de fatos, assim como o segundo: e, portanto, a crítica (ou exame) da razão pura é um tratado de ideologia, e isso, efetivamente, é o que ela deve ser 22.

É óbvio que Tracy reduz assim a Crítica da razão pura a um livro de epistemologia, ou melhor, a uma lógica dos princípios do conhecimento, ignorando por completo a importância da Dialética transcendental na arquitetura da obra. Sem mencionar a banalização do significado do termo crítica, que Tracy emprega em acepção cartesiana de exame, que não é senão uma das significações inscritas no uso de Kant, muito mais sofisticado. Não se deve esquecer, porém, que Tracy, além de escrever no calor da hora, utiliza uma fonte de segunda mão – atenuantes que não podem ser alegados em defesa dos inúmeros comentadores de Kant que, muitos anos depois, e até os dias de hoje, cometeram equívocos muito similares, sem, no entanto, apresentar, como contraparte, um sistema filosófico coerente e original. Em todo caso, a redução da Crítica da razão pura a um “tratado de ideologia” é muito astuciosa: esvazia a obra de suas pretensões hegemônicas, ao desautorizar a instauração da instância transcendental.

A perspicácia de Tracy se mostra ainda na compreensão – que escapa a muitos comentadores de Kant – da importância da “Estética transcendental” para a constituição de uma “teoria da experiência” (e, consequentemente, para uma crítica da metafísica clássica). É aqui, no plano de uma investigação sobre a natureza da afecção sensível, que deve se decidir o embate entre Ideologia e Crítica. Não por acaso, nesse mesmo ano de 1802, Degérando, ainda perfilado à Ideologia, dedica um capítulo inteiro de seu tratado De la génération des connaissances humaines a uma crítica da doutrina exposta por Kant na “Estética transcendental”, intitulado “Exame do sistema de Kant sobre a geração das ideias” (e não da intuição sensível, como prefere Kant) 23. Para Tracy e Degérando, o equívoco de Kant e dos seus discípulos é ignorar “a maneira como formamos as ideias de extensão e de duração, e por conseguinte, também aquelas, mais compostas, de espaço e de tempo, que se formam a partir delas”. Bastaria, para “desfazer esse embaraço, decompor essas ideias gerais, examinar as ideias elementares de que elas são extraídas, e chegar aos primeiros fatos, às percepções simples, às sensações de que elas emanam”, ou então, na falta disso, “suspender o juízo e renunciar à explicação de algo que não se pode conhecer claramente” 24. Para Tracy, termos como “forma”, “puro” e “transcendental” não significam nada, são “abstrações”, ou puro jargão, que os alemães utilizam movidos por um preconceito contra “o método simples” da análise. A acusação não é nova. Fora feita por Condillac, em 1746, contra Wolff. Embora compartilhe com este a concepção de que os signos são essenciais ao pensamento, Condillac o censura pelo método sintético com que demonstrar essa doutrina, que exigiria, ao contrário, para ser confirmada, uma paciente gênese das faculdades do pensamento a partir da sensação 25. Vem de longe, portanto, a incompatibilidade entre os dois grandes projetos filosóficos que aspiram à hegemonia no ocaso do Século das Luzes.

No mesmo ano em que Tracy pronuncia a sua conferência e Degérando publica o seu tratado, Charles de Villiers se apresenta como adepto da filosofia kantiana, em La philosophie de Kant. Resenhando esse compêndio poucos meses após a sua aparição, Friedrich Schlegel dirá – não sem alguma ironia – que A oposição [entre Crítica e Ideologia] não existe (…). É óbvio que na Ideologia francesa dificilmente se encontra algo que o idealismo não possa aceitar, especialmente quando é tratado com a precisão e o espírito verdadeiramente científico que se observam no Projeto de Elementos de ideologia, de Destutt de Tracy (…) A Ideologia seria, na verdade, uma excelente introdução aos princípios da filosofia transcendental, tarefa que os autores alemães negligenciaram 26.

A ideia um pouco inusitada de que um sistema de filosofia pudesse ser introdução a outro vai muito além do ecletismo (a Ideologia prepararia o leitor para a Crítica). Schlegel se refere, entretanto, ao projeto de Tracy, não ao livro mesmo, Elementos de ideologia, obra volumosa que, na concepção do autor, teria nove ou dez partes (cinco foram escritas, e publicadas entre 1801 e 1815).

No judicioso plano das obras completas de Tracy, organizadas e editadas por Claude Jolly, os Elementos ocupam os volumes 03 (“A ideologia propriamente dita”), 04 (“Gramática”), 05 (“Lógica”) e 06 (“Economia”, “Moral”). O volume 01 contém os primeiros escritos (incluindo uma resposta a Burke) e o relatório sobre a educação e a instrução pública, o volume 02 reunirá os ensaios (dentre eles o discurso sobre a metafísica de Kant), o volume 07 trará o comentário sobre o Espírito das leis de Montesquieu, e o volume 08 será dedicado à correspondência. Como não há, no primeiro volume, uma exposição do plano geral da edição, ficamos sem saber se terão ou não lugar, nessa edição que se autodenomina “completa”, importantes documen

Notas

1.DESTUTT de TRACY.Oeuvres complètes. Ed. Claude Jolly. Volume I: Premiers écrits; Sur l’éducation publique. Paris: Vrin, 2011; Volume III: Élements d’idéologie,.L’idéologie proprement dite. Paris: Vrin, 2012.

2.Ver EAGLETON, T. Ideologia. Trad. Luis Carlos Borges e Silvana Vieira. São Paulo: Boitempo/Unesp, 1997, pp. 66 – 69. Desnecessário acrescentar que Eagleton toma o partido de Engels

3.O leitor pode decidir por si mesmo, consultando a impecável tradução do tratado realizada por Balthazar Barbosa Filho em SAY, J.-B.Tratado de economia política, São Paulo: Abril Cultural, 1983.

4.As palavras são de FOUCAULT, M. Naissance de la clinique, cap. 04. Paris: PUF, 1963

5.Publicadas a partir da década de 1990, em quatro grossos volumes, pelas edições Rue d’Ulm, ligadas à atual École Normale Supérieure.

6.GARAT, D. J. Leçons de l’analyse de l’entendement, 2ª lição, ed. Gérard Gengembre: L’école normale de l’an III. Leçons d’analyse de l’entendement, art de la parole, littérature, morale. Paris: Éditions rue d’Ulm, 1999, p. 86

7.SICARD, R.-A. C. “Leçons d’art de la parole”, 1ª. lição. In: DHOMBRES, J.et DIDIER, B. Leçons d’art de la parole, 1ª lição, ed. Élisabeth Schwarz. L’école normale de l’an III. Leçons d’analyse de l’entendement, art de la parole, littérature, morale.Paris: Éditions rue d’Ulm, 1999, p. 235.

8.Ver a respeito AUROUX, S.La sémiotique des encyclopédistes. Paris: Payot, 1979.

  1. Para os desdobramentos da discussão na Alemanha, ver o estudo de FORMIGARI, L. La sémiotique empiriste face au kantisme. Liège: Mardaga, 1994
  2. Ver JOLLY, C. Introdução a Destutt de Tracy, “Élements d’idéologie”. In: Oeuvres complètes III, p. 09
  3. CLAUZADE, L. L’idéologie ou la révolution de l’analyse. Paris: Gallimard, 1998, pp. 28 – 29.
  4. Ver CLAUZADE, L. L’idéologie ou la révolution de l’analyse, pp. 143 ss

13 SCHWARZ, E. Les Idéologues et la fin de la grammaire générale. Lille: Service de réproduction de thèses, 1978

14.FOUCAULT, M. As palavras e as coisas, “Os limites da representação”. Trad.

Salma Tanus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1990, pp. 256 – 57.

15.STÄEL, M. de. De l’allemagne, cap. XIX: “Kant”. Paris: Gallimard Poche, 1990.

16.DESTUTT de TRACY, “Elementos de ideologia”, I. In: Oeuvres completes, III, p. 260

17.Kinker é um dentre os muitos estudiosos da filosofia de Kant na Holanda à época; ver a respeito Le ROY, A.Jean Kinker. Sa vie et ses travaux. Paris: 1867.

  1. DESTUTT de TRACY. Mémoire sur la faculte de penser/De la métaphysique de Kant, ed. Anne e Henry Deneys. Paris: Fayard, 1978, pp. 244-45; 247-48.

19.Idem, pp. 246-47.

20.Idem, pp. 257-58.

21.Idem, p. 257.

22.Idem, p. 263.

23.Ver a respeito AZOUVI, F. e BOUREL, D. De Königsberg a Paris. La réception de Kant en France. Paris: Vrin, 1991.

24.DESTUTT de TRACY. Mémoire sur la faculté de penser/De la métaphysique de Kant, pp. 270 – 71.

25.CONDILLAC, E. B. Condillac, Essai sur l’origine des connaissances humaines, I, 04, 02, parágrafo 27. Paris: Galilée, 1973.

26.Citado por AARSLEFF, H.From Locke to Saussure. Essays on the study of language and intellectual history. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1971, p.351

Pedro Paulo Pimenta – Professor de Filosofia Moderna na USP.

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