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Nietzsche e a arte de decifrar enigmas: treze conferências europeias – MARTON (CN)
MARTON, Scarlett. Nietzsche e a arte de decifrar enigmas: treze conferências europeias. São Paulo: Edições Loyola, 2014. Resenha de: PIMENTA, Olímpio. Cadernos Nietzsche, v.36 n.1 São Paulo jan./jun. 2015.
Tornar legível a obra de Friedrich Nietzsche e, com isso, fazer com que os pensamentos nela expressos possam ser experimentados por quem os lê é um compromisso dos mais altos no que toca a nós, seus estudiosos brasileiros. Afinal, não obstante a ampla difusão de seus livros e ideias, correlata ao amadurecimento dos estudos nietzschianos no país, resta muito ruído em torno da sua recepção, inclusive nos meios acadêmicos. A responsabilidade filosófica do pensador alemão é ainda hoje contestada; também se discute em que medida as principais formulações que compõem a variadíssima paisagem teórica de seus escritos podem ser consideradas filosoficamente consequentes.
As dificuldades se multiplicam ao se ter em conta que os fins visados pela obra, mas também os meios mobilizados para alcançá-los, são muito diferentes dos que se reconhece como aqueles que legitimam uma filosofia. Não há ali uma ordenação conceitual sistemática, não se persegue a verdade nos termos convencionais, se está sempre a uma distância segura de doutrinas constitutivas de uma dogmática. Não parece assim proveitoso ler Nietzsche como um filósofo entre outros, como um filósofo qualquer.
Programaticamente inteiradas disso, as treze conferências que integram este “Nietzsche e a arte de decifrar enigmas” constroem, com grande felicidade, toda uma rede de caminhos alternativos para a frequentação da obra a que se referem. Se seu propósito é priorizar a análise de como ganham vida as proposições que veiculam os assim chamados conteúdos do pensamento nietzschiano, o perspectivismo que anima as investigações em curso se encarrega de viabilizá-lo de forma muito acertada. Pois um dos aspectos mais notáveis do conjunto desses textos, a par da excelente recensão bibliográfica em que se apoiam, é exatamente a fecundidade heurística do manejo de perspectivas que neles se exercita.
Por si só um tour de force, o tratamento de todos os títulos que compõem a obra preparada para a publicação pelo filósofo produz, assim, resultados estimulantes, principalmente em função dos ângulos escolhidos para a sua abordagem. A evidente familiaridade da autora com o corpus nietzschiano e sua fortuna crítica permitiu-lhe circular no âmbito de cada livro e nos intervalos entre eles através de passagens invisíveis a um olhar menos experimentado. Assim, a tematização de quase tudo o que confere interesse ao universo visado é oferecida ao leitor segundo uma inspiração nitidamente afim à que nele vigora. Por meio da exposição clara e da argumentação rigorosa que acompanham as articulações propostas são iluminadas questões cujo entendimento não é propriamente simples, dado seu caráter enigmático. Na intenção de esboçar possíveis roteiros de leitura, sugerimos a seguir algo a respeito do repertório consolidado pelos estudos reunidos no volume.
Para saber a que aspira o projeto filosófico nietzschiano em sua vertente propositiva, o mais recomendado é começar pela leitura dos capítulos 6 e 11, dedicados respectivamente a Assim falava Zaratustra e Crepúsculo dos ídolos. Tendo como norte o problema da transvaloração dos valores, isto é, as perguntas a respeito de se e como uma filosofia afirmativa da existência é viável e pode intervir nos rumos da civilização, estes dois capítulos indicam os elementos centrais para discutir o encaminhamento para elas elaborado pelo filósofo. O horizonte da transvaloração surge, assim, como bastidor mais abrangente para a inscrição da visada geral da obra em sua totalidade, funcionando como ponto de convergência das melhores expectativas que se pode alimentar quanto ao uso autorizado da filosofia de Nietzsche.
Em contrapartida, se se quer perceber sob que condições e em confronto com o quê Nietzsche esgrimiu seu pensamento, cabe examinar as observações feitas nos capítulos 2, 9 e 11 a propósito das Considerações extemporâneas, de O caso Wagner e de O anticristo. Nesta revisão da vertente crítica do projeto nietzschiano, destacam-se a denúncia ao filisteísmo cultural, feição ostensiva da barbárie moderna e sintoma de um tipo de sensibilidade mórbida cujo nome genérico é wagnerianismo; a análise da corrupção dos instintos que domina a psicologia dos homens modernos, genealogicamente vinculada à debilidade afetiva típica de uma espiritualidade educada pelo cristianismo; e por último uma minuciosa restituição das práticas que permitem ao indivíduo manter ou recuperar sua saúde a partir do exercício da leitura.
Para fazer jus à prosa das conferências, assinalemos de passagem que, nelas, os temas vêm à baila longe da forma esquemática que lhes emprestamos aqui. Deve-se considerar sua apresentação como algo mais parecido com a atividade de jogar com um caleidoscópio: embora os mesmos elementos estejam sempre presentes, o que conta para o efeito são as combinações que, nos casos em vista, impressionam muito bem.
Outro grupo de estudos que mantém entre si uma espécie de ar de família é aquele que remete a Humano, demasiado humano, Aurora e A gaia ciência, capítulos 3, 4 e 5. Em comum, partilham a adoção de estratégias mistas de acesso às fontes. Associa-se o cuidado com a letra dos aforismos, patente na restituição muito plausível do encadeamento de determinadas sequências deles, à remissão às influências mediatas e imediatas que atuavam sobre o filósofo à época da redação dos livros.
Quanto a Aurora, a análise se volta para a explicitação das relações entre a epígrafe e as discussões desenvolvidas sob sua égide. Contesta com sucesso alegações posteriores do próprio filósofo a respeito da consumação da transvaloração dos valores, neste livro ainda em processo preparatório. O exame do trecho que vai do anúncio da aliança entre filosofia, história e ciências naturais até o diálogo com a pintura “Transfiguração” de Rafael é deveras fecundo no sentido de estabelecer a contestação mencionada.
Quanto a Humano, demasiado humano, tratou-se de distinguir com precisão as vozes do moralista e do iluminista que nele se ouvem, na esteira da influência de Pascal e Voltaire. O mais curioso, porém, é o arranjo que tornou isso possível. Tomando como fio de ouro o contraste entre duas circunstâncias da condição feminina, as mulheres na órbita doméstica e as mulheres emancipadas, procurou-se aferir a qual dos predecessores caberia remeter o que é dito em certos aforismos, sob a clivagem definida por essas rubricas. O saldo aponta, não sem alguma ambivalência, para um Nietzsche partidário da exclusão feminina do espaço público.
Entretanto, e isto é o que confere um interesse específico ao capítulo, encontra-se também nele uma discussão metodológica assaz desafiadora. Uma vez que diversas declarações de Nietzsche, citadas em conexão com o debate sobre o feminino, parecem pressupor uma base sobretudo biográfica, a autora defende, sem hesitação, que contextualizações dessa natureza não se prestam a iluminar textos filosóficos. Tal posição assegura a Nietzsche o benefício da dúvida em relação ao partido por ele tomado, mas traz consigo um inconveniente ponderável. Afinal, muito do que é demonstrado alhures a favor da vertente construtiva do seu pensamento decorre da admissão do nexo constitutivo entre vivências e reflexão. É certo que, nos exemplos que o capítulo propõe, fica decidido que uma correspondência mecânica entre vida e obra não é um procedimento inteligente, e que tampouco a psicologização de um pensamento ou de uma teoria ajuda a esclarecê-los. Mas isto é pouco diante do grande número de oportunidades em que variações do recurso repudiado são mobilizadas com proveito. De mais a mais, chega a ser muito engraçado, por exemplo, que a solene enunciação cosmológica do eterno retorno apareça temperada pela evocação de certos parentes como principal obstáculo à sua vivência.
Quanto a A gaia ciência, tem-se uma retomada bem sutil da questão do feminino a partir de sua luminosa conexão com a recusa do essencialismo. Seja à moda do realismo positivista, que estipula a existência de fatos naturais evidentes, seja à moda do realismo metafísico, que estipula a existência de verdades eternas evidentes, a idealização de algo como a “mulher em si” deve ser finalmente superada. Em seu lugar, compete prestar atenção aos processos complexos e particulares que ocorrem junto a mulheres em situações e papéis típicos, de modo a que o conhecimento então obtido tenha alguma chance de ser verdadeiro. Aliás, em sendo a verdade mulher, vale estender o procedimento a tudo quanto o que se deseja saber, caso se pretenda ultrapassar as mentiras do saber dogmático. Sob esta luz, talvez faça mais sentido a restrição metodológica manifestada, pois é incrível que um pensador dotado de tamanha perspicácia possa se revelar um pobre misógino.
É digno de registro que, apesar de termos reunido num mesmo grupo os livros do chamado período intermediário, isso não reflete qualquer opção tomada pela obra em tela. Muito ao contrário, os recortes da periodização costumeira são pulverizados pela reflexão que ali se efetua. Embora úteis, de um ponto de vista didático, por demarcarem uma tópica que livra o leitor iniciante da perplexidade, eles são substituídos pela reconstrução genealógica do percurso filosófico do próprio pensador, procedimento muito mais elucidativo.
Nos capítulos 7, 12 e 13 concentram-se ocorrências exemplares do bom uso da implicação entre pensamentos e vivências. Cuidando de esclarecer o modo como Nietzsche propõe uma reformulação dos móveis tradicionais da filosofia em bases experimentais, a investigação sobre Para além de bem e mal firma as vantagens cognitivas e epistêmicas da reflexão atenta à fisiopsicologia. Diante da alegação de uma oposição fundamental entre os valores, própria dos credos hegemônicos no Ocidente, importa menos a obsessão dialética em esgotar as razões a favor e contra sua crença do que investigar a que tipos humanos ela serve. Vê-se na discussão de Nietzsche contra Wagner que são tipos humanos antípodas de Nietzsche, num sentido decisivo: para viver, precisam de forjar crenças estáveis, já que sofrem por suas carências; ao passo que ele deseja criar, à revelia de qualquer fé, por sofrer de modo muito diverso, em função da abundância de interesses, disposições afetivas e recursos que o habitam. Tais colocações suscitam, de direito, a pergunta: mas, afinal, quem é este Nietzsche? Como esclarece a leitura de Ecce homo, não se trata de um sujeito substancial duplicado, como o que responde pelas páginas biográficas do “Discurso do método”, nem tampouco de um eu que dramatiza em si a existência, como o que figura nas “Confissões”. Mais provavelmente, está-se ali às voltas não com um personagem, mas com um topos, um lugar em que se desenrolam toda sorte de vivências, estimuladas pelos mais variados afetos, sob circunstâncias experimentais também proteiformes. Diferentemente do que acontece na seara do dogmatismo, um espetáculo como esse tende a atrair para si os favores da verdade, cumprindo dessa forma inaudita os mais veneráveis desígnios da filosofia.
Tamanha abertura ao que é plural na ordem da investigação demanda uma contrapartida à altura no que diz respeito ao registro e à transmissão do pensamento. Cabe evitar que as ideias convertam-se em dogma, o que só se alcança mediante um uso singular do discurso filosófico. Mais um enigma se esclarece: por fazer parte de um mundo destituído de características cristalizadas, um filósofo precisa de esvaziar sua enunciação de qualquer traço identitário generalizante, o que só se obtém quando se domina a arte de perspectivar os acontecimentos a partir de sua mais enxuta particularização. O texto, então, enquanto comunica um determinado pathos, nada fala da pessoa de seu suposto autor. Ganha o máximo de objetividade na proporção inversa de seu apelo universal. Nessa mesma medida, seleciona seu leitor, evitando que a condição especial das vivências nele tornadas pensamento seja confundida com qualquer lição doutrinal ao alcance de todos.
Os estudos dedicados a O nascimento da tragédia e à Genealogia da moral, capítulos 1 e 8, organizam-se em torno do exame de hipóteses de leitura imanentes relativas às duas obras. Dotados de uma dicção mais marcadamente acadêmica, argumentam, quanto ao primeiro, contra a presença estruturante de uma dialética ascendente no curso do desenvolvimento da exposição; e, quanto ao segundo, contra a impressão de que a exposição teria caráter linear e demonstrativo, constituindo uma espécie de extrato das concepções nietzschianas acerca dos fenômenos morais. Pelas características assinaladas, e também por cuidarem de restituir o principal das posições teóricas expressas pelo filósofo em ambos os livros, funcionam como boas introduções às suas respectivas problemáticas.
Leitor de Scarlett Marton desde a publicação do seminal “Nietzsche: uma filosofia a marteladas” (São Paulo: Brasiliense, 1982), desejo arrematar essa conversa lançando um olhar de sobrevôo ao movimento desenhado por seus escritos mais recentes. Se já havia ficado contente com “Nietzsche, filósofo da suspeita”(São Paulo: Casa da Palavra, 2010), graças à liberdade que se respira ali, considero ter reencontrado agora essa mesma liberdade, acrescida de um elemento novo, que distingue um intérprete original: a invenção.
Olímpio Pimenta Professor da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Ouro Preto, Brasil. E-mail: olimpix@ig.com.br.
A alma e as formas – LUKÁCS (AF)
LUKÁCS, Georg. A alma e as formas. Introdução de Judith Butler; tradução, notas e posfácio de Rainer Patriota. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. Resenha de: PIMENTA, Olímpio. Artefilosofia, Ouro Preto, n.19, 2015.
Há quase três décadas, então estudante de graduação em Filosofia, recebi as lições que viriam a constituir o escasso acervo de meus conhecimentos sobre a obra do pensador húngaro G. Lukács. Na ocasião, na esteira da avaliação do próprio autor, sublinhava-se que seu desenvolvimento filosófico tinha um caráter inequivocamente evolutivo, com o que a formulação sistemática da “ontologia do ser social”, núcleo de sua produção tardia, seria também o resultado mais importante de todo o percurso. Era uma abordagem que favorecia pouco os trabalhos de crítica literária dos primeiros tempos, e os ensaios reunidos no livro de 1911 ficaram, assim, envoltos em sombra.
Se, em algum a medida, este caso representa uma situação mais ampla, pode-se perceber a relevância do aparecimento entre nós do livro de estréia de Lukács, em edição amparada por estudos críticos muito elucidativos de Judith Butler e do próprio responsável pela tradução e pelas notas ao texto, Rainer Patriota. Pois, em que pese a apreciação desfavorável aludida acima, parece-nos que os escritos em foco, embora desiguais quanto a alcance e mérito intrínseco, formam um conjunto bastante coeso, versando sobre um extenso repertório de temas literários e filosóficos, organicamente articulados à meditação sobre nossa condição existencial.
O princípio organizador da reflexão é idealista, estabelecido logo no âmbito dos dois exercícios iniciais “Sobre a forma e a essência do ensaio” e “Platonismo, poesia e as formas”. Concebida como busca por elevação acima d o tumulto sem sentido da vida comum, a jornada da alma só se realiza ria de modo pleno mediante a configuração integrada do que ali aparece disperso e fragmentário. As estruturas complexas que emergem em sua atividade, propostas como articulação necessária entre fins e meios, intenção e execução, conteúdo e aparência, interioridade e exterioridade, são as formas a que se almeja. Seria um programa de trabalho razoavelmente convencional, capaz até de produzir resultados triviais, não fosse a disposição experimental de quem o conduz. Pois uma das razões do interesse destas primícias lukácsianas é a ausência de dogmas entre seus elementos constitutivos, sinal de uma atitude investigativa honesta, dominada pela curiosidade.
Segundo tal inspiração, um grande atrativo dos ensaios em foco é o estabelecimento, em seu desenrolar, de conexões múltiplas entre os móveis de sua atenção, capazes de evidenciar o copertencimento entre estratos distintos da realidade, mas também entre fenômenos que à primeira vista nada teriam a ver uns com os outros. As formas, ou se se quiser, as ideias, quase sempre entretêm boas relações com a vida — a exceção mais ostensiva estando na angustiada visão das coisas presente nos dois últimos textos, “Metafísica da tragédia” e “Da pobreza de espírito” –, porque são pensadas não apenas como essência incondicional da totalidade, mas também como algo cuja realização no mundo só ocorre a partir do vivente que experimenta. Empresta-se, assim, um caráter muito dinâmico à já referida demanda por sentido. Em função disso, os nexos entre o material de que se parte e a composição a que se chega não são rígidos nem unívocos, como se fossem resultado da sujeição do múltiplo da vivência a regras universais, mas mostram-se compatíveis com a variedade efetiva, tanto dos problemas humanos e das questões artísticas ventilados, quanto das possibilidades de um equacionamento formal que os unifique. Uma tal abertura de espírito é o que torna viável a aproximação entre, por exemplo, Platão e Montaigne, reivindicados como expoentes máximos do ensaísmo a que se pretende filiar o próprio livro.
Todavia, como se sabe, boas intenções costumam não ser o suficiente. Aos olhos deste leitor noviço, o que assegura força aos ensaios é o sucesso n a aplicação de sua estratégia global. Firmada a tarefa de acompanhar o trânsito da alma entre e vida e as formas, optou o autor pelo exame de uma série de obras em que os diversos aspectos da relação entre esses dois pólos puderam ser acompanhados segundo um extenso leque de especificidades. Portanto, por mais heterogêneos que sejam os casos estudados, cabe tomar o que temos em mãos como um conjunto de variações sobre um mesmo tema de fundo. Porque multifacetado, tal tema admite associações muito diversas, conforme os propósitos e o colorido próprios de cada objeto visado. Porém, não obstante a peculiaridade das partes, a feição final do todo é bem proporcionada, justamente porque o plano que a ordena cumpre à risca o que promete. Correndo algum risco de impertinência, imaginamos acertar ao entender o notável resultado dos esforços aqui empreendidos por Lukács como efeito da compreensão da s forma s como perspectiva s, de preferência a estruturas essencialmente invariáveis. Os momentos em que isto fica mais nítido estão nos ensaios sobre Kierkegaard, Sterne, Storm e Novalis, respectivamente “Quando a forma se estilhaça ao colidir com a vida”, “Riqueza, caos e forma”, “Burguesia e l’art pour l’art ” e “Sobre a filosofia romântica da vida”.
O tratamento d ado ao filósofo escandinavo prima pela percepção nuançada do alcance de um gesto de separação que decidiu em definitivo o rumo posterior de sua vida e de sua produção intelectual. Apesar de realçar a tensão entre est as duas esferas, o ensaio termina provando a consistência paradoxal vigente na relação entre elas: somente a renúncia a uma vida afetivamente significativa tornou Kierkegaard apto a cumprir seu destino, assegurando-lhe de uma vez por todas aquilo que teria sido perdido pouco a pouco a cada dia. Junto a o escritor irlandês, em contrapartida, admite-se, ao termo de um diálogo muito movimentado, o triunfo da riqueza vital da forma aberta sobre a exigência do sacrifício da vida à forma acabada. Aliás, em nenhum outro ponto do livro a combinação entre vida e forma mostra resultados tão animadores, frutos de uma reciprocidade que marca um dos extremos no espectro de possíveis encaminhamentos para seu tema central.
Também em relação a Novalis, encontramo-nos em presença de uma coerência insuspeitada, mas cujo balanço em termos da forma presta-se à demonstração de uma ruína. Um distanciamento cordial d o romantismo garante a Lukács um ponto de vista independente a respeito d a questão alemã. Até onde pude ver, ele trata aqui de ambos os assuntos livre de qualquer partidarismo, com o que suas análises ganham em pertinência e agudeza, ensinando sobre o que expõem sem querer doutrinar. Assim, embora a palma seja atribuída ao classicismo goetheano, entende-se em que medida a alma romântica viveu sua peripécia com dignidade, tendo na figura em foco sua mais alta expressão.
Por que o que em uns é contínuo, enquanto em outros resta contraditório, apenas os caminhos sutis do ensaio sobre a lírica de Theodor Storm nos permitem constatar a integridade que reúne nele poesia e existência burguesa. A solução do aparente dilema deriva de observações a propósito do sentimento de comunidade que marca a autêntica atitude ética diante da vida. É pela prevalência de injunções desta natureza que o poeta teria alcança do seu melhor. Não importando se este se restringe à modéstia da maestria artesanal, interessa sublinhar mais uma vez a ocorrência de uma coexistência bem lograda entre os dois pólos da equação lukácsiana, que figura, neste passo, exatamente no meio do espectro de possibilidades mencionado há pouco.
Sob esse mesmo horizonte geral, ao deslocarmos nosso olhar para su as regiões mais conflagradas, localizamos os ensaios sobre Stefan George, Richard Beer-Hoffmann, Charles-Louis Philippe e Paul Ernst, cujos títulos respectivos são “A nova solidão e sua lírica”, “Nostalgia e forma”, “O instante a as formas” e o já citado “Metafísica da tragédia”. Para o leitor que, como eu, se fia em traduções, talvez esteja aí a parte menos acessível do livro, dada a carência de documentos que permitiriam uma confrontação dos achados lukácsianos com suas fontes originais. Tomadas em bloco, são leituras que enfatizam a miséria da modernidade no que concerne à chance de realização de for mas artísticas substanciais, considerando-se a degradação dos laços que dariam à existência coletiva um sentido comum. Em especial, o último escrito traz uma conclusão bastante pessimista quanto às chances de reunião entre a vida vivida e as formas. Segundo tal conclusão, apenas o mundo fechado e perfeito das formas definitivas pode ria fornecer aos homens um referencial perene para a justificação de sua efêmera passagem pelo mundo da vida.
Assinalando o limite em que os dois pólos da problemática em estudo estão mais dissociados um do outro, essa metafísica da tragédia é seguida por sua consequência mais rigorosa, a defesa de uma atitude existencial próxima à singularidade dos santos dostoievskianos, chamada pelo russo de idiotia. Sem discutir se esta atitude revela uma adesão amorosa incondicional ao mundo ou sua exata antípoda, uma recusa odiosa incondicional ao mundo, notamos que somente um a perspectiva mística autoriza esta versão extrema do assunto, em que as formas são radicalmente separadas da realidade imanente. Quem sabe se esconde, nesta vasta oscilação entre as páginas calorosas sobre Sterne e as declarações niilistas do protagonista masculino do diálogo sobre a pobreza de espírito, uma cifra para o entendimento do percurso ulterior do pensador, em que a generosa inclinação a favor da realização histórica do socialismo contrasta com a aceitação irrestrita de formas absolutas de opressão?
Mas não vale concluir a exposição dessas impressões sem antes mencionar duas razões pelas quais est a edição de “A alma e as formas” parece-nos exemplar. Por um lado, o senso de oportunidade que preside a distribuição das notas ao texto lhes assegura o devido caráter informativo. Porém, a par do uso consciencioso deste expediente, o que mais se destaca na tarefa levada a excelente termo pelo tradutor é a qualidade literária da prosa, provando com folga que o prazer do texto não é, entre nós, uma graça perdida.
Rainer Patriota – Professor Titular do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia, Artes e Cultura da Universidade Federal de Ouro Preto (DEFIL/IFAC/UFOP.
Olímpio Pimenta – Professor Titular do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia, Artes e Cultura da Universidade Federal de Ouro Preto (DEFIL/IFAC/UFOP).