La Comintern y América Latina: Personas/ Estructuras/Decisiones | Lazar S. Jeifets, Víctor L. Jeifets

El gran reto de los estudios sobre los organismos internacionales consiste en es establecer un equilibrio entre el análisis institucional y narrativo. Quizás, esta tarea vuelve especialmente difícil en el caso de investigaciones acerca de la historia del comunismo. Debemos tomar en cuenta que apenas una ligera línea separa las actividades de protagonistas y las estructuras de la III Internacional, tanto a nivel mundial como a nivel regional. El creciente interés presente entre los académicos rusos hacia la evolución de la izquierda latinoamericana podría no solo ser una herramienta de los estudios históricos, sino contribuir también al entendimiento más pormenorizado de las bases de la política exterior rusa en la región, a la investigación profunda de los raices de la izquierda nacional y sus dimensiones regionales y globales. Desgraciadamente, la cantidad de estudiosos sobre el tema aún no llegó a ser muy significativo, lo que se explica por la percepción de América Latina como un lugar algo ajeno e irrelevante para el comportamiento internacional de la URSS antes y después de la Segunda Guerra Mundial visto en términos del Realpolitik. Una excepción de esa tendencia es el libro recién publicado de Lazar y Víctor Jeifets quienes demuestran el largo camino de la Tercera Internacional para instalar sus bases en América Latina, coordinarlas, disciplinarlas y dirigirlas hacia el reto de lograr una revolución mundial. El texto es resultado de varias décadas de estudios municiosos en los archivos sobre el proceso de la fundación de los partidos comunistas latinoamericanos y sus relaciones con el Comité Ejecutivo de la Comintern (CEIC) y el liderazgo bolchevique. Leia Mais

Como os juristas viam o mundo (1550-1750): Direitos, estados, pessoas, coisas, contratos, ações e crimes | António Manuel Hespanha (R)

O contexto e a intencionalidade da produção dos discursos devem ser levados em conta para que não haja interpretações que fujam das possibilidades apresentadas pela documentação. Mesmo uma leitura feita a contrapelo possui limites interpretativos. A sensibilidade do pesquisador costuma ser bom guia para evitar enganos, mas não pode ser o único. Associar um corpo teórico e metodológico à sensibilidade de pesquisa ajuda na execução de uma obra mais coesa.

Iniciamos o texto com essa reflexão por uma dupla razão. António Manuel Hespanha mesmo se propondo a fazer um livro mais focado na exposição das tradições jurídicas portuguesas e não na análise dessas tradições, não se permite escapar da teoria e do método que caracterizam o trabalho do historiador. A segunda razão é o próprio Hespanha quem introduz. Ele diz que os historiadores ainda esperam encontrar as coisas como elas realmente aconteceram, mesmo que duvidem das narrativas que lhes chegam como fontes. E duvidam ainda mais daquelas que “são muito senhoras de si”. Problema que se agrava quando as narrativas em questão são as jurídicas.

O autor resgata a ideia de “uma sociedade construída sobre o direito”, consoante o medievalista russo Aaron Gurevič, para demonstrar o nível de abrangência desses textos. Bem como fica expresso no título do livro, “direitos, estados, pessoas, coisas, contratos, ações e crimes”, eram todos campos cobertos pela Justiça. E, para cada um desses campos, havia subdivisões. A intenção dos juristas letrados era produzir uma legislação que pudesse dar conta de aspectos muito gerais e, ao mesmo tempo, capaz de arbitrar sobre casos extremamente específicos. A literatura jurídica tendia a fazer uma exposição pormenorizada da organização e do funcionamento social. “Ou seja, os juristas descrevem muito detalhadamente o mundo e muito exaustivamente as razões que movem o mundo; o seu mundo, claro, e as suas razões para o movimento do mundo” (posição 79-81). O que, por vezes, pode conduzir o historiador ao engano de pensar na sociedade portuguesa de Antigo Regime como um corpo homogêneo e seguidor das leis. Mas, havia nuances como a tradição, o prestígio dos sujeitos, as regionalidades, as distâncias, entre outros aspectos que interferiam na forma de dispensar a Justiça. E como bem apontou António Manuel Hespanha no trecho acima citado, o texto jurídico recaia na intencionalidade dos homens responsáveis pela sua produção.

O direito das mulheres pode nos servir de modelo para mostrar como a lei buscava circunscrever do quadro mais geral aos mais específicos. O Antigo Regime português apresenta as mulheres como seres frágeis e facilmente coagidos. O feminino era considerado praticamente inexistente diante do masculino. No entanto,

[…] quando a imagem da sua particular natureza o faz irromper no direito, o próprio direito explicita os traços da sua pré-compreensão da mulher, traços que o saber jurídico amplifica e projeta socialmente em instituições, regras, brocardos e exemplos – fraqueza, debilidade intelectual, olvido, indignidade (posição 7471- 7473).

Essa avaliação tornava as mulheres juridicamente menos responsáveis pelos seus atos. Elas não poderiam, assim como os rústicos e idiotas, responder pelo crime de falso testemunho, pois lhes seria difícil distinguir a verdade do erro. Porém, em determinados casos a “imprudência” e “fragilidade” feminina eram desconsideradas. As mulheres comerciantes são bons exemplos disso. A prática do comércio seria suficiente para garantir faculdades mais amplas para as mulheres, ainda que não comparáveis às masculinas. A legislação, como é possível notar, não apenas inferiorizava as mulheres como também lhes fechava qualquer possibilidade de obter um posto de mando. Preceito que apenas o monarca tinha poder para constranger.

Conforme alerta Hespanha, o conteúdo do texto jurídico sobre as mulheres no Antigo Regime é dos mais suscetíveis a avaliações feitas de acordo com o entendimento que temos hoje do Direito (e, principalmente, do feminino). A estranheza provocada é normal. Reflete as diferenças entre o presente e o universo social do tempo estudado. Atualmente, no mínimo nos pareceria risível – para citar outro detalhe dentro de atribuições mais amplas – incluir entre as cláusulas de um contrato de locação de imóvel a previsão de realocar o inquilino caso a propriedade fosse assombrada por almas penadas. Não obstante, para uma sociedade imersa no pensamento religioso, esta era uma prática possível. Resguardar as diferenças entre os períodos, ou melhor, localizar no tempo determinadas práticas jurídicas é um dos pontos fortes de “Como os juristas viam o mundo (1550-1750)”.

Outro ponto forte da obra é não ter preocupações quanto à extensão dos capítulos e muito menos do livro como um todo. O que permite descrições longas sobre os campos cobertos pelo saber jurídico. Isso foi possível porque, ao contrário das suas obras anteriores, o pesquisador realizou a publicação de forma independente. É provável que uma editora aconselhasse o autor a retirar algumas partes para tornar o livro mais “enxuto”. Sem essas barreiras, o trabalho surge como uma leitura que também pode ser feita em forma de consulta. Por duas razões. Primeiro devido ao fato de apenas a introdução (capítulo 1) e o epílogo (capítulo 9) adiantarem e reforçarem as ideias apresentadas nos demais capítulos. Os outros sete capítulos são independentes entre si. E, quando a argumentação exige questões já trabalhadas, Hespanha as repete. As argumentações e conceitos só não são repetidos quando um tópico é exatamente igual ao outro em termos interpretativos.

A segunda razão diz respeito à corriqueira dificuldade que os historiadores têm com o universo de escrita dos oficiais da justiça, comumente, carregados de termos técnicos. E, quando os historiadores tentam sanar seus déficits de informação auxiliados por livros de direito atual, “é o pior dos remédios, pois os leva a aprisionar o passado nas categorias do direito de hoje” (posição 131-132). Hespanha prefere o “desconforto” da leitura dos textos clássicos, ao usar compreensões jurídicas que atualmente estão superadas, do que cair no anacronismo. Esse tipo de resguardo metodológico, ele diz ser positivo tanto para os historiadores que lerem a obra, como também para os juristas. Afinal, a aproximação que se busca é com o universo dos magistrados de então.

Para evitar enganos, Hespanha aconselha a leitura de alguns interpretes das leis portuguesas. Sugere aos seus leitores o mesmo que sugere aos seus alunos, a leitura de “Institutiones iuris civilis lusitani”, de Pascoal José de Melo Freire dos Reis, publicado em finais do século XVIII, e a obra de Manuel de Almeida e Sousa de Lobão, “Notas de uso practico, e criticas, addições, illustrações e remissões”, datada do início do século XIX. Mas o conselho é seguido por uma ressalva. Por ter sido Pascoal de Melo um reformista e Lobão um conservador, as interpretações de um podem ser facilmente balanceadas pelas do outro. O que não exclui o compromisso que deve ter o profissional da História com a leitura de interpretações feitas para reforçar, reconstruir ou até mesmo extinguir conceitos.

Se com os autores mencionados no parágrafo anterior é possível ter melhores explicações sobre leis pontuais, o que o livro de António Manuel Hespanha oferece é uma visão melhor sobre a tradição jurídica portuguesa. Dito de outra forma, o livro pode ser consultado para tirar dúvidas sobre as formas de pensar e executar o Direito entre 1550 e 1750. As peças jurídicas eram “uma sofisticada construção de juristas letrados, a partir da qual se estabeleciam regras para a vida de todos os dias. Mas também de uma imagem consistente do homem e da sociedade” (posição 34-35).

Como forma de reprodução social a cultura letrada ajudava a aprofundar as categorias sociais. Os letrados, por dominarem o código de escrita e leitura, não poderiam ser vistos, socialmente, como os que não dominavam o mesmo código. Ainda que o objetivo final da legislação fosse conhecido pela maior parte da população, segundo Hespanha, conhecer as especificidades da lei e ter poder para executá-las era o grande diferencial.

Seja como for, qualquer ato de jurisdição implicava algum poder de dar ordens ou de constranger, quanto mais não fosse a autoridade mínima (modica coertio) que faz com que os atos judiciais sejam reconhecidos e obedecidos pelas partes. Daí que, se podia haver ordens que não estavam precedidas de uma averiguação jurídica (merum imperium), não podia, em contrapartida, haver atos judiciais sem que o magistrado não tivesse algum poder de mandar (imperium qui inest iurisdictioni) (posição 1148- 1153).

A manutenção dos textos jurídicos em latim ou com expressões latinas, por exemplo, ainda que a maior parte estivesse em vernáculo, aparece como “projeto de poder”. Não apenas por afastar das pessoas o entendimento fino do texto, como dito acima, mas ajudava igualmente a associar as peças jurídicas do mundo sacro (dos saberes religiosos). Servia ainda para a manutenção das hierarquias profissionais no campo do Direito. Os juízes não letrados seguiam mais o direito natural e comum do que os compêndios universitários. E por isso, eram tratados pelos juízes letrados como executores do “direito dos rústicos” ou dos “direitos próprios” (consuetudinário).

Apesar disso, os livros de direito tinham boa circulação. Eram encontrados nas periferias do Reino e do Império, garantindo assim, “o conhecimento da tradição jurídica letrada nos confins mais afastados, mesmo independentemente de aí existirem juristas” (posição 365-366). Nos centros urbanos eram ainda mais comuns. O que não significa dizer que os juristas dispunham de grandes bibliotecas pessoais. Hespanha diz que a lista de livros referência para o trabalho dos juristas e juízes era curta e, ainda menor era o número de títulos de fato utilizados. Na maioria das vezes, o acesso a essas obras só era possível em instituições com boas bibliotecas. A posse pessoal passava pelas dificuldades do valor, transporte e fragilidade das obras.

Ao passar a tradição jurídica portuguesa em revista António Manuel Hespanha explora os campos civil e eclesiástico; o que era válido e inválido para nobres e não nobres; versa sobre os compromissos dos reis com a execução da Justiça e etc. Inclusive, de como as penalidades foram se tornando mais brandas com o passar do tempo. Discorre ainda sobre as gentes e as coisas. Aqueles que não gozavam de nenhuma personalidade ou status, como os escravos, não eram considerados como pessoas, senão como coisas. E, objetos inanimados poderiam aparecer como titulares de direitos, ou seja, personificados. Por exemplo, “um prédio podia ser titular de direitos de servidão, a prestar ou por outros prédios (servidões reais) ou por pessoas (servidões pessoais, como a ‘adscrição’, vinculação de certas pessoas a trabalhar certa terra)” (posição 6391-6393). Havia então, sob a avaliação contemporânea, coisas tratadas como gentes e gentes tratadas como coisas. Ainda assim, ambos poderiam ser requalificados, a depender da situação, e enquadrados em outros campos do Direito

Além do que já foi mencionado e de tantos outros temas que ficaram de fora desse comentário, há uma ideia central que perpassa toda a obra. Neste trabalho, António Manuel Hespanha não apenas reforça a sua famosa tese sobre a distribuição dos poderes por diversos polos, como também introduz uma nova tese (ou provocação historiográfica). Trata a visão jurídica exposta como típica da Europa “latina”. O autor reconhece a ousadia da sua afirmação e trata de apresentar algumas razões que o conduzem a tal pensamento. Diz não acreditar em um “espírito latino” ou em uma “cultura latina”. Tampouco considera que esse fenômeno possa ser atribuído aos diferentes panoramas religiosos entre “Sul” e “Norte” da Europa após a reforma protestante.

Para Hespanha, o cerne da questão estava de fato no uso e comunicação do corpus literário. Mesmo antes da cisão religiosa, os juristas do “Sul” discutiam entre si, enquanto os do “Norte” (leia-se alemães, holandeses e ingleses) não tinham uma literatura jurídica muito expressiva. Sendo assim, havia um corpus literário comum entre os juristas ibéricos, italianos e até mesmo franceses, na primeira época moderna. “A identidade ‘do Sul’ é antes uma identidade induzida por um círculo de comunicação” (posição 19801). O que facilita para que parte da historiografia as classifique como corporativas e repletas de falhas de rigor na aplicação das leis. Quem sabe até possa o “sabor latino” do direito comum entre essas sociedades revelar as raízes de parte daquilo que somos hoje.

Notas

1 A obra é vendida exclusivamente pela Amazon. No site da empresa é possível ter acesso ao livro em dois formatos: o físico, com 732 páginas e impresso pela CreateSpace; e digital, com 36.362 posições.

Paulo Fillipy de Souza Conti – Mestre em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Atualmente, doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco (PPGH – UFPE). E-mail: paulofconti@gmail.com


HESPANHA, António Manuel. Como os juristas viam o mundo (1550-1750): Direitos, estados, pessoas, coisas, contratos, ações e crimes. Lisboa: CreateSpace Independent Publishing Platform (Amazon), 2015.1 Resenha de: CONTI, Paulo Fillipy de Souza. O mundo dos juristas pelos olhos do historiador. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.36, n.1, p.296-300, jan./jun. 2018. Acessar publicação original [DR]

Vida para Consumo: a transformação das pessoas em mercadorias – BAUMAN (ER)

BAUMAN, Zygmunt. Vida para Consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. 199p. Resenha de: COSTA, Marisa Vorraber. Consumo e consumismo: deslocamentos nas ressonâncias do contemporâneo. Educação & Realidades, Porto Alegre, v.35, n.3, p.343-349, set./dez., 2010.

Zygmunt Bauman1, considerado um dos expoentes da teoria social contemporânea, vem abordando o tema do consumo na maior parte de seus livros, dentre os quais citamos Modernidade e Ambivalência (publicado originalmente em 1991, e no Brasil só oito anos depois), O Mal-estar da Pós- Modernidade (1998), Globalização: as conseqüências humanas (1999b), Modernidade Líquida (2001), Vida Líquida (2007). Tal fato demonstra, além da centralidade do conceito para a compreensão da vida nas sociedades do início do século XXI, também o alinhamento das análises de Bauman entre as de autores que consideram o consumo uma dominante cultural.

Em Vida para consumo (2008), Bauman elege o consumo como foco preferencial, e desenvolve sua análise apresentando o que considera ser uma das principais consequências da condição pós-moderna: a progressiva e constante transformação das pessoas em mercadorias.

Um dos mais notáveis analistas das transformações dos modos de vida nas sociedades da segunda metade do século XX e início do XXI, Bauman nos apresenta sintomas que considera próprios da cultura de nossos dias, essa a que nos referimos como cultura contemporânea. Envolvendo-nos em análises sobre artefatos e temas que nos circundam, ele aborda casos expressivos dos modos de vida em nossos dias, localizados em matérias de jornais, quadros midiáticos, estratégias mercantis, usos da tecnologia, etc. Para ele, todos podem ser compreendidos como enunciados que falam sobre nossas sociedades e os sujeitos que as compõem. São convocações para assumirmos determinados modos de ser, e que expressam, ao mesmo tempo, as marcas e singularidades do nosso tempo. Evidencia-se aí uma das principais características das obras de Bauman, que é esse modo profícuo como analisa as configurações da atualidade, escrutinando suas injunções e operando com ferramentas que nos fazem pensar sobre aquilo em que estamos nos tornando.

Chama atenção a habilidade do autor para articular a complexidade dos empreendimentos analíticos que utiliza ao problematizar as configurações sociopolíticas e culturais que se erguem, cotidianamente, em nosso entorno, com uma forma despretensiosa e acessível de expressão de ideias e de desenvolvimento da reflexão. É isso que, somado a tantos outros admiráveis atributos de seu trabalho intelectual, entre eles a aguçada sensibilidade para as questões sociais mais críticas do nosso tempo, vem despertando cada vez mais interesse por seu pensamento, posicionando seus livros entre os sucessos editoriais da atualidade pelo mundo afora.

Já na Introdução de Vida para consumo, Bauman expõe três diferentes casos a partir de matérias selecionadas em duas edições do jornal britânico The Guardian. No primeiro, aborda a tendência cada vez mais forte, hoje, de uma visibilização de si em redes sociais da Internet. No segundo, trata da seleção, por parte de muitas empresas, dos bons consumidores em detrimento dos chamados consumidores falhos. E, no terceiro, aborda a política de imigração britânica, que coloca em disputa um sistema de pontuação para a avaliação dos imigrantes que interessam ao país. Esses três casos, localizados em diferentes seções do jornal e relacionados a distintas esferas da vida, são reunidos e conectados por Bauman como expressões de nossa cultura, que cada vez mais incitam os sujeitos a fazerem de si mesmos mercadorias desejáveis e vendáveis nos inflacionados mercados do século XXI. Essa exposição a que as pessoas se submetem ressalta o quanto nossas experiências estão implicadas com a disposição para nos tornarmos mercadorias. Afinal, desde as incursões sobre nós mesmos, envolvendo investimentos corporais e estéticos, relacionamentos amorosos e de trabalho, entre tantos outros, somos instados a uma série de processos que implicam uma remodelagem constante.

A obra de Bauman expressa um refinamento importante nas discussões e formas de se pensar sobre consumo, apontando deslocamentos do conceito. De um entendimento do consumo como apropriação de objetos e produtos, há um alargamento para comportar também a produção dos próprios sujeitos e sua disponibilidade para se transformarem em mercadorias. A esse processo Bauman refere-se empregando o termo comodificação, aludindo a operações em que as pessoas assumem a condição de mercadorias, de bens a serem desejados, mercantilizados, ultrapassando a exclusiva condição de consumidores. Contudo, segundo o autor, se o fetichismo da mercadoria, na fase sólida da modernidade, tendia a encobrir os fatores humanos incrustados na sociedade de produtores, o fetichismo da subjetividade tende, por sua vez, a encobrir a condição “comodificada da sociedade de consumidores” (Bauman, 2008, p.23).

É nesse sentido que o fetichismo da subjetividade atua, produzindo nos sujeitos a crença de que as movimentações se dão por uma liberdade de escolha que é basicamente individual, não sendo pré-estabelecida por catálogos de formas de vida à venda em diferentes âmbitos de nossa sociedade de consumidores.

O livro é composto de uma Introdução e mais quatro capítulos: Consumismo versus consumo, Sociedade de consumidores, Cultura consumista e Baixas colaterais do consumismo. Os capítulos são entrelaçados de maneira excepcional pelo autor, que problematiza as configurações contemporâneas em relação ao consumo desmembrando os seus pontos de articulação e interligando-os, fazendo-nos transitar por uma análise cuidadosa e metodologicamente útil às nossas pesquisas. Optamos, frente à complexidade de apresentar capítulos que se articulam de maneira tão magistral, por fazer ressoar os usos dos conceitos e das estratégias metodológicas de Bauman no livro. Isso porque, talvez, tenhamos sentido que o tema e a escrita se inscrevem numa fugacidade e dinamicidade que não temos como apreender de todo. Mostrar as ressonâncias nos parece, assim, o mais apropriado frente a uma obra que nos incita a pensar muitas outras coisas a partir e para além dela.

O autor articula suas análises pautando-se por novos conceitos, muitos deles buscados em autores com os quais compartilha visões e interpretações, e que servem para compreender as singularidades deste tempo. Sociedade de consumidores, comodificação, cultura consumista, tempo pontilhista, fetichismo da subjetividade, agrupamentos por enxames, entre outros, são alguns dos conceitos tensionados no livro. Ressoa para nós o quanto a compreensão de novos fenômenos, emergentes em uma sociedade de consumidores, não são passíveis de ser produtivamente problematizados se recorremos a conceitos que são, ainda, mais próprios de uma sociedade de produtores. A análise parece indicar, assim, o quanto cada conceito, como salientam Derrida e Roudinesco (2004, p.14), “[…]nomeia o gesto de uma apreensão, é uma captura”.

Outro dos importantes delineamentos realizados por Bauman diz respeito à acepção de que houve um deslocamento do consumo para o consumismo. Enquanto o consumo inscreve-se na ordem da necessidade, o consumismo caracteriza-se como “um atributo, a capacidade profundamente individual de querer, desejar e almejar” (Bauman, 2008, p.41). Podemos pensar que o consumismo inscreve-se como sendo da ordem dos excessos, da sobrepujança, pois é uma condição que se esboça na fase líquida da modernidade2. Assim, enquanto a sociedade de produtores, situada na fase sólida da modernidade, movia-se com o consumo garantindo a apropriação e posse, apostando na prudência, em planejamentos de longo prazo, com uma ênfase na segurança e no valor de durabilidade, o consumismo, por sua vez, atua:

[…]em aguda oposição às formas de vida precedentes, associa a felicidade não tanto à satisfação de necessidades […] mas a um volume e uma intensidade de desejos sempre crescentes, o que por sua vez implica o uso imediato e a rápida substituição dos desejos destinados a satisfazê-la (Bauman, 2008, p.44, grifos do autor).

As considerações sobre a sociedade de produtores por um lado, e, de outro, a sociedade de consumidores, são, assim, articuladoras importantes para a compreensão dos processos implicados e desenvolvidos em Vida para consumo. Afinal, a sociedade de consumidores caracteriza-se, principalmente, por convocar os sujeitos em sua categoria de consumidores. Somos, primeiramente, consumidores, tornando-nos sujeitos prioritariamente pelas capacidades demonstradas para tal condição.

Dentre as discussões associadas às transformações em andamento na modernidade – da modernidade sólida para a líquida – outra questão se destaca para a compreensão dos deslocamentos tensionados no decorrer do livro. Mais especificamente, trata-se da operação de uma “renegociação do significado do tempo” (Bauman, 2008, p.45). Ou seja, de um tempo cíclico e linear, da sociedade de produtores, passa-se a um tempo pontilhista – metáfora de Michel Maffesoli (2003) utilizada por Bauman – marcado por uma multiplicidade de instantes, descontinuidades e fragmentações. Outros termos, como cultura agorista ou cultura apressada, tomados emprestados de Stephen Bertman (1998), também endereçam a esta renegociação do significado do tempo que atua sobre os sujeitos, produzindo estados de movimentação constante entre distintos pontos. Talvez aí tenhamos um fecundo argumento para as discussões sobre a produção de identidades contemporâneas, pois esta relação com o tempo, tão destoante de outras épocas e contextos, é uma das condições de possibilidade para que os sujeitos se movam incansavelmente. Ademais, um dos modos de manter-se em movimento nos pontilhados do tempo e do espaço é através do consumismo, que insta novos e diversificados significados aos que consomem as novidades sempre emergentes. Não se trata, em suma, de adquirir, juntar e acumular, mas, sobretudo, de adotar o imperativo de descartar e substituir, afinal, “A ‘síndrome consumista’ envolve velocidade, excesso e desperdício” (Bauman, 2008, p.111, grifos do autor).

Com isso há um dilatamento do consumo que passa a englobar o conjunto da população. Não apenas adultos são alvos privilegiados, como na sociedade de produtores, mas sobretudo crianças, jovens, todas as estratificações sociais, etc., pois o importante é ser consumidor, renegociar os significados do tempo e de si mesmo pela movimentação dos significados embutidos nos processos de compra e venda de objetos e de si. É um processo que se alia à máxima dos desempenhos individuais. Mover-se nas tramas do consumo é algo a ser feito por si mesmo, afinal, consumir “significa investir na afiliação social de si próprio” (Bauman, 2008, p.75).

É a partir de considerações deste tipo que Bauman pinça, no terceiro capítulo do livro, mais um argumento de um excerto de manual de moda de um prestigiado jornal, em que são oferecidos aos leitores meia dúzia de visuaischave para os próximos meses. De um enunciado como este, que orienta leitores em relação ao estilo – visuais com um prazo pré-estabelecido para durar somente alguns meses –, Bauman mapeia o ambiente existencial erigido pela sociedade de consumidores. Ambiente composto, ainda, por uma cultura consumista: cultura que expressa uma “revogação dos valores vinculados respectivamente à duração e à efemeridade” (Bauman, 2008, p.111, grifos do autor). Trata-se, mais objetivamente, de uma cultura produzida histórica e socialmente a partir de condições e significações precisas, como foi o caso das formações sociais produzidas pela sociedade de produtores. Este é o ambiente em que se vive e em que novos significados continuam a ser produzidos ininterruptamente.

Somos instados a pensar, ainda, especialmente no quarto capítulo, sobre as baixas colaterais do consumismo. Se a sociedade de consumidores – que “avalia qualquer pessoa e qualquer coisa por seu valor como mercadoria” (Bauman, 2008, p.157) – é erigida a partir das supostas benesses do consumo e de dispor-se incessantemente ao consumo, esta experiência não é compartilhada de forma igual por todos. Erige-se, também, “uma nova categoria de população, antes ausente dos mapas mentais das divisões sociais” (Bauman, 2008, p.155): a subclasse. Esta subclasse seria formada por “pessoas sem valor de mercado”, “homens e mulheres não-comodificados”, em suma, “consumidores falhos” (Bauman, 2008, 158). Se a sociedade de consumidores transforma-nos em mercadorias, os que não incitam o consumo e/ou são privados de algum modo deste processo são vistos como inúteis, não sendo capazes de associarse a este mesmo processo. São indivíduos visibilizados, agora, pelo perigo que supostamente representam para este modelo de sociedade.

Dentre muitas outras ressonâncias, importa destacar, ainda, o grande número de autores e obras que Bauman articula em sua análise. Sociólogos, filósofos e escritores de obras literárias, ao lado de autores de matérias de jornais em seções tão variadas que vão da política externa à editoria de moda, são interlocutores de seu trabalho. De Max Weber a Michel Foucault, de Milan Kundera a matérias do jornal britânico The Guardian, o tema do consumo e seu efeito de excesso na sociedade de consumidores, o consumismo, vão sendo literalmente dissecados com as diversificadas lentes teóricas operacionalizadas pelo autor. Sem dúvida, esta é uma obra de grande fecundidade e importância e que interessa, de maneira especial, aos que pensam, pesquisam e fazem a educação dos nossos dias.

Notas

1 Sociólogo nascido na Polônia em 1925, onde lecionou na Universidade de Varsóvia. Fugindo do nazismo durante a Segunda Guerra, peregrinou pelo mundo radicando-se, por fim, na Inglaterra, onde vive até hoje. É autor de inúmeros livros, sendo que sua produção intelectual mais importante surge a partir dos últimos anos do séc. XX. No Brasil, desde 1997, circulam mais de vinte títulos traduzidos para o português, alguns publicados em menos de um ano após seu lançamento na Inglaterra. Zygmunt Bauman é professor emérito de Sociologia das universidades de Leeds e de Varsóvia. Recebeu o Prêmio Amalfi, em 1989, por Modernidade e Holocausto, e em 1998 recebeu o prêmio Adorno pelo conjunto de sua obra.

2 Por modernidade líquida – diferentemente da modernidade sólida, mais pesada – Bauman (2001) passa a referir-se à fase instável, fluída, dinâmica e mutante na modernidade, a qual ele mesmo vinha denominando de pós-modernidade. Para uma aproximação sintética ao conjunto da obra de Bauman ver Costa (2009).

Referências

BAUMAN, Zygmunt. O Mal-estar da Pós-modernidade. Tradução Mauro Gama; Claudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Tradução Marcus Penchel.

Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999a.

BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Tradução Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999b.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

BAUMAN, Zygmunt. Vida Líquida. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

BERTMAN, Stephen. Hyperculture: The Human Cost of Speed. Westport: Praeger, 1998.

COSTA, Marisa Vorraber. Zygmunt Bauman – Compreender a vida na modernidade líquida. Educação, ed. Segmento, São Paulo, v.1, p. 60-75, set. 2009.

DERRIDA, Jacques; ROUDINESCO, Elisabeth. De que Amanhã: diálogo. Tradução André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

MAFFESOLI, Michel. O Instante Eterno: o retorno do trágico nas sociedades pósmodernas. Tradução Rogério de Almeida e Alexandre Dias. São Paulo: Zouk, 2003.

Marisa Vorraber Costa – Doutora em Educação e professora dos Programas de Pós-Graduação em Educação da UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil e da ULBRA. Integrante do NECCSO. Pesquisadora do Cnpq – Brasil. E-mail: mcvorraber@terra.com.br Viviane Castro Camozzato – licenciada em Pedagogia e doutoranda em Educação na UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil. Integrante do Núcleo de Estudos sobre Currículo, Cultura e Sociedade (NECCSO). Bolsista do Cnpq – Brasil. E-mail: vicamozzato@gmail.com

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