História como diagnóstico / Tempo / 2019

Ei, não tenha medo, não tente fugir, porque a dor pode ser sua amiga, como explica, as respostas às suas perguntas …[1]

Matt Johnson

O tema desta edição é pautado pelo interesse em encontrar formas mais perceptivas de análise crítica da sociedade contemporânea e novas formas de abordagem de teorias na pesquisa histórica. Conceitos médicos ou terapêuticos como crise, patologia, diagnóstico e trauma são abundantes nas teorias críticas e na historiografia sobre a sociedade moderna. Embora tais conceitos possam ser problemáticos ( Roitman, 2014 ), eles também contêm o potencial de uma abordagem mais produtiva das perspectivas teóricas. Muitas pesquisas históricas aplicam perspectivas teóricas padronizadas a casos históricos particulares, onde a ‘patologia’ ou o conteúdo de uma crise é amplamente determinado pela perspectiva teórica escolhida. E se o ponto de partida fosse antes: como poderíamos teorizar sobre esse fenômeno, essa tendência, esse problema?

Para promover uma forma mais crítica e inovadora de diagnosticar crises e problemas na sociedade, combinamos o tema da história como diagnóstico com o interesse pela necessidade de teorização independente. Antes de apresentarmos os artigos incluídos no número, faremos um breve esboço de uma história da ‘história como diagnóstico’ e diremos algumas palavras sobre os antecedentes do tema.

O antigo conceito grego de diagnóstico está etimologicamente conectado ao conhecimento ( gnose ) e à separação ( dia -) e relacionado ao verbo grego diagnostickein , que significava examinar cuidadosamente e distinguir fenômenos anormais em um contexto médico. O conceito combinava, assim, uma dimensão de conhecimento e uma dimensão de percepção criteriosa com referência a uma condição normal ou saudável. Vale a pena notar a proximidade de significado para dois outros conceitos gregos que têm sido fundamental para o conceito de crítica: Krisis (acórdão, a separação, a decisão) e Diakrisis (discernimento, distinção) (Kudlien, 1971- 2007 ).

Embora as metáforas médicas ou doenças, curas e médicos já fossem usados ​​na antiga historiografia e pensamento político por Tucídides, Platão e Polibios entre outros ( Demandt, 1978 , pp. 25-27), foi sobretudo a partir do final do século XVIII e no século século XIX que a aplicação de conceitos e metáforas médicas à sociedade tornou-se influente na historiografia. Com o desenvolvimento da forma moderna de pensamento histórico e a ideia de ‘História’ como um processo coerente, ‘crise’ tornou-se uma ferramenta conceitual central para fazer diagnósticos do presente ( Koselleck, 1972) Koselleck apontou para o caráter dualista e moralista problemático do conceito de crise usado no discurso político que conduziu à Revolução Francesa. O tipo de filosofia da história desenvolvida durante o final do século XVIII tendia a ocultar a natureza controversa da “crise” e a naturalizá-la em termos de “desenvolvimento histórico” ( Koselleck, 1959 ).

Um fio importante na história do diagnóstico é a tradição da filosofia social, com a crítica de Rousseau à civilização moderna como um dos primeiros casos. Como aponta Honneth, um aspecto típico de tais diagnósticos é a identificação de tendências negativas de desenvolvimento, como alienação e desigualdade. ‘Crise’, neste contexto, tem sido freqüentemente usada para chamar a atenção para uma situação alarmante e um ponto de inflexão iminente, bem como para prognosticar o fim da era atual. A análise crítica de Marx do capitalismo moderno, que tem sido uma grande fonte de inspiração para o pensamento diagnóstico no século XX, é um exemplo chave ( Honneth, 2000 ; Habermas, 1973 ).

Durante o século XIX, o uso de conceitos médicos e biológicos no pensamento social tornou-se influente por meio da preferência por metáforas organicistas no romantismo, os triunfos da medicina, a influência do darwinismo e o surgimento de visões de mundo vitalistas e naturalistas. Problemas sociais, culturais e políticos eram tratados em termos de doenças e ‘degeneração’. Com referência a uma evolução esperada ou florescimento cultural, os fenômenos sociais e culturais contemporâneos que se desviaram de tais expectativas podem parecer patológicos. Foi especialmente no final do século XIX e no início do século XX que o “diagnóstico” tornou-se explicitamente usado como uma forma de crítica cultural, significativamente nos diagnósticos de Nietzsche de que a cultura europeia sofria de um excesso de conhecimento histórico e ,mais fundamentalmente, do niilismo. A psicanálise de Freud também se tornou uma fonte vital de inspiração para perspectivas diagnósticas de distúrbios psicológicos e políticos, mais obviamente talvez na Escola de Frankfurt, uma das principais correntes de pensamento empenhadas em fazer diagnósticos do presente ( Honneth, 2007 ; 2001 ).

Outra forma significativa de diagnóstico histórico do presente é representada por Michel Foucault. Foucault é especialmente interessante neste contexto também porque uma forma um tanto estereotipada de ‘Foucault’ foi muito usada na pesquisa histórica, embora o próprio Foucault entendesse a análise crítica de uma maneira muito diferente. Ele descreveu sua própria forma de história como ‘um diagnóstico do presente de uma cultura’, como uma escavação de camadas subterrâneas do pensamento contemporâneo. O objetivo deste tipo de investigação não era construir uma teoria geral estável da sociedade contemporânea, mas sim promover a autorreflexão, a autoproblematização e a autotransformação – examinar o presente a fim de torná-lo possível transcendê-lo e pensar e agir de maneira diferente.[2] Um aspecto da obra de Foucault que é particularmente relevante para esta questão temática é o papel filosoficamente produtivo da pesquisa empírica histórica na elaboração de seus diagnósticos, em oposição à aplicação de modelos de interpretação já prontos.

Como pode ser visto no esboço histórico acima, os diagnósticos do presente têm sido freqüentemente formulados por sociólogos, que combinam a filosofia social e a pesquisa empírica com uma perspectiva histórica do desenvolvimento social. Como os historiadores poderiam desenvolver sua capacidade de criar diagnósticos independentes e inovadores dos problemas e patologias da sociedade, de um regime político ou de uma tendência cultural? Como os historiadores podem lidar de forma perceptiva e crítica com as ‘crises’ e os chamados ‘eventos-limite’, como a Shoah¸ Hiroshima, Chernobyl, genocídios e guerras civis?

Para esclarecer como os historiadores podem fazer diagnósticos históricos, reunimos trabalhos de estudiosos de diferentes partes do mundo que analisam a história como diagnóstica em diferentes campos historiográficos, com ênfase em filósofos e historiadores da França, Espanha e Alemanha do século XX. século. Como o leitor descobrirá, os artigos estão relacionados a diferentes aspectos do esboço histórico acima, de Nietzsche e Freud a Foucault e a Teoria Crítica.

O artigo de Egon Bauwelinck sobre o uso do diagnóstico como metáfora por Charles Péguy mostra como o conhecimento histórico e as preocupações políticas se fundem de uma maneira que exige respostas sofisticadas. Péguy criticou a tendência do Partido Socialista de se ater a diagnósticos anteriores e destacou a importância de examinar adequadamente os problemas e as doenças e de poder aceitar a própria doença. Um aspecto intrigante do artigo diz respeito à importância da veracidade mútua entre o médico / historiador e o paciente / público para que o diagnóstico funcione como um remédio. A análise de Bauwelinck do papel de Péguy como intelectual nos convida a pensar que no cerne da sensibilidade histórica está um componente ético, no qual a sinceridade e a franqueza desempenham um papel importante.

O artigo de Juan Luis Fernández analisa uma pluralidade de exemplos de diagnósticos históricos na escrita da história espanhola no século XX e revela como diagnósticos específicos estavam ligados a “remédios” e soluções políticas preferidas. Os exemplos mostram como os diagnósticos históricos foram desenvolvidos de diferentes maneiras e responderam a outras narrativas. Fernández também analisa os elementos teóricos desses diagnósticos e dá uma contribuição para a compreensão do caráter geral dos diagnósticos históricos, consistindo em um quadro geral, um padrão de enredo, um diagnóstico e uma sugestão de terapia.

A relevância do nosso tema para um campo de pesquisa como a história da ciência pode não ser óbvia à primeira vista, mas a análise de Tiago Almeida da história filosófica da ciência de Gaston Bachelard lança luz sobre como a história da ciência e da razão podem fornecer um diagnóstico crítico da presente, articulando os obstáculos para um maior desenvolvimento da ciência e da razão e possibilitando uma transvalorização das normas epistemológicas. A ideia de razão turbulenta de Bachelard corresponde ao diagnóstico como um processo inevitavelmente turbulento, devido à interdependência entre a interpretação e o julgamento do passado e o diagnóstico das normas do presente.

Em certo sentido, o artigo de Pedro Caldas sobre o conceito de evento limite também trata de como uma disciplina científica específica pode perceber e diagnosticar seus próprios sintomas, mas neste caso centra-se na historiografia. O evento limite acaba sendo um evento que desafia o historiador e seus padrões de interpretação, mas para poder perceber isso, o historiador precisa se deixar ser afetado pelo evento. Poderia Angstbereitschaft , a capacidade de sentir Angst, talvez seja uma virtude epistêmica necessária para ser capaz de identificar eventos limites que desafiam nossos padrões de criação de sentido de orientação histórica? Assim, embora o artigo trate principalmente da historiografia contemporânea, ele se coaduna com a ênfase de Péguy na necessidade epistemológica e ética da franqueza perceptiva e da prontidão para ser diagnosticado como doente.

Em poucas palavras: esperamos que o leitor possa ver como a história como diagnóstico contém várias possibilidades e como muitas vezes envolve uma tarefa bastante complexa, autorreferencial, e que pode envolver sintomas problemáticos tanto na sociedade quanto na pesquisa. Isso sugere que dificilmente poderíamos nos excluir de tal tarefa: e quanto ao nosso próprio diagnóstico? Em certo sentido, nosso interesse pela história como diagnóstico pode, por si só, ser interpretado como um sintoma. Sentimos que algo estava coçando, uma espécie de irritação intelectual com a forma como as teorias são freqüentemente usadas e aplicadas, e sentimos a necessidade de procurar abordagens alternativas. Esse é um problema não apenas para a pesquisa, mas também para o debate público, onde as “crises” são proclamadas e as explicações dos problemas às vezes são lançadas de forma instrumental para promover objetivos políticos específicos.

O interesse por novos diagnósticos não é apenas um sintoma de nossa preocupação com o desenvolvimento de pesquisas, mas também uma reação ao caráter problemático da sociedade atual e de nossa insatisfação com os diagnósticos usuais. Essa percepção bifocal de, por um lado, o estado crítico da sociedade e, por outro, a tendência a lançar identificações e julgamentos pré-fabricados dos problemas do presente, apontou no sentido de tentar estimular o desenvolvimento. de formas mais inovadoras, perceptivas e dinâmicas de crítica e diagnóstico. O tema desta edição pode, portanto, ser visto como motivado tanto pelas patologias de que sofre a teoria histórica quanto pelas patologias de nossas sociedades atuais.

Notas

1. Da música “Phantom Walls”, escrita por Matt Johnson (The The).

2. Precisamente o caráter da filosofia de Foucault como diagnóstico do presente está em foco na análise perspicaz de Raffnsøe , Gudmand-Høyer e Thaning (2016).

Referências

DEMANDT, Alexander. Metaphern für Geschichte: Sprachbilder und Gleichnisse im historisch-politischen Denken. Munique: CH Beck, 1978. [ Links ]

HABERMAS, Jürgen. Legitimationsprobleme im Spätkapitalismus. Frankfurt am Main: Suhrkamp, ​​1973. [ Links ]

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KOSELLECK, ReinhartKritik und Krise: Eine Studie zur Pathogenese der bürgerlichen Welt. Freiburg im Breisgau: Karl Alber, 1959. [ Links ]

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KUDLIEN, Fridolf. Diagnosticar. In: RITTER Joachim; GRÜNDER, Karlfried; GABRIEL, Gottfried (eds.). Historisches Wörterbuch der Philosophie, Bd. 2. Basel: Schwabe, 1971-2007. [ Links ]

RAFFNSØE, Sverre; GUDMAN-HØYER, Marius; OBRIGADO, Morten. Michel Foucault: um companheiro de pesquisa. Basingstoke, Reino Unido: Palgrave Macmillan, 2016. [ Links ]

ROITMAN, Janet. Anti-crise. Durham: Duke University Press, 2014. [ Links ]

Martin Wiklund – Universidade de Estocolmo, Departamento de Cultura e Estética, Estocolmo, Suécia. E-mail: martin.wiklund@idehist.su.se http: / / orcid.org / 0000-0001-9267-9353

Pedro Spinola Pereira Caldas – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), Departamento de História, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: pedro.caldas@gmail.com http: / / orcid.org / 0000-0001-9875-4545


WIKLUND, Martin; CALDAS, Pedro Spinola Pereira. Introdução. Tempo. Niterói, v.25, n.3, set. / dez., 2019. Acessar publicação original [DR]

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Gênero, diversidades, interseccionalidades: perspectivas de análise na pesquisa histórica / Ofícios de Clio / 2019

A ascensão de movimentos e pautas conservadoras ao redor do mundo – e, de modo mais específico, intenso e preocupante, no Brasil –, impõe-nos uma série de novos desafios, tais como o enfrentamento de discursos e práticas que buscam deslegitimar os movimentos feministas. A produção e disseminação deliberadas de equívocos, por parte desses movimentos, em torno de conceitos elaborados e já estabelecidos no âmbito dos espaços acadêmicos, sob o argumento de combate a uma suposta “ideologia de gênero”, vêm causando enorme desserviço ao projeto de construção de uma sociedade mais justa e baseada na equidade de gênero. O uso dessa expressão, aliás, demostra desconhecimento sobre temas que integram uma cultura pautada no sexismo, machismo e lgbtfobia, os quais são, historicamente, objetos de sérios e profundos debates teóricos de feministas de diversos países no campo dos estudos de gênero.

As lutas feministas e a produção de saberes em torno das questões de gênero, fundamentais para a redução das diferenças que separam homens e mulheres, para a promoção de uma sociedade mais inclusiva e menos intolerante, veem-se ameaçadas por práticas sistemáticas de dissolução de políticas públicas de gênero, pela redução de verbas para as universidades, pelos cortes de bolsas de pesquisa – especialmente para a área das ciências humanas –, pelo questionamento acerca da seriedade e validade das pesquisas, dentre outras formas de deslegitimação do conhecimento. Por isso, é salutar recordar que os avanços conquistados pelas minorias, sejam étnico / raciais, de classe ou de gênero, foram resultado de lutas travadas no passado e que, de forma alguma, estão assegurados. A história está repleta de exemplos de como tais avanços são intercalados por tentativas de retrocesso, muitas vezes alcançados parcial ou totalmente.

A reivindicação por direitos sociais está na raiz do feminismo. No campo acadêmico, sua trajetória também é marcada pela constituição de espaço e visibilidade para as pesquisas nas mais diversas áreas de investigação. Na historiografia, essa observação pode ser melhor compreendida por meio dos estudos de Bonnie Smith (2003). A autora, ao questionar sobre a construção do sujeito masculino como universal, tanto na história como no concernente ao prestígio na escrita acadêmica, tece reflexões que “[…] ajudam a explicar como passamos a exaltar o historiador homem e a menosprezar ou até mesmo suprimir a obra histórica das mulheres” (SMITH, 2003, p. 156).

Não nos compete, para esta apresentação, fazer um levantamento bibliográfico sobre os estudos históricos que versam sobre a história das mulheres, o(s) feminismo(s) e / ou o gênero. Mas é importante destacarmos algumas pesquisas que influenciaram profundamente o campo acadêmico e possuem estreitas relações com as reivindicações de pautas de movimentos sociais de sua época. Michelle Perrot, em “Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros”, de 1988, e mais tarde com “As mulheres ou os silêncios da história” (2005), abriu espaço para investigações que buscaram perceber e valorizar as trajetórias de mulheres na história. Além de inovações teóricas, metodológicas, uso de fontes históricas e levantamentos de novos problemas, as inquietações contribuíram para revisitar e questionar pesquisas já consagradas na área.

Ainda na década de 1980, momento de efervescência dos movimentos identitários, e sob influência do pensamento de Michel de Foucault, Joan Scott sistematizou o conceito de gênero como categoria analítica, definindo-o como “[…] um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos e […] uma forma primeira de significar as relações de poder” (SCOTT, 1995, p. 86).

Na década de 1990, com a contribuição dos movimentos LGBT, os estudos de gênero tiveram novas influências. A filósofa Judith Butler apresentou uma série de questionamentos / problemas, que serviram tanto para problematizar o caráter de uma essência feminina na mulher enquanto sexo biológico, como para desenvolver, a partir daí, sua teoria da performatividade, através da qual pode demonstrar a produção generificada dos corpos. Nessa investigação, a autora interrogou se “[…] ser mulher constituiria um ‘fato natural’ ou uma performance cultural, ou seria a ‘naturalidade’ constituída mediante atos performativos discursivamente compelidos, que produzem o corpo no interior das categorias de sexo e por meio delas?” (BUTLER, 2003, p. 8-9). Em outras palavras, a filósofa salientou que a relação sexo / gênero não é direta, tampouco compulsória. Sua contribuição teórica, portanto, abriu espaço para o entendimento das diversas identidades de gênero. Logo, as categorizações homem e mulher foram questionadas por contribuir para a universalização dos sujeitos.

Por outro lado, o gênero como categoria única de análise também foi questionado, sobretudo por feministas afroamericanas, as quais se percebiam excluídas desse monolítico denominado “mulher”, denunciando que este incluía somente mulheres brancas e de classe média. Dessa forma, teóricas com Kimberlé Crenshaw (2004), bell hooks (2019), Audre Lorde (1984), Angela Davis (2016) dentre outras, contribuíram para a formulação da noção de interseccionalidade. Por meio dessa ampliação de ferramentas metodológicas, a análise pautada nos estudos de gênero dispõe de uma observação que busca perceber os cruzamentos junto a outras categorias de análise como raça, etnia, classe, idade, geração, sexualidade, religião, nacionalidade, dentre outras.

No Brasil, os estudos de Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro, por exemplo, já interrogavam sobre esses cruzamentos ao pensarem as relações de gênero desde a perspectiva racial. Para Gonzalez (2016, p. 410), “A maioria dos textos, apesar de tratarem das relações de dominação sexual, social e econômica a que a mulher está submetida […], não atenta para o fato da opressão racial”. Carneiro (2003) também destaca a importância de se pensar o racismo e seus impactos nas relações de gênero como eixo articulador do feminismo negro, sobretudo em sociedades multirraciais, pluriculturais e racistas como são as latino-americanas, por ser esse um elemento determinante na própria hierarquia de gênero.

Parte dessas questões também integram as discussões de pesquisadoras brasileiras. Segundo Rachel Soihet e Joana Maria Pedro (2007), tanto as reinvindicações advindas do movimento feminista como das observações da produção acadêmica, interrogaram sobre a generalização provocada mediante a percepção em torno do gênero como binário. Para essas autoras, outras questões atravessam as relações sociais e influenciam diretamente na construção e relações de gênero.

Mulheres negras, índias, mestiças, pobres, trabalhadoras, muitas delas feministas, reivindicaram uma ‘diferença’–dentro da diferença. Ou seja, a categoria ‘mulher’, que constituía uma identidade diferenciada da de ‘homem’, não era suficiente para explicá-las. Elas não consideravam que as reivindicações as incluíam (SOIHET; PEDRO, 2007, p. 287).

Em pesquisa mais recente, Carla Akotirene (2018, p. 14) observa que a análise interseccional deve “[…] dar instrumentalidade teórico-metodológica à inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado”, os quais influenciam diretamente na constituição das relações sociais. Ou seja, diante das relações sociais excludentes, essas três categorias não devem ser pensadas sozinhas, pois atuam de maneira relacional.1 A autora destaca também a importância de tomar a proposta interseccional com atenção, para que não seja feita uma soma de hierarquias, pois a interseccionalidade visa perceber como as diferentes categorias sociais se cruzam e contribuem para as configurações sociais. Ressalta, ainda, que essa reflexão não deve pautar-se apenas em perceber as exclusões, pois, nesse cruzamento, torna-se possível perceber as inclusões e pertencimentos proporcionados pelos marcadores sociais.

Em vez de somar identidades, analisa-se quais condições estruturais atravessam corpos, quais posicionamentos reorientam significados subjetivos desses corpos, por serem experiências modeladas por e durante a interação das estruturas, repetidas vezes colonialistas, estabilizadas pela matriz de opressão, sob forma de identidade (AKOTIRENE, 2018, p. 39).

Nesse sentido, a Revista Discente Ofícios de Clio junta-se a outros atores sociais no esforço de dar visibilidade a conhecimentos produzidos por discentes de graduação e pós-graduação, através de pesquisas de caráter teórico e prático, em torno de diversos temas relacionados com as questões de gênero e diversidade sexual, com perspectivas variadas. Diante da proposta de trazer novas contribuições para a historiografia e as áreas afins, o dossiê “Gênero, diversidades, interseccionalidades: perspectivas de análise na pesquisa histórica” reuniu artigos que buscam problematizar as questões de gênero nos mais diversos contextos históricos.

No primeiro deles, “A História das Mulheres: Uma Questão Política No Brasil”, Eduarda C. de Castro Alves, Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO, historiciza a inserção dos estudos sobre mulheres no âmbito acadêmico como um processo de disputa política. Para tanto, retoma os conceitos de feminismo e gênero, os quais são resultantes de diversas lutas, reivindicações e embates políticos de mulheres que extrapolaram para o debate acadêmico e pautaram novos campos de investigação histórica e, ao longo das décadas, foram transformando o fazer histórico, tornando-o mais plural e menos centrado na produção do conhecimento dos homens por eles próprios. Alves nos instiga, ainda, a pensar nos impactos dessas produções para além do universo acadêmico, com resultados que podem interferir na vida das mulheres, inclusive das subalternizadas, como é o caso daquelas em situação de prostituição.

Em “‘Reparar o Erro Através do Casamento’: Honra, Moral e Sexualidade em um Trâmite Judicial”, Alécio Gonçalves da Silva, Graduado em História pela Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT, utiliza processos judiciais da década de 1980 como fontes históricas para realizar um estudo de caso da cidade de Cáceres, no estado do Mato Grosso. O autor observa como distintos discursos cruzam-se para controlar os corpos, a sexualidade, disciplinar as práticas cotidianas e os desejos. Nessa construção discursiva sustentada por relações de poder, Silva destaca como o patriarcalismo foi utilizado ao longo do século XX para sustentar discursos morais para a realização de uniões conjugais e serviram como forma de regular a sexualidade.

Caroline Rios Costa, em “A força da mulher argentina: resistência e luta política nas Madres de Plaza de Mayo e no grupo #NiUnaMenos”, apresenta uma significativa reflexão do protagonismo das mulheres em dois contextos diferentes na Argentina. O Madres de Plaza de Mayo ficou conhecido pela busca dos / as filhos / as desaparecidos / as durante a ditadura. As mães reunidas na praça não só questionaram sobre o paradeiro de seus / as filhos / as como promoveram importantes discussões contrárias à ditadura e outras violências sofridas pelas mulheres. Já o grupo #NiUnaMenos desenvolveu-se como forma de insatisfação e protesto contra as violências contra as mulheres, destacando-se ainda busca pela descriminalização do aborto. Com a diferença temporal de quase 40 anos, Costa destaca características de ambos os grupos e suas similaridades na reivindicação por uma sociedade mais justa e democrática.

No artigo “Processos de invisibilização das mulheres na atividade pesqueira nas legislações brasileiras entre 1846-1990”, Beatriz Lourenço Mendes, Mestranda em Direito e Justiça Social pelo Programa de Pós-Graduação em Direito – FURG, Gabriel Ferreira da Silva, Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental – FURG, Felipe Nóbrega Ferreira, Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental – FURG, destacam diversos aspectos da atividade pesqueira, como os saberes tradicionais, as mudanças provocadas pelo desenvolvimento científico, a criação de legislações e órgãos responsáveis pela fiscalização e a regulamentação da mesma. Os / as autores / as identificam o silenciamento acerca da participação das mulheres nas atividades de pesca, sobretudo por parte do Estado, ressaltando que, embora elas tenham enfrentado os problemas decorrentes da invisibilização, tal fato não as impediu de participar ativamente dessa função.

Em “Mulheres do Povo e Espaço Público na Revolução Francesa: Uma Análise Através de Imagens”, Amanda de Queirós Cruz, graduanda em História pela Universidade Federal Fluminense – UFF, sob a perspectiva da história das mulheres, revisita a produção acerca da Revolução Francesa explorando fontes imagéticas produzidas durante o período revolucionário e, através delas, reflete acerca da participação ativa das mulheres durante a revolução. Seja por meio de protestos nas ruas ou organizações, as mulheres foram protagonistas na busca por melhores condições sociais. A autora observa que em protestos de grande público e “atravessando a fronteira para o lado que não lhes era permitido, simplesmente ao realizarem o ato físico de saírem da soleira da porta de seus lares e irem para a rua”, foram responsáveis pela movimentação da revolução.

Jaqueline Silva de Macedo, Mestre em História pela Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP, utiliza a produção literária como fonte histórica para direcionar sua investigação acerca das narrativas construídas sobre a Fortuna, divindade grega e romana, em “A Fortuna no Roman de Fauvel e sua relação com a tradição literária e religiosa da Civitate Dei e da Consolatio philosophiae na Idade Média”. Buscando perceber as aproximações e distanciamentos nas narrativas empregadas, Macedo seleciona as obras Roman de Fauvel, Civitate Dei, de Agostinho e Consoloatio philosiphae de Boécio. Nessa interlocução, a autora observa como essas obras literárias contribuíram para a construção do imaginário cristão e das interpretações sobre Fortuna, e como as características da feminilidade foram reforçadas por meio de discursos pautados sobre a vontade divina.

Por fim, Miller Goulart Ferreira, Graduado em História Licenciatura pela Universidade de Brasília – UNB, através do artigo “História da homossexualidade ligada à transmissão de HIV / AIDS e abordagem na escola pelo filme Filadélfia de Jonathan Demme (1993)” procura problematizar a homofobia, sugerindo a utilização deste filme como suporte pedagógico para fomentar o debate acerca de questões relacionadas aos direitos civis e ao enfrentamento de violências contra homossexuais. Ferreira, além de indicar o uso de recursos audiovisuais na sala de aula, estabelece algumas considerações acerca do movimento gay no Brasil e Estados Unidos e da participação desses na conquista de direitos.

Nosso objetivo, nesse dossiê, foi reunir artigos que dialogassem com a pluralidade de experiências e / ou representações de gênero, feminismos, masculinidades e diversidades – enfocando relações de poder, de violência ou de resistência – em perspectiva histórica ou interdisciplinar, utilizando fontes orais, impressas, literárias, imagéticas ou audiovisuais de modo a contribuir para a promoção do debate qualificado acerca das relações de gênero, com o propósito de garantir avanços duramente conquistados e ampliar as perspectivas das mulheres na luta por uma sociedade mais equânime, menos violenta e com mais respeito às diferenças.

Uma boa leitura a todes!

Nota

1. Para Akotirene, cisheteropatriarcado é a noção conceitual que compreende a relação do patriarcado e as expectativas de gênero construídas em torno de um corpo pautado nas diferenças biológicas binárias, que, junto às imposições, diante da identidade estética de pessoas cisgêneras como desejadas, exclui as pessoas que escapam a esse padrão (AKOTIRENE, 2018).

Referências

AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade? Belo Horizonte (MG): Letramento: Justificando, 2018.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

CARNEIRO, Aparecida Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de. (Org.). Pensamento Feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.

CRENSHAW, Kimberlé. A intersecionalidade na discriminação de raça e gênero. VV. AA. Cruzamento: raça e gênero. Brasília: Unifem, 2004.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. S. Paulo: Boitempo, 2016.

GONZALEZ, Lélia. A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem políticoeconômica. In: RODRIGUES, Carla; BORGES, Luciana; RAMOS, Tania R. O. (Org.). Problemas de gênero. Rio de Janeiro: Funarte, 2016. p. 399-416.

HOOKS, bell. Olhares negros: raça e representação. Trad. Stephanie Borges. São Paulo: Elefante, 2019.

LORDE, Audre. Age, Race, Class and Sex: Women Redefining Difference. In: LORDE, Audre. Sister Outsider: Essays and Speeches. Freedom, CA: Crossing Press, 1984.

PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Trad. Viviane Ribeiro. São Paulo: Edusc, 2005.

SCOTT, Joan W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul. / dez. 1995, pp. 71-99.

SMITH, Bonnie G. Gênero e História: homens, mulheres e a prática histórica. Ed. EDUSC: São Paulo, 2003.

SOIHET, Rachel; PEDRO, Joana Maria. A Emergência da Pesquisa da História das Mulheres e das Relações de Gênero. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 27 nº 54, 2007.p. 287.

Joelma Ferreira dos Santos – Doutoranda pelo PPGH / UDESC – Florianópolis-SC. E-mail: fsantos.joelma@gmail.com

Jorge Luiz Zaluski – Doutorando pelo PPGH / UDESC – Florianópolis-SC. E-mail: jorgezaluski@hotmail.com


SANTOS, Joelma Ferreira dos; ZALUSKI, Jorge Luiz. Apresentação. Revista Discente Ofícios de Clio, Pelotas -RS, v. 4, n. 7, jul./dez., 2019. Acessar publicação original [DR]

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Nas fronteiras da História: diálogos e alianças interdisciplinares na pesquisa histórica / Aedos / 2009

Em sua quinta edição, a Revista Aedos tem o orgulho de apresentar o dossiê “Nas fronteiras da História: diálogos e alianças interdisciplinares na pesquisa histórica”. Trata-se de três artigos, que abordam as possibilidades oferecidas ao conhecimento histórico pelos contatos com diferentes áreas, em especial, da Literatura, Antropologia e Arqueologia. Renata Dal Sasso Freitas, em seu artigo “José de Alencar e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro: apontamentos sobre a concepção do romance As minas de Prata (1862-1865) e a cultura histórica brasileira nos oitocentos”, apresenta uma abordagem que analisa a relação interdisciplinar entre a História e a Literatura, na segunda metade do século XIX. Com uma proposta no mesmo sentido, o artigo “História e Antropologia: possíveis diálogos”, de Marcos Felipe Vicente, aborda as aproximações da História com as Ciências Sociais, em especial com a Antropologia, através das considerações de alguns intelectuais destes dois campos, focando a análise em suas propostas para a aproximação entre as duas disciplinas. O terceiro artigo, de Carolina Kesser Barcellos Dias, intitulado “Colonização grega e contato cultural na Magna Grécia: o testemunho dos vasos lucânicos”, aborda os registros materiais cerâmicos de uma região colonizada pelos gregos, a Lucânia. Através deste estudo apresenta traços dos movimentos de resistência da população local aos padrões helênicos que estavam sendo introduzidos. Um interessante artigo sobre as formas de re-elaboração e interpretação dos padrões culturais na produção artística, marcando também as permanências da cultura dos artistas nativos.

A seção artigos diversos conta com três colaborações. O artigo “Bizâncio, Pérsia e Ásia Central, pólos de difusão do nestorianismo” analisa o surgimento e expansão da corrente nestoriana, além da sua recepção entre diversos povos do Oriente. É destacada também a importância das trocas comerciais como meio dessa difusão. Fabrício Gomes Alves, em seu artigo “Entre a Cultura Histórica e a Cultura Historiográfica: implicações, problemas e desafios para a historiografia”, tem como foco a noção de cultura histórica, analisando a emergência da categoria, suas características e sua aplicabilidade. Por fim, o artigo de Vicente Neves da Silva Ribeiro, “Populismo radical e processo bolivariano: o conceito de populismo de Ernesto Laclau e as análises da Venezuela contemporânea” retoma a discussão acerca do conceito de populismo, pensando a sua aplicação no caso da Venezuela contemporânea. Para a próxima edição são aguardados comentários críticos sobre o artigo de Vicente Ribeiro, com o objetivo de estimular o debate acadêmico, visando uma discussão franca sobre as contribuições trazidas por este artigo.

Na seção Mesa Redonda desta edição, apresentamos o debate travado em torno do texto de Keila Auxiliadora Carvalho, doutoranda da Universidade Federal Fluminense, “Tempo de Lembrar: as memórias dos portadores de lepra sobre o isolamento compulsório”. O artigo toma como objeto a construção da memória e identidade de ex-internos do leprosário “Colônia Santa Isabel”, localizado em Minas Gerais, sendo que sua metodologia insere-se no campo de estudos da História Oral. Participaram como comentadores a Prof. Dra. Beatriz Teixeira Weber, do Departamento de História da UFSM, a Prof. Dra. Nikelen Acosta Witter, do Departamento de História da UNIFRA, e Juliane Conceição Primon Serres, doutora em História pela Unisinos. Por fim, Keila apresenta sua resposta aos apontamentos produzidos pelos especialistas convidados.

Na seção resenhas, apresentamos as sínteses construídas por Rodrigo Bragio Bonaldo, Gabriel Requia Gabbardo e Fábio Bastos Rufino. Bonaldo apresenta um trabalho inédito em português de Hans Ulrich Gumbrecht, “Production of Presence: what meaning cannot convey”, no qual o pesquisador alemão explora a historicidade das formas de produção de sentido. Gabbardo apresenta a obra “The Fall of Rome and the end of civilization”, na qual Bryan Ward-Perkins traz novas contribuições para a discussão sobre a Antiguidade Tardia e o fim do Império Romano através de suas pesquisas arqueológicas. Rufino, resenhando o livro organizado por Maria Teresa Toríbio Lemos, “América Latina: identidades em construção – das sociedades tradicionais à globalização”, justifica a pertinência da obra, na medida em que excursa sobre os seus principais temas e ressalta a conjunção de seu carácter controvertido com um tratamento heterodoxo, aberto a novas contribuições.

Finalizando nossa edição, apresentamos a entrevista com o historiador alemão radicado nos EUA, professor da Stanford Universit, Hans Ulrich Gumbrecht. Em uma conversa agradável, iniciada com temas esportivos, Juliano Antoniolli e Vitor Batalhone conversaram com Gumbrecht sobre questões acerca das ideias de verdade e de referência, e sobre as possibilidades de se aprender com a história.

Por fim, nos alegra sobremaneira continuar o excelente trabalho iniciado pelos colegas da gestão anterior, que souberam, através de muito trabalho, comprometimento e diálogo, construir uma revista séria e comprometida. Através desta edição, damos continuidade ao trabalho iniciado, consolidando esta revista como um espaço de diálogo e de divulgação do conhecimento histórico.

Boa Leitura a todos!

Conselho Editorial

Gestão 2009-2010


Conselho Editorial. Editorial. Aedos, Porto Alegre, v.2, n.5, julho-dezembro, 2009. Acessar publicação original [DR]

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Fontes materiais e a pesquisa histórica / Revista de Fontes / 2016

Este número da Revista de fontes é produto indireto da Jornada de Fontes promovida pela Departamento de História da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Ferderal de São Paulo (EFLCH-UNIFESP) em 2015, cujo objetivo era discutir o uso de fontes materiais na pesquisa histórica. Para tanto, o conceito de “cultura material” foi destacado, e entre os palestrantes, havia profissionais de campos variados: historiadores, arqueólogos e museólogos. Dessa forma, os artigos que seguem estão conectados com o interesse daquele evento – o debate sobre fontes materiais, sobre o conceito de cultura material e a ação interdisciplinar (ou multidisciplinar) frequentemente relacionada a ele. Os três primeiro artigos apresentam propostas de abordagem de setores específicos de fontes materiais, um histórico do tratamento acadêmico do objeto e estudos de caso, nos quais as questões são mais aprofundadas. Mais que isso, a abordagem é explicitada, colocada à prova. O último, uma discussão teórica do conceito de documento histórico e sua relação com as fontes materiais.

O primeiro artigo, Linear B, uma introdução de Juliana Cladeira Monzani, apresenta um tipo de fonte escrita, cuja interpretação foi consistentemente feita a partir de dois campos principais: a Filologia e a Arqueologia. De um lado, as pesquisas sobre a decriptação da escrita (que revelou uma forma antiga da língua grega, chamada pelos especialistas de grego micêncio), e o contexto predominante de uso (o contexto administrativo), foi conectado aos dados arqueológicos sobre esse tipo de escrita, tais como a sua cronologia, os suportes e os espaços de imobilização. A observação articulada desses dados proporciona, assim, ao historiador interessado, além de um claro exemplo de abordagem inter- ou multidisciplinar, um exemplo de abordagem de escrita com suporte físico preservado, fundamentos para se pensar em dinâmicas sobre a cultura e a economia do chamado “período micênico”, um segmento da história da Idade do Bronze do Mediterrâneo Antigo; entretanto, sem a constituição de uma narrativa história factual.

Edifícios como fonte histórica: o caso do templo de Ares na Ágora de Atenas (século I a.C.) de Fábio Augusto Morales, destaca outro tipo de fonte: edifícios. De início, o autor denuncia a pouca atenção dos historiadores com esse tipo de fonte, que foi mais consistentemente tratada por outras disciplinas (como a História da Arte e a Arqueologia) e segmentos muito específicos da História ou da Arquitetura (a História da Arquitetura). Com isso, impõe-se a observação das estratégias de abordagem desse tipo de objeto, atenção às propostas já tratadas por esses domínios acadêmicos: novamente, uma observação integrada baseada em diálogos disciplinares. O estudo de caso apresentado é a movimentação do templo de Ares na Ágora de Atenas, especialmente no século I a.C., o que proporcionou um debate sobre a história do período, articulando elementos da política e da religião.

Em Aplicação da ferramenta de aprimoramento de imagens DStretch® em sítios rupestres: uma releitura do sítio Bom Nome IV (Pão de Açúcar, AL), Carolina Guedes apresenta a proposta de uso de uma ferramenta tecnológica para a reavaliação do registro de arte rupestre. O primeiro passo é a observação da viabilidade dessa nova ferramenta, comparando os resultados com outras tradicionalmente utilizadas. Para a observação mais aprofundada, é tratado o caso de alguns grafismos do sítio alagoano Bom Nome IV, no qual, com a ferramenta em questão, foi possível identificar novos elementos até então não registrados, além da reavaliação daqueles já conhecidos.

O último artigo, Fonte material, fonte textual e a noção de documento de Gilberto da S. Francisco, apresenta uma discussão do conceito de documento. Não uma discussão filosófica, mas a partir do uso que a bibliografia faz do termo. Nesse contexto, é possível observar que, na disciplina histórica, a noção de documento, ainda recentemente, é amplamente conectada à ideia de documento textual, sobretudo aquele de base escrita, e certo distanciamento da fonte material, normalmente identificada como “arqueológica”. Entre a noção de fonte textual, fonte escrita, fonte literária, fonte histórica, fonte material e fonte arqueológica, o texto propõe uma discussão do próprio conceito de documento e das consequências disso para a pesquisa histórica.

Desejamos a todos uma boa leitura!

Gilberto Francisco


FRANCISCO, Gilberto. [Fontes materiais e a pesquisa histórica]. Revista de Fontes. Guarulhos, v.3, n.5, 2016. Acessar publicação original [DR]

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Ensino – pesquisa em história: desafios e perspectivas / História & Perspectivas / 2015

Há três décadas a relação entre ensino e pesquisa em História vem ocupando centralidade nas discussões de muitos de nós historiadores. Com o fim dos Estudos Sociais, das licenciaturas curtas e ou plenas nas Universidades Públicas e Privadas, a extinção de disciplinas, como OSPB e Educação Moral e Cívica; o restabelecimento das áreas de História e Geografia e de outras das Ciências Humanas nos currículos do ensino fundamental e ensino médio, são evidências de mudanças. Se alguns desafios foram vencidos outros ainda permanecem no horizonte das nossas práticas de trabalho. Entre tantos está o de firmar a educação como um direito a ser conquistado enquanto dimensão da cidadania.

Por certo ainda se tem muito que avançar quando o tema é a pouca ênfase das políticas publicas na valorização do trabalho docente e no aprendizado dos estudantes, resultando em um cenário recorrente de baixos salários e pouca carga horária das disciplinas de Humanas nas grades curriculares do ensino básico. Há necessidade de se rediscutir o predomínio do mercado editorial eletrônico e ou impresso no âmbito da circulação dos conhecimentos, incidindo na maioria das vezes em práticas de ensinar que sucumbem à relação com o pensar histórico. Ou melhor dizendo: necessidade de questionarmos a permanência, no “chão” de muitas escolas, de práticas de ensino desarticuladas dos processos vividos, da realidade sociocultural dos estudantes e professores, pautadas em bases hierárquicas, cuja sustentação se dá por meio de discursos das “competências, habilidades e meritocracia”. Reflexões que estiveram no cerne das criticas ainda no final dos anos 1980 e que apontavam para a necessidade de trazer o direito a uma educação articulada ao direito à cultura e à cidadania. (Chauí, M., 1980).

No cerne dessas criticas estava a necessidade de pensar a educação como campo onde a difusão dos conhecimentos, que se requerem “competentes”, seja feita ao lado e em concomitância com as dissonâncias vividas em todas as dimensões da cultura e ou das muitas e outras “falas” produzidas no cotidiano das relações vividas pelos estudantes, professores e trabalhadores técnicos.

Essa é uma critica que permanece como desafio e uma esperança, pois, felizmente, tem rendido muitas discussões e publicações. Essas se apresentam como propostas alternativas para democratizar as relações de ensino / pesquisa na formação dos professores, nas suas práticas de ensinar, como modos de se relacionar, de incorporar e difundir saberes que se fazem nos diálogos com os estudantes, na sala de aula e noutras relações que constituem as escolas uma instituição pública e permanentemente moldada pelos processos de criação, de reflexão, cujas autorias pertencem a todos os agentes, que trabalham e estudam nelas. (Arroyo, M., 2011)

Agora falemos das Perspectivas, outra palavra que compõe o titulo do Dossiê. Vale lembrar que em 1992 a Revista História & Perspectivas deu a sua contribuição para lidar com o ensino como pesquisa histórica na edição de um dossiê cujo tema foi Historia e Historiografia. O número contou com a presença de vários autores entre eles o de Déa Ribeiro Fenelon, que na época era professora do Programa de Pós Graduação da PUC-SP e também diretora do Departamento de Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura da Prefeitura de São Paulo. O artigo O Historiador e a Cultura Popular: História de classe ou História do povo? foi originalmente apresentado por ela no VI Encontro Estadual de História de Minas Gerais em 1988. Nele várias questões foram trazidas como críticas e como um “chamado” a pensar a função social do historiador e a produção do conhecimento histórico articulado a procedimentos que firmassem a necessidade de valorizar a disciplina História como um campo de muitos fazedores de história em todos os níveis e concepções.

Com essa perspectiva Déa Fenelon apontou alguns problemas nesta questão do ensino / pesquisa em História, aludindo à responsabilidade, de nós historiadores, nas escolhas teóricas pouco debatidas no interior da academia, ou reduzidas aos Eventos da ANPUH. A autora destaca na sua reflexão o fato destes conhecimentos se colocarem como verdades consagradas e ou sacralizadas nos conteúdos curriculares e elencos programáticos, escudados na idéia de que afinal existe toda uma determinada história da humanidade que nossos alunos, futuros professores, precisam dominar para poder transmitir na escola de 1 e 2 graus. Estabelecem-se os conteúdos e a discussão passa a ser apenas sobre a melhor maneira de transmití-los, partindo–se do suposto da hierarquização dos níveis de aprendizagem e de saber que é preciso consagrar. (Fenelon, Déa, 1992, p.8)

A perspectiva apresentada como crítica pela autora era a de buscar uma concepção de História que convivesse com a noção de um tempo / processo histórico indeterminado, o indefinido, o diferenciado, perseguindo assim procedimentos teórico-metodológicos que incorporassem a diversidade e diferença entre sujeitos e grupos, as mudanças e as permanências, reconhecendo que ninguém tem o monopólio do caminho a percorrer para construir a transformação que queremos ver realizada. (Fenelon, Déa, 1992, p.9)

Desse tempo para cá tivemos muitas discussões sobre essa realidade. Elas inclusive deram vazão a diversas propostas inscritas como parâmetros curriculares nacionais, os PCNs, que trazem o movimento de incorporação dessas críticas, por exemplo, ao elencar como trabalho na formação dos nossos estudantes os procedimentos de lidar com a diversidade de linguagens socioculturais. Também tivemos nos anos 1990 muitas mudanças no âmbito da criação de novos cursos de graduação e pós- graduação em História com a incorporação de novos temas nas diferentes abordagens do pensar histórico e historiográfico; a revisão de concepções tradicionais da História Política e Econômica; a emergência de trabalhos no âmbito da Historia Cultural; ao lado da persistência daqueles, na área da Historia Social, que resistem à idéia de que esse campo de investigação é apenas mais uma especialização.

No âmbito das prerrogativas das mudanças institucionais dos currículos da educação básica estão os desafios de problematizar e produzir conhecimentos sobre “cultura afro brasileira e indígena” que envolvem questões a serem enfrentadas. Por isso este dossiê traz artigos que buscam pontuar para fazer avançar nas reflexões sobre o eixo Ensino / pesquisa em História, pensados ainda como desafios e perspectivas.

No conjunto do Dossiê temos 10 artigos diretamente vinculados ao tema. Começamos com o artigo do historiador Michael Merrill que traz a sua experiência de professor nos Estados Unidos junto aos estudantes das classes trabalhadoras. O texto é instigante, pois retoma questões que ainda precisam ser desnaturalizadas, como as perguntas: “O que os trabalhadores sabem da História? O que a História sabe sobre os trabalhadores? No seu texto essas questões atuam como pontos para a sua argumentação de que a História não é fixa e imutável, mas fluida e em constante transformação. Não é o passado. É uma história que nós contamos sobre o passado.

Outro artigo importante para um pensar retrospectivo e prospectivo sobre o ensino / pesquisa em História é o da historiadora Maria do Rosário da Cunha Peixoto. A autora retoma as discussões sobre as diferenças das propostas curriculares realizadas na rede pública, com professores e também com aqueles que eram responsáveis pelo processo de construção das mesmas com a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, desde 1986. O objetivo do artigo é discutir o ensino como pesquisa, o que implica considerar a pesquisa o eixo organizador dos currículos escolares dos níveis fundamental e médio e das atividades dos professores de História no exercício da docência e não mais como atividade eventual em sala de aula. Propõe assim o deslocamento do debate – atualmente centrado no confronto das tendências historiográficas e suas formas específicas de escolher e articular as informações ou conteúdos a serem ensinados – para a discussão de metodologias científicas de investigação histórica adequadas aos diferentes níveis de escolaridade.

Numa abordagem diferente o autor Fernando Penna, formado na área da Educação, trata de analisar as concepções de tempo e a percepção da possibilidade da agência no ensino de história. Para tanto, o autor usou como fontes textos de estudantes do ensino fundamental produzidos por um professor da turma, visando tratar a problemática da distância entre passado, presente e futuro em sala de aula, tendo como referencial teórico as propostas de Reinhart Koselleck e Hans Ulrich Gumbrecht. Destaca ainda que as concepções de tempo apresentadas pela maioria dos alunos foram extremamente pessimistas e fatalistas, mas a existência de alguns poucos que acreditavam na responsabilidade de mudar o curso dos acontecimentos aponta para considerações importantes para a prática docente dos professores de história.

Álvaro Nonato Franco Ribeiro e Sônia Aparecida Siquelli, também ligados a área da Educação, apresentam análise das propostas curriculares oficiais que afetam atualmente a educação em Minas Gerais. O objetivo do artigo é argumentar que as idéias neoliberais presentes nas Propostas Curriculares Nacionais (PCN) e no Currículo Básico Comum (CBC / MG) propõem, por meio da adoção de práticas típicas da economia de mercado, desenvolver um sistema educacional pautado na qualidade. Para o ensino de História, essas propostas determinam incluir as fontes históricas em sala de aula e priorizar o desenvolvimento de habilidades e competências que preparem o estudante para o mundo do trabalho. A pesquisa, de natureza qualitativa, realizou uma análise descritiva, crítica e documental dos documentos curriculares oficiais por intermédio da construção de protocolos de análises que evidenciaram pontos convergentes e divergentes entre os PCNs e o CBC / MG.

Carmem Zeli de Vargas Gil, também da área de Educação, com referenciais aportados nos estudos da Historia Cultural, traz como proposta examinar a história de jovens nos conteúdos dos livros didáticos, em especial uma coleção de História para o ensino médio aprovada no Programa Nacional em 2012. O diagnóstico é o de que é possível afirmar que há intencionalidades do editor e do autor em dialogar com situações da vida dos jovens na contemporaneidade, mais do que sua presença na História.

Beatriz Boclin Marques dos Santos, da área de Educação, e Thiago Rodrigues Nascimento, historiador, analisam as controvérsias em relação à memória que associa fortemente os Estudos Sociais apenas ao tempo das propostas dos governos militares. Para os autores essas propostas têm como natureza os contextos dos debates sobre educação ainda nos anos 1920, vinculados aos da Escola Nova. Assim o artigo tem como objetivo analisar a trajetória da disciplina escolar Estudos Sociais no currículo das escolas brasileiras entre as décadas de 1930 e 1970. Com base em uma nova perspectiva historiográfica, resultado de pesquisa em fontes documentais (legislação elaborada pelo CFE) e metodologia da História Oral, bem como por meio de entrevistas com personagens que atuaram como formuladores dessa legislação, salienta-se que a adoção dos Estudos Sociais como disciplina no currículo é uma questão eminentemente pedagógica.

Saindo do foco das retrospectivas e proposições sobre o ensino / pesquisa em Historia, os textos a seguir trazem os desafios postos tanto pela crítica à produção historiográfica, como à produção de materiais para o ensino / pesquisa relacionados ao contexto de aprovação da legislação para as problemáticas das Culturas e Histórias Indígenas e Afro Brasileira, no ensino básico e mais recentemente a obrigatoriedade de disciplinas nos currículos da formação superior.

Carlos José Ferreira dos Santos, historiador e ativista das lutas indígenas, traz importante contribuição no sentido de discutir alguns desafios que dificultam a aplicação da Lei 11.645 / 2008, que tornou obrigatória a temática História e Cultura. Santos destaca a necessidade do diálogo entre o ensino das Histórias e Culturas dos Povos Originários, a produção dos conhecimentos acadêmicos e os saberes / vivências indígenas e, por fim, dos compromissos sociais e culturais dos envolvidos no processo educacional e na produção do conhecimento para enfrentar os desafios na implementação dessa lei. Com esse propósito o texto de Santos possibilita refletir sobre alguns entraves que permanecem na vida social e no horizonte da produção historiográfica quando se trata de produzir pesquisas desencontradas das dimensões das culturas / modos de viver destes povos originários. Por exemplo, a permanência de um olhar externo e classificatório sobre as lutas pelos direitos aos seus territórios, ou ainda, quando fortalecem a invisibilidade no social dessas memórias e dos diferentes protagonistas dessas histórias de lutas.

Nesse sentido o artigo de Santos contribui para problematizar a permanência de um olhar que silencia as diferenças étnicas e culturais quando fixa no imaginário social um olhar político / romântico sobre as ações destes agentes. Um olhar fixado num passado distante e articulado aos marcos das conquistas civilizatórias européias tendo como resultante disso o isolamento, tanto no passado como no presente, de suas existências sociais num processo mais amplo de formação histórica da sociedade brasileira. Já que nesse olhar os indígenas emergem ora como heróis exterminados pela violência dos conquistadores, ora como vitimas e remanescentes de uma cultura em extinção.

O artigo de Susane Rodrigues de Oliveira também contribui para pensar os entraves e os desafios para o ensino da Cultura e História Afro-brasileira e Indígena na educação básica. Partindo das prerrogativas das novas leis sobre a obrigatoriedade destes “conteúdos” nos currículos, a autora analisa os resultados de uma pesquisa realizada por estudantes do curso de História da UnB no estágio supervisionado em escolas do Distrito Federal junto à comunidade escolar da rede pública de Brasília. A sua análise apontou para questões que vão desde a falta de formação dos professores, o enraizamento de preconceitos sociais em relação a alguns conteúdos e a ausência de materiais didáticos livre de alguns paradigmas, até a falta de compromisso da Secretaria da Educação. Esses entraves são para ela alguns dos obstáculos a serem enfrentados.

Desta forma, por diferentes caminhos teóricos os autores relacionados trazem os percursos do debate sobre a relação entre ensino / pesquisa, demonstrando o quão fértil é o campo de diálogo e reflexão, não só para os historiadores como para todos os pesquisadores de outras áreas do conhecimento.

Numa secção de artigos fora do dossiê, este número de História & Perspectivas ainda apresenta as contribuições de autores que trazem diferentes questões relacionadas à formação dos professores; os supostos metodológicos no trato com diferentes linguagens; os desafios no ensino sobre estudos de gênero e a critica à produção historiográfica; bem como os estudos firmados na história local, as problemáticas das fontes e das abordagens. Artigos que ajudam a explicitar o campo diverso das propostas, que instigam debates e revelam diferentes abordagens na produção do conhecimento histórico. Todas estas colocações indicam que os desafios para se trabalhar a formação de professores e pesquisadores continuam no centro das nossas preocupações.

Célia Rocha Calvo


CALVO, Célia Rocha. Ensino – Pesquisa em História: desafios e perspectivas. História & Perspectivas, Uberlândia, v.28, n.53, 2015. Acessar publicação original [DR].

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20 anos dos Cadernos de História: periódicos, pesquisa histórica e divulgação científica / Cadernos de História / 2015

É com grande contentamento e intensa euforia que publicamos a edição comemorativa dos 20 anos dos Cadernos de História. Revista científica fundada no ano de 1995, atualmente vinculada ao Departamento de História e ao Centro de Memória e Pesquisa Histórica da PUC Minas, que por sua qualidade vem atraindo um número expressivo e crescente de submissões, acessos, usuários e leitores cadastrados.

Para marcar esta data especial, em alusão a trajetória da revista, apresentamos a nota histórica Cadernos de História PUC Minas: vinte anos de um projeto em construção. Elaborada pela professora Heloisa Guaracy Machado, idealizadora e abnegada colaboradora dos Cadernos de História, em parceria com o Editor Adjunto Rafael Pacheco Mourão, responsável pelo processo técnico, pela editoração e por outras etapas até a publicação final da revista. Os historiadores apresentam relevantes informações, direcionamentos seguidos, decisões tomadas e dados estatísticos, ao percorrer objetivamente as fases da revista, mas sem perder a perspectiva memorialística, retomar certas situações e prestar deferência a outras pessoas cuja contribuição foi fundamental para a continuidade dos trabalhos deste periódico. Fato é que o tempo em que Heloisa Guaracy Machado esteve à frente como Editora Gerente se confunde com a própria história dos Cadernos de História. O mesmo se aplica ao Editor Rafael Pacheco Mourão, que além de suas atividades no Centro de Memória, dedica-se com afinco no campo editorial dos Cadernos de História e presta consultoria para outros periódicos da instituição.

Em seguida, trazemos uma seção específica reunindo artigos voltados ao papel desempenhado pelos periódicos científicos no campo acadêmico. No primeiro artigo, de Miguel Ángel Márdero Arellano e Maria de Fátima Duarte Tavares, intitulado Preservação do patrimônio científico das humanidades: a emergência da Rede Cariniana, os autores apresentam as transformações e as novas demandas sofridas pelas revistas científicas nas últimas décadas ao adaptarem suas publicações às plataformas digitais. Os pesquisadores elencam as ferramentas estratégicas utilizadas no processo de editoração eletrônica no país diante do propósito de assegurar credibilidade aos periódicos científicos e o respectivo reconhecimento na comunidade acadêmica. Diante disso, os autores abordam especificamente a Rede Brasileira de Serviços de Preservação Digital – CARINIANA, iniciativa oficial vinculada ao instituto de pesquisa do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, cujo objetivo é a produção e socialização de sistemas de informação e, portanto, a preservação de periódicos eletrônicos em curso no Brasil.

Os artigos seguintes, O Guayba: o papel do jornalismo literário na formação dos jovens sul-grandenses em Porto Alegre (1856-1858) e Como ler uma revista ilustrada? Proposta metodológica para o estudo dos periódicos ilustrados publicados no Brasil oitocentista, dos respectivos autores, Carla Renata Antunes de Souza Gomes e Guilherme Elias de Figueiredo, alinham-se as interpretações sob o bojo da história cultural em suas práticas e representações ao analisar discursivamente periódicos e revistas publicadas no Brasil oitocentista. O texto de Carla Renata Antunes de Souza Gomes investiga o compartilhamento de ideias e aspirações de grupos letrados da capital da província do Rio Grande do Sul através da leitura do O Guayba, periódico literário que circulou durante a segunda metade do século XIX na cidade de Porto Alegre. Já o artigo de Guilherme Elias Figueiredo tem o propósito de ampliar metodologicamente os horizontes interpretativos sobre as ilustrações que integram as publicações impressas, favorecendo o diálogo entre o texto e as imagens contidas nas revistas ilustradas.

O artigo Na trilha do Monde Diplomatique: intelectuais, imprensa e perspectiva crítica, de autoria de Juliana Sayuri Ogassawara, também se alinha às publicações desta primeira seção dedicada aos estudos sobre as possibilidades de leitura, de metodologia e de procedimentos técnicos voltados aos impressos periódicos. Em sua pesquisa, a pesquisadora cerca-se de amplas fontes coletadas em língua francesa com o objetivo de analisar o suplemento periódico diplomático francês Le Monde, notabilizado por priorizar a temática das relações internacionais. Fundamentada pela história política, intelectual e do tempo presente, Juliana Sayuri Ogassawara analisa as categorias discursivas do periódico a partir da trajetória e do direcionamento de sua linha editorial em distintas conjunturas históricas do jornal.

A primeira seção é finalizada com o artigo de Adriana Angelita da Conceição, Entre o ofício e a amizade: o discurso epistolar do vice-rei 2º marquês do Lavradio no século XVIII. Neste trabalho não são os periódicos o ponto central de sua pesquisa, mas sim as correspondências remetidas pela monarquia portuguesa, em especial pelo vice-rei do Estado do Brasil, D. Luís de Almeida. A autora segue a trajetória metodológica nos trabalhos aqui apresentados ao analisar as categorias discursivas presentes nas cartas epistolares, considerando-as importantes ferramentas do governo, ao possibilitar que ordens e demais demandas administrativas pudessem ser atendidas em âmbito local e além-mar.

A presente edição conta também com a nota de pesquisa A preservação de acervos históricos no Estado de Minas Gerais: Projeto Memorial da Imprensa de Uberaba – criação da hemeroteca digital do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, dos pesquisadores Vilma Moreira Santos, Thiago Veloso Vitral e Alessandra Palhares. Nesse sentido, destaca-se a importante iniciativa em reunir, organizar, catalogar e preservar o patrimônio documental, ação louvável que certamente irá contribuir para futuras pesquisas.

Em seguida, com a finalidade de contemplar o propósito abrangente e plural da revista, segue-se a seção destinada a temática livre. Os autores Norberto Tiago Gonçalves Ferraz e Fernanda Fioravante Kelmer Mathias lançam múltiplos olhares sobre o século XVIII em valiosas pesquisas arquivísticas. O primeiro, no artigo Os legados pios perpétuos confraternais na cidade de Braga no século XVIII, pesquisa nesta localidade portuguesa setecentista as doações para celebração de missas e outros serviços post mortem encomendados pelo testador para o bem de sua alma e de seus familiares. Esses legados pios estiveram vinculados às confrarias bracarenses que se encarregaram da manutenção, reprodução e contemplação aos titulares de direito e suas respectivas gerações. Já Fernanda Fioravante Kelmer Mathias, em seu artigo Estudo comparativo das receitas das câmaras de Vila Rica e Vila de São João del-Rei, 1719-1750, estuda a realidade setecentista do ambiente das Minas Gerais. A pesquisadora analisa sistematicamente os orçamentos de dois importantes núcleos urbanos mineradores do período colonial através das receitas arrecadatórias de suas câmaras municipais.

Os artigos seguintes também pesquisam o ambiente das Minas Gerais, porém, destacam o contexto histórico oitocentista em distintas temporalidades e realidades. João Lucas Rodrigues, autor de O parentesco escravo nas terras da família Maia: sul de Minas, 1811 a 1860, analisa a construção das relações familiares e das alianças de compadrio em tradicional família daquela localidade. Em outro artigo intitulado Identidade, modernidade e escrita eclesiástica em tempos de Reforma Ultramontana, Tiago Pires fundamenta-se no estudo de categorias discursivas e identitárias para analisar as narrativas de fé na escrita eclesiástica da Diocese de Mariana no período de 1855 a 1902. Complementando os estudos sobre o século XIX, publicamos o trabalho de José Alberto dos Santos Marques, Emigração portuguesa para o Brasil nos fins do século XIX, que lança mão de rico acervo documental do Fundo do Governo Civil de Lisboa para analisar as motivações e os vínculos estabelecidos no processo de imigração portuguesa em terras brasileiras.

Integram ainda a edição artigos que destacam o Brasil contemporâneo. O trabalho de Lara Vanessa de Castro Ferreira, intitulado Políticas anti-migratórias e ativismo “retirante”: tessituras entre trabalho e migração nas obras públicas em tempos de secas no Ceará (década de 1950), pontua que os retirantes nordestinos atuaram como protagonistas em frentes de trabalho das obras estruturais promovidas pelo poder público de combate a seca naquela região do país. Já o texto Norte de Goiás: terra de esperança, conflitos e frustrações, de autoria de Carlos Alberto Vieira Borba, apresenta os conflitos agrários resultantes do descompasso entre demanda e acesso a terra no norte goiano durante os anos 1950-60, tendo em vista a ocupação territorial estimulada pela campanha do governo federal “Marcha para o Oeste” a partir da década de 1940. Finaliza esta seção o artigo de Reginaldo Cerqueira Sousa, Práticas de esporte, educação física e educação moral e cívica na Ditadura Militar: uma higiene moral do corpo. O pesquisador retoma a temática do período do governo militar no país a partir do estudo das bases de apoio ao regime ditatorial, destacando-se a reestruturação do ensino como estratégia governista direcionada a juventude para a constituição do ideário nacionalista baseado nas práticas esportivas e na educação moral e cívica.

Encerrando o número, temos a tradução Modernolatria, realizada por Júlio Bernardo Machinski. Trata-se da tradução do capítulo central do livro Modernolatria et Simultaneità: recherches sur deux tendences dans l’avant-garde littéraire en Italie et en France à la veille de la première guerre mondial, do historiador sueco Pär Bergman. Tradução inédita do pioneiro estudo clássico sobre as tendências do movimento futurista no início do século XX, originalmente publicado em 1962. A nosso ver essa tradução será de grande valia para os historiadores das artes, dos movimentos culturais e das ideias estéticas.

Agradecemos ainda as pessoas que tornaram possível essa publicação: a equipe do Setor de Revisão, especialmente, Daniella Lopes, Priscila Campello e Laila Xavier; a equipe do Setor de Periódicos da Biblioteca Pe. Alberto Antoniazzi, sobretudo, Alda Verônica Goes e Roziane Michielini; o excelente trabalho gráfico de Leandro Abreu; o suporte cotidiano dos funcionários e estagiários do Centro de Memória e de Pesquisa Histórica da PUC Minas; e por fim, o apoio do Chefe do Departamento de História da PUC Minas, Edison Gomes, e dos professores do Colegiado do Curso de História, Jacyra Antunes, Cristiano Garotti e Julia Calvo.

Por conta desta edição comemorativa, ultrapassamos a extensão usual dos editoriais dos Cadernos de História. Entendemos que o volume 16, número 25, apesar de constituir uma edição comemorativa, conseguiu, por um lado, evitar o excesso memorialista sem deixar de prestar homenagens aos editores e colaboradores da revista, comissões editoriais e equipes técnicas, e por outro, manter a proposta da revista em apresentar instigantes discussões promovidas pelos pesquisadores que aqui enviaram suas contribuições para esta publicação. Parabéns Cadernos de História!

Marcelo de Araújo Rehfeld Cedro – Professor doutor. Editor Gerente dos Cadernos de História da PUC Minas.


CEDRO, Marcelo de Araújo Rehfeld. Editorial. Cadernos de História. Belo Horizonte, v.16, n.25, 2015. Acessar publicação original [DR]

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Produzindo história: ensino e pesquisa / História & Perspectivas / 2008

Educação, pesquisa e ensino são temáticas que continuam fundamentais no debate contemporâneo, neste momento de incertezas e de necessidade de repensar as possibilidades de uma sociedade menos excludente e mais participativa. Embora a educação continue sendo apresentada (abstratamente) como remédio para os males brasileiros, ela é, ao mesmo tempo, questionada nos seus resultados negativos, buscados nos índices de eficiência da escola fundamental e média e nos de produtividade do ensino superior.

Os dossiês que compõem esse número 38 de História & Perspectivas – Produzindo Histórias: pesquisa e ensino e História da Educação – buscam a nossa inserção nesse debate, deslocando os focos de análise e trazendo outras temáticas para a reflexão.

No primeiro estão em debate os livros didáticos, suas interpretações sobre a história e os caminhos de abordagem percorridos. Entre as temáticas, a linguagem imagética e as imagens sobre os negros nos livros de História. Nesse dossiê, uma outra problemática que se coloca para discussão é a das políticas públicas para a educação, englobando as relações entre educação e trabalho, pensando a inserção dos profissionais da área no mercado. Centralização, posturas autoritárias, relações clientelistas, preparo didático-pedagógico estão no foco dos diversos artigos dessa seção.

Duas resenhas contemplam o dossiê Produzindo Histórias: pesquisa e ensino. Elas trazem indicações de leitura sobre o ensino de história e os desafios da área para o século XXI. Ensinar história é uma prática social onde se manifestam diferentes interpretações sobre o mundo e de onde emergem valores que pautam nossas ações enquanto historiadores. Ao contrário das visões superficiais que associam a diversidade ao “tudo é história”, o ensinar exige pesquisa e reflexão teórica para produção de um conhecimento que sempre se renova.

No dossiê História da Educação contamos com análises de situações vividas em outros países, no caso Chile e Portugal, em estudos variados: a educação em asilos femininos; a escola Conde de Ferreira em Mafra; a Escola Nova nos Prêmios Nacionais em Educação no Chile. São preocupações dos autores pensar a educação em múltiplas abordagens, ou seja, como projeto de regeneração moral, como política de salvação da nação pela via da instrução ou pelas influências do pensamento pedagógico de Jonh Dewey. Contemplam esse dossiê artigos de pesquisadoras brasileiras, enfocando as atividades educativas desenvolvidas por oficiais do Exército que contribuíram para a construção da identidade da corporação e o papel educativo da imprensa na formação do cidadão republicano, ao disseminar princípios, como disciplina, e hábitos de trabalho. A cultura escolar da Europa é o foco de uma resenha que aponta para a leitura de uma produção historiográfica sobre a história da educação européia, em uma perspectiva histórico-cultural, abordando temas como currículos, manuais, fontes para pesquisa e tendências de interpretação no campo da História da Educação.

Por último, a reformulação curricular dos cursos de graduação em História da Universidade Federal de Uberlândia é apresentada neste número de História & Perspectivas como uma experiência de ensino recente, inserida na exigência de mudanças, feitas pelas diretrizes curriculares nacionais. Essa exigência resultou, no caso da UFU, na implantação de um novo projeto pedagógico, ainda em andamento. O nosso objetivo aqui é compartilhar essa experiência com todos aqueles que estão trilhando esse caminho, considerando que as situações vividas pelos diversos cursos superiores possibilitaram escolhas diferenciadas no enfrentamento das exigências da política nacional para a educação.

Conselho Editorial


Produzindo história: ensino e pesquisa. História & Perspectivas, Uberlândia, v.1, n.38, 2008. Acessar publicação original [DR].

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