O Massacre dos Libertos. Sobre Raça e República no Brasil (1888-1889) | Matheus Gato

Matheus Gato I Imagem CBN Campinas
Matheus Gato I Imagem: CBN Campinas

O Massacre dos Liberto. Sobre Raça e República no Brasil (1888-1889) de Matheus Gato traz para a “sala de estar historiográfica” um acontecimento relegado pela calendário oficial, ocorrido em São Luís do Maranhão, durante o processo de instauração da República Brasileira, chamado “Massacre de 17 de Novembro”. 1

O boato que o golpe militar iria restaurar a escravidão mobilizou a grande população negra da cidade para protestar contra a Proclamação da República, em frente a sede do jornal republicano O Globo. A mobilização foi reprimida pela tropa postada na frente do edifício para garantir a “lei e ordem”, que abre fogo contra a multidão de negros ocasionando mortes e muitos feridos. Leia Mais

Teoria feminista: da margem ao centro | Bell Hooks

Bel Hooks
Bell Hooks | Imagem: Editora Elefante

Teoria feminista: da margem ao centro foi escrito por Bell Hooks em 1984, porém traduzido e publicado no Brasil apenas em 2019. A obra faz a crítica do feminismo branco burguês, trazendo para o debate feminista a discussão interseccional, atravessada pelas questões de classe, raça, gênero e sexualidade. A autora nos revela que o livro emerge da necessidade de criar uma teoria voltada para as populações empobrecidas e subalternizadas, uma teoria feminista radical que abarcasse a experiência das mulheres negras e das não brancas empobrecidas.

Bell Hooks, escritora, professora e ativista estadunidense, é considerada uma das mais importantes intelectuais da atualidade, publicou mais de trinta livros, vários deles traduzidos recentemente para o português. Por meio de uma linguagem acessível, a autora aborda temas profundos, expressando um pensamento complexo, que recusa binarismos e não cabe em formulações simplistas. Leia Mais

Diásporas imaginadas: Atlântico Negro e histórias afro-brasileiras | Kim Butler

É mais que oportuna a publicação, no Brasil, do livro Diásporas imaginadas. O texto é resultado de uma profícua colaboração entre a historiadora norte-americana Kim Butler e o historiador brasileiro Petrônio Domingues. Ambos uniram seus esforços para apresentar um estudo que envereda por questões epistemológicas relacionadas aos estudos da diáspora e avançam na investigação de experiências da diáspora africana, mais especificamente da diáspora afro-atlântica, ao longo do século XX. Butler, que há mais de três décadas se dedica aos estudos da diáspora e investiga experiências brasileiras, recebeu Domingues no Department of Africana Studies, na Universidade de Rutgers, Nova Jersey (Estados Unidos), por ocasião de seu pós-doutoramento. Naquela oportunidade, Domingues, docente na Universidade Federal de Sergipe, cuja trajetória é igualmente longa nos estudos acerca da mobilização negra no Brasil, pôde investir na abordagem transnacional, introduzindo novas nuances à sua pesquisa. Leia Mais

O massacre dos libertos: sobre república e raça no Brasil | Matheus Gato

À luz da “sociologia histórica do racismo”, a obra de Matheus Gato narra e analisa um trágico confronto envolvendo libertos, policiais e republicanos, em São Luís do Maranhão, dois dias após o golpe militar que derrubou a Monarquia. Aos gritos de morras à República, um grande número de homens negros (alguns sobrestimaram em 3000 deles) cruzou as ruas da cidade desde a manhã daquele dia. Leia Mais

Ruptura dos gêneros na literatura latino-americana | Haroldo de Campos

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Haroldo de Campos | Foto: German Lorca

CAMPOS Ruptura dos generosEm Ruptura dos gêneros na literatura latino-americana, ensaio que integra o volume América latina em sua literatura, de 1979, Haroldo de Campos se vale de dois acontecimentos na história da literatura que culminaram no processo de destruição dos gêneros literários tanto aqui no Brasil como em outros países. O volume, resultado da iniciativa de um projeto da Unesco de estudar a cultura universal na especificidade de seus conjuntos culturais, definição conforme contracapa, conta, ainda, com contribuições de alguns dos principais nomes da crítica literária, como Antônio Candido, Antonio Houaiss, Lezama Lima, Emir Rodríguez Monegal, entre outros.

Sem mais delongas, na sequência de Haroldo de Campos, o primeiro acontecimento diz respeito a uma “crise da normatividade” que teria explodido no século XX, suscitada por vários estudiosos da problemática dos gêneros literários. Entre eles, Mukarovsky, um dos fundadores do Círculo Linguístico de Praga. Para Mukarovsky, a nossa tendência à delimitação literária dos gêneros se deve a uma forte influência do Classicismo. Leia Mais

Antonio Fagundes no palco da história: um ator | Rosangela Patriota

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 PATRIOTA R Antonio Fagundes2Antônio Fagundes e Rosângela Patriota | Foto: Agenda |

Professora aposentada da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Rosangela Patriota é doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), coordenadora do Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura (NEHAC/UFU), e coordenadora do GT Nacional de História Cultural da ANPUH e da Rede Internacional de Pesquisa em História e Cultura no Mundo Contemporâneo. Atualmente é professora do Programa de Pós-Graduação em Educação, Artes e História da Cultura (PPGEAHC) da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Com uma trajetória sólida nos debates que se endereçam a pensar as relações e imbricamentos entre História e Teatro, sobretudo no que se refere à produção da História Cultural, a historiadora Rosangela Patriota se desafia a inserir o ator no centro desses debates de maneira crítica, na contramão de grande parte das pesquisas acadêmicas que estão voltadas para a História do Teatro Brasileiro que, de certa maneira, tendem a privilegiar dramaturgos, críticos e companhias teatrais.

Assim, a autora busca suprir uma lacuna, na área de História, acerca da inserção histórica de atores e atrizes em “termos de periodização da história do teatro no Brasil” (PATRIOTA, 2018, p. 401).

Essa obliteração, ou, a secundarização do ‘trabalho atorial’ que, segundo Rabetti (2012), consiste em interpretação, atuação e presença cênica que corporifica de maneira mediada anseios múltiplos, inclusive os seus, diante deste circuito que configura o funcionamento da arte teatral no Brasil. Assim como Rabetti (2012), Patriota (2008) aponta para as dificuldades de lidar com a figura do ator por dois pontos específicos: a efemeridade da cena no acontecimento do fenômeno teatral e pela hierarquia da crítica cultural, ou mesmo, a tirania do texto escrito, como bem salientado por Roger Chartier (2010), evocando as formas de corporeidade, representação, apropriação e vocalização desses textos.

Dessa feita, o ator seria um ponto fulcral na circulação e personificação de textos e ideias. Porém, mesmo sendo um elemento e figura tão primordial para a construção cênica, o trabalho do ator acontece no espectro temporal do efêmero, que é construído na delicadeza de expressões e gestos e, talvez, por esse motivo seja mais dificultoso lidar com ele no campo da pesquisa, mas não impossível, pois o teatro não se restringe apenas a zona do espetacular ou as características específicas do trabalho de performance atorial que, inclusive, é parcialmente capturada em registros audiovisuais, fotográficos e por índices de recepção fragmentados, como grande parte dos documentos utilizados em História. Sobre isso, Patriota afirma que o fenômeno teatral faz com que o teatro possua inúmeras linguagens (PATRIOTA, 2018, p. 400).

No coração de seu tempo Para o enfrentamento de tal empreitada de contar a história do teatro sob o ponto de vista de uma historiadora de ofício, Rosangela Patriota escolheu Antonio Fagundes como sujeito no palco da História, especialmente, para não dizer que não falou dos atores por causa da efemeridade da ação teatral. Esse desafio está estampado nas páginas de Antonio Fagundes no palco da História: um ator, lançado em 2018, pela Editora Perspectiva. Sempre com um diálogo em primeira pessoa com os leitores, Patriota é franca ao afirmar como será difícil essa jornada, porém em vários momentos reafirma com argumentos muito bem sustentados que a biografia intelectual traz questões impres cindíveis, mesmo dispondo de poucos documentos que façam referência específica a performance do ator. Mas, nem por isso, o cotejamento com outros fragmentos documentais é menos eficaz em responder as perguntas dela enquanto historiadora. Assim, ela insiste que a fabricação de tais documentos está carregada de intenções e, por isso, a ajudam na construção histórica da trajetória e carreira de Antonio Fagundes, pois:

Todavia, uma trajetória é muito mais que a mera exposição de vontades e realizações. Pelo contrário, ela, de acordo com meu entendimento, deve ser vista, interpretada e compreendida à luz das circunstâncias históricas e sociais que a acolheram.

Sob essa óptica, Fagundes é uma personagem fascinante, na medida em que construiu suas experiências em meio a debates e tensões possíveis de serem analisadas, sob o horizontes de expectativas diferentes, ou, em outras palavras: é sabido que o tempo não é apreendido da mesma forma por sujeitos e esferas sociais distintos, isto é, as rupturas vistas e sentidas, por exemplo, no campo da política não se apresentam necessariamente nos mesmos termos na esfera cultural, assim como os ditames e os ritmos da ordem econômica muitas vezes são sentidos e definidos sob regimes e expectativas próprias. (PATRIOTA, 2018, p. 52)

O aporte teórico está afetuosa e devidamente baseado na obra A Teia do Fato (1997), de Carlos Alberto Vesentini, que se acerca da compreensão da construção, disseminação e cristalização do fato histórico, inclusive, de seu poder hipnótico de condução das narrativas que em volta dele gravitam, seja pelo aspecto dos temas, marcos temporais, personagens e acontecimentos, conduzindo e produzindo o sentido e seus respectivos ordenamentos periodizadores. No teatro, por exemplo, a ideia e o desejo de modernização enquanto bandeira, especialmente calcada em referenciais eurocentrados, fez com que o ‘teatro do ator’ fosse relegado como aspecto menor a ser superado, chamado inclusive de ‘teatro velho’ em prol da estetização resumida à atmosfera da cena, especificamente, na passagem do ensaiador para o encenador. Tal procedimento, por exemplo, fez de Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, peça encenada pelo polonês Zbgniev Ziembinski, em 1943, um marco convencionado moderno e tido como um referencial na história do teatro brasileiro, por sua renovação cênica, cristalizando assim uma memória histórica carregada de hierarquias da consagração especialmente constituídas pela crítica, como consta no Dicionário do Teatro Brasileiro.

[…] consolidam-se no âmbito profissional vários projetos de renovação cênica que contestam o protagonismo do ator na concepção do espetáculo. O deslocamento do foco do ator para o encenador é explicitado pelo crítico Décio de Almeida PRADO aos seus leitores em uma crítica publicada em 1947: ‘Presenciamos então, já no nosso século, esse fato inacreditável: a fama e o prestígio dos metteurs em scéne obscurecem a dos atores, e mesmo a dos autores. (GUINSBURG; FARIA; LIMA, 2006, p. 43).

Afirmamos aqui que a historiadora Rosangela Patriota se propôs o desafio de tratar sobre o ator, sobretudo, por ela já possuir uma trajetória frutífera nos debates do campo da historiografia do teatro brasileiro. Ao fazê-lo se coloca diante de um salto frente às suas próprias produções anteriores que se dedicaram a pensar sujeitos históricos que transitaram no circuito teatral, especialmente na qualidade de dramaturgos, críticos, grupos e companhias teatrais; agora foi chegada a hora de pensar a presença do ator em meio a esse emaranhado de questões. Nesses termos, suas contri buições nos estudos sobre teatro já se apresentam em sua primeira obra, Vianinha: um dramaturgo no coração de seu tempo (1999) e Crítica de um Teatro Crítico (2007). Não podemos deixar de mencionar a frutífera parceria entre a historiadora com o saudoso professor Jacó Guinsburg, que está registrada em livros, como J. Guinsburg, a cena em aula: Itinerários de um professor em devir (2009) que reúne a transcrição de fitas da disciplina Estética Teatral, ministrada pelo professor Jacó Guinsburg, e também em Teatro Brasileiro: Ideias de uma História (2012).

Dessa feita, sob a posse desse debate e aporte teórico-metodológico bem definido, a autora faz com que, a partir da experiência profissional de Antonio Fagundes, surja a figura do ator diante desses e de outros acontecimentos históricos. A biografia se dedica a pensar a vida artística de Fagundes desde o início, com a peça A Ceia dos Cardeais (Julio Dantas, 1902), encenada em 1963, nos tempos que o protagonista ainda era estudante colegial, até a peça Tribos (Nina Raine, 2013). Respaldada pela micro-história italiana de Giovani Levi, Patriota torna Antonio Fagundes protagonista de uma narrativa histórica que o considera como eixo norteador da relação entre sujeito e sociedade e, neste interstício, apresenta-se o processo histórico no qual ele se inseriu e continua inserido.

Por conseguinte, a autora faz com que o texto biográfico suscite a abertura de ângulos interpretativos em relação à história do teatro brasileiro, tendo a vida e obra desse ator como eixo condutor. Deste modo, essa biografia não se apresenta como convencional, mas como uma biografia intelectual que ganha forma a partir de temas e problematizações que em outras oportunidades ficaram restritas aos dramaturgos, críticos e companhias.

Entrementes, a narrativa biográfica produzida por Patriota, sobre Fagundes, enfrenta com profundidade a construção e a cristalização de marcos na história do teatro brasileiro. Assim posto, fica claro que Rosangela Patriota tem fôlego para tal discussão que está por vir, a trajetória do ator Antonio Fagundes, conhecido nacionalmente e internacionalmente, por seus trabalhos no teatro, televisão e cinema. Sobretudo, a autora inverte a consagração do galã dessas últimas linguagens, especialmente por sua profícua e longeva atuação em telenovelas, e privilegia o ator e produtor de teatro. Assim, a autora demonstra como os trabalhos de Fagundes na TV e no cinema, de certa forma (não sem restrições e limites), constituíram capital financeiro e de público que sustentaram a sua consolidação no campo teatral, inclusive angariando público para suas produções no Teatro (locus onde ele iniciou sua carreira), proporcionando-lhe este espaço como formativo.

Como bem apontamos, o livro Antonio Fagundes no palco da História: um ator é uma biografia crítica que nos apresenta momentos marcantes, de um ator que iniciou suas atividades e paixão pelo teatro ainda como estudante do Colégio Rio Branco. Fagundes atuou em alguns espetáculos infantis dirigido por Afonso Gentil, que também trabalhava na seção de teatro infantil do Teatro de Arena de São Paulo, e assim aconteceu o convite para Antonio Fagundes participar do núcleo de teatro infantil do grupo de teatro paulista. Ou seja, Rosangela Patriota produz ‘poeira da estrela’[3], porém sem glamourização, pois demonstra que Antonio da Silva Fagundes Filho não esteve predestinado a ser o ator/galã Antonio Fagundes, ou, até mesmo ter uma carreira de sucesso especialmente cristalizada por sua presença em telenovelas.

A autora trata de uma construção artística balizada em processos de formação e atuação teatral, trabalho e uma rede de sociabilidade construída pari passu com a constituição de Antonio Fagundes enquanto ator. A referida rede foi formada por Afonso Gentil, Carlos Augustos Strazzer, Myriam Muniz, Gianfrancesco Guarnieri, José Renato, Augusto Boal, Ademar Guerra, Marta Oberbeck, Armando Bógus, Oswaldo Campozana, Sylvio Zilber, Othon Bastos, Consuelo de Castro, Fernando Peixoto, Antônio Bivar, etc.Antonio Fagundes

No palco das palavras.

O primeiro capítulo intitulado Antonio Fagundes ou Estratégias para a composição de uma narrativa biográfica, trata-se de um balanço crítico que perpassa discussões teórico-metodológicas que esbarram na carreira do ator. Patriota consegue englobar discussões que são caras, não só a nós, historiadores, mas a todos que trabalham com objetos artísticos em geral, pois essas questões se apresentam como um quiasma na trajetória de Fagundes.

Uma das perguntas que move a autora a pensar esse trabalho, como um todo, é: por que Antonio Fagundes passa despercebido perante a historiografia do Teatro Brasileiro até então? Mesmo com sua participação no Teatro de Arena, que foi a sua primeira escola formativa e trabalho atoral profissional. A pergunta é respondida com uma digressão importante sobre as construções que foram feitas ao longo da escrita da História do Teatro, que não foi feita apenas por historiadores, mas também por críticos que estabeleceram certos marcos e fatos, incluindo assim certos grupos teatrais.

Nessa concepção foi estabelecida uma diferença entre teatro empresarial e teatro de grupo. O primeiro foi denominado como um teatro comercial, que visa lucros com a bilheteria, teoricamente sem se importar com o público ou a qualidade do espetáculo, o segundo foi denominado como um teatro sério, que busca o diálogo com os dramaturgos e é composto por grupos teatrais que possuem uma proposta de diálogo entre arte e sociedade.

Antonio Fagundes, por seu sucesso como galã de telenovelas, foi sumariamente engessado como pertencente a categoria de teatro empresarial, como uma espécie de distinção hierárquica estabelecida no circuito teatral, o espoliando de um capital cultural formado no teatro anteriormente ao seu ingresso nas produções televisivas. Diante dessas reflexões, o segundo capítulo intitulado O Teatro de Arena, os espetáculos da resistência democrática e a formação de um ator e de um cidadão, Patriota se debruça na formação intelectual e profissional de Fagundes nos primeiros anos de carreira, focando principalmente na sua frutífera estadia no Teatro de Arena.

No final da década de 1970, Fagundes assinou o contrato com a Rede Globo de Televisão e aceita integrar o elenco da novela Dancin’ Days (Gilberto Braga; direção de Daniel Filho, Gonzaga Blota, Marcos Paulo e Dennis Carvalho; codireção: José Carlos Pieri, 1978). Patriota explica aos leitores a historicidade da palavra galã e, assim, nos demostra como seu protagonista começa a ser reconhecido como galã ao interpretar o papel do ‘mocinho’ Carlos Eduardo Amaral Cardoso, o Cacá, par romântico da personagem Júlia Matos interpretada por Sônia Braga, que já havia estado em cena com Fagundes em Hair (direção de Ademar Guerra, 1969). Em um breve intervalo de tempo, ele estreia, também na televisão, a série composta por cinquenta e quatro episódios, Carga Pesada, na qual toda a sensibilidade de Cacá é posta de lado para dar vida ao viril Pedro, um caminhoneiro que percorre as estradas do país, na companhia de Bino (Stênio Garcia).

A Companhia Estável de Repertório (CER) é objeto do terceiro capítulo, no qual Rosangela Patriota consta a consolidação do homem de teatro e de cultura que passa a colocar em prática de maneira sistematizada todos os seus aprendizados e formação no circuito e no mercado teatral, inclusive, como alguém que se dispõe a debater publicamente as políticas culturais do país ou a falta delas. A referida companhia surge em um contexto de horizontes de expectativas marcado pelo campo da experiência de uma ditadura militar em processo de abertura e redemocratização, momento no qual setores da cultura começam a discutir suas posições na constituição de uma memória histórica sobre a resistência democrática e pensando novos rumos e maneiras diversas de lidar com a linguagem teatral. Como aponta Patriota (2018, p. 198), o telos que antes unira distintos grupos no compromisso com a luta democrática já não atendida mais os anseios de alguns segmentos, inclusive dos mais jovens.

Nesse contexto, em 1981, a CER inicia suas atividades que estiveram em cartaz até 1991, com peças dentre as quais destacamos: O Homem Elefante (de Bernard Pomerance, com direção de Paulo Autran, em 1981); Morte Acidental de um Anarquista (de Dario FO, 1982, direção de Antônio Abujanra); Xandu Quaresma (de Chico de Assis, 1984, sob a direção de Adriano Stuart); Cyrano de Bergerac (de Edmond Rostand, 1985, direção de Flávio Rangel); Carmem Com Filtro (de Daniela e Gerald Thomas, 1986, sob a direção de Gerald Thomas) e Fragmentos de um Discurso Amoroso (de Roland Barthes, 1988, com direção de Ulysses Cruz).

Antonio Fagundes no palco da História: um ator aponta para a confirmação da tese de que a importância do ator para o teatro no Brasil foi de certa maneira suprimida, especialmente, entre a década de 1940 e 1950, devido ao adensamento e a propagação de ideias-força (nacionalismo, modernidades, modernização, politização, estetização) que secundarizaram a figura do ator em meio aos anseios por um moderno teatro brasileiro. Isso, inclusive fez com que o ‘teatro de ator’[4] tão latente na primeira metade do século XX, especialmente, caracterizado por figuras que aproximaram o trabalho atoral com o empresarial na área teatral, como João Caetano, Armando Gonzaga, Dulcina de Moraes, Leopoldo Fróes, etc., fosse considerado como ‘velho teatro’ e visto de certa forma como um entrave para uma pretensa linha evolutiva do teatro brasileiro que deveria ter como destino o signo do novo, o encenador estrangeiro, para se constituir enquanto moderno. Parte desse debate é expressado por Patriota, especialmente, no quinto e último capítulo que recebe o título O ator no centro da narrativa: contribuições à escrita da história do teatro brasileiro, no qual afirma:

De posse desse repertório teórico-metodológico, acredito que comecei a refinar meu olhar interpretativo sobre as histórias do teatro brasileiro, tanto que, em 2012 tive o privilégio de escrever, em parceria com J. Guinsburg, o livro Teatro Brasileiro: ideias de uma História. Nele, foi possível aprofundar questões referentes à urdidura da narrativa histórica e evidenciar como os embates e os anseios dos contemporâneos orientam as ideias-forças que organizam e alicerçam os marcos identificados como a história do teatro brasileiro. […] conseguimos, eu e J. Guinsburg, expor a maneira pela qual as bandeiras artísticas, defendidas por críticos teatrais, em sintonia com grupos e/ou companhias, tornaram-se o leitmotiv da escrita da história de inúmeras histórias do teatro brasileiro. (PATRIOTA, 2018, p. 383)

Em suma, recomenda-se a leitura de Antonio Fagundes, no palco da História: Um Ator, pois através da narrativa biográfica balizada em um robusto trato da documentação (críticas, fotografias, gravações audiovisuais, programas de peças, entrevistas, cartas), Rosangela Patriota nos convida conhecer os ângulos interpretativos de enfrentamentos historiográficos e embarcar na imersão em 50 anos de história cultural brasileira, especificamente, com foco na história do teatro. O grande mérito dessa obra está na sua capacidade intelectual de perspectivar debates e problemáticas es pecíficas da História e Historiografia do Teatro em atravessamentos transversais da vida e obra do ator/produtor teatral Antonio Fagundes, assim desconstruindo a sua atuação do engessamento da cristalizada imagem de galã televisivo, o conduzindo junto com o seu público das telas e palcos às páginas, ou seja, o livro trata da singularidade e o percurso de um ator no meandro de um debate político e cultural do teatro brasileiro.

Referências

BRANDÃO, T. Ora, direis ouvir estrelas: historiografia e história do teatro brasileiro. Sala Preta, v.1, p. 199-217, 28 set. 2001.

CHARTIER, Roger. Escutar os mortos com os olhos. Estudos avançados, v. 24, n. 69, p. 6-30, 2010.

GUINSBURG, Jacó; FARIA, João Roberto; LIMA, Mariângela Alves de (orgs). Dicionário do

Teatro Brasileiro: temas, formas e conceitos. [S.l: s.n.], 2006.

PATRIOTA, Rosangela. O teatro e historiador: interlocuções entre linguagem artística e pesquisa histórica. In: RAMOS, Alcides Freire; PEIXOTO, Fernando; PATRIOTA, Rosangela. A história

invade a cena. São Paulo: Editora Hucitec, 2008.

PATRIOTA, Rosangela. Vianinha: um dramaturgo no coração de seu tempo. São Paulo: Hucitec, 1999.

PATRIOTA, Rosangela. A crítica de um teatro crítico. São Paulo: Perspectiva, 2007.

PATRIOTA, Rosangela; GUINSBURG, J. (org.). J. Guinsburg, a cena em aula – itinerários de um professor em devir. São Paulo: EDUSP, 2009.

PATRIOTA, Rosangela; GUINSBURG, Jacó. Teatro Brasileiro: ideias de uma história. São Paulo: Perspectiva, 2012.

PATRIOTA, Rosangela. Antonio Fagundes no palco da história: um ator. São Paulo: Perspectiva, 2018.

RABETTI, Maria de Lourdes. Subsídios para a história do ator no Brasil: pontuações em torno do lugar ocupado pelo modo de interpretar de Dulcina de Morais entre tradição popular e projeto moderno. ILINX-Revista do LUME, v. 1, n. 1, 2012.

VESENTINI, Carlos Alberto. A teia do fato: uma proposta de estudo sobre a Memória Histórica.

São Paulo: Hucitec; História Social da USP, 1997.

Notas

3. Como bem salienta Tania Brandão (2001, p. 199): “Escrever história do teatro é, em mais de um sentido, produzir poeira de estrelas, escrever a história das estrelas.”

4. Sobre o teatro do ator conferir: (GUINSBURG; FARIA; LIMA, 2006, p. 44-45).

Robson Pereira da Silva – Doutor em História Social pela Universidade Federal de Uberlândia. Mestre pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Goiás (Mestrado). Licenciado em História pela Universidade Federal de Mato Grosso. Membro do Laboratório de Estudos em Diferenças & Linguagens – LEDLin/ UFMS e do Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura (NEHAC/UFU). Membro associado da Rede Internacional de Pesquisa em História e Culturas no Mundo Contemporâneo. Tendo experiência na área de História, com ênfase em História Cultural e Ensino de História. Autor do livro Ney Matogrosso…para além do bustiê: performances da contraviolência na obra Bandido (1976-1977). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.  br/5608673598392485. E-mail: robson_madonna@hotmail.com.

Lays da Cruz Capelozi – Doutoranda em História pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Pela mesma instituição, estudado o Mestrado em História e o Curso de Graduação em História – Bacharelado e Licenciatura -. É membro do NEHAC – Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura. Membro associada da Rede Internacional de Pesquisa em História e Culturas no Mundo Contemporâneo. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8785972568211269. E-mail: syalcc@gmail.com.


PATRIOTA, Rosangela. Antonio Fagundes no palco da história: um ator. São Paulo: Perspectiva, 2018. Resenha de: SILVA, Robson Pereira da; CAPELOZI, Lays da Cruz. Antonio Fagundes: o ator do palco às páginas. Albuquerque. Campo Grande, v.13, n.25, p.176-183, jan./jun.2021. Acessar publicação original [IF].

Diásporas imaginadas: Atlântico Negro e histórias afro-brasileiras | Kim D. Butler e Petrônio Domingues

Os temas relacionados ao período pós-abolição abarcam um campo de pesquisa que tem se consolidado vigorosamente na historiografia brasileira nas últimas décadas. Em trabalho publicado recentemente, o historiador Petrônio Domingues – um dos principais especialistas – apresentou um importante balanço acerca das novas abordagens, problemas, perspectivas teóricas e metodológicas abrangendo esse ascendente ramo da historiografia. Domingues evidenciou que – nesse amplo e diversificado campo temático – uma das principais tendências é composta pelos estudos das experiências da comunidade negra dentro de uma configuração transnacional. (DOMINGUES, 2019, p.119).

Desse modo, na esteira dessas pesquisas em desenvolvimento, a obra Diásporas imaginadas: Atlântico Negro e histórias afro-brasileiras oferece um valioso panorama das novas perspectivas analíticas. Petrônio Domingues e Kim D. Butler começaram a idealizar essa obra em conjunto, por volta de 2012, quando o historiador brasileiro realizou estágios de pós-doutoramento na Universidade de Rutgers, em Nova Jersey (Estados Unidos). A partir dos contatos no Departamento de Estudos Africanos, Domingues e a prestigiada historiadora estadunidense iniciaram uma fecunda interlocução intelectual, ensejando uma colaboração acadêmica que resultaria nessa obra recentemente publicada. Leia Mais

O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise | Noemi Kon, Maria Lucia da Silva, Cristiane Abdul

“Já que é preciso, de qualquer modo, não lhes pintar unicamente um futuro cor-de-rosa, saibam que o que vem aumentando, o que ainda não viu suas últimas consequências e que, por sua vez, se enraíza no corpo, na fraternidade do corpo, é o racismo. Vocês ainda não ouviram a última palavra a respeito dele”.1 Com essas palavras que hoje assumem ares proféticos, o psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981) terminava um dos seus seminários em 1972. Leia Mais

Antonio Fagundes no palco da história: um ator | Rosangela Patriota

A historiadora e professora Rosangela Patriota possui uma trajetória de destaque no âmbito da historiografia do Teatro Brasileiro. Desde 1995, quando a autora concluiu a sua Tese de Doutorado intitulada Fragmentos de Utopias: Oduvaldo Vianna Filho – um dramaturgo lançado no coração de seu tempo, 1 até o presente momento, Rosangela Patriota vem dando significativas contribuições para a escrita da História do Teatro Brasileiro por meio de pesquisas que resultaram em obras como A crítica de um teatro crítico, 2 História e Teatro: discussões para o tempo presente3 e Teatro Brasileiro: ideias de uma história, este último, diga-se de passagem, escrito a quatro mãos em parceria com o crítico, ensaísta, professor e editor Jacó Guinsburg.4

Para além de tais trabalhos, Rosangela Patriota produziu uma série de artigos acadêmicos, capítulos de livros, ensaios e palestras, bem como atuou na organização de diversas coletâneas, geralmente abordando não só as relações da História com o Teatro, mas também com as linguagens artísticas em uma perspectiva mais abrangente. Se tivermos em vista toda essa vasta produção intelectual da pesquisadora e se igualmente levarmos em conta que a mesma também orientou uma série de monografias, dissertações de mestrado e teses de doutorado de outros pesquisadores, não é exagero nenhum afirmarmos que, por todo o seu percurso acadêmico, o trabalho de Rosangela Patriota pode ser descrito, sem sombra de dúvidas, como um dos mais profícuos dentro da historiografia do Teatro Brasileiro. Leia Mais

Viver nos tempos da Inquisição | Anita Waingort Novinsky

No dia 8 de dezembro de 2018, a historiadora emérita da Universidade de São Paulo (USP), Anita Waingort Novinsky publicou o seu mais recente livro Viver nos tempos da Inquisição, Ed. Perspectiva, 376 págs., na Livraria da Vila – São Paulo. A obra é uma compilação de textos ao longo de quatro décadas de pesquisa acadêmica, apresentados em eventos, congressos nacionais e internacionais, anais e publicações no Brasil e no Exterior, alguns inéditos, outros de difícil acesso ao público brasileiro.1 Considerada uma das pioneiras sobre o tema da Inquisição e cristãos-novos do Brasil Colônia, a autora faz reflexões acerca da historiografia inquisitorial, antissemitismo, cristãos-novos (judeus) do Brasil colonial, sebastianismo, Pe. Vieira e messianismo judaico, entre tantos outros temas relevantes para a História do Brasil e do fenômeno marrano.2 Novinsky inicia o seu trabalho nos capítulos 1 e 2 com a “Crítica à historiografia inquisitorial” e relata a dificuldade que os primeiros historiadores tiveram para trabalhar com o tema. Parte significativa do arquivo da Inquisição permaneceu secreta até 1970. Os autores que exaustivamente pesquisaram os arquivos inquisitoriais “no século XIX foram Alexandre Herculano, João Lúcio de Azevedo e Joaquim Mendes dos Remédios, deixando-nos obras fundamentais sobre os cristãos-novos e a Inquisição.”3 Após a abertura desses arquivos, disponível ao público no Arquivo Nacional Torre Tombo (ANTT) e Biblioteca Nacional de Lisboa (BNL), defende Novinsky que a História do Brasil deverá ser “reavaliada e reinterpretada.” 4 Leia Mais

Na senda da razão: filosofia e ciência no Medievo judaico – SOUZA PEREIRA (RA)

SOUZA PEREIRA, Rosalie Helena de (Org). Na senda da razão: filosofia e ciência no Medievo judaico. São Paulo: Perspectiva, 2016. Resenha de: SAVIAN FILHO, Juvenal. Revista Archai, Brasília, n.22, p. 375-380, jan., 2018.

Um acontecimento! Um acontecimento notável!

Dizer isso foi a melhor maneira encontrada para  iniciar a resenha do livro organizado por Rosalie  Helena de Souza Pereira, ainda que não seja uma forma propriamente adequada para um texto acadêmico.

A exceção se justifica, no entanto, pelo fato de que o significado dessa publicação transcende em muito sua importância para o mundo universitário e inscreve-se, sem sombra de dúvida, no campo de tudo o que contribui não apenas para o enriquecimento cultural, mas também e, sobretudo, humanizador. Aliás, humanizador  é um termo cujo significado também transcende o de outro que lhe é próximo, o termo  humanista, pois não se trata aqui de simplesmente evocar  o reconhecimento que merecem os outros seres humanos, o ser humano em geral e os indivíduos, mas, acima de tudo, a atividade de tornar-se humano. Essa atividade pressupõe a convivência com o outro; e tanto mais será intensa e capaz de desenvolver o que de mais humano há em nós quanto mais envolver a relação com o estrangeiro; afinal, como diz Julia Kristeva em Estrangeiros para nós mesmos, viver com o estrangeiro põe-nos em contato com a possibilidade de “ser outro”, possibilidade esta que se entende não apenas  no sentido humanista da nossa aptidão para aceitar  o outro, mas de estar ou colocar-se no lugar do outro, o que equivale a pensar sobre si mesmo e a fazer-se  “outro ou estrangeiro para si mesmo”. Numa palavra, trata-se de ver a si mesmo na condição de estrangeiro ou na condição de “o outro daquele que vê”. Tarefa exigente, árdua e certamente interminável, mas absolutamente necessária em meio às obscuridades que se instalaram nos dias atuais, marcados pela rejeição do diferente e do contraditório por todos os cantos do  planeta. Um pouco do iluminismo filosófico medieval faria bem à vida contemporânea.

Seguir, então,  Na senda da razão: filosofia e ciência no Medievo judaico é colocar-se em um caminho no qual vários estrangeiros se apresentam e auxiliam o leitor pretensamente “não oriental” ou “não judeu” a entender um pouco melhor, pela identificação de semelhanças e pelo contraste de diferenças, quem ele mesmo é. É por isso que o livro objeto desta resenha é um acontecimento memorável, pois seu interesse  não se restringe ao trabalho de pesquisa especializada sobre formas medievais judaicas de pensamento filosófico e científico, mas se amplia para o trabalho de  humanização. Assim, mais do que apenas contribuir  com o trabalho especializado, este livro enriquece sobremaneira a cultura lusófona por registrar, em Língua Portuguesa literária e filosófica, estudos rigorosos sobre pensadores judeus medievais (sem deixar, obviamente, de também interessar aos especialistas, uma vez que vários artigos são inéditos). Se se tem em vista a quase total inexistência no Brasil de obras sobre a  filosofia judaica medieval, compreende-se definitivamente a importância do livro organizado por Rosalie Helena de Souza Pereira, ela que, em 2007, publicou dois livros homólogos e dedicados à filosofia medieval islâmica (Busca do conhecimento: ensaios de filosofia medieval no Islã, São Paulo: Paulus; O Islã Clássico: itinerários de uma cultura, São Paulo: Perspectiva).

O arco de tempo coberto por Na senda da razão  compreende os seis séculos da Idade Média em que  tradicionalmente se identifica alguma forma de pensamento medieval judaico. Parte-se, portanto, de Sa‘adia Gaon, que viveu na passagem do séc.  IX  ao séc.  X, e  chega-se a Hasdai Crescas, que viveu na passagem do  séc. XIV ao séc. XV. Os textos são estudos de grandes especialistas de universidades estrangeiras, com exceção do Prof. Nachman Falbel e do Prof. Alexandre Leone, ambos da Universidade de São Paulo. Seria inapropriado pretender apresentar resumidamente todos os capítulos do livro em uma resenha, mas também seria uma falta grave não dar ao leitor uma ideia do conteúdo da obra. Por isso, aqui seguem os títulos dos capítulos e  os nomes dos autores na ordem em que aparecem no  livro: (1) A obra exegética e filosófica de Sa‘adia Gaon: a realização de um líder, de Haggai Ben-Shammai; (2) Criação e emanação em Isaac Israeli: uma reconsideração, de Alexander Altmann; (3) Filosofia e poética  no pensamento de Salomão Ibn Gabirol, de Nachman Falbel; (4) A matéria última como manifestação oculta de Deus: Ibn Gabirol e a expressão pseudoempedocleana al-‘un ṣ ur al-awwal  (o elemento fundamental), de  Sarah Pessin; (5) Ibn Paquda, figura-chave do pensamento judaico e universal, de Joaquín Lomba; (6)  A interpretação de Abraão Bar Hiyya do relato da criação do homem e do relato do jardim do Éden, de Sara Klein-Braslavy; (7) O  corpus científico de Abraão ibn  Ezra, de Shlomo Sela; (8) Yehudá Halevi e a filosofia,  de Rafael Ramón Guerrero; (9) Abraão Ibn Daud e sua obra A fé sublime, de Amira Eran; (10) Maimônides e o Deus dos filósofos, de Samuel Scolnicov; (11) Tensões e encontros no pensamento de Maimônides entre o aristotelismo medieval e a tradição rabínica, de Alexandre Leone; (12) A ética na obra de Maimônides, de Nachman Falbel; (13) A declaração de Maimônides sobre a ciência política, de Leo Strauss; (14) Comentário de Maimônides à Bíblia, de Sara Klein-Braslavy; (15) A psicologia de Maimônides e de Yehudá Halevi, de Lenn E. Goodman; (16) A legislação da verdade: Maimônides, os almôadas e o iluminismo judaico do século XIII, de Carlos Fraenkel; (17) A alquimia na cultura judaica medieval: uma ausência notada, de Gad Freudenthal;  (18) A ciência na cultura medieval judaica do sul da  França, de Gad Freudenthal; (19) De Maimônides a Samuel ibn Tibbon: interpretando o judaísmo como religião filosófica, de Carlos Fraenkel; (20) O Al-Farabi  de Falaqera: um exemplo da judaização dos  falāsifa muçulmanos, de Steven Harvey; (21) A transmissão da filosofia e da ciência árabe: reconstrução da “Biblioteca Árabe”de Shem Tov ibn Falaqera, de Mauro Zonta; (22) Uma solução averroísta para uma perplexidade  maimonídea, de Seymour Feldman; (23) Um selo dentro de um selo: a marca do sufismo nos ensinamentos de Abraão Abuláfia, de Harvey J. Hames; (24) Narboni (1300-1362) e a simbiose filosófica judeo-árabe, de  Maurice-Ruben Hayoun; (25) Salvar sua alma ou salvar os fenômenos: soteriologia, epistemologia e astronomia em Gersônides, de Gad Freudenthal; (26) Tensões nas e entre as teorias de Maimônides e Gersônides sobre a profecia, de Idit Dobbs-Weinstein; (27) Elementos cabalísticos no livro Luz do nome (’Or há-Shem) de Rabi Hasdai Crescas, de Zev Harvey.

Pensando da perspectiva de interesses propriamente acadêmicos e especializados, vários aspectos  desse conjunto de textos poderiam ser destacados  aqui. Dois merecem atenção: em primeiro lugar,  cabe ressaltar não apenas a frequentação mútua de  pensadores judeus, cristãos e muçulmanos no Medievo, mas sobretudo a influência recíproca que autores dessas três orientações exerceram entre si; e o livro organizado por Rosalie Helena de Souza Pereira permite ver tal influência. Além disso, o livro tem outro mérito, o de participar de maneira esclarecedora no debate instalado entre medievalistas, há alguns anos, a respeito de uma possível identidade do pensamento “medieval”: dada a implosão da imagem de uma Idade Média homogênea e filosoficamente  cristã, haveria alguma forma de unir as formas filosóficas cultivadas no período a que tradicionalmente se costuma chamar de Medievo? A característica que tem sido identificada e defendida por importantes medievalistas como critério para unir as formas filosóficas medievais é o fato de os diferentes pensadores, sem exceção (até onde se sabe), considerarem a revelação bíblica como fonte de conhecimento e de  investigação filosófica. Não se trata de retomar o clichê superado da “filosofia serva da teologia”, mas de perceber que os filósofos, no Medievo, partilhavam  principalmente a tradição bíblica da fé na criação e dela extraíam consequências filosóficas em termos  propriamente filosóficos. Desse ponto de vista, porém, a “Idade Média”ou o “Medievo”poderia ser  estendida, no mínimo, até Fílon de Alexandria, por um lado, e talvez, por outro lado, como tem defendido o medievalista italiano Giulio d’Onofrio, até  os séculos  XV-XVI, com os Concílios de Constança  (1492), Basileia (1431-1449) e Trento (1545), cujos  cânones assumem abertamente as fraturas político-religiosas e a cisão entre a busca filosófica moderna e o horizonte bíblico do pensamento. Obviamente continuará vigoroso nos séculos seguintes, em  maior ou menor grau, o modelo de pensamento que considera o horizonte da revelação bíblica. Mais ainda, continuará vigorosa a inspiração que se nutre  das três orientações monoteístas (haja vista autores  como Edith Stein, Martin Buber, Emmanuel Lévinas, Simone Weil, Michel Henry, para não falar de  Walter Benjamin, Max Horkheimer, Heschel, entre  tantos outros). Entender as raízes e as motivações  profundas dessa inspiração é algo com que contribui inequivocamente o livro organizado por Rosalie Helena de Souza Pereira.

Juvenal Savian Filho – Universidade Federal de São Paulo (Brasil). E-mail: Juvenal.savian@unifesp.br – ORCID:0000-0001-8104-8900

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O socialismo utópico – BUBER (Ph)

BUBER, Martin. O socialismo utópico. São Paulo: perspectiva, 2007.Resenha de: CARVALHO, José Mauricio de. Philósophos, Goiânia, v. 22, n.1, p.249-264, jan./jun., 2017.

O livro, elaborado em doze capítulos, começa examinando o legado intelectual daqueles pensadores que os marxistas chamavam de socialistas utópicos. Seguem-se as análises das propostas de Gustav Landauer, Karl Marx e Vladimir Ilitch Lênin para a reforma da sociedade. Nos antepenúltimo e penúltimo capítulos Buber comentou a criação do Estado de Israel e as dificuldades do seu tempo. No último capítulo o autor exporá sistematicamente as próprias ideias sobre os mecanismos de mudança na sociedade e a forma de socialismo que lhe parece mais adequada. Então criticará os rumos históricos do socialismo marxista, contrapondo a experiência soviética à que estava se realizando na terra de Israel.

No capítulo inicial, o autor considera as razões pelas quais os marxistas denominaram seus predecessores de utópicos. A razão fundamental, esclarece, é que eles queriam a reorganização da sociedade mantendo a mesma sociedade, mesmo sem saber exatamente que sociedade surgiria com a expansão do proletariado. Buber esclarece o essencial da análise marxista (p. 10): “Foi a impossibilidade de compreender e dominar o problema do proletariado que deu azo ao aparecimento desses sistemas, que só poderiam ser imaginários, fantásticos e utópicos e que, no fundo, propunham a abolição de uma diferença de classes que estava apenas começando a processar-se e que, um dia, iria provocar a transformação geral da sociedade”. A crítica a esses socialistas foi desenvolvida especialmente no Manifesto Comunista. Seu autor, o filósofo e sociólogo Karl Marx (1818-1883), pretendia dar tratamento científico à reorganização da sociedade, pois os precursores do socialismo não lhe pareciam conscientes do desenvolvimento e dos problemas da sociedade industrial.

Segue-se o estudo dos chamados socialistas utópicos. O socialismo como proposta teórica, Buber sintetiza, é o anseio pelo justo, (p. 18): “anseio que se experimenta na visão religiosa ou filosófica, como revelação ou ideia e que, por sua essência, não pode se realizar no indivíduo, mas somente na comunidade humana”. E o justo tanto na ordem religiosa – a escatologia teológica ou filosófica, possui um sentido realista, realiza-se na sociedade. Há duas formas de escatologia, explica Buber (p. 21): “uma profética, que faz depender a preparação da redenção […] da força da resolução de todo homem a que se dirija; uma apocalíptica, para a qual o processo de redenção foi fixado desde a eternidade com todos os pormenores, com suas datas e prazos, e para cuja realização os homens servem apenas de instrumento”.

O pensamento escatológico se tornou, depois da Revolução Francesa, uma utopia. Por força da laicidade do pensamento iluminista, a crença ou redenção do homem ficou restrita à construção de uma sociedade justa nascida do esforço humano. Encontrando-se nessa perspectiva moderna e próxima do iluminismo, Marx e seu parceiro Friedrich Engels (1820-1895) explicam que os socialistas utópicos pretendem reorganizar a sociedade valendo-se da razão e dos esforços do homem. Para Buber, enquanto os socialistas chamados utópicos assumiam a escatologia profética, o pensamento de Marx e Engels, tornou-se prevalentemente, mesmo que não exclusivamente, articulador de uma escatologia apocalíptica. Além disso, o marxismo incorporou, mesmo negando que o fizesse, uma fé secreta na utopia, que os marxistas apenas enxergam nos socialistas que os antecederam. Na revisão do sentido dessas formas primeiras de socialismo denominadas utópicas, Buber identifica um esforço de renovação da sociedade pela superação da solidão na alma e pelo máximo de autonomia comunitária.

Essa solidão é própria, ele aponta, de uma sociedade de massas em sentido próximo ao indicado pelo filósofo espanhol Ortega y Gasset (1883-1955) (p. 25): “a sociedade é amorfa, invertebrada, pobre de estrutura”.

O terceiro capítulo retoma a questão do socialismo utópico e aprofunda as teorias de Claude Henry de Rouvroy, filósofo e Conde de Saint-Simon (1760-1825), François Marie Charles Fourier (1772-1837), filósofo e economista francês e de Robert Owen (1771-1858), reformista social e considerado um dos fundadores do socialismo.

Esses homens esperam ver surgir uma sociedade socialista não no futuro, mas no seu tempo. Os socialistas utópicos, para Buber, poderiam ser agrupados em dois grupos, um que antecede a geração e ao trabalho de Marx e Engels e outro contemporâneo. No primeiro grupo, Buber destaca a contribuição desses três socialistas começando pelo Conde de Saint Simon, defensor de uma sociedade dirigida por industriais e trabalhadores. Saint Simon sabia que uma sociedade que não caminhasse para a unidade, mas permanecesse dividida em duas classes teria sempre uma dirigente e outra dirigida. Por sua vez, Fourier julgava haver descoberto o segredo da associação social e de uma sociedade constituída com base nela, contra a herança da Revolução Francesa que era contrária tanto a associação como ao sindicato. Para Fourier, somente a associação entre as pessoas resolveria os problemas do Estado, pois representa a união dos interesses. Com a organização, os trabalhadores assalariados se transformariam em associados, alcançando um novo patamar de evolução social. Esse pensamento influencia a formação de cooperativas, mas devido à suas limitações, o socialismo utópico somente pode incorporá-lo, superando-o. Uma terceira formulação foi a de Robert Owen para quem uma autêntica comunidade não viria da propriedade comum, (p. 33): “mas de uma igualdade de direitos e facilidades”. Ele pretendia modificar as relações entre governantes e governados. Essa dicotomia permanecerá enquanto o homem estiver separado numa organização social que não favorece relações autênticas. As relações verdadeiras, assim lhe parece, viriam de dentro das comunidades e renovariam as formas de organização social existentes. Temos em síntese, Saint Simon que espera construir uma sociedade unitária para superar a dualidade; Fourier para quem isso somente seria possível em pequenas comunidades que busquem o próprio sustento e Owen que pensa que a mudança deveria ocorrer tanto nas pequenas células como nas grandes, sendo que a justiça na sociedade total somente ocorreria se começasse em suas células menores. Temos assim três formas complementares de socialismo utópico.

Segue-se o capítulo dedicado ao filósofo e economista francês Pierre Joseph Proudhon (1809-1865) para quem o socialismo, avalia Buber, promoveria o desenvolvimento da sociedade no cumprimento do seu destino. Proudhon retomou os princípios essenciais das teorias anteriores e as reconstruiu.

Não assumiu o determinismo hegeliano, mas entendeu que a razão orienta a História para a liberdade, devendo o homem apenas respeitar as leis da História. Ao contrário de Hegel, que concebeu uma dialética triádica da negação da negação ou da síntese dos opostos, Proudhon espera realizar uma síntese de todas as contradições. O problema que enfrenta é que nenhum princípio que pudesse nascer dessa síntese consegue abarcar e explicar toda uma época. No espaço político, Proudhon desconfia de toda centralização, manifestando sua preferência pelos costumes comunais. Como os grupos que formam as nações não são geralmente ouvidos tenta-se escutar os indivíduos, mas é necessário, para fazê-lo, criar um princípio de organização.

O futuro da sociedade depende de se entender o trabalho como financiador da empresa e da sua coletivização.

Desse entendimento depende o futuro dos trabalhadores, trabalharem todos uns para os outros e não todos para o proprietário. Quanto a centralização, política esta devia ser evitada, pois ele não a diferencia do centralismo absolutista.

Então pode-se dizer que Proudhon desejava, como Saint Simon, a reestruturação da sociedade, mas não queria que ela viesse de cima. O problema de suas teses é que elas não explicam se as novas unidades sociais conservariam os princípios geradores das unidades antigas e se seriam suficientes para promover a nova sociedade que ele espera ver surgir.

Depois de Proudhon, Buber examina as teses centrais do geógrafo russo Piotr Kropotkin (1842-1921) que pretende renovar o legado desse último. Kropotkin substitui as antinomias sociais do seu antecessor por uma luta pela existência e colaboração mútua. Quanto a sua ideia de Estado, ele a identifica com a tese centralista e seu enfoque não é a proteção contra o terror generalizado, ou a luta de todos contra todos (Hobbes), mas a proteção que oferece às comunidades que o integram. Sua crítica não é propriamente contra o Estado, mas contra a máquina do Estado centralista moderno. O problema da tese de Kropotkin é que ela não diferencia o Estado prepotente que nasce da máquina centralizadora e o Estado legítimo e necessário, protetor das comunidades que o formam. O certo é que o Estado legítimo tanto convive com a liberdade dos indivíduos como jamais chega a constituir-se definitivamente. De Proudhon, Kropotkin recupera a tese de que a transformação da sociedade somente viria com a Revolução e considera que a Revolução produziu o fenômeno político da centralização, mas não se deu conta que, no âmbito social, a Revolução é um fator desagregador e não de união. E então Buber comenta o que considera o ponto frágil de seu pensamento. Ele tem consciência de que seu projeto não se realizaria dentro de um Estado como o que existia em seu tempo, mas espera promover uma reforma na sociedade que começasse naqueles dias e não num futuro distante.

O capítulo 6 é dedicado ao exame das teses de seu amigo Gustav Landauer (1870-1919). Landauer percebeu que o Estado não é uma instituição que possa ser destruído pela revolução social, pois é (p. 63) “uma situação, uma relação entre os homens, um modo dos homens se conduzirem uns aos outros”. Para destruí-lo seria necessário criar novas formas de relação social que Landauer supõe possa estar no povo. Não se trata de uma categoria nova, mas da reformulação de comunidades que já existem nos Estados. Eis o essencial do seu pensamento (p. 67): “aqui se põe a descoberto a verdadeira relação entre nação e socialismo: a semelhança dos conacionais quanto à maneira de ser, linguagem, patrimônio de tradições, memória de um destino comum, constante predisposição para uma existência comunitária e, tão somente edificando essa existência, é que os povos podem ser reconstituídos”. O grande risco de pretender que as revoluções sociais modifiquem fundamentalmente os Estados é que eles não favorecerão sua própria destruição e as forças revolucionárias serão cooptadas pelas correntes políticas nele presentes. Acompanhando Proudhon e Kropotkin, Landauer entende que os ideais socialistas não podem se limitar ao que foi pensado numa geração.

Comenta Buber (p. 75): “o socialismo é uma criação contínua da comunidade dentro do gênero humano, na medida e na forma em que as condições momentâneas permitam que ele seja desejado e realizado”.

O capítulo seguinte é dedicado ao estudo das propostas cooperativistas. O método marxista que denominou de utópicos aos socialistas que o precederam, classificou as propostas cooperativistas de românticas, ou fora da realidade.

William King (1787-1865) médico inglês espera transformar as instituições sociais, valendo-se dos princípios do cristianismo. Para King, o trabalho é a base da organização social e ele está nas mãos dos trabalhadores. Ao se unirem os trabalhadores poderão adquirir os instrumentos de que necessitam para trabalhar, bem como a terra que necessitam para produzir. E as relações entre os homens nessa nova organização social nasceriam nessas cooperativas que, para King, traduzem a forma autêntica das relações humanas. Essas cooperativas são a base de uma realidade socialista que teria origem (p. 84): “com a criação de pequenas realidades socialistas em constante fusão e expansão”.

Embora essa trajetória não tenha se verificado, as cooperativas, especialmente as de consumo, se espalharam pela Europa. Outro defensor desse modelo de produção foi o francês Benjamin Buchez (1776-1860) que pensou, no seu país, a criação e expansão de cooperativas de produção.

Ele percebeu os riscos inerentes ao modelo cooperativista na medida em que os sócios fundadores podiam contratar empregados e funcionarem como capitalistas. É difícil superar a tentação de contratar pessoas para trabalhar para si. Para evitar esse encaminhamento na organização Buchez sugere medidas corretivas nas cooperativas como a incorporação dos empregados como novos cooperados e a necessidade de anualmente abrir a entidade a novos sócios.

Segue-se a proposta de Karl Marx de renovação social, tema do oitavo capítulo. Buber recorda que o socialismo utópico trabalha com a hipótese de que (p. 104): “uma sociedade profundamente estruturada poderá substituir ao Estado”. Essa seria a sociedade autêntica, formada em parte pelas comunidades já existentes e dentro de uma perspectiva temporal na qual as mudanças seriam as possíveis já naqueles dias. Buber considera que Marx pretende algo próximo aos socialistas utópicos, eliminar o Estado em geral, não apenas o Estado das classes. Se esse propósito era semelhante ao dos socialistas utópicos, Marx, diversamente, espera fazer isso (p. 107): “através de meios políticos, mediante um puro suicídio, por assim dizer, do princípio político”.

Ao propor que o proletariado vencedor do processo revolucionário tomasse conta do espaço político, fica-nos a dúvida de se não surgiria nesse grupo vencedor uma nova divisão social. Sem traçar uma linha clara sobre os limites do poder, o risco desse processo é gerar não uma disputa entre classes, mas entre indivíduos ou grupos. A partir de 1858, Marx começa a duvidar de que uma revolução socialista pudesse ser realizada numa escala mundial e mesmo se triunfaria na Europa. Nesse contexto, aproxima-se da ideia de uma reestruturação da sociedade, ainda que não aderisse a ela completamente. Considera a possibilidade de as cooperativas crescerem superando a ordem capitalista.

Porém, nos revela, no Manifesto Comunista, que essas pequenas experiências socialistas estavam fadadas ao fracasso.

E surge então um problema: como seria possível eliminar imediatamente o poder do Estado, antes mesmo de concluída a revolução se o processo revolucionário é ele mesmo autoritário? Parece a Buber, considerando o que escreve Engels em 1866, que a valorização das cooperativas era um pretexto. As cooperativas teriam, no marxismo, apenas função auxiliar no processo revolucionário. Portanto, o marxismo, conclui Buber, (p. 124): “não se empenhou em dar forma à nova existência social do homem”.

O capítulo nove é dedicado à herança soviética das ideias de Marx e Engels, pela análise das teses de Vladimir Ilitch Lênin (1870-1924). O caráter utópico dos socialistas antecessores a Marx parece estar em tentarem pensar os rumos do processo revolucionário. Marx nada diz disso. A contradição entre afirmar o princípio político ao invés do social, numa realidade que mantém o sistema político, foi disfarçada, por Lênin, com a tese de que o processo ainda estava em curso. E Lênin admite não saber o que surgiria com a extinção do Estado. Engels defendera a tese de (p.128): “que o Estado desaparecerá em consequência da futura revolução social, porque as funções públicas não serão mais políticas, mas administrativas”. E Lênin passou a falar do fim do Estado, mas ele, como Marx, não sabia como estruturar a sociedade depois da Revolução. Se destruir o Estado era o objetivo, ele não sabia contudo, como e nem quando isso seria possível. Ele explica que se refere aos resíduos burgueses presentes no Estado porque (p. 130): “o Estado, como poder especial de repressão, é indispensável”.

Lênin adota, então, posição oposta à pretendida por Marx e Engels. A partir dessa tese, Lênin e os bolchevistas, consideraram os soviets não órgãos de controle do governo, mas o próprio governo. A evolução do processo revolucionário mostra que Lênin irá apostar na crescente centralização do poder (p. 152): “de centros de produção governamentais e repartições governamentais um mecanismo de instituições de produção e consumo burocraticamente dirigidas e engatadas a uma engrenagem”. De um lado, admitia Lênin, a descentralização das cooperativas e de outro defendia a centralização das decisões, o que é uma incongruência traduzida pela avaliação crítica (p. 153): “quadratura do círculo”.

O capítulo X traz a experiência socialista em Israel. Essa experiência teve sucesso porque a união no novo país se baseou na construção de uma vida comunitária. Isso não se fez sem dificuldades, mas parecia alternativa mais bem sucedida que a experiência soviética. Ele explica (p. 162): “é a colônia cooperativa hebraica da Terra de Israel, com suas diferentes formas”. Apesar das dificuldades seu sucesso se explica: primeiro pela ausência de uma doutrina que a organizasse, sua evolução foi resposta aos problemas da vida real e da necessidade de trabalho dos produtores rurais.

Quando muito houve uma razão espiritual que os aproximou, mas que não afetou o caráter maleável da organização (p. 163): “as doutrinas bíblicas da justiça social”. Segundo: essas associações se formaram no espírito estabelecido no novo país, onde a elite dos precursores (halutzim) pensou o país como uma colônia comunitária. Assim os grupos comunitários não se fechavam em si mesmos, mas eram partes de uma comunidade nacional. Terceiro: a necessidade desses grupos comunitários (p. 164): “não só educasse para a autêntica vida comunitária aqueles que se incorporavam, mas que, também, exercesse uma influência construtiva e estruturadora sobre a periferia da sociedade”.

Embora colônia comunitária exercesse forte poder de atração, suas organizações eram ainda insuficientes para unificar a grande quantidade de pessoas que afluíam para a Terra de Israel. E a chegada desses novos moradores chamou atenção da elite de precursores que os aproximavam do destino comum. Aí se explicita a noção de comunidade autêntica para Buber. Ela (p. 166): “não precisa ser composta de homens que se façam constantemente companhia, deve ser constituída de homens, justamente como companheiros, sejam mutuamente receptivos e bem dispostos. Comunidade autêntica é aquela que, todos os aspectos de sua existência, possui potencialmente, o caráter de comunidade”.

Além do mais, essas pequenas comunidades de produtores possuíam força para resistir às tendências centralizadoras que pretendiam encerrá-las ou dividi-las. O problema foi que com o passar do tempo foi-se perdendo o sentido comunitário e apesar de colônias mais ricas ajudarem as mais pobres, a solidariedade diminuiu. Apesar dessas dificuldades, concluiu Buber, ao lado de Moscou, que é um dos polos do socialismo contemporâneo (p. 171): “atrevo- me a denominar o outro polo de Jerusalém”.

O penúltimo capítulo examina a crise que se estabeleceu depois da Primeira Grande Guerra. Não era a crise de um sistema da vida social, mas de todos e com sérias consequências. Buber escreveu (p. 173): “E, nessa crise, o que está em jogo é a própria existência do homem sobre a terra”.

Sobre o progresso humano, diz que não é uma avenida plana, mas uma marcha entre crises que se sucedem. Em seguida, Buber esclarece que a construção da vida social é a grande marca da presença humana no planeta e que ela, na modernidade, se acomodou ao Estado. O social ficou, pois, na dependência do político. O que fazer para enfrentar essa situação? Para Buber, o perigo a ser enfrentado era (p.177): “um centralismo planetário ilimitado que devore toda comunidade livre. Tudo depende de que o trabalho de cultivo da terra não seja entregue a um princípio político.” Perigo porque, para ele, o propósito da vida humana é a construção de uma comunidade autêntica o que equivale a uma organização (p. 178): “de conteúdo absolutamente comunitário”. Esse projeto não atende a um plano pré-concebido, mas à capacidade de responder aos problemas que a vida trouxer. E aqui se chega ao ponto central de sua tese, mesmo sem haver uma teoria definitiva que contemple o grande projeto de criação de uma comunidade autêntica, ela somente se forma em torno a um núcleo aglutinador. Ele explica a importância desse núcleo (p.180): “A gênese da comunidade só pode ser compreendida, quando se considera que seus membros têm uma relação comum com o centro e que essa relação é superior a todas as demais; o círculo é traçado pelos raios, não pelos pontos periféricos”. Esse centro, para o filósofo, é uma transparência para o divino. Há quem diga que a vida moderna não mais se organizará em torno desse centro, como era no passado. Contudo, contrapõe Buber, consiste nessa articulação entorno ao núcleo aglutinador e nas relações comunitárias menores inseridas em maiores, a melhor estratégia para enfrentar a crise. Ele concluiu (p. 183): “o ponto essencial é que o processo de formação de comunidades persista nas relações das comunidades entre si. Somente uma comunidade de comunidades poderá ser qualificada como ente comunitário”.

O capítulo final aprofunda o problema da subordinação da sociedade ao Estado. A formação de uma sociedade depende (p. 186): “dos homens encontrarem um estado de intervinculação ou que se unam entre si e, assim formando uma união já existente ou a ser fundada, criem uma sociedade”.

Ao olhar a evolução dos grupos humanos, Buber comenta a confusão entre os princípios social e político na antiguidade. No mundo grego, por exemplo, (p. 188): “ainda que nos seja dito, expressamente, que o homem foi criado não apenas para a comunidade política, mas também para a doméstica, ainda assim a polis é a consumação da koinonia (companherismo, participação, compartilhamento).

O mundo romano não ultrapassa essa deficiência de entendimento (p. 189): “para Cícero, não só o Estado é uma sociedade, mas simplesmente, uma societas vivium.” A Idade Média também não melhorou tal compreensão, pois entendeu a comunidade humana inserida numa unidade: Igreja ou Estado universal. O mundo moderno, com a formação do Estado Nacional, principia com a anulação da sociedade. Na formulação de Hobbes (p. 192): “o Estado que alcançou a perfeição eliminará também o último resquício de sociedade. Tal Estado perfeito chegou bem próximo daquele que atualmente denominamos de totalitário”.

A construção de uma ideia de sociedade, à parte do Estado, emerge da Revolução Francesa, mas a sociedade que surge é a burguesa. As tentativas de aprofundar a distinção entre os sistemas social e político podem ser encontradas em Saint Simon e Hegel. Esse último entende faltar, no Estado do seu tempo, o que é necessário para a formação de uma autêntica comunidade (p. 195): “legítima cooperação, solidariedade, auxílio mútuo, camaradagem fiel e entusiasmo ativo”. Essas teorias estiveram no limiar da construção da Sociologia, que somente surgiria com Marx e Lorenz von Stein, mas ambos ao considerarem a nova realidade social, a sociedade burguesa, afastaram-se dos esforços dos seus antecessores. Em Marx, o Estado é um instrumento da classe burguesa em defesa de seus interesses.

Por isso, ele espera substituí-lo por um outro Estado que faça surgir uma sociedade sem classes e depois se dissolva nela. Portanto, o grande problema da Sociologia é encontrar formas de relação entre os princípios social e político.

O que Buber entende necessário para dar efetividade ao propósito humano de construir uma comunidade autêntica é o estabelecimento (p. 197): “de uma sociedade de uma comunidade de povo, que não é composta de indivíduos, mas de sociedades e não, como achava Comte, apenas de famílias”. Esse projeto enfrenta obstáculo no medo que cada povo tem de seus vizinhos. O resultado é que (p. 199): “o princípio político em relação ao social é sempre mais forte”.

Daí que o enfrentamento da crise contemporânea passa pela construção de uma sociedade com relativa autonomia das comunidades locais e regionais. Assim, a maior força da comunidade economicamente e culturalmente produtiva, passa pelo fortalecimento das organizações sociais face ao poder político. Essa é a proposta de Buber para o enfrentamento da crise humana que o socialismo tentou resolver. Este livro esclarece as posições de Buber sobre o socialismo.

Explica porque as soluções socialistas, que foram desqualificadas pelos marxistas como utópicas e românticas, contêm uma melhor compreensão da dicotomia entre o social e o político. Tais propostas também lhe parecem melhor concebidas do que as de Marx e Engels, isto é, propõem a afirmação da Sociedade ante o Estado. Buber rejeita a visão apocalíptica da história, que Marx laicizou em sua teoria da História. Ele ainda procurou dissociar essa visão apocalíptica que enxerga no socialismo marxista da tradição judaica. Para ele, o essencial da tradição judaica é que os caminhos da história, dependem da ação dos homens que, com liberdade, contribuem para os planos de Deus. Nos socialismos denominados utópicos, além do respeito ao empenho pessoal, estão os melhores elementos para tratar a questão social que emerge da sociedade burguesa. Autores como Saint Simon e Fourier não projetam a solução do problema social no futuro, mas o enfrentam no seu tempo, na concretitude do aqui e agora, encaminhamento da questão que lhe parece mais adequada que as propostas do socialismo marxista.

A perspectiva buberiana de existência humana, bastante próxima das posições da fenomenologia existencial explica o essencial da crítica ao marxismo. Suas teses filosóficas estão descritas na sua filosofia do diálogo e especialmente no clássico Eu e Tu. São essas ideias que formam o pano de fundo das reflexões propostas nesse livro. O livro nos coloca também diante do fato de que a construção da Terra de Israel representa uma alternativa de efetivação do socialismo com maiores chances de sucesso do que o socialismo soviético. Assim ele avalia porque esse socialismo encontra- se sustentado na visão de sociedade e fé ensinada pelos profetas judeus. O socialismo, tal como o filósofo vê surgir em Israel, parece-lhe expressar o projeto humano de construir uma comunidade autêntica. As razões que elenca são coerentes a visão de existência da fenomenologia existencial.

Uma tal comunidade tem um centro irradiador que a unifica e é formada de comunidades livres, de pessoas livres, responsáveis pelo destino de suas vidas, que se associam em comunidades maiores igualmente livres. A construção de uma comunidade autêntica é o lado exterior da aspiração ao divino que ultrapassa a existência temporal e são sua forma de reconhecer a transcendência. Ela expressa o propósito de se aproximar de Deus e realizar tal projeto pautado no código mosaico e no reino de justiça anunciado pelos profetas que é a base dos modelos éticos prevalentes no ocidente.

Referências

BUBER, Martin. O socialismo utópico. São Paulo: Perspectiva, 2007.

José Mauricio de Carvalho – Professor do Instituto Presidente Tancredo de Almeida Neves (IPTAN), São João Del Rei, MG, Brasil. E-mail: semauriciodecarvalho@gmail.com

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O culto moderno dos monumentos: a sua essência e a sua origem – RIEGL (S-RH)

RIEGL, Aloïs. O culto moderno dos monumentos: a sua essência e a sua origem. Tradução de Werner Rothschild Davidsohn e Anat Falbel. São Paulo: Perspectiva, 2014 [1903]. 88 p. Resenha de: ROCHA, Mércia Parente; TINEM, Nelci. O culto moderno dos monumentos e o patrimônio arquitetônico. SÆCULUM – Revista de História [35]; João Pessoa, jul./dez. 2016.

Ao elaborarmos esta resenha da obra O Culto moderno dos monumentos: a sua essência e a sua origem, do historiador da arte austríaco Aloïs Riegl, publicada no início do século passado, em 1903, nos interessou a possibilidade de discutir quais os aspectos que a mantém, juntamente com a Teoria da restauração (1963) de Cesare Brandi, que veio à luz sessenta anos mais tarde, como as mais citadas no debate e na prática da conservação contemporânea do patrimônio arquitetônico, que hoje incorpora as obras da produção moderna do século XX, abarcando um campo interdisciplinar, que inclui entre outras disciplinas, a história, a estética, a filosofia e a própria arquitetura.

É, portanto, na perspectiva de darmos alguma contribuição para esse tema que este pequeno ensaio se coloca. Para tanto, tomaremos como referência duas traduções para a língua portuguesa, a primeira elaborada a partir da tradução francesa, por Elane Ribeiro Peixoto e Albertina Vicentini, em 2006, e a segunda, realizada por Werner Rothschild Davidsohn e Anat Falbel, a partir do texto original em alemão, no ano de 20143.

Seu duplo vínculo, com a Universidade de Viena (reflexões teóricas) e com o Museu Austríaco de Artes Decorativas (intervenções práticas), lhe permitiu uma abordagem interdisciplinar teórico-prática da História da Arte (proporcionada pela formação no Instituto Austríaco de Pesquisas Históricas) e, ao mesmo tempo, uma compreensão das artes consideradas “decadentes” e a valorização das chamadas “artes menores”, ou seja, lhe permitiu uma visão ampla, diversificada e aberta da história das artes que redundou em uma ótica avançada e uma avaliação crítica dos valores das obras a serem conservadas.

[…] ele teve a audácia […] de negar, pelo menos em teoria, qualquer sistema normativo dos valores, de denunciar a noção de decadência, de renunciar à segregação entre a grande arte e as artes ditas menores.4

Assim como Teoria da restauração de Cesari Brandi5, O Culto moderno dos monumentos de Riegl busca estabelecer princípios operativos como forma de orientar a condução da política de conservação das instituições às quais estavam vinculados, fundamentando suas obras numa consistente relação entre teoria, História e prática, daí sua importância.

A razão da atualidade é clara, as reflexões propostas por Riegl são avançadas para um homem do século XIX, sob o domínio de uma concepção positivista da História.

Se, por um lado, defendia a “evolução” em direção ao progresso da história da arte, por outro, negava a existência de um valor de arte absoluto e advogava apenas um valor relativo e moderno6.

A obra desenvolve-se em três partes. Na primeira, o autor entende que sua tarefa é “definir a natureza do culto moderno dos monumentos, levando em consideração as mudanças ocorridas, com a comprovação de sua relação genética com as fases anteriores de evolução do culto dos monumentos”. A questão da evolução, para ele, era fundamental:

De acordo com os conceitos mais modernos, acrescentaremos a ideia mais ampla de que aquilo que foi não poderá voltar a ser nunca mais etudo o que foi forma o elo insubstituível e irremovível de uma corrente de evolução ou, em outras palavras, tudo que tem uma sequência, supõe um antecedente e não poderia ter acontecido da forma como aconteceu se não tivesse sido antecedido por aquele elo anterior. O ponto-chave de todo conceito histórico moderno é formado pela noção de evolução.7

Apesar de fundamentar-se em uma visão evolutiva da história, própria do século XIX, o autor desenvolve uma noção de monumento baseada não mais em valores permanentes e objetivos como na Renascença, mas em valores assentados antes na significação, do que na forma, e determinados no presente, pelos sujeitos históricos.

Interessa a Riegl compreender não apenas como os significados são atribuídos aos monumentos, mas como se dá a recepção desses valores pela sociedade e quais as gradações sociais desse acesso (os especialistas, o apreciador de arte médio, as massas).

Entendia que, se até o século XIX prevalecia a tese de que existia um cânone artístico rígido, um ideal artístico objetivo e absoluto, o século XX teria abolido definitivamente essa pretensão da Antiguidade, emancipando todos os períodos conhecidos da arte com seu significado independente, sem abandonar a crença em um ideal artístico objetivo. Assim, a kunstwollen (a vontade artística de uma época), como princípio, admite que a manifestação artística possa assumir diferentes alternativas conforme o momento histórico, a população envolvida e o lugar geográfico.

Consequentemente, a definição do conceito de ‘valor da arte’ deve variar de acordo com a visão adotada. Conforme a mais antiga, uma obra possui um valor da arte, na medida em que responde às exigências de uma estética supostamente objetiva, mas jamais formulada até agora de maneira correta.

Segundo o conceito moderno, o valor da arte de um monumento é medido pelo modo como ele atende às exigências do querer moderno da arte, exigências essas que não foram formuladas claramente e que, a rigor, nunca o serão, pois mudam constantemente de sujeito para sujeito e de momento para momento.

Para nossa tarefa, torna-se uma condição importante esclarecer essa diferença quanto à essência do valor da arte, pois para a preservação dos monumentos, esse princípio orientador terá uma influência decisiva. Se não existe um valor da arte eterno, mas apenas um relativo, moderno, o valor da arte de um monumento não é mais um valor de memória, mas um valor de atualidade.8

Riegl estabelece na sua teoria de valores uma taxonomia em que esses são agrupados em duas grandes categorias: os valores de memória, vinculados ao “aspecto não moderno do monumento” e os valores de atualidade, relacionados não mais à memória, mas às necessidades contemporâneas. E essas duas categorias são tratadas pelo autor nas duas partes finais do livro9.permanentes e objetivos como na Renascença, mas em valores assentados antes na significação, do que na forma, e determinados no presente, pelos sujeitos históricos.

Interessa a Riegl compreender não apenas como os significados são atribuídos aos monumentos, mas como se dá a recepção desses valores pela sociedade e quais as gradações sociais desse acesso (os especialistas, o apreciador de arte médio, as massas).

Entendia que, se até o século XIX prevalecia a tese de que existia um cânone artístico rígido, um ideal artístico objetivo e absoluto, o século XX teria abolido definitivamente essa pretensão da Antiguidade, emancipando todos os períodos conhecidos da arte com seu significado independente, sem abandonar a crença em um ideal artístico objetivo. Assim, a kunstwollen (a vontade artística de uma época), como princípio, admite que a manifestação artística possa assumir diferentes alternativas conforme o momento histórico, a população envolvida e o lugar geográfico.

Consequentemente, a definição do conceito de ‘valor da arte’ deve variar de acordo com a visão adotada. Conforme a mais antiga, uma obra possui um valor da arte, na medida em que responde às exigências de uma estética supostamente objetiva, mas jamais formulada até agora de maneira correta.

Segundo o conceito moderno, o valor da arte de um monumento é medido pelo modo como ele atende às exigências do querer moderno da arte, exigências essas que não foram formuladas claramente e que, a rigor, nunca o serão, pois mudam constantemente de sujeito para sujeito e de momento para momento.

Para nossa tarefa, torna-se uma condição importante esclarecer essa diferença quanto à essência do valor da arte, pois para a preservação dos monumentos, esse princípio orientador terá uma influência decisiva. Se não existe um valor da arte eterno, mas apenas um relativo, moderno, o valor da arte de um monumento não é mais um valor de memória, mas um valor de atualidade.8 Riegl estabelece na sua teoria de valores uma taxonomia em que esses são agrupados em duas grandes categorias: os valores de memória, vinculados ao “aspecto não moderno do monumento” e os valores de atualidade, relacionados não mais à memória, mas às necessidades contemporâneas. E essas duas categorias são tratadas pelo autor nas duas partes finais do livro9.

Para Riegl, dentre os valores de memória (valor de antiguidade, valor histórico e valor de comemoração), o de antiguidade corresponde àquele que se estabelece no decorrer do tempo, através da ação destrutiva da natureza, que age de forma lenta e gradual sobre as obras, provocando sua dissolução e remetendo ao ciclo natural da vida de criação-destruição.

Para ele, o valor de antiguidade seria o mais acessível às massas, e, inevitavelmente, o mais abrangente a partir do século XX. A recepção do valor histórico, pelo contrário, requereria conhecimentos de história da arte e estaria assentada em bases científicas e não atingiria as massas.

O valor de antiguidade tem, portanto, a pretensão de influenciar as grandes massas e se sustenta sobre a possibilidade de incluí-las na mobilização pela defesa do patrimônio. Uma preocupação permanente, ainda hoje não resolvida, nos debates contemporâneos do século XXI.

Contrariando o pensamento de Riegl, a arquitetura moderna torna-se patrimônio ainda no século XX, antes mesmo do tempo ter lhe conferido valor de antiguidade.

Essa ausência de valor de antiguidade, possivelmente, é a principal razão da dificuldade do reconhecimento desse patrimônio pela sociedade em geral.

Por outro lado, essa novidade, impensável para o teórico na época, distancia o patrimônio moderno dos constantes conflitos que se estabelecem entre o valor de antiguidade e os demais valores memória, como entre esses e os valores de atualidade definidos por Riegl, ao menos, enquanto o tempo entre o patrimônio moderno e a sociedade que o reconheceu for tão próximo.

Segundo Riegl, diferentemente do valor de antiguidade, para os valores histórico e de comemoração, interessa a obra em sua forma original e intacta:

O valor histórico é tanto maior quanto mais puramente se revela o estado original e acabado do monumento, tal como se apresentava no momento de sua criação: para o valor histórico, as alterações e degradações parciais são perturbadoras […] Trata-se mais de conservar um documento o mais autêntico possível para a pesquisa futura dos historiadores da arte […] As destruições passadas, imputáveis aos agentes naturais, não podem ser anuladas e, do ponto de vista histórico, elas não devem também ser reparadas. Mas as destruições futuras, as que o valor de antiguidade não somente tolera, mas postula, são inúteis aos olhos do valor histórico […].10 […] o valor de rememoração intencional não reivindica menos para o monumento que a imortalidade, o eterno presente, a perenidade do estado original […] A restauração é, pois, o postulado de base dos monumentos intencionais […].11

O aspecto mais atual no discurso de Riegl é a forma como ele enxerga o valor de arte, sujeito a flutuações de época, e o valor de antiguidade que se baseia na subjetividade e é acessível a todas as classes (o valor mais democrático). Riegl desloca-se de uma visada objetiva para uma subjetiva – quase religiosa – aproximando-se de Ruskin, mas apenas nesse ponto.

Na terceira e última parte do texto, Riegl se debruça sobre os valores que, segundo o autor, respondem às necessidades da sociedade moderna tal qual a obra nova: nos seus aspectos funcionais, sensoriais e espirituais. A estes denomina valores de atualidade, subdividindo-os em duas outras categorias: o valor de uso e o valor de arte. Para esses valores de atualidade, assim como para o valor histórico e de comemoração, interessa a manutenção do estado original da obra.

No caso das obras que continuam sendo utilizadas, no entanto, o valor de uso não pode fazer nenhuma concessão ao valor de antiguidade: “para a maioria, um monumento ainda utilizado deve apresentar, mesmo em nossos dias, a aparência juvenil e robusta de suas origens e recusar as marcas de seu envelhecimento ou de suas fragilidades”12.

Por outro lado, os monumentos dotados de valor de arte, que respondem à exigência da moderna Kunstwollen, ou seja, que satisfazem à aspiração de vontade artística do momento comportam duas exigências: uma refere-se à forma conservada nas suas cores e integridade, denominada por Riegl como valor de novidade, e pode ser apreciada por qualquer indivíduo; a outra, que chama de valor relativo, apenas acessível aos que possuem cultura estética, refere-se à presença nas obras passadas de certas qualidades atuais. Em ambos a necessidade recai sobre a conservação integral do bem.

Considerando que toda obra do passado, em princípio, possui valor histórico, e tendo em conta a ausência do valor de antiguidade no patrimônio moderno, pode-se dizer que são os valores de atualidade que melhor caracterizaram esse patrimônio, portanto, a observação desses valores é fundamental para as intervenções no mesmo.

É importante, porém, esclarecermos que esse fato não autoriza intervenções que recusem toda e qualquer marca do passado. Riegl, ao tratar dos valores de atualidade destaca, por um lado, que poderão ser tolerados “certos sintomas de degradação” e, por outro, esclarece que não existe valor de arte eterno, apenas relativo e que, portanto, as exigências relacionadas a esse valor devem ser consideradas em relação ao valor histórico do monumento, de forma que o mesmo não perca seu caráter de documento.

A formulação teórica de Riegl pressupõe um conflito constante entre os diversos valores presentes nos monumentos e a necessidade de uma abordagem crítica para o enfrentamento do dilema que se estabelece na conservação, uma vez que coexistem em uma mesma obra valores antitéticos.

Segundo Françoise Choay, pela primeira vez na história da noção de monumento histórico e de suas aplicações, Riegl toma distância para:

[..] empreender o inventário dos valores não ditos e das significações não explícitas, subjacentes ao conceito de monumento histórico. De uma só vez, este perde sua pseudotransparência de dado objetivo. Torna-se o suporte opaco de valores históricos transitivos e contraditórios, de metas complexas e conflitivas. Riegl mostra que, no plano da teoria assim como no da prática, o dilema destruição/conservação não pode ser opção absoluta, o quê e o como da conservação não comportando jamais uma solução – justa e verdadeira –, mas soluções alternativas, de pertinência relativa.13

Acertadamente Fabris (2014) afirma que Riegl “antecipa algumas propostas do restauro crítico que foram transformadas em reflexão teórica por Brandi”, em exatos sessenta anos depois. Enfatizando essa perspectiva, na apresentação da edição brasileira da Teoria da Restauração, de 2004, traduzida por Beatriz Mugayar Kühl, Giovanni Carbonara afirma que a reflexão de Cesare Brandi “manifesta uma dívida implícita no que concerne à contribuição teórica de Aloïs Riegl”14. Por isso mesmo, Annateresa Fabris destaca, na introdução à tradução de 2014:

O que resta de seu legado nos dias de hoje? A ideia de que toda intervenção em um monumento não pode prescindir de um juízo crítico, já que o restauro caracteriza-se por ser uma ação sociocultural, a requerer ‘uma investigação preliminar sobre a natureza daquilo que se conserva, a fim de detectar na vasta gama das preexistências, os papéis específicos e as vocações de cada uma delas’. Desse modo, Riegl antecipa as propostas do restauro crítico formuladas no segundo pósguerra por profissionais como Roberto Pane, Renato Bonelli e Agnoldomenico Pica, e transformadas em reflexão teórica por Cesare Brandi.15

Pouco mais de um século após a elaboração da obra de Riegl, e seis décadas da obra de Brandi, é possível afirmar que nenhuma outra obra de tamanha consistência teórica para a conservação surgiu, apesar do alargamento não apenas cronológico e geográfico dos bens patrimoniais ocorrida, segundo Françoise Choay16, a partir da década de 1960 e da ampliação da noção de Patrimônio Cultural, incluindo os bens imateriais desde o final do século passado.

Somado a isso, alguns desafios enfrentados para a conservação do recente patrimônio moderno não encontram precedentes na práxis da conservação como: as novas possibilidades documentais trazidas com o acervo de projetos das obras, os grandes componentes e sua substituição integral, ou as especificidades espaciais dessa arquitetura, abrindo o campo de pesquisa e sugerindo não necessariamente a negação dessas teorias, mas sua revisão e ampliação17.

Ao contrário da questão material, a abordagem dos aspectos espaciais das obras de arquitetura nas teorias da conservação é incipiente e, consequentemente, sua importância tem sido pouco considerada na prática patrimonial.

Em Riegl, embora o valor de uso devesse estar intrinsicamente vinculado aos aspectos espaciais da obra de arquitetura como parte de seu valor artístico, é reduzido apenas à sua dimensão utilitária e, nesse sentido, o foco, para o autor, recai sobre os possíveis conflitos com o valor de antiguidade18.

O autor, ao tratar o valor de uso e o valor artístico como distintos, cria não apenas a possibilidade de conflito entre eles, como a prevalência do valor artístico sobre o de uso, aspecto que é reforçado, posteriormente, na Teoria da Restauração de Brandi.

Por outro lado, o princípio de integração entre espaços interiores e exteriores, inerente à arquitetura moderna, torna-se difícil de ser contemplado quando são entendidos como entidades separadas e estanques e quando há prevalência do espaço exterior, conforme aborda Brandi no capítulo destinado aos “Princípios para a Restauração dos Monumentos”. A diluição desses limites faz com que os dilemas espaciais já existentes na conservação da arquitetura fiquem mais evidentes ou agudos com o patrimônio moderno.

A configuração espacial moderna, ao estar em parte fundamentada nas teorias do espaço arquitetônico do final do século XIX e início do século XX19, coloca em questão a preponderância dada à materialidade nas práticas da conservação dessa arquitetura e aponta para a impossibilidade, ou ao menos a inadequação, de uma abordagem conservativa sem a devida importância que deve ser dada também aos seus aspectos espaciais.

Apesar de muito citadas, as obras de Riegl e Brandi ainda são pouco exploradas na utilização operacional e pouco aprofundadas nos debates e reflexões sobre a questão da conservação do patrimônio artístico ou arquitetônico.

Quais as razões para tão pouca atenção e discussão sobre o tema? As razões estarão no enfraquecimento das relações entre teoria, historia e prática? O problema estaria na crescente complexidade da sociedade contemporânea e na diversidade do corpo patrimonial que dificulta a abordagem teórica no tratamento desse patrimônio? Aprofundar o entendimento sobre essas obras a partir do olhar contemporâneo, como nos ensina Riegl, talvez seja o ponto de partida para a ampliação da discussão da conservação da arquitetura (não apenas moderna), da prática da conservação, bem como do papel das instituições patrimoniais na conservação desse patrimônio.

Notas

3 As duas traduções brasileiras do livro de Aloïs Riegl consultadas são: a primeira, feita a partir da edição francesa, Le culte moderne des monuments: son essence et sa genèse (Paris: Seuil, 1984), publicada pela Editora da Universidade Católica de Goiânia em 2006, e a segunda, feita a partir da edição original em alemão, Der moderne denkmalkultus: sein wesen und seine entstehung (Viena & Leipzig: W. Braumüller, 1903), publicada pela Editora Perspectiva em 2014.

4 ZERNER apud FABRIS, Annateresa. “Os valores do Monumento”. In: RIEGL, Aloïs. O culto moderno dos monumentos: a sua essência e a sua origem. Tradução de Werner Rothschild Davidsohn e Anat Falbel. São Paulo: Perspectiva, 2014, p. 19.

5 BRANDI, Cesare. Teoria da restauração. Tradução de Beatriz Mugayar Kühl. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004 [1963].

6 O moderno a que se refere Riegl pertence às transformações modernas do século XIX e não pode ser confundido com o termo utilizado quando nos referimos à produção moderna da arquitetura no século XX.

7 RIEGL, O culto moderno…, p. 32.

10 RIEGL, Aloïs. O culto dos monumentos: sua essência e sua gênese. Tradução da edição francesa por Elane Ribeiro Peixoto e Albertina Vicentini. Goiânia: Editora da Universidade Católica de Goiás, 2006, p. 76-77.

11 RIEGL, O culto dos monumentos…, p. 85-86.

12 RIEGL, O culto dos monumentos…, p. 99.

13 CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. Tradução de Luciano Vieira Machado. São Paulo:

Estação Liberdade; Editora UNESP, 2001 [1992], p. 13-16.

14 CARBONARA, Giovanni. “Apresentação”. In: BRANDI, Teoria da restauração…, p. 9.

15 FABRIS, Annateresa. “Os valores do monumento”. In: RIEGL, O culto moderno…, p. 20-21.

16 CHOAY, A alegoria do Patrimônio…, passim.

17 ROCHA, Mércia Parente. Patrimônio arquitetônico moderno: do debate às intervenções. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo). Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2011.

18 RIEGL, O culto dos monumentos…, p. 38-39.

19 Sobre os trabalhos que ao final do século XIX introduzem na teoria da arquitetura o conceito de espaço, até então objeto de estudo em especial da filosofia, destacam-se aqueles elaborados pelos pesquisadores alemães August Schmarsow e Adolf Hildebrand, cujo pensamento está fundado numa visão da arquitetura a partir de seu interior.

Mércia Parente Rocha – Arquiteta, Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Paraíba. Professora do Curso de Graduação em Arquitetura e Urbanismo do CESED/ FACISA em Campina Grande – PB.

Nelci Tinem -Arquiteta, Doutora em História da Arquitetura Urbana pela Universitat Politecnica de Catalunya. Professora Titular do Departamento de Arquitetura e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Paraíba.

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[MLPDB]

 

O Freudismo: um esboço crítico – BAKHTIN (EPEC)

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. O Freudismo: um esboço crítico. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 2012. 110p. Resenha de: BIANCHI, Cristina dos Santos. Uma análise bakhtiniana/volochinoviana da psicanálise: reflexões necessárias para o estabelecimento de um novo paradigma em ensino de Ciências. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v.18, n. 2, p.201-210, mai./ago. 2016. Ensaio

Resenhar a visão dos autores do Círculo de Bakhtin sobre o freudismo é, no mínimo, uma tarefa complexa, haja vista as controvérsias relativas à obra e a possibilidade de explorar dentro de seu contexto um sem-número de discussões referentes a diversos campos do conhecimento. Nosso intento é aproximar a polêmica da discussão sobre a cientificidade da psicanálise à tensão entre o “científico” e o “humanístico” e suas implicações para o ensino de ciências, que no contexto da pós-modernidade busca sua democratização.

Comecemos pela discussão relativa à autoria de algumas obras do Círculo, como é o caso de O Freudismo: um esboço crítico e de Marxismo e Filosofia da Linguagem, que ainda dividem opiniões. Destacamos três principais, discutidas por Fiorin (2008).

A primeira é que ambas as obras são assinadas pelo amigo Valentin Nikolaevich Volochínov, o que se justifica para alguns autores por uma impossibilidade política de Bakhtin assumir a autoria. Outra é que Bakhtin só é autor dos textos publicados em seu nome ou encontrados em seus arquivos. Um terceiro grupo atribui essas obras aos dois autores, o que nos parece mais conveniente para esta resenha, uma vez que não desejamos nos aprofundar nas questões de pertença autoral.

Uma controvérsia também é situada em relação ao marxismo encontrado na obra – publicada em 1927. Uma vez que o panorama intelectual da época pertencesse a uma URSS sob a influência marxista onde se desenvolvia a sociologia, a filosofia, a psicologia e até a fisiologia da época, não é novidade que tenha imposto restrições a autores não marxistas. Uma orientação neokantiana do autor Bakhtin deflagra um problema para que os marxistas o reivindiquem (FIORIN, 2008). No próprio prefácio “Freud à Luz de uma Filosofia da Linguagem”, o tradutor Paulo Bezerra afirma o marxismo como um “fio condutor” para adentrar o “labirinto da psicanálise”, mas um marxismo “centrado especificamente em Marx, de quem assimila a ideologia como falsa consciência, ao contrário do conceito de ideologia como visão científica de uma classe, formulada por Lênin e transformada posteriormente em axioma.” (p. XIV). Sem a intenção deveras de ir a fundo nesse tema, o fato é que não podemos negar a influência marxista do panorama intelectual, contextualizando a obra à ideologia predominante da época.

Outro fato que precisamos ter em mente é que um mundo “Iluminado” e impulsionado pela ciência funcionava a pleno vapor de fábricas, corroborando a corrente biologicista em que se apoia a psicanálise freudiana e que faz transparecer uma nova categoria de discurso ressaltada pelos autores Bakhtin/Volochínov, o “discurso autoritário”, ratificado pelo próprio Freud (2011 [1925], p. 74) em sua declaração de que a verdade é o objetivo absoluto da Ciência.

No entanto, Freud resgata desse cenário inóspito e massacrante, obscurecido pelas fumaças industriais, o indivíduo, transformado exclusivamente em mão de obra, desafiando a ordem moral e lógica da sociedade moderna (PLASTINO, 2001 apud MORAES et al., 2008). Ainda assim, uma análise bakhtiniana/volochinoviana sobre a psicanálise se detém na dicotomia entre o “objetivismo abstrato” e o “subjetivismo idealista” (BAKHTIN, 1998) traduzida em uma tensão existente entre duas culturas (SNOW, 1995): de um lado a “científica”, de outro a “humanística”, que perdura nos dias atuais sob a forma de disputa entre pressupostos epistemológicos hegemônicos. A resistência dos autores ao inconsciente proposto por Freud, em sintonia com as ideias de Vigotski (EMERSON, 2002), é também uma tônica da obra que se encaixa nessa tensão. Temos então, em O Freudismo, a oportunidade de analisar a crítica bakhtiniana/volochinoviana por suas próprias lentes dialógicas, suscitando reflexões importantes para o ensino de ciências, na busca por superar a dualidade entre as duas culturas citadas.

Bakhtin/Volochínov dividem sua análise em três partes. Na primeira apresentam “O Freudismo e as correntes atuais do pensamento em Filosofia e Psicologia”, depois, fazem a “Exposição do Freudismo” e finalizam com sua “Crítica ao Freudismo”.

O cuidado de Bakhtin/Volochínov em situar histórico-filosoficamente o leitor antes de iniciar sua abordagem da teoria freudiana reflete a importância que dispensam ao marxismo como caminho, ratificada na epígrafe do primeiro capítulo atribuída a K. Marx: “A essência do homem não é algo abstrato, próprio de um indivíduo isolado. É, em sua realidade, o conjunto de todas as relações sociais.” (p. 3). Destacam, portanto, o “motivo central”, uma “dominante ideológica” do Freudismo: o que teria chamado a atenção da sociedade burguesa europeia para uma teoria proveniente da psicanálise? Teriam sido os êxitos do processo terapêutico? Ou acaso não foi senão a atenção voltada ao organismo biológico com destaque para o poder das pulsões sexuais na determinação do comportamento humano? A corrente biologicista predominante na teoria de Freud se contrapõe oportunamente, na visão do mundo burguês, à ideologia de classe predominante da época: “O ‘sexual’ em Freud é o polo extremo do biologismo em voga, reunindo e condensando numa imagem compacta e picante todos os momentos particulares do anti-historicismo atual.”(p. 10). E apesar da acusação de anti-historicista, não era como Freud enxergava o sujeito, um ser biológico em detrimento do social.

Usamos como exemplo as pulsões e o desejo. As pulsões estão relacionadas com instintos biológicos, contudo dirigida pelo desejo, que tem regulação social e é dirigida pelo princípio do prazer (LIMA; PERINI, 2009).

Mostram-nos também os autores a posição da psicanálise em relação às tendências psicológicas, subjetiva e objetiva. Para Bakhtin/Voloshinov, a diferença que Freud e seus discípulos tentam fazer de sua concepção de psíquico em relação à psicologia então vigente nada mais seria do que uma mudança de terminologia: “Já Freud tenta erigir com os velhos tijolos subjetivos um quase-edifício objetivo inteiramente novo do psiquismo humano. O que é o ‘desejo inconsciente’ senão o mesmo tijolo velho apenas com posição invertida?” (p. 70). Além disso, chamam à atenção de que a interpretação do psíquico é dada pelos enunciados verbalizados, o que não renuncia a introspecção como método, característico da psicologia subjetiva.

Apesar de reconhecermos a busca de Freud por uma legitimação científica – como verificamos em “Sobre Narcisismo: uma introdução”, em que declara que as teorias sobre a psicologia se basearão, um dia, em estruturas orgânicas (FREUD, 2006 apud MORAES et al., 2008) e também quando diz que “a psicanálise na realidade, é um método de pesquisa, um instrumento imparcial, à semelhança do cálculo infinitesimal.” (FREUD, [1910] 2011, p. 100) – seu trabalho muito se distancia do behaviorismo, como também representa avanços sobre a psicologia subjetiva, como por exemplo, sua originalidade referendada pelos próprios autores à sua dinâmica psíquica, a um novo mundo em movimento, em crise, em contraposição ao antigo mundo psíquico passivo e inerte. E é nessa dinâmica que Bakhtin/Volochínov apontam as projeções da realidade social da nova teoria: “Nenhuma enunciação verbalizada pode ser atribuída exclusivamente a quem enunciou: é produto da interação entre falantes e, em termos mais amplos, produto de toda uma situação social em que ela surgiu.” (p. 79, grifo do autor), que em nada contraria o freudismo. Freud busca o sujeito imerso em sua ligação com sua infância em relação à sua família e a toda sua vivência.

Assim, Bakhtin/Volochínov tentam comprovar o que não é negado, que a psicanálise possui uma orientação filosófica geral: “O pensamento humano nunca reflete apenas o ser de um objeto que procura conhecer; com este, ele reflete também o ser do sujeito cognoscente, o seu ser social concreto.” (p. 22), partindo do princípio de uma luta de status do freudismo, em que adeptos da neutralidade científica precisavam manter sua cientificidade. Um mal-estar causado no meio acadêmico-científico a respeito dessa sustentação para a psicanálise, criticada pelos autores, iria começar também a ser sentido em relação à objetividade da ciência em A lógica da pesquisa científica de Popper, um dos “traidores da verdade” – junto a Lakatos, Kuhn e Feyerabend (THEOCHARIS; PSIMOPOULOS, 1987).

Partindo à exposição do Freudismo, consciência, inconsciente e préconsciente são apresentados como campos em permanente luta, em interações interdependentes, em que para a compreensão da consciência, é necessário desvelar o inconsciente. O inconsciente, portanto, ocupa posição de relevo na teoria de Freud.

Os autores nos mostram as concepções sobre o inconsciente nos três períodos de Freud, com peculiaridades devidas a cada um. Explicam-nos o “Método catártico de tratamento da histeria”, fruto de conclusões do primeiro período, como também “A doutrina do recalque” como um dos conceitos mais importantes da psicanálise.

Explanam sobre o “Conteúdo do inconsciente” na teoria das pulsões, que evolui até o terceiro período de Freud. E uma das peculiaridades desse período, o “Ideal do Ego”, apresentado como o censor das atividades do “Ego” – o “agente do princípio da realidade”, “a razão e o senso comum” (p. 43). Este último também influenciado pelo “Id” – “elemento obscuro interior dos anseios e paixões que às vezes experimentamos tão intensamente em nós mesmos e contraria os nossos argumentos racionais e a boa vontade”. (p. 42, 43).

Porém, uma leitura estéril do cunho social das interações entre inconsciente, consciente, Ideal do Ego (superego) e Id é subentendida a partir do momento que interpretam que o freudismo supõe o indivíduo como um ser isolado, sendo os conflitos assinalados entre consciente e inconsciente pertencentes ao determinismo biológico. Não é o que Freud realmente considera: “A civilização se baseia, em geral, na renúncia aos instintos, e cada indivíduo tem que repetir pessoalmente, no seu caminho da infância à madureza, essa evolução da humanidade até a resignação razoável” (FREUD, [1910] 2011, p. 112-113).

Continuando, Bakhtin/Volochínov explanam o método psicanalítico da “Interpretação de Sonhos”, através das “livres associações”. Para analisar o conteúdo do inconsciente, é necessário que este possa ser localizado e analisado na consciência. Os conteúdos manifestos dos sonhos são associados a pensamentos e imagens livres da consciência, método que se tornou clássico para toda a psicanálise.

Reforçam os autores o biologicismo de Freud: “Cada momento da construção ideológica é biologicamente determinado com rigor.” (p. 57, grifo do autor).

Esse aforismo é, para os autores, o pressuposto da “Filosofia da cultura em Freud” que explica além da origem dos sonhos, a criação de mitos, religiões manifestações artísticas e formas da vida social, encontrando sua expressão máxima na obra de Otto Rank, discípulo de Freud, que escreve o livro O trauma do nascimento. “Segundo Rank, toda a vida do homem e toda a criação cultural não são senão a erradicação e a superação do trauma do nascimento em vias diversas e por meios diversos.” (p. 62, grifo do autor). Bakhtin/Volochínov também trazem à tona a questão de um inconsciente capaz de operar com extrema sensatez moral, levando-nos a questionar sobre o que dizer de um mecanismo tão contextualizado, senão que se trata da expressão de um caráter ideológico. Os autores acreditam que uma volta consciente ao próprio passado, como meio de busca ao inconsciente, necessite de lentes polidas de olhos não influenciados pelo indivíduo, desconsiderando que uma retrospecção possua um potencial de reconstrução autônoma sobre si mesmo.

Certamente que não aproxima, de fato, a realidade psíquica de uma natureza material, concluem os autores, a exemplo da teoria das zonas erógenas, como poderiam pretender Freud e seus seguidores, já que “jamais operam diretamente com a composição material e com processos materiais do organismo corporal; procuram apenas reflexos do somático no psiquismo, isto é, acabam sujeitando todo o orgânico aos métodos da introspecção, psicologizando-o.” (p.

71, grifo do autor). Sendo assim, os autores se sentem autorizados a afirmar que a ideia de alguns partidários de Freud de que a biologia seria a base objetiva da psicanálise, “não se baseia em nada […] em tudo a psicanálise continua fiel ao ponto de vista da experiência subjetiva interior.” (p. 73, grifo do autor).

Pelo que já temos destacado sobre Freud, não é sua metodologia partir da materialização do psíquico. Ao contrário, Freud afirma que seu material de trabalho, o inconsciente, é de difícil tangência, deixando de ser objeto exclusivo de discussão filosófica e tornando-se objeto de experimentação a partir dos métodos hipnóticos experimentados entre 1880 e 1890, antes do nascimento de sua ciência.

Freud, assim, faz exatamente o oposto do que afirmam os autores, trazendo a possibilidade da compreensão de fenômenos antes tratados com a terapêutica de choques elétricos, vistos como disfunções de partes do cérebro.

O campo sexual, entendido pelos autores como o fio condutor capaz de atrair a sociedade burguesa para o freudismo, ao mesmo tempo gerador de conflitos, é visto como uma nova “‘interpretação’ aguda e nova de todos os aspectos da vida que perderam o sentido” (p. 91), ressignificando relações familiares no contexto da sociedade burguesa europeia. Acrescido a isso, os conflitos gerados são circunscritos a esta sociedade, sendo impraticável sua transposição histórica. Uma leitura do sexual em Freud como uma ressignificação e acomodação da vida burguesa deixa escapar sua real contribuição para a ressignificação do sujeito na sociedade. Um indivíduo massificado descobre que possui desejos e que é orientado pelo princípio do prazer, pode ser o primeiro passo na busca de uma vida, até então, negligenciada.

E é claro que a transposição histórica de uma situação referente à sexualidade não é pertinente em teoria alguma, depende da harmonia entre o discurso interior (indivíduo) e o exterior (sociedade), o que não é negado por Freud.

O polêmico “Complexo de Édipo” não poderia ter síntese mais reduzida: “O futuro coitus do homem é apenas uma compensação parcial do paraíso perdido do estado intrauterino.” (p. 39) e a “Vida sexual da criança” é apresentada como o símbolo da inocência e da pureza que passa a seguir instintos de libido como diretrizes de desenvolvimento psicossomático. Eis um ponto que encontrou, segundo o próprio Freud, “uma novidade contrária aos mais enérgicos preconceitos do homem”, e ainda que “são muito poucas as descobertas da psicanálise que esbarram com uma repulsa tão geral e provocam tanta indignação como a afirmação de que a função sexual tem início com a própria vida […]” (FREUD, 2011 [1925], p. 45). Freud é acusado de reducionismo biológico, sendo assim, uma negação de que sua teoria da libido se trata da teoria das energias psíquicas sem um equivalente empírico (FULGENCIO, 2002), pode refletir o próprio preconceito dos autores em relação ao tema, compreensível se considerarmos os tabus impostos pela sociedade até os dias de hoje.

O reducionismo sexual à genitalidade e com utilitarismo reprodutivo é ainda predominante dentro do ensino de ciências, mais preocupado com as doenças do que com a manutenção da saúde e bem-estar, em alusão a uma visão higienista.

Aqui sim imperam determinismos, mas que são socioculturais na construção da sexualidade. A incompreensão do conceito de sexualidade como elaborada por Freud tem em suas raízes as tensões assinaladas entre a legitimação científica em contraponto à validação do humanístico dentro das instâncias epistemológicas valorizadas. Em última análise, reflete a hegemonia de uma ciência racionalista que segmenta e compartimentaliza o indivíduo, separando-o de seus anseios e paixões.

O freudismo também é criticado pelos autores por enclausurar-se dentro de suas próprias teorias, não permitindo chances de permuta com as demais correntes da psicologia. Isso é considerado como uma das grandes falhas da teoria psicanalítica, já que uma escola de pensamento que se apropria de um pilar científico não se permite questionar ou compartilhar ideias com seus pares em potencial.

Porém, a falta de diálogo ocorre também na análise de Bakhtin/Volochínov. Uma preocupação demasiada dos autores em pontuar a teoria freudiana em contraposição à corrente filosófica predominante, e de contradizê-la em sua pretensa objetividade, pode ter lhes furtado a oportunidade de analisar e discutir pontos convergentes com a teoria linguística que se iniciava com o Círculo. Enquanto alguns autores apontam a falta da leitura de obras importantes para sua compreensão (EMERSON, 2002; LIMA; PERINI, 2009), há quem afirme que uma boa leitura da teoria elaborada até então (1927) teria permitido aos autores concluir que a importância da função da linguagem era de fato, concebida por Freud (NOVAES; RUDGE, 2007). Podemos considerar que a psicanálise trabalha com a linguagem, que ao ser expressa, representa o constituinte principal da investigação psicanalítica. E isso é apontado pelos autores como um ponto positivo, mesmo assim, encontramos uma análise freudiana contundente e voltada para a questão específica da comprovação de um sujeito histórico, que nem sequer foi negado por Freud.

Chegamos ao ponto em que devemos refletir sobre o cenário apresentado. Em que ponto a dialética se aproxima do dialogismo? Um discurso sofista em busca da persuasão contra um discurso filosófico em busca da verdade: a retórica como o instrumento privilegiado de poder para os detentores do saber é tão antiga quanto atual. A filosofia ocidental antiga é incorporada pela ciência tomista medieval e vai cedendo ao empirismo da revolução científica a partir do século XVI, até o racionalismo se estabelecer no topo de uma hierarquia epistemológica, basicamente no campo das ciências naturais. Até que no século XIX, os estudos humanísticos reclamam para si um reconhecimento científico, emergindo as ciências sociais. Um conhecimento com o status de científico é o que temos de mais respeitável. E o reconhecimento científico era importante para Freud.

Vemos assim uma disputa, de um lado, Freud na busca de legitimação científica de seu trabalho e de outro, a tentativa de Bakhtin/Volochínov (sem mencionar tantos outros) em provar que a psicanálise não merece a instauração neste pilar. Uma aporia se manifesta onde o discurso autoritário da ciência racionalista, criticado na análise bakhtiniana/volochinoviana, é utilizado pelos próprios autores na defesa de uma análise sociológica da linguagem e da cultura. Presenciamos a disputa em um jogo de forças que determina a hegemonia do discurso, dado através da linguagem. A ciência, mais do que uma construção sociocultural, é um discurso e precisa ser compreendida como tal. O início da contestação de sua autoridade em Popper provoca uma crise de estruturas, que encontra em Foucault (1979) a problematização de seu estatuto político e de funções ideológicas que poderia veicular. Entra em cena uma série de discussões que contestam a neutralidade e a superioridade científica, conhecidas como movimento CTS – Ciência, Tecnologia e Sociedade o que consideramos extremamente frutífero para o desenvolvimento de uma nova visão, uma reorientação almejada para o ensino de ciências, que considere o eixo sociedade, interpretado como a valorização do indivíduo no contexto social contemporâneo de produção científica e tecnológica.

Retomando a psicanálise, sua importância é fundamental para a superação do sujeito cartesiano. Dela emerge uma concepção do humano segundo o qual identidade, sexualidade e desejos “funcionam de acordo com uma ‘lógica’ muito diferente daquela da Razão, arrasa com o conceito de sujeito cognoscente e racional provido de uma identidade fixa e unificada – o ‘penso, logo existo’, do sujeito de Descartes” (HALL, 2011).

O que podemos concluir desta reflexão que nos auxilie em corroborar os novos rumos apresentados para um ensino de ciências democrático, capaz de formar cidadãos autônomos e ativos no processo de construção de uma sociedade consciente e justa? Em primeiro lugar, a compreensão de que a dinâmica social funciona no contexto das relações da vontade de poder, entendida por Nietzsche como desejo de superação, mantida em uma relação tensional com seu Outro. Todos os movimentos do desenvolvimento do saber se iniciaram e se mantêm como impulso de superação (HATAB, 2010). Em segundo, que a manutenção do status privilegiado tem um custo, o da resistência a movimentos concorrentes, manifesta em um discurso autoritário. Em terceiro, precisamos reconhecer em nós em que ponto temos nos apropriado do discurso autoritário a ponto de torná-lo autoritarista, quer dizer, em que ponto o discurso ciência/humanidade pode nos privar de uma visão holística importante para a superação deste mundo dual.

Tendo em mente este esclarecimento, podemos seguir uma saída para o nó górdio em que nos puseram os mitos das verdades e das necessidades pós-modernas: a construção de um paradigma, já emergente dada a crise do modelo de racionalidade dominante, embasado em uma cultura transdisciplinar (NICOLESCU, 2008), que supere a dicotomia das duas culturas de Snow. Preconizamos o paradigma “de um conhecimento prudente para uma vida decente” (SANTOS, 2010, p. 37), em que a dualidade “científico” x “humanístico” deixe de ter sentido e em que todo o conhecimento seja autoconhecimento. Por fim, que o conhecimento reconheça no senso comum uma forma de saber indispensável para a ressignificação do existir contemporâneo (MORIN, 2011; SANTOS, 2010).

Referências

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EMERSON, C. O mundo exterior e o discurso interior: Bakhtin, Vigotski e a internalização da língua. In: DANIELS, H. Uma introdução a Vigotski. São Paulo: Loyola, 2002.

FIORIN, J. L. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2008.

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução. In: FREUD, S. A história do movimento psicanalítico. Artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos. (1914-1915b) Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. XIV).

FREUD, S. O esquema da Psicanálise. In: CLARET, Martin. Freud por ele mesmo. São Paulo: Ed Martin Claret, [1910] 2011.

FREUD, S. Autobiografia. In: CLARET, Martin. Freud por ele mesmo. São Paulo: Ed. Martin Claret, [1925] 2011.

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HATAB, L. J. A genealogia da moral de Nietzsche: uma introdução. Tradução de Nancy Juozapavicius.

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LIMA, S. M. M.; PERINI, R. Bakhtin e Freud: aproximações e distâncias. Bakhtiniana, São Paulo, v.

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MORAES, L. A. G. de; GONÇALVES, L. R.; BRAGA R. de J.; GREGGIO, T. C.; PRUDENTE, R. C. A. C. A psicanálise entre a desconstrução do indivíduo e uma nova perspectiva cultural. CES Revista de Juiz de Fora, Juiz de Fora, v. 22, p. 239-253, 2008.

MORIN, E. Rumo ao abismo?: ensaio sore o destino da humanidade. Tradução de Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.

NICOLESCU, B. O manifesto da transdisciplinaridade. Tradução de Lúcia Pereira de Souza, 3. ed.

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NOVAES, B.; RUDGE, A. M. A função da linguagem em Bakhtin e Lacan. Tempo psicanalítico, Rio de Janeiro, v. 39, p. 157-178, 2007.

PLASTINO, C. A. O primado da afetividade: a crítica Freudiana ao paradigma moderno. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

SANTOS, B. de S. Um discurso sobre as ciências. 16. ed. Porto: Edições Afrontamento, 2010.

SNOW, C. P. As duas culturas e uma segunda leitura. São Paulo: Edusp, 1995.

THEOCHARIS, T.; PSIMOPOULOS, M. Where science has gone wrong. Nature, Grã-bretanha, v. 329, p. 595-598, 1987. Disponível em: <http://www.ivorcatt.co.uk/x1cp.pdf>. Acesso em: 31 maio 2014.

Cristina dos Santos Bianchi – Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Rio de Janeiro, RJ – Brasil Mestra em Biologia e integrante do Grupo de Pesquisa em Formação de Professores do Instituto de Física Armando Dias Tavares, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professora da Rede Estadual de Ensino do Rio de Janeiro (SEEDUC). E-mail: crisbianchibr@yahoo.com.br.

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Ética, responsabilidade e juízo em Hannah Arendt – ASSY (ARF)

ASSY, Bethânia. Ética, responsabilidade e juízo em Hannah Arendt. São Paulo: Perspectiva; São Paulo: Instituto Norberto Bobbio, 2015. Resenha de: DIAS, Lucas Barreto. Argumentos – Revista de Filosofia,, Fortaleza, n.14, jul./dez. 2015.

A interpretação de um pensamento talvez seja uma daquelas atividades da qual nunca se pode dizer ter chegado a um término. Mas a que fim se propõe o pensar? Se visado como possível de pôr fim a algo, não há qualquer fim, sua finalidade não se esgota, mas é sempre tema para um novo pensamento. Dizer que pensar é um constante repensar significa dizer que não há um ponto de chegada que o pensamento possa pretender alcançar. O que então, alcança o pensamento? Do que ele é capaz? Estas reflexões, próprias daquele tipo de vida que se acostumou chamar de contemplativa, podem soar dissonantes quando se tornam tema central de uma autora como Hannah Arendt, conhecida sobretudo por seus textos políticos. Talvez por isso seja pouco vista a utilização de sua última e inacabada obra – A vida do espírito – como bibliografia central para se interpretar o seu pensamento.

Ao se lançar a tal empreendimento sobretudo em razão das controvérsias geradas por Eichmann em Jerusalém, algo pode ser retido: a banalidade do mal (“conceito” que desponta na obra sobre o burocrata nazista) impulsiona Arendt a tentar compreender melhor o que ela chama de “plena capacidade de pensar” [thoughtfulness] em contraposição à “incapacidade de pensar” [thoughtlessness].

Porém uma das questões que surgem daí diz respeito a saber o que o pensar pode fazer para evitar o mal, não mais interpretado como radical, mas como fruto de uma banalidade. Antes mesmo, contudo, poder-se-ia ponderar: tem o pensar qualquer relação com os conceitos duais bem/mal? Pode o pensar nos guiar na vida prática? Há que se dizer que o debate sobre tal tema é por vezes evitado entre estudiosos de Arendt, isso porque frequentemente ou se cai em uma interpretação que beira a metafísica platonista em que o pensar guia o homem para o Bem, ou se nega qualquer possibilidade de o pensamento ter qualquer coisa a acrescentar- -nos acerca dos assuntos humanos. Falar sobre ética em Hannah Arendt, por conta disso, é provavelmente uma empreitada das mais escorregadias. O texto de Bethânia Assy, porém, traz algo que faltava à bibliografia brasileira sobre Hannah Arendt: uma interpretação que tem como foco central as questões éticas de seu pensamento presentes, sobretudo, nos escritos tardios de Arendt, sejam seus escritos decorrentes de seminários que ministrou e artigos acabados, sejam obras inacabadas, como no caso de A vida do espírito.

Dividido em cinco capítulos, os quatro primeiros parecem uma preparação que Bethânia Assy faz para o ponto central de sua interpretação presente no capítulo cinco: é possível uma ética que não derive seus princípios de ação de leis morais universais, mas que também não recaia em uma ética da impotência? Talvez seja esta a questão que toda sua obra tenta responder, porém como a própria autora formula primeiramente a questão:

minha preocupação é articular […] uma dimensão ética, cuja base remeta à visibilidade de nossas palavras e atos, em que, a despeito das nossas melhores intenções, transpareça a relevância ética da ação e da experiência (p.xxxvii).

Esta passagem da introdução nos remete diretamente para um dos maiores ganhos para as discussões sobre Arendt: a preocupação com o framework no qual se insere os conteúdos éticos do pensamento arendtiano, isto é, a busca por compreender o quadro teórico-metodológico que subjaz às suas concepções. Ainda que Bethânia não se dedique a explorar tais aspectos, ela ressalta recorrentemente a base fenomenológica das reflexões arendtianas de cunho existencial e hermenêutico.

A estratégia argumentativa se baseia em delinear o que Assy chama de uma “nova gramática ética” (capítulo 01) partindo das intuições que fizeram Arendt falar, em Eichmann em Jerusalém – da banalidade do mal como a incapacidade de pensar, para, aos poucos, sublinhar uma “Ética da visibilidade” (capítulo 02) que encontra suporte no texto arendtiano sobre a fenomenologia da vida contemplativa, A vida do espírito. Trata-se aqui, sobretudo, de sustentar a ética arendtiana tanto pela noção de aparência, quanto pelas atividades do espírito.

No entanto, embora Bethânia chame esta Ética da Visibilidade de uma ontologia política da aparência, seu principal enfoque não é a questão política, cuja eminência hermenêutica é tangencial. Dedica-se, inicialmente, às noções de responsabilidade pessoal/moral e responsabilidade política, postas em discussão no contexto da banalidade do mal e como posicionamento contrário à

teoria do dente de engrenagem”, a qual “postula que dentro de um sistema os sujeitos não agem como indivíduos, mas como engrenagens de uma máquina, de modo a tornar impossível atribuir-se individualmente qualquer culpabilidade moral ou legal. (p. 22).

Tal concepção tem como intenção não subsumir a culpa pessoal dos burocratas nazistas capazes da solução final, assim como sua responsabilidade coletiva, em uma falta de responsabilidade pessoal, como se desta última se derivasse uma impossibilidade de que suas ações e cumprimentos de ordens fossem julgados em tribunal.

É justamente para mostrar que tais indivíduos têm sim que ser julgados legalmente que Bethânia Assy, após expor o problema no capítulo 01, parte, em seguida, para considerações mais gerais acerca da noção de singularidade.1 É no segundo capítulo que se concentram os conceitos de Arendt mais vinculados à visibilidade, tendo como centro hermenêutico o conceito de aparência, este que é constantemente o ponto de partida e de chegada das discussões tanto relativas à vita activa quanto às da vida contemplativa. É nesse sentido que Assy compreende ser por meio do conceito de autoapresentação a melhor maneira de explicitar a formação da doxa em relação com a aletheia tendo em vista a singularidade com a qual aparecemos aos outros que compartilham o mundo conosco. Mostrando a reflexão arendtiana que não coloca doxa e aletheia como conceitos diametralmente distintos, o ganho, que Assy chama de epistemológico, resume-se a não repetir a perspectiva com a qual a tradição do pensamento ocidental pôs em lados opostos o chamado verdadeiro ser frente à mera aparência. Arendt, em A vida do espírito, nega à razão a possibilidade de se chegar à verdade, deixando ao campo fenomênico tal atributo junto também da possibilidade do falso. Isto confere ao mundo o estatuto de ser a base na qual tanto o verdadeiro quanto o falso aparecem, isto é, a verdade e a falsidade pertencem ambas ao domínio da aparência. Assim, ainda que a opinião não se identifique diretamente com a verdade, ela também não é reduzida meramente à falsidade.

A formação da doxa, no entanto, não pode prescindir da pluralidade humana, isso porque a própria apreensão das aparências por cada um de nós depende também do fato de que outros confirmam aquilo que meus sentidos percebem.

É justamente por a doxa se relacionar à aparência e sua apreensão depender de um contexto compartilhado com outros que confirmam a mim a aparência percebida – criando o que Arendt chama de sensação de realidade [reallness] – que Assy afirma que “a doxa é o própria significado ontológico da pluralidade no domínio das aparências.” (p. 47) o que nos levaria a uma “fenomenologia da ação política, […] [uma] valorização ontológica da experiência visível.” (p. 49) Bethânia afirma que de tais considerações acerca da doxa e da aletheia2 decorre uma dupla implicação para a ética que visa expor: 1) conferir à visibilidade o critério pelo qual as doxas de cada um são expostas aos demais, de modo que a ética passa a não ser enquadrada na “boa pessoa, mas, sim, em termos do que significa agir consistentemente e de forma responsável” (p. 50, 52) retirando a ética do domínio puramente do self, Arendt dá uma forte dimensão interpessoal à doxa e a põe no contexto do cidadão visível no domínio público.

O esforço de Bethânia, a partir disso, será o de analisar os papeis desempenhados pelas três atividades do espírito na formação da doxa e como isso se reflete no campo dos assuntos humanos, mas, com ênfase maior, na ética. Bem se sabe que o modelo que Arendt elege para a figura de pensador é Sócrates, personagem que também figura de maneira central em suas discussões sobre ética.

Frente a isso, Bethânia define três tópicos que considera como principais na discussão entre a faculdade de pensar e a Ética: a) pensar como espanto; b) pensar como consciência de si; e c) pensar em sua relação com a faculdade de julgar e com a doxa. Esta maneira de compreender a atividade de pensamento nos conduz a uma forma de entendê-la como um modo de vida, isto porque é um pensar cônscio de ser sempre vinculado a um mundo, isto é, aquilo que Taminiaux denominou de “paradoxo do pertencimento e da retirada”. Embora se retire do mundo das aparências para efetuar o diálogo da alma consigo mesma, o pensador não deixa de ser uma aparência entre tantas outras. Além do mais, no pensamento o homem é capaz de encontrar, se não uma pluralidade, já uma dualidade que representa que mesmo a atividade considerada como a mais solitária não é realizada por um self puro, mas indica o significado originário da palavra reflexão: tal qual me divido em dois em um reflexo meu em um espelho, me divido em dois ao pensar. O espanto frente a um acontecimento exige minha retirada do mundo para pensá-lo, decisão que me faz dividir-me em dois e me torna cônscio de mim mesmo, preparando espaço para o juízo e, assim, à formação da doxa frente ao que me aparece, ao dokei moi.

É disso que Assy irá aos poucos dar um passo importante em sua interpretação sobre a ética arendtiana, formulando aqui uma primeira versão que denomina de uma “ética de emergências”, ou, ainda, de uma “ética de não participação.” (p. 73) que Arendt – em Basic Moral Propositions – chama de uma ética da impotência (p. 86). Ainda que em uma versão preliminar do pensamento ético de Arendt, já temos aqui uma contraposição ao normativismo ético e às duas perspectivas éticas da filosofia continental: a procedimentalista e a comunitarista. Não se trata aqui de criar uma teoria moral, seja com pretensões de alcançar princípios universais, seja visando constituir uma comunidade de valores. (p. 100-101). A ética da impotência pode ser caraterizada como “uma ética desprovida de prescrição.” (p. 103), ela não demanda o que fazer, mas apenas indica um ‘parar e pensar’. Daí Bethânia assinalar como propriedades-chave do pensamento os critérios de consistência e de pluralidade, ambos compreendidos a partir do modelo socrático de pensar. A pluralidade, ainda que primária, provém no pensamento do dois-em-um, do diálogo da alma consigo mesma, onde Arendt põe o questionamento de “com que eu gostaria de conviver”? Tal questionamento demanda a consistência do pensar com o agir, afinal, “gostaria eu de conviver com um assassino”? É justamente neste sentido que o pensar não origina uma teoria prescritiva da moral, mas é, ao menos, capaz de incapacitar o sujeito que pensa de realizar uma ação que o tornaria incapaz de conviver consigo mesmo.

Dados tais aspectos, Bethânia inicia em seu quarto capítulo uma investigação que tem como objetivo compreender como o indivíduo decide como agir.

Talvez seja esse o ponto mais controverso do texto. A controvérsia não é à toa, afinal, os problemas acerca da faculdade da vontade em Arendt se tornam complicados de serem tratados se lembrarmos que em seus textos políticos ela critica as concepções que conferem à Vontade a característica de ser o órgão mental que produz a liberdade. Porém, como bem pontua Assy, um dos maiores ganhos com a discussão de Arendt sobre a Vontade é trazer de modo forte a contingência como cerne do argumento.

Embora não resolva efetivamente os percalços da relação entre a liberdade compreendida como proveniente da vontade e sua relação com a liberdade política, Bethânia Assy dá um passo importante para a discussão. Isso porque, segundo a intérprete, compreender aqui a contingência relativa à vontade significa compreender a factualidade presente já nessa faculdade, pois “a contingência implica inevitavelmente em factualidade.” (p. 123). Se lembrarmos de como Arendt interpreta o conceito de aparência, a importância de trazer à faculdade do espírito o elemento de contingência se torna latente junto à sua factualidade. A contingência assume, diferente do que costumou ser interpretada na tradição, um aspecto positivo e ativo, pois “não se define como mera privação, deficiência ou acidentalidade”, isto é, “a contingência é um modo positivo de ser.” (p. 123). É justamente este o ponto que Bethânia usa para reforçar o argumento central de tal capítulo: a “de que neste atributo da vontade, de agir ou não agir, se assentaria o fundamento ontológico da liberdade política.” (p. 124). Para tanto, Bethânia assenta tal assertiva não com o intuito de afirmar ser a liberdade da vontade já uma liberdade política, mas que o fundamento da liberdade política se encontra na capacidade da vontade de decidir algo novo. Sabe-se largamente que um dos principais conceitos políticos de Arendt é o início, isto é, a capacidade proveniente da natalidade que o homem tem de começar algo novo, de trazer novidade, deste modo, para Assy, “assim como a ação anuncia o milagre da natalidade na vita activa, a virtude criadora da vontade anuncia o milagre da natalidade na vita contemplativa.” (p. 130), isso para poder afirmar que “nossa faculdade de querer nos impele, de certa forma, à ação” (p. 131).

A vontade, nessa compreensão, é o fundamento não-político da liberdade política e “adquire uma dimensão ética mais direta que a atividade de pensar” (p.132), pois dela decorre o que Bethânia chama de uma ética da responsabilidade, ou seja, um passo à frente da ética da impotência. Isso, claro, não significa que qualquer prescrição normativa provenha da vontade, a negatividade da ética compreendida pelo pensar não dá espaço para a criação de princípios morais, mas, agora, por meio do querer, é capaz de legar à ação a dimensão da natalidade. A promessa, junto ao amor mundi, são, a partir disso, vistos como aspectos que atrelam a vontade à responsabilidade pessoal, pois, segundo Arendt, enquanto o Pensar se relaciona com o passado sob a forma de memória, o Querer se relaciona com o futuro. A promessa é a maneira pela qual Arendt vê a possibilidade de se comprometer com o mundo e com o outro. Junto a isso, a Vontade também diz respeito ao modo pelo qual cada um se individua, isto é, a singularização de cada um de nós, a decisão de quem eu decido ser e que responsabilidades eu assumo ao mostrar-me.

Porém, a formação da doxa não é efetivamente executada pela faculdade da vontade, assim como permanece incompleta através do pensar, visto não ser ainda uma doxa capaz de expor um posicionamento positivo por meio do pensamento, mas apenas negativo, a ética da impotência, tendo apenas uma parcela de positividade proveniente do Querer efetuado pela vontade, que nos legou o princípio de uma ética da responsabilidade. A hipótese anunciada já na introdução por Bethânia é a de que “as atividades do espírito […] não conduzem a juízos determinantes, à boa vontade racional, a acordos consensuais, ou a meras decisões individuais autônomas” (p.xxxiii), sendo, por isso, necessária uma interpretação que ultrapasse tais questões em vistas de uma “ética de responsabilidade pessoal […] ligada à visibilidade de nossas ações e opiniões articuladas publicamente, que, por sua vez, estão associadas ao cultivo de um éthos público”, o que nos leva a tentar entender “como o sujeito se singulariza na comunidade política.” (p.xxxiv). Tais pontos, embora apareçam tangencialmente nas demais atividades do espírito, só encontram morada hermenêutica na faculdade de julgar.

Em seu último capítulo, Bethânia tem como preocupação chegar a uma ética da responsabilidade baseada em figuras que por vezes são postas como excludentes: o ator e o espectador. A teoria do juízo arendtiana é aqui compreendida como a possibilidade de não se recair na normatividade ou no puro agonismo, leituras feitas por Benhabib e Villa. Cabe tanto ao espectador quanto ao ator a capacidade da mentalidade alargada, o ser capaz de pensar simulando os olhares de outros, assim como a capacidade de pensar por si mesmo. É assim que certas noções de Arendt ganham destaque aqui:

o prazer desinteressado, […] a mentalidade alargada, o sensus communis como o cultivo de sentimento público, a estreita ligação entre aletheia e doxa, a validade exemplar […] e a questão da companhia”, isto é, o “com quem desejo ou suportaria viver junto? (p. 145).

Em diálogo constante com a terceira crítica kantiana, Assy, então, esmiúça a teoria do gosto com a intenção de superar o egoísmo a fim de “conduzir-nos a uma dimensão afetiva comum” para “elucidar a pluralidade de nossos juízos” (p. 149), os quais, assim, liberados do mero interesse privado, podem se dar através de um interesse desinteressado. Tal tomada de postura possibilita a cobrança aos outros desta mesma maneira de julgar, não, com isso, buscando uma validade universal, mas, sim, geral. Trata-se de julgar “o mundo em sua visibilidade e na comunalidade dos afetos.” (p. 157) sem com isso pretender se chegar a qualquer juízo consensual universal. O gosto não se reduz a uma mera preferência subjetiva, mas provém de uma sensação de prazer acerca de algo que aparece aos demais e que será por eles alvo de aprovação ou desaprovação. Dada a possibilidade de ser julgado pelos demais que compartilham um mesmo espaço de aparência, Assy sublinha como critério da (des)aprovação tanto a comunicabilidade como a publicidade.

O interessante aspecto que aparece neste ponto do texto é o de incutir, ainda que talvez não propositalmente, uma caraterística do pensamento hermenêutico de Arendt: a admiração que se segue à aprovação de um juízo de gosto expresso é capaz de realizar um ajuste à vida social; esse ajustar-se se vincula não ao conhecimento de propriedades do que é admirado, nem à publicidade fenomenicamente cognoscível, mas porque o acesso a um senso público faz aparecer o meio intersubjetivo no qual a doxa se forma, como diz Bethânia: O prazer ou desprazer que um juízo reflexivo evoca não se arbitra meramente pela sensação imediata de satisfação ou insatisfação, e sim à medida que aprovamos ou desaprovamos nosso deleite, à medida que nosso prazer/desprazer se apropria do interesse público. (p. 165).

O que é relevante aqui é o significado/sentido que provém do prazer/desprazer, não de uma cognoscibilidade objetal, e embora o conhecimento empírico seja também mediado pela pluralidade, é o sentido de como se é afetado por algo que tem relevância para a comunidade ético-política, daí a importância do sensus communis, o sentido intersubjetivo que nos auxilia a nos ajustar à vida compartilhada.

Por fim, gostaria de comentar a fenomenologia da exemplaridade, tal como nomeada por Assy e que serve como fechamento de sua interpretação, ao acrescentar a denominação de a ética arendtiana ser uma ética da experiência. Após a breve passagem de uma ética da impotência tendo em vista a ética da responsabilidade, por em relevo a experiência e o papel do juízo – após se sublinhar os papeis do pensar e do querer – para a formação da doxa serve como modo de dotar a ética aqui, sem cair em prescrições ou normas, de uma dimensão positiva.

Na escolha de “com quem gostaria de viver”, o outro critério a ser acrescido à validade geral é o da validade exemplar e seu atrelamento às experiências. Junto à mentalidade alargada em que torno presente para mim as considerações dos outros, penso neles sobre o signo da exemplaridade a partir das preferências públicas, isto é, junto ao exemplo se soma o interesse desinteressado, o interesse pelo bem comum, a preocupação pelo mundo: o amor mundi.

É assim que, para Bethânia Assy, em Arendt se é capaz de desenvolver uma teoria ética que é chamada pela intérprete de uma teoria crítica do juízo baseada em um juízo político dos afetos comuns. É este comprazimento com o mundo comum e o ajuste pelo sensus communis à pluralidade humana que Bethânia defende uma ética da responsabilidade que se vincula, pelos afetos comuns, a um sentimento de justiça ou injustiça, e não há associação massiva a eventos que vão de encontro à pluralidade e à dignidade humana que libere o homem de sua responsabilidade pessoal. A experiência nos propicia pensar, julgar e direcionar nossa vontade para a ação. A teoria ética de Arendt ganha um ótimo ponto de apoio e discussão com esta obra de Bethânia Assy.

Notas

1 Tal estratégia visa preparar o terreno para os três últimos capítulos, os quais seguem a estrutura na qual A vida do espírito deveria ter sido escrita caso Arendt não tivesse falecido: o primeiro versa sobre o pensar, o segundo, sobre o querer, e o terceiro, sobre o julgar.

2 Bethânia, todavia, dá enfoque aqui a uma dimensão mais epistemológica do que fenomenológica. Tal compreensão não parece ser condizente com o texto de Arendt, sobretudo porque parece não dar espaço para uma das principais distinções conceituais de A vida do espírito e que perpassa toda a obra arendtiana: a diferença entre Pensar e Conhecer que serve como base para o desmantelamento das falácias metafísicas.

Reduzir tais aspectos a uma epistemologia parece tender para a indistinção entre a cognição e o pensamento, levando a uma perda não apenas a nível conceitual e filosófico, mas, sobretudo, às características éticas e políticas.

Lucas Barreto Dias – Doutorando do Programa em Pós-graduação da UFMG. Professor da Faculdade Católica Rainha do Sertão. E-mail: nog_ibd@hotmail.com

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O culto moderno dos monumentos: a sua essência e a sua origem – RIEGL (PL)

A obra intitulada como O culto moderno dos monumentos: a sua essência e a sua origem foi redigida por Alois Riegl, historiador da arte vienense, designado como presidente da Comissão de Monumentos Históricos da Áustria em 1902. Esta produção trata da basicamente do valor da arte em diversas perspectivas. O livro possui 85 páginas e está dividido em capítulos da seguinte forma: 1) Os valores dos monumentos e sua evolução histórica; 2) A relação dos valores de memória com culto dos monumentos; e, 3) A relação dos valores de atualidade com o culto dos monumentos. Leia Mais

Ensaios de um percurso: estudos e pesquisas de teatro | Esther Priszkulnik

A editora Perspectiva contribui, já há algumas décadas, de forma decisiva para os debates sobre a arte teatral no país. Não é diferente com o livro Ensaios de um percurso: estudos e pesquisas de teatro, lançado em junho de 2013. Nessa obra, a pesquisadora Esther Priszkulnik, falecida em 2009, lança luz e estabelece um diálogo entre três universos teatrais distintos: o da Rússia do início do século XX, o do mundo judaico e o do Brasil dos imigrantes e do modernismo. Baseado em textos apresentados no curso de Pós-graduação do Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP) e na dissertação de mestrado da autora, defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, o livro é organizado por J. Guinsburg e Luiz Henrique Soares e dividido em três partes: Ensaios, Projeto de uma encenação e O teatro ídiche em São Paulo. Leia Mais

Norberto Bobbio – Trajetória e obra | Celso Lafer

Tanto do ponto de vista pessoal quanto do ponto de vista intelectual, é possível que não haja nome mais autorizado no Brasil para escrever sobre o filósofo italiano Norberto Bobbio quanto o jurista Celso Lafer, que conhece a obra do grande filósofo italiano como pouquíssimos no Brasil e cujos pontos de interseção com o mesmo não são pouco numerosos. Como o próprio autor lembra no texto de apresentação a Norberto Bobbio – Trajetória e obra (2013), Lafer conhecera Bobbio pessoalmente quando da vinda deste ao Brasil, em 1982, oportunidade em que o mesmo palestrou na UnB e na USP, além de oferecer algumas entrevistas a jornais do país. Desde então, uma singela amizade entre ambos permitiu que Lafer pudesse participar de eventos acadêmico-científicos ao lado de Bobbio, visitar seu apartamento, trocar cartas, conhecer seu maior discípulo Michelangelo Bovero (que escreve na contracapa da obra), além de – o que considero a honra maior – ter seu grande livro A reconstrução dos direitos humanos (1988), sobre o pensamento de Hannah Arendt, citado na introdução de L’età dei diritti (1990), uma das últimas grandes obras bobbianas.

A obra que aqui resenhamos colige a grande produção de textos esparsos escritos por Lafer sobre a pessoa e, especialmente, o pensamento de Bobbio entre 1980 e 2011, dividido em cinco partes, dedicadas aos temas “perfil”, “relações internacionais”, “direitos humanos”, “teoria jurídica” e “teoria política”. Uma característica marcante e preciosa da obra são as pequenas comparações entre o pensamento bobbiano e o pensamento arendtiano que são oferecidas ao longo de todos os textos. Como Bobbio (positivista) e Arendt (anti-positivista) se ignoraram intelectualmente em praticamente toda a sua produção intelectual, tal comparação soa como uma leitura especialmente (ou talvez mesmo exclusivamente) laferiana do pensamento de Bobbio; em outras palavras, um encontro que apenas Lafer poderia, pelo menos entre nós, proporcionar. Leia Mais

A estrutura das revoluções científicas – KUHN (ARF)

KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2009. Resenha deFAGHERAZZI, Onorato Jonas. Argumentos – Revista de Filosofia, n.7, p.141-146, 2012.

Acesso permitido apenas pela publicação original

O Itinerário de Benjamin de Tudela

Traduzido por J. Guinsburg (2017), O Itinerário de Benjamin de Tudela, faz parte do gênero conhecido como literatura de viagens. Em geral é a própria experiência que motiva o ato da escrita. Este relato oferece aos leitores informações essenciais sobre cidades, costumes, personagens e especialmente sobre a quantidade de pessoas que faziam parte da comunidade judaica, em cada região visitada. “Em muitas cidades ele menciona os líderes e professores pelo nome, servido assim amiúde para preservar a sua memória” (GUINSBURG, 2017). O texto foi escrito originalmente em hebraico, sendo posteriormente traduzido ao latim. É preciso ter em mente que a rota foi empreendida entre a segunda e terceira cruzadas, no momento em que Jerusalém ainda estava em posse da cristandade. A cidade santa esteve nas mãos dos cruzados de 1099 a 1187, sendo depois recuperada aos muçulmanos sob a liderança de Saladino. Partindo de Tudela (1160), sua cidade natal, Benjamin inicialmente visitou Saragoça e Barcelona. Após percorrer algumas cidades da Hispania, esteve no reino da França. Nesta região destacou as cidades de Montpellier, Lunel e Marselha; “que é uma cidade de opulentos e doutos cidadãos, possuindo duas congregações com cerca de 300 judeus… eles formam uma grande academia de homens eruditos” (GUINSBURG, 2017, p. 46). O destaque à erudição de seu povo é fator recorrente na narrativa. Leia Mais

Dicionário Crítico Câmara Cascudo | Marcos Silva

Desde o primeiro momento em que me deparei com o Dicionário Crítico Câmara Cascudo e, depois, à medida que o lia – ou melhor, saboreava cada página – uma pergunta se impunha: que outro escritor brasileiro poderia ser comparado a Câmara Cascudo, seja pelo volume de livros publicados, seja pela impressionante contribuição que deu aos mais diferentes campos do conhecimento? Que outro mereceria a organização de um dicionário para reunir e explicar sua produção intelectual? E, apesar de alguns nomes me ocorrerem, nenhum parecia superar o norte-rio-grandense, tal o inegável impacto de seu trabalho para a cultura brasileira. Como poucos, Cascudo introduziu no cenário nacional o testemunho de uma experiência sertaneja e a cosmovisão de um mundo nordestino, até então muito pouco conhecido e geralmente ignorado pela elite intelectual do país.

A vasta bibliografia de Câmara Cascudo (1898-1986) contabiliza cerca de uma centena de obras e se encontra espalhada pelos campos da história, da etnografia, da antropologia, da literatura, da crítica literária, da cultura popular, da religião, da geografia e, principalmente, do folclore. Como se não bastasse, há ainda um importante detalhe: seja qual for o tema estudado, o texto cascudiano prima por ser também literário. O escritor norte-rio-grandense desenvolveu ao longo de sua produtiva vida intelectual um estilo muito próprio, cujo ponto alto é justamente uma especial habilidade no trato com a linguagem, que resulta sempre em um texto sedutor, leve e singular, pontuado de imagens e de expressões poéticas que encantam o leitor e aliviam com muita sensibilidade a aridez da informação documental. Leia Mais

MARKWALD Ricardo (Org), Obstáculos ao crescimento das exportações: Sugestões para uma Política Comercial (T), IPRI (E), ITABORAHY Felipe B. (Res), Meridiano (Mrr), Exportações, Política Comercial | Celso Lafer

No livro A Identidade Internacional do Brasil e a Política Externa Brasileira: passado presente e futuro Celso Lafer coloca que, em análise da política externa, a visão do país sobre o mundo em que vive e seu funcionamento deve ser considerada o ponto de partida do analista para que este compreenda com maior nitidez seu objeto de estudo. O autor discute no capítulo primeiro o significado de identidade internacional em um mundo globalizado. Grosso modo, a identidade é trabalhada em termos coletivos e lastreada na idéia de um bem ou interesse comum. Além disso, a identidade (inter)nacional de um país tomaria forma e daria vida ao sistema internacional, no contato e na interação com os outros Estados. Sendo assim, ele argumenta que o termo identidade pode ser entendido como “um conjunto mais ou menos ordenado de predicados por meio dos quais se responde à pergunta: quem sois?” (p.15).

Consoante Lafer, a lógica da identidade que assinala uma especificidade para cada um, diferenciando um Estado do outro, interage no sistema internacional com a lógica da globalização que dilui a fronteira entre o interno e o externo; reescrevendo em novos termos o jogo dialético de implicação mútua entre a “História do eu” e a “História do outro”. O autor reconhece que uma multiciplicidade de atores integra o campo das interações no plano internacional. Ele admite, numa alusão a Aron, que as relações internacionais contemporâneas já não se fazem apenas com “diplomatas e soldados” – símbolos da soberania – como preconiza a visão realista. Não obstante, como diplomata que é, acredita que o Estado e as nações ainda mantêm papel importante na dinâmica internacional. Pois, argumenta que a legitimação dos governos apoia-se cada vez mais na capacidade destes de em atender as necessidades e aspirações dos povos que representam, tanto na instancia interna como na externa. Destarte, a política externa nada mais é do que uma política pública orientada para “traduzir necessidades internas em possibilidades externas para ampliar o poder de controle da sociedade sobre seu destino” (p.16). Leia Mais

Em guarda contra o “perigo vermelho”: O anticomunismo no Brasil (1917-1964) | Rodrigo Patto Sá Motta

Os trabalhos que discutem com propriedade o anticomunismo no Brasil, em sua maioria, são recentes. A dificuldade de acesso às fontes primárias e a preferência por estudos ligados aos movimentos de esquerda foram os maiores obstáculos para o crescimento desta vertente de pesquisa. No Brasil, ainda não existe uma historiografia consolidada sobre o ideário anticomunista, mas existem trabalhos interessantes e importantes para os historiadores que se interessam pelo tema – como, por exemplo, o livro de Rodrigo Patto Sá Motta. O autor procura estudar o anticomunismo entre 1917 e 1964, concentrando-se nos períodos de 1935-1937 e 1961-1964, alegando haver neles uma maior intensidade das manifestações anticomunistas.

Em relação à década de 1930, o autor identifica o manifesto escrito por Luiz Carlos Prestes – em maio de 1930, onde declarava sua adesão ao marxismo-leninismo e à causa do proletariado – como uma das primeiras influências de relevo no aumento do temor ao comunismo e, simultaneamente, dos sentimentos anticomunistas. Este aumento pode ser constatado, segundo ele, pela considerável expansão na publicação de livros anticomunistas. Além disto, o surgimento de várias greves, em 1934, em algumas capitais brasileiras, contribuiu para a criação de instrumentos repressivos legais, que se tornaram úteis ao governo na medida em que a esquerda ampliava a sua atuação. Entre 1930 e 1935, tais sentimentos estiveram ligados à percepção de que era necessária uma ofensiva em defesa da ordem, intensificada sobremaneira pela tentativa revolucionária comandada pelo PCB, em 1935, e pela Guerra Civil Espanhola, em 1936. Leia Mais

A identidade internacional do Brasil e a política externa brasileira: passado, presente e futuro | Celso Lafer

“… um balanço de minhas pesquisas e reflexões de muitos anos sobre a política externa brasileira, adensado pela minha experiência diplomática na década de 1990.” Assim define Celso Lafer seu mais recente livro, intitulado “A identidade internacional do Brasil e a política externa brasileira: passado, presente e futuro”, que se junta, assim, a sua profícua produção intelectual.

Com efeito, além de conhecido pelas importantes funções que tem exercido – foi Ministro das Relações Exteriores em 1992, chefe da Missão Permanente do Brasil junto às Nações Unidas e à Organização Mundial do Comércio de 1995 a 1998, Ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio em 1999, e chefe do Itamaraty novamente a partir de janeiro de 2001 –, Celso Lafer é autor de estudos importantes nas áreas de Ciência Política e Direito. Dentre eles, para nos limitarmos a poucas referências, destaquemos sua tese de doutoramento The Planning Process and the Political System in Brazil: a Study of Kubitschek’s Target Plan, 1956-1961 (1970), passagem obrigatória para quem estuda a implementação da política desenvolvimentista do período JK, e Uma interpretação do sistema das relações internacionais do Brasil (Revista Brasileira de Política Internacional, 1967), análise sistêmica que enfoca as articulações entre a esfera nacional e a política exterior do Brasil com o nível global e regional, até os anos 1960. E os mais recentes “A OMC e a regulamentação do comércio internacional: uma visão brasileira” (1998) e “Comércio, desarmamento, direitos humanosreflexões sobre uma experiência diplomática” (1999). Além disso, num tipo de exercício em que poucos se sobressaem, Celso Lafer se destaca: quantos de nós já não tivemos o prazer de abrir um livro e nos depararmos com seus prefácios, guias seguros e argutos de leitura, que muito enriquecem os trabalhos daqueles que tiveram a sorte de poder contar com esse precioso convite à leitura de seus estudos. Lembremos, dentre tantos, os primorosos prefácios aos livros O governo Kubitschekdesenvolvimento econômico e estabilidade política, 1956-1961 (1976), de Maria Victória Benevides, e A legitimidade e outras questões internacionais (1999), de Gelson Fonseca Júnior.

A identidade internacional do Brasil e a política externa brasileira é uma obra sintética que abarca diversos aspectos da História do Brasil, ainda que se proponha mais especificamente “buscar e apreender as tendências inerentes à `duração longa’ da diplomacia brasileira”. Nela está muito presente a preocupação do autor com o sentido último e verdadeiro da construção da nação brasileira. É a leitura de Lafer sobre a especificidade brasileira, valendo-se de autores diversos que se debruçaram sobre a mesma reflexão, de um ponto de vista mais geral, como Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Gilberto Freyre, ou de um prisma mais pontual.

Entendendo como tarefa da política externa “traduzir necessidades internas em possibilidades externas para ampliar o poder de controle da sociedade sobre o seu destino”, Lafer começa seu estudo chamando a atenção para a crescente diluição entre as esferas interna e externa, do “nós” e do “outro”, que têm mudado a dinâmica das relações internacionais e a própria definição do campo de atuação da política externa e do que poderíamos chamar de seus insumos. Chama também a atenção para a importância do Itamaraty como depositário da memória da diplomacia do Brasil, conferindo à atuação diplomática coerência e continuidade, e para “fatores de persistência” que explicariam em larga medida a identidade internacional do Brasil: “o dado geográfico da América do Sul; a escala continental; o relacionamento com muitos países vizinhos; a unidade lingüística; a menor proximidade, desde a independência em 1822, dos focos de tensão presentes no centro do cenário internacional; o tema da estratificação mundial e o desafio do desenvolvimento”.

Tendo essas definições e argumentos maiores em mente, o capítulo “O Brasil como um país de escala continental …” enfoca a consolidação do extenso espaço territorial nacional, componente identitário bastante valorizado pelo autor. De fato, a busca da construção da escala continental do Brasil é considerada como “um dos sentidos da história do Brasil” e o “primeiro vetor da política externa brasileira”, que prevalece no período monárquico e adentra o período republicano, indo até o momento em que Rio Branco dirige a diplomacia brasileira (1902-1912). Rio Branco, “com virtù e fortuna“, equaciona as questões fronteiriças pendentes no começo do século XX e terá papel fundamental na fixação de padrões da atuação diplomática brasileira, que se caracteriza pelo realismo, ou pragmatismo, temperado pelo pacifismo e pelo jurisdicismo. Esse traço da diplomacia encontrará sua expressão maior no relacionamento com os vizinhos da América do Sul, tema do capítulo “O contexto da vizinhança…”.

O contraponto ao eixo de simetria das relações do Brasil com os países sul-americanos, em que vigora uma relativa igualdade, é a relação assimétrica com as grandes potências mundiais, sobretudo com os Estados Unidos (Rubens Ricupero). O capítulo “O Brasil no eixo assimétrico do sistema internacional …” trata dessa questão, que é outra condicionante do tipo de inserção internacional do País. Potência média, o Brasil tem, assim, apostado desde o começo do século XX – pensemos aqui em Rui Barbosa em Haia – na via multilateral como compensadora das assimetrias do sistema internacional. Nesse âmbito, sem dúvida alguma o tema do desenvolvimento é mais um elemento marcante da política externa brasileira, que teve, inclusive, um papel bastante ativo na inserção da ideologia do desenvolvimento no sistema da ONU. Esses são assuntos tratados no capítulo “A busca do desenvolvimento do espaço nacional: o nacionalismo de fins e a diplomacia da inserção controlada no mundo”.

A partir desses traços de identidade, qual política externa para o século XXI? Celso Lafer busca responder à questão no capítulo “O desafio do século XXI …”, último capítulo do livro. A resposta passa pela continuidade da disposição negociadora do Brasil, o aproveitamento dos foros multilaterais e a “internalização” do mundo, já que “mudanças significativas do funcionamento do mundo provocam e exigem de um país uma mudança da visão de seu papel, o que pode alterar significativamente sua identidade internacional”.

Enfim, a reflexão de Celso Lafer, lastreada que está em sua trajetória intelectual e de homem de Estado, busca a “coerência profunda” de nossa política externa, não se preocupando com as “incoerências conjunturais”. Ao leitor, no entanto, resta a impressão de que a concepção histórica que permeia a obra se enriqueceria com a contradição, a visão crítica; a tentativa de compreender por que, apesar de sua coerência, a política externa brasileira não conseguiu responder adequadamente ao interesse nacional prioritário, e imperativo, que é o desenvolvimento. Com efeito, parece possível combinar as palavras de Joaquim Nabuco, citado por Lafer como leitura norteadora – “O Brasil teve consciência do seu tamanho e tem sido governado por um sentimento do seu futuro” –, com a idéia de pluralidade. Transpor os mitos e encarar a história como campo de possibilidades.


Resenhista

Norma Breda dos Santos


Referências desta Resenha

LAFER, Celso. A identidade internacional do Brasil e a política externa brasileira: passado, presente e futuro. São Paulo: Perspectiva, 2001. Resenha de: SANTOS, Norma Breda dos. Revista Brasileira de Política Internacional, v.45, n.1, 2002. Acessar publicação original [DR]

Como se faz uma tese – ECO (RBHE)

ECO, Umberto. Como se faz uma tese. Tradução de Gilson C. C. Souza. São Paulo: Perspectiva, 1983. Resenha de: AQUINO, Maria Aparecida. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.5, n.7, n.15, p.205-210, set.1986/fev.1987.

Maria Aparecida Aquino – Professora da Escola Prof. Gabriel Ortiz, São Paulo.

Acesso apenas pelo link original

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