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Verités et Légendes | J.-L. Brunaux
Os gauleses aparecem em diversos livros sobre Arqueologia e História Europeia Ocidental. Eles fazem parte da História da França e também nos referimos a eles quando falamos sobre celtas. Foram populações recorrentemente selecionadas para a construção do nacionalismo francês, como fez Napoleão III, em 1865, ao projetar seu rosto em uma estátua de bronze em Alésia. Ele também justificou as ações coloniais francesas (como na Indochina e no norte da África), afirmando que a dominação romana aos gauleses teria levado a civilização e a paz a essas populações. Além disso, podemos citar durante a Segunda Guerra Mundial, o caso de Marechal Pétain, que também se associou à figura de Vercingetórix, argumentando que se sacrificou pelo país, dentre diversos outros casos.
No geral, os pesquisadores dividem-se entre os que são a favor do uso das nomenclaturas Gália e gauleses, e os que são contra. Christian Goudineau é um nome de destaque dentro de uma visão mais cética. O autor apresenta esta visão em sua obra Par Toutatis: que reste-t-il de la Gaule? (2002a), argumentando que as populações locais da França não chamavam a si próprias de gaulesas. Além disso, o que chamamos de Gália seria apenas uma concepção geográfica criada por César durante as Guerras da Gália, até mesmo pela consideração de divisões territoriais tão rígidas. E também porque o que César retrata é apenas o território que ele conquistou (cf. GOUDINEAU, 2002b, p. 37).
Enquanto isso, Jean-Louis Brunaux pertence ao grupo que adota essa nomenclatura, junto a diversos outros pesquisadores de pré e proto-história europeia da França. Podemos citar a obra de Py (1993); Les gaulois du Midi: de la fin de l’Âge de Bronze à la conquête romaine; Dedet (2018), Coutumes Funéraires en Gaule du Sud Durant la Protohistoire (IXe-IIe siècle av. J.-C.); Férnandez-Götz (2014), Identity and Power: The Transformation of Iron Age Societies in Northeast Gaul; Dessenne (2011), Celtes et Gaulois: deux chemins vers l’au-delà; dentre diversas outras obras. Esta se trata da abordagem mais tradicional e recorrente até hoje.
Podemos observar reflexos da Arqueologia Social francesa nesse livro, tendo em vista que o foco da obra é decifrar quem são as populações chamadas de gaulesas. Apesar disso, o autor propõe teorizações próprias, como veremos, e não uma descrição da cultura material, como encontramos muitas vezes na produção arqueológica do país.
Brunaux já publicou diversos livros sobre os gauleses voltados para acadêmicos, como Les religions gauloises (2016), Guerre et religion en Gaule: essai d’anthropologie celtique (2004), Les Gaulois (2005), Les Druides (2006). A grande diferença deste livro é a proposta de responder quem são os gauleses a partir da colocação de perguntas, que muitas vezes aparecem correntemente no imaginário popular sobre as populações da Idade do Ferro da França (VIII-I a.C.). Assim, o autor busca desmitificar lendas, mal-entendidos e apontar que evidências concretas existem. Dentre elas, encontram-se: se os gauleses são os ancestrais dos franceses (“Les Gaulois sont-ils les ancêtres des Français?”), se os chamados gauleses possuíam bigodes e cabelos grandes (“Les Gaulois étaint-ils moustachus et chevelus?”) e se eles se embebedavam em banquetes gigantescos (“S’enivraient-ils dans des banquets gargantuesques?”). Estas questões também se tratam de assuntos que aparecem de forma corrente na documentação textual feita por gregos e romanos.
“Les Gaulois: Vérités et legendes” possui, além de uma introdução, vinte e nove capítulos. A quantidade deles deve-se justamente ao fato de que cada capítulo propõe a resposta de uma questão, cuja resolução é feita, na grande maioria vezes, a partir do cruzamento da documentação arqueológica e textual. Consideramos este um livro introdutório, tendo em vista que responde a questões relativamente básicas sobre as populações da Idade do Ferro da França, que seria também compreendido por pessoas que não possuem informações anteriores sobre o assunto.
Dentre as perguntas colocadas, destacaremos as que consideramos mais essenciais. Logo na introdução, Brunaux defende o uso do termo gauleses para todas as populações da Idade do Ferro da França (BRUNAUX, 2018, p. 11). Essa ideia também é reforçada no segundo capítulo, “Sont-ils gaulois ou celtes?”.
No primeiro capítulo, “Marseille-la-Grecque a-t-elle adouci la civilisation gauloise?”, Brunaux fala sobre a fundação da colônia grega de Massália no sul da França, e discorre sobre as consequências da interação entre gregos e as populações locais. Já no segundo capítulo, “Sont-ils gaulois ou celtes?”, apresenta sua interpretação sobre quem são os celtas e os gauleses. Ele assinala que a concepção de que, nos séculos XIX e XX, os celtas compunham uma mesma raça já foi totalmente superada (BRUNAUX, 2018, p. 29). Segundo seu ponto de vista, a única coisa em comum entre os celtas seria uma:
[…] estreita relação que eles possuíam com os gregos, os foceus de Marselha particularmente. Todos tinham ligações diretas ou indiretas com esses comerciantes. Ou organizavam o tráfego na Gália para eles: cuidavam do transporte, da descoberta de novos mercados. Ou produziam para atender a sua demanda: extraíam minérios, refinavam metais, fabricavam produtos semiacabados e exportavam parte de sua produção agrícola” (BRUNAUX, 2018, p. 30).Brunaux considera também que os celtas eram populações confederadas vinculadas a interesses econômicos (BRUNAUX, 2018, p. 31). De maneira que “era então provavelmente o nome genérico que esses aliados se davam” (BRUNAUX, 2018, p. 31). Segundo o autor, as alianças que eles fizeram indicariam duas fases: uma diplomática com os foceus (para fluxo de mercadoria e proteção) que se converteu também em política (criação de grandes vias por esses territórios), e outra econômica (estando o poder dessas populações conectado aos seus contatos). Ademais, Brunaux defende que os celtas seriam uma parte dos gauleses, que ele acredita que formem um grupo mais amplo, ou seja, todas as populações que residiam no território chamado de Gália (BRUNAUX, 2018, p. 34). Menciona-se que os celtas se helenizaram “superficialmente” (BRUNAUX, 2018, p. 30). Ele não considera este termo como uma perda total do que ele chama de “personalidade” das populações locais.
O capítulo três intitula-se “Les invasions gauloises étaint-elles barbares?”. Nele, o autor se propõe a desconstruir a ideia de que essas populações seriam invasores bárbaros. Ele apresenta episódios de incursões violentas relatadas pela documentação textual, mas também a ideia de uma imigração e da criação de colônias, vinculada a uma movimentação de longo prazo, nos quais os já residentes abririam o caminho para que mais pessoas chegassem (cf. BRUNAUX, 2018, p. 38-39 e 45). Igualmente, defende que a ideia de invasões célticas, como uma movimentação populacional em massa, nunca aconteceu. Como o autor aborda, sabemos que a maior parte da população local da França era composta por agricultores, ligados à terra, e que o grupo que mais se movimentaria nessa região eram os guerreiros que atuavam como mercenários (BRUNAUX, 2018, p. 43).
Dentre esses capítulos, acreditamos igualmente que o nono merece destaque. Tendo em vista que, ao lançar a questão de se a Gália seria uma invenção de César, Brunaux defende sua ideia de que as populações locais do sul da França teriam consciência dos limites do território chamado de Gália (BRUNAUX, 2018, pp. 104- 105).
Do mesmo modo, consideramos relevante a problematização da ideia de que os chamados gauleses seriam os ancestrais dos franceses (capítulo 10), tendo em vista que essa se trata de uma seleção parcial da História da França para fins nacionalistas, sendo uma construção.
O capítulo vinte e quatro contribui, desmitificando a ideia de que a França na Idade do Ferro seria coberta de florestas, e que eles seriam bons selvagens, vivendo harmonicamente na natureza. Como Brunaux (2018, p. 248) aponta, o norte da França possui mais florestas atualmente do que na Idade do Ferro, e era bastante habitada, demandando grande quantidade de terras para agricultura.
Podemos dividir o restante da obra por temas. Da forma como os capítulos 7 e 12 abordam a aparência dos chamados gauleses, que como mostra o autor, não seriam gigantes e louros, como perdura no imaginário popular (BRUNAUX, 2018, p. 87-88).
Outra temática levantada sobre essas populações são suas inovações e tecnologias. Isso aparece nos capítulos 14, 15, 16 e 17. Assim, ele menciona como essas populações criaram a colheitadeira, arado, a cota de malha (coletes de pequenos anéis para proteção dos cavaleiros), o esmalte vermelho (para substituir o coral), a colocação de uma camada de estanho para recobrir vasos e também inovações na botânica. Também reproduziram novas espécies de animais a partir do cruzamento com animais importados (BRUNAUX, 2018, p. 171). Do mesmo modo, são mencionados como ótimos artesãos com metal e madeira. Essas informações são essenciais para a desconstrução da ideia dessas populações do sul da França como bárbaros.
Alguns aspectos importantes dessas sociedades também são mencionados nos capítulos dezoito e vinte e cinco, como o fato de que algumas mulheres possuíam um lugar privilegiado e de destaque nessas sociedades. Brunaux também retoma assuntos bastante recorrentes sobre os chamados gauleses, como os serviços mercenários (capítulo 6), banquetes (capítulo 13), os druidas (capítulos 19 e 20), Vercingetórix (capítulo 11), a conquista da Gália (capítulo 26), organização social (capítulo 25), “arte” (capítulo 29), dentre tantos outros.
A obra contribui para o assunto, pois recorrentemente contesta a documentação clássica (textos gregos e romanos), até mesmo pelo cruzamento com a Arqueologia, apesar de nem sempre uma problematização ser totalmente alçada. Um exemplo disso é que o autor concorda com a ideia de Pompeu Trogo, de que “os foceus suavizaram a barbárie dos Gauleses, e lhes ensinaram uma vida mais doce” (BRUNAUX, 2018, p. 22-23), e diz que Massália era a “principal inspiradora da civilização gaulesa” (BRUNAUX, 2018, p. 24). Dessa forma, podemos observar que apesar dos avanços apontados na obra para que a visão de barbárie dessas populações seja desmitificada, o autor não questiona completamente o discurso colonial de que os gregos levariam a civilização para a barbárie. Podemos dizer o mesmo quanto à consideração de um papel ativo das populações locais nas relações com os gregos, tendo em vista a insistência em chamar as relações interculturais locais de helenização, escolhendo uma palavra que continua a enfatizar apenas um lado desse contato, ao invés de buscar alguma mais precisa e representativa, denotando claramente uma troca entre ambas as partes.
Além disso, apesar do perigo de generalização apresentado pela obra, tendo em conta seu grande escopo, que não leva em consideração até mesmo as diversidades regionais, esta é uma boa obra introdutória e atualizada sobre o tema. Inclusive porque poderia ser lida e compreendida por pessoas sem conhecimento prévio sobre o tópico, e também pela revisão de pontos clássicos.
Por fim, consideramos interessante a forma como o autor constrói a sua narrativa sobre quem eram os chamados gauleses, a partir de questões apresentadas em capítulos curtos, facilitando a leitura, enquanto nesse trajeto o pesquisador introduz o leitor a questões mais amplas, como religiosidade, contexto funerário, organização social, guerra, dentre outros. E assim, juntando as respostas dessas diversas questões, o autor nos permite a reunião da sua imagem e interpretação acerca de quem eram essas populações da Idade do Ferro da França.
Referências
BRUNAUX, Jean-Louis. (2016) Les religions gauloises. Paris: Biblis.
BRUNAUX, Jean-Louis. (2006) Les druides. Des philosophes chez les Barbares. Lonrai: Éditions du Seuil.
BRUNAUX, Jean-Louis. (2004) Guerre et religion en Gaule: essai d’anthropologie celtique. Paris: Errance.
BRUNAUX, Jean-Louis. (2005) Les Gaulois. Paris: Société d’édition Les Belles Lettres.
DESSENE, Sophie (coord.). (2011) Celtes et Gaulois: deux chemins vers l’au-delà. Soissons: Musée de Soissons.
FERNÁNDEZ-GÖTZ, Manuel. (2014) Identity and Power: The Transformation of Iron Age Societies in Northeast Gaul. Amsterdam: Amsterdam University Press.
GOUDINEAU, Christian. (2002a) Par Toutatis: que reste-t-il de la Gaule? Paris: Éditions Seul.
GOUDINEAU, Christian. (2002b) “Les Gaulois: récit d’une redécouverte.” Raison présente, n. 142, p. 31-38.
Thaís dos Santos – Mestre em História Social (PPGH/UFF/NEREIDA) ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3575-8300 E-mail: thaisrsantos@hotmail.com
BRUNAUX, J.-L. Les Gaulois. Verités et Légendes. Paris: Perrin, 2018. Resenha de: SANTOS, Thaís dos. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.20, n.1, p. 342- 348, 2020. Acessar publicação original [DR]
Regards sur la démocratie athénienne – MOSSÉ (Tempo)
MOSSÉ, Claude. Regards sur la démocratie athénienne. Paris: Perrin, 2013. 234p. Resenha de: TRABULSI, Dabdab José Antônio. História e historiografia da democracia ateniense. Tempo v.22 no.41 Niterói set./dez. 2016.
Claude Mossé sempre demonstrou grande interesse pela política ateniense na Antiguidade, desde sua famosa tese de 1962 (La fin de la démocratie athénienne. Paris: PUF) até o livro aqui em questão, passando pelo que talvez seja seu livro mais lido, Histoire d’une démocratie: Athènes (Paris: Seuil, 1971) e por Politique et société en Grèce ancienne: le modèle athénien (Paris: Aubier, 1995), entre muitos outros que tratam do tema de forma mais ou menos direta. Temos então aqui toda uma vida de meditação sobre a democracia ateniense.
Desde a introdução (“Démocratie d’hier et démocratie d’aujoud’hui”, p. 7-11), a motivação contemporânea se exprime com vigor:
A democracia está na ordem do dia. Políticos, professores universitários, jornalistas fazem dela um dos temas privilegiados de suas reflexões, interrogando-se sobre seu funcionamento onde ela existe, sobre suas possibilidades de instauração onde ela ainda não foi experimentada. Foi para instalá-la no Oriente Médio que foram feitas as expedições militares no Afeganistão e no Iraque. Foi para fazê-la triunfar que as multidões saíram às ruas para se manifestar em Kiev e em Minsk. É por ela que se enfrentam, na África, grupos cujos objetivos temos por vezes dificuldades de compreender, onde subsistem antagonismos provenientes de um longo passado. Isso tudo mostra que se trata de uma das questões dominantes deste início de século XXI, na medida em que dela também depende a solução de outros problemas que se apresentam ao mundo de hoje, sejam eles econômicos, ecológicos ou demográficos. (p. 7)
Mas o que ocorre é que essa ideia de estudar a democracia antiga no interesse da democracia contemporânea não é simples de articular em termos de pertinência da análise. É por isso que fico feliz em constatar que o ponto de vista de Mossé é o mesmo que defendi em meu livro de 2006 sobre a questão (Participation directe et démocratie grecque: une histoire exemplaire?. Besançon: PUFC. p. 9-19). Mossé, com efeito, apresenta a questão da seguinte maneira:
Validade do princípio majoritário e formas que pode tomar a participação na tomada de decisão são os problemas que se colocam a todos os que se preocupam com o declínio das democracias no mundo atual. Isso significa dizer que a democracia grega pode fornecer um modelo aos homens de hoje? A essa questão não há resposta evidente, pois seria fazer abstração dos 25 séculos que nos separam da Atenas de Péricles. Por outro lado, pode ser interessante tentar compreender o funcionamento desse sistema político e da ideologia que o justificava, mas também lembrar o olhar lançado sobre ele ao longo dos séculos. Pois, das questões que a democracia ateniense levantou ao longo da história, podem ser tiradas lições suscetíveis de ajudar em um renascimento da democracia, hoje mais necessário do que nunca. (p. 9)
A autora começa muito naturalmente pela história da democracia ateniense (Capítulo 1: “L’invention de la démocratie”, p. 13-45). Procede a uma apresentação clara das principais etapas da formação da democracia ateniense, de Sólon a Péricles, passando por Clístenes e Efialtes. Em seguida (p. 27-34), explica os conceitos-chave do regime, liberdade e igualdade, e lança algumas das bases da estrutura social da cidade. Explica também (p. 34-45) o funcionamento da democracia, suas instituições, suas práticas, suas principais figuras, terminando o capítulo com uma questão: “E isso nos traz de volta à questão essencial relacionada com o funcionamento da democracia ateniense, a da realidade do poder do démos. Questão difícil, pois para responder a ela precisaríamos dispor de elementos que nos faltam” (p. 43). Nesse ponto da análise, podemos considerar que ela se inclina por uma hipótese “intermediária” nesse debate espinhoso; mas voltará mais adiante no livro, de forma um pouco menos neutra, sobre esse ponto.
No Capítulo 2 (“Le rejet de la démocratie”, p. 47-65), a autora trata desse fenômeno em dois tempos: inicialmente, uma explicação política das duas revoluções oligárquicas do final do século V (p. 48-54) e, depois, uma análise do questionamento acerca da democracia entre os teóricos antigos, sejam eles oradores, políticos, historiadores ou filósofos. Mais para o final da seção, dá uma atenção especial à questão das relações entre a democracia e a lei. Esse capítulo tem por mérito e por resultado mostrar claramente que a democracia nunca foi coisa consensual em Atenas, e isso apesar de seu sucesso e de sua grande estabilidade no tempo. Ela também não deixa de tomar partido no debate acerca do fim do regime: “A derrota, diante de Felipe inicialmente, de Antípatros depois, levou, senão ao desaparecimento total, pelo menos ao declínio da democracia” (p. 65).
Chegamos ao terceiro tempo “antigo” da questão: “L’oubli de la démocratie” (Capítulo 3, p. 67-87). Sob esse título, a autora apresenta a história política de Atenas nas épocas helenística e romana, nas quais a democracia foi várias vezes derrubada, restabelecida, mas, sobretudo, modificada e, no fim, desnaturada. Apresentando Atenas tal como ela aparece em autores importantes (Políbio, Cícero, Plutarco, entre outros), Mossé começa nesse capítulo uma mudança de abordagem, passando da forma suave da história da democracia em Atenas para o papel da lembrança deixada pela democracia ateniense na história, e, para começar, na cultura antiga “pós-clássica”:
Como vemos, a imagem da democracia ateniense permanece majoritariamente negativa no conjunto do mundo romano. Quando se evoca a grandeza de Atenas, ela não é relacionada com o regime democrático, e sim com alguns homens que ocuparam a liderança da cidade e que, de Sólon a Fócion, souberam garantir a liberdade e criar as condições de sua autoridade no seio do mundo egeu. E com frequência é lembrada a ingratidão dos atenienses em relação a esses homens, enquanto a decadência de Atenas é ligada a um gosto desmedido pelo luxo e pelos espetáculos, o que já era denunciado por Platão em sua época. (p. 87)
A parte sobre a “posteridade da democracia ateniense” começa no Capítulo 4 (“De la Renaissance aux Lumières”, p. 89-116). No que se refere ao Renascimento, a autora examina o movimento comunal na Itália, quando os gregos e os romanos se tornaram de novo “pertinentes”, mas quase sempre com uma imagem negativa da democracia. Mas a atenção atribuída a Tucídides e a Plutarco tornava outra vez possível discutir a questão. Na França do Renascimento e na Inglaterra elisabetana, países que viviam então o reforço do poder real, a questão se desloca para aspectos morais, acerca do heroísmo, e sobre certos temas políticos, mais do que sobre os regimes. Ela faz em seguida uma análise das “Luzes”, na qual retoma alguns de seus trabalhos mais antigos (entre os quais seu livro L’Antiquité dans la Révolution française. Paris: Albin Michel, 1989), assim como trabalhos de N. Loraux, P. Vidal-Naquet e F. Hartog. A questão da política antiga é estudada em Montesquieu, na Enciclopédia, e, sobretudo, em duas obras fundamentais, Le voyage du jeune Anacharsis en Grèce, do abade Barthélemy, e Les recherches philosophiques sur les Grecs, de Cornélius de Pauw. Este último é especialmente importante para a questão da democracia, por ser talvez a primeira obra moderna a exprimir uma opinião global mais positiva sobre o regime ateniense, ao ponto de seu autor receber, em 1792, juntamente com Thomas Payne e George Washington, a cidadania francesa por ter “servido à causa da liberdade e preparado a libertação dos povos” (p. 115).
Depois das Luzes, as revoluções (Capítulo 5, “Les temps des révolutions”, p. 117-140). Esse capítulo é dedicado às duas Revoluções, Americana e Francesa. O horizonte republicano desses dois processos históricos colocou a Antiguidade romana, espartana e ateniense na ordem do dia. Apesar de uma cultura “antiga”, “pagã”, bem menos intensa na América do que na Europa, os Pais Fundadores dos Estados Unidos examinaram e discutiram os Antigos, John Adams em especial. Mas, de forma geral, foi a desconfiança de um Hamilton em relação ao poder popular que prevaleceu. Em relação à Revolução Francesa, a questão será mais complexa e vai variar fortemente de acordo com as etapas da Revolução. Mossé, retomando seu livro sobre a questão, segue as mudanças na imagem de Atenas da Constituinte ao Terror, até a reação termidoriana. Grande atenção é dedicada a dois autores, Desmoulins e seu elogio da liberdade de palavra dos atenienses, e Chateaubriand e seu desencanto com a república. Mossé nos mostra abundantemente de que forma a Antiguidade, a política, a democracia, o povo foram uma espécie de “linguagem” durante o processo revolucionário.
No capítulo seguinte (Capítulo 6, “L’avènement de l’Athènes ‘bourgeoise’, de Benjamin Constant à Fustel de Coulanges et Max Weber”, p. 141-164), Mossé apresenta a formação da visão “burguesa” sobre a Atenas antiga e sua democracia, desde o texto fundador de Benjamin Constant sobre as diferenças entre a liberdade dos Antigos e a liberdade dos Modernos até o verdadeiro “império” exercido durante meio século pelo trabalho de Gustave Glotz sobre a Cidade grega (a partir de sua publicação em 1928). As etapas dessa construção são muito bem apresentadas: Fustel e sua obsessão em “libertar” os Modernos da influência dos Antigos, J. Burckhardt e o tema das relações entre igualdade política e desigualdade social, M. Weber e sua denúncia da tirania da maioria (ainda que ele identificasse uma “racionalidade” no regime ateniense). De uma reflexão mais filosófica passamos ao nascimento de uma história grega “profissional”, com G. Grote e G. Droysen. Foi Grote quem instalou a democracia no centro da história ateniense e grega. Em Droysen, o que interessa é a decadência do regime, a fim de “explicar” Felipe e Alexandre. Da mesma forma, Mossé explica o nascimento de uma verdadeira “Atenas francesa”, em Victor Duruy e Gustave Glotz. Em Duruy, o segundo império, mistura de poder pessoal e sufrágio universal, encontra seu eco na Atenas democrática dominada por Péricles. Em Glotz, é o tema da “cidade”, tomado de empréstimo a Fustel (mas de certa forma contra ele, pelo abandono do tema do génos como fonte das instituições e da cidade), que vai ser o fio condutor, mas uma cidade “democrática” (dois terços do livro são dedicados ao período da democracia), e um século V que será escolhido como acmè da história ateniense, grega e quiçá humana. É a França democrática, elitista e liberal que se lê no espelho da Atenas clássica. E eu só posso subscrever as palavras de Mossé, quando ela diz:
Lendo a Cidade grega de Glotz, não podemos deixar de pensar na França desses anos que antecedem a crise de 1929. E medimos até que ponto o historiador, mesmo o mais apegado a uma “verdade” fundada em um conhecimento aprofundado dos “fatos”, não deixa de ser muito marcado por sua época. (p. 164)
Ao longo do século XIX, e até Glotz, a Europa liberal encontrou um novo equilíbrio e uma nova utilidade à Grécia clássica, a Atenas e à sua democracia. Uma imagem bastante idealizada, na qual o imperialismo ateniense se encontrava justificado por seus efeitos “civilizadores” e onde a escravidão se encontrava desculpada por sua “doçura” em Atenas. Na segunda metade do século XX, essa imagem será destruída pelo trabalho inovador de Moses Finley; e Mossé, que o conheceu bem, vai retraçar a vida, a obra e a contribuição historiográfica do grande historiador com grande fineza naquele que é, em minha opinião, o melhor capítulo do livro (Capítulo 7, “Le ‘moment’ Finley: une mise en question de la vulgate”, p. 165-188). E isso em vários domínios: sua posição de certa forma intermediária no debate sem fim sobre o “modernismo” ou o “primitivismo” da economia antiga; seu reconhecimento do fato imperialista ateniense em uma relação orgânica com a democracia; sua afirmação do fato de que a civilização grega foi construída (was based on) sobre a escravidão; as relações de novo orgânicas entre escravidão e democracia em Atenas. E, apesar disso tudo, uma defesa clara do “modelo” ateniense em termos de participação política efetiva, em termos do papel desempenhado pelo povo miúdo nos assuntos coletivos, no controle dos dirigentes da cidade por parte dos cidadãos, e pela amplitude da liberdade de palavra. Ela recoloca todas as análises de Finley nos quadros de sua vida pessoal (“caça às bruxas” nos Estados Unidos dos anos 1950; insuficiências da democracia representativa). Vale realmente a pena citar Mossé de forma um pouco mais longa quanto a isso:
A obra de Finley teve impacto considerável na Europa, tanto na Europa Oriental quanto na Europa Ocidental, e nos Estados Unidos, onde ele foi convidado a dar conferências desde 1964 em muitas universidades, inclusive naquela da qual havia sido afastado, Rutgers. A partir de uma pesquisa sobre os marcos hipotecários na Atenas do final da época clássica, ele logo alargou seus centros de interesse, tanto cronológicos quanto espaciais. Mas, no que se refere ao objeto deste trabalho, ninguém contribuiu mais que ele para a elaboração de uma imagem positiva da democracia ateniense, essa democracia escravista que atribui aos membros da comunidade dos cidadãos um poder de participação nas tomadas de decisão único na história da humanidade. Finley foi o que poderíamos chamar um historiador “engajado”. Ele o foi politicamente, e seu percurso é comparável ao de certo número de pesquisadores de sua geração que, seduzidos pela análise marxista, dela se afastaram quando ela foi confiscada por uma ortodoxia estreita, mas conservando certos métodos de questionamento do marxismo. Por isso mesmo, ele deveria sofrer as críticas tanto dos “tradicionalistas”, fechados em uma ideologia que se queria “humanista”, quanto pelos defensores de um marxismo puro e duro. (p. 187-188)
Chegamos ao Capítulo 8 (“La démocratie athénienne aujourd’hui”, p. 189-214), no qual Mossé retorna à justificação de sua análise neste livro: “A crise que conhece a democracia contemporânea suscita um renovado interesse pela experiência ateniense. Enquanto o estudo das línguas antigas recua no conjunto do mundo ocidental, paradoxalmente nunca o ‘modelo’ ateniense conheceu tal florescimento de análises, feitas não apenas pelos especialistas da Antiguidade, como também por filósofos e politólogos” (p. 189). Nesse último capítulo, Mossé examina a recepção do modelo finleyano, sua influência na França (Centro Louis Gernet), na Itália (onde o marxismo mais aberto era receptivo a seu trabalho) e, mais recentemente, nos Estados Unidos, onde ele foi especialmente retomado, transformado, discutido, contestado. É a ocasião, para Mossé, de passar em revista a historiografia recente (em um registro secular, ou seja, a dos últimos 30 anos), a fim de medir as contribuições de O. Murrey, S. Price, M. Hansen, M. Ostwald, R. Sealey e, sobretudo, J. Ober, ao qual ela dedica não menos do que 12 páginas. Partilho inteiramente sua análise e a importância que ela atribui a esse último autor, assim como sua conclusão:
Assim, ao termo de uma pesquisa que se desenvolveu por uns 20 anos, J. Ober chegou a uma conclusão que já era a de Finley. A democracia “elitista” que muitos politólogos justificavam pela capacidade reservada a uma minoria de fazer as escolhas e pela lei de ferro da oligarquia é desmentida pela própria experiência da democracia ateniense. E, mesmo levando em conta o que distingue uma pequena cidade grega de 2.500 anos atrás dos Estados contemporâneos, seu modelo de democracia “participativa” deve ser meditado pelos homens do século XXI, preocupados em dar de novo à democracia seu sentido verdadeiro. (p. 206)
Ela explica também que, ainda mais do que em política, foi em matéria de economia que a herança de Finley foi mais contestada, na França por R. Descat e por A. Bresson, alhures por J.-G. Manning e por I. Morris, entre outros.
Em uma curta conclusão (p. 215-217), explica por que é preciso medir a “distância” entre os atenienses e nós, mas afirma também a necessidade de sempre voltar ao exame da democracia ateniense com esta bela formulação tomada de empréstimo a W. Nippel: “Enquanto a democracia e as insuficiências de sua aplicação permanecerem sendo um tema de debate em um Estado que não é formado por deuses (Rousseau), Atenas não desaparecerá verdadeiramente da reflexão” (p. 217).
Para os que leem Claude Mossé há 40 ou 50 anos, esse livro não traz tantas novidades, salvo nos últimos capítulos. Mas esses velhos leitores são e serão cada vez mais raros. Para as novas gerações de estudantes e pesquisadores, esse último (até agora) livro de Claude Mossé pode ser uma excelente introdução ao conjunto de sua obra e de sua reflexão sobre a Grécia antiga e seu sentido para nós. E, no prosseguimento, quem sabe, a motivação para ler seus outros inúmeros trabalhos. O trabalho incansável de Mossé, e sua preocupação em sempre falar aos leitores de hoje em dia, sem jargão, em uma língua precisa, mas acessível a todos, tanto aos profissionais da história antiga quanto aos leitores comuns, me faz pensar em outra grande figura da história antiga, a belga Marie Delcourt, que, na geração anterior, sempre adotou a mesma atitude. São historiadoras a serviço de seu tempo.
José Antonio Dabdab Trabulsi – Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) – Belo Horizonte – Brasil. E-mail: dabdabtrabulsi@fafich.ufmg.br.
Pierre Nora- homo historicus – DOSSE (RBH)
DOSSE, François. Pierre Nora- homo historicus. Paris: Perrin, 2011. 660p. Resenha de: SILVA, Helenice Rodrigues da. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.31, n.61, 2011.
Dando sequência ao gênero de ‘biografia intelectual’ de autores franceses que marcaram a segunda metade do século XX (Michel de Certeau, Paul Ricoeur, Gilles Deleuze/Félix Guattari), François Dosse completa um extenso trabalho sobre Pierre Nora. Figura singular no espaço intelectual francês, esse autor atravessa, de maneira discreta e silenciosa, diferentes domínios de produção e difusão (literatura, jornalismo, edição e ensino) nestes últimos 50 anos.
Conhecido pelos historiadores como um dos coordenadores (com Jacques Le Goff) de “Fazer a história” e o idealizador dos “lugares da memória”, Pierre Nora é, sobretudo, visto como o editor da maison Gallimard e o criador da famosa “Bibliothèque des sciences humaines”. Nessa coleção, a ‘nata’ da intelligentsia francesa e estrangeira (Michel Foucault, Georges Dumézil, Émile Benveniste, entre tantos outros) promove, nas décadas de 1960 e 1970, “os anos dourados das ciências humanas”.
Professor universitário (assistente na École des Hautes Études en Sciences Sociales e no Institut d’Études Politiques, nas décadas de 1970 e 1980), idealizador de diferentes coleções de ciências humanas (inicialmente na editora Julliard, em seguida na Gallimard), fundador (com Marcel Gauchet), em 1980, da revista Le Débat (importante mídia intelectual ancorada na crítica de ideias e nas análises da atualidade), imortal (eleito para a Académie Française em 2002), Pierre Nora ocupa ainda uma posição de destaque nos debates atuais da Cité (esfera pública) no que diz respeito, notadamente, aos imbróglios da memória, da história e do patrimônio francês.
No entanto, autor de um único livro, publicado durante a guerra da Argélia, Les Français d’Algérie, e de numerosos artigos (jamais agrupados) sobre história do presente e epistemologia da história, Pierre Nora encarna o intelectual solitário, o escritor de talento que duvida do caminho a seguir, e que se sente incapacitado para edificar uma obra individual.
Ao longo de um trabalho denso e detalhado, graças, notadamente, a uma extensa documentação do arquivo pessoal do biografado, François Dosse reconstitui os diversos itinerários desse historiador, buscando entender o enigma do acadêmico ‘fora da norma’. Como bem mostra a biografia, o paradoxo de Nora, editor de grandes livros em todas as disciplinas – da linguística à economia, da antropologia à história, da filosofia à política – residiria na sua impossibilidade de se afirmar como autor de uma obra.
Sensível à recepção de novas ideias, Pierre Nora publica, desde a década de 1960, textos até então inéditos e originais, produzidos na França e no estrangeiro. De As palavras e as coisas, de Michel Foucault, a Montaillou, povoado occitâneo, de Leroy Ladurie (300 mil exemplares vendidos), Pierre Nora, na Gallimard, lança os best sellers das ciências humanas e sociais. No entanto, duas obras de peso que marcaram seu tempo constituíram exceções. Tristes trópicos, de Lévi-Strauss, e A era dos extremos, de Eric Hobsbawm, foram recusados pela editora.
Ora, como explicar a trajetória de um autor sem obra, mas que parece ter feito de sua existência sua própria obra? Tal interrogação constitui um ‘desafio biográfico’ (título de um dos livros de François Dosse). Pierre Nora seria mais solícito a ideias de seus autores que à produção de suas próprias ideias. Escritor talentoso, ele teria dito: “os melhores editores são, certamente, escritores reconvertidos, reprimidos, transformados”.
Pautada por sucessos e fracassos, sua trajetória intelectual é reveladora de um Ser em busca permanente de si mesmo. Nora coloca em dúvida seu percurso, critica as normas acadêmicas e recusa fechar-se dentro de uma disciplina. Mas, ao lado de aparentes frustrações e insucessos (os concursos de admissão para a École Normale Supérieure, a renúncia a uma tese já iniciada, a desistência de trabalhos coletivos) encontram-se incontestáveis conquistas. Graças a seu dom de escritor, a sua visão antecipada e a sua incansável curiosidade, Pierre Nora obtém a difícil agrégation em história (concurso para se tornar professor da Educação Nacional), antecipa a criação de novos modelos historiográficos e consegue sobreviver à crise das ciências humanas e sociais, criando, em 1980, uma revista aberta aos debates intelectuais.
Relatar essa ‘aventura intelectual’ solicita, por parte de um bom biógrafo, recursos da psicanálise. François Dosse é, assim, levado a ressaltar uma experiência traumática, vivida pelo jovem Pierre aos 12 anos. De origem judia, totalmente assimilada à República francesa, a família Nora (originalmente Aron, antes do século XIX) se considera, no entanto, “uma família judia mais francesa do que francesa”. Refugiado com os parentes no sul da França, no momento da ocupação alemã, Pierre se salva de uma rafle (uma blitz para prender judeus) organizada pela Gestapo. Nas palavras do biógrafo, esse episódio drástico acrescentará certa inquietação e gravidade a sua existência, marcando-o para sempre.
Na opinião de François Dosse, a lembrança desse acontecimento incidirá, provavelmente, sobre seu trabalho intelectual posterior, levando-o a repensar as categorias da memória e da história: “[Esta] será, incontestavelmente, a contribuição mais decisiva de Pierre Nora à historiografia; a sua singularidade de judeu o leva a valorizar a memória – o Zakhor [‘lembre-se’] -, mas a submete a uma artilharia ininterrupta da crítica à disciplina histórica, à vigilância histórica”.
Outras pistas que podem explicar suas escolhas ou suas recusas são recenseadas: o autoritarismo do pai, o sucesso de um irmão mais velho (aluno brilhante na prestigiosa École Nationale d’Administration – ENA, alto funcionário das finanças e conselheiro de Mendès France, presidente do conselho de ministros da IV República), a paixão inicial pela literatura e poesia, o espírito crítico em relação à retórica e à filosofia ensinadas na juventude. Este último aspecto justificaria seu triplo fracasso no concurso de admissão para a École Normale Supérieure. Destinada aos futuros filósofos, a ENS constitui um dos ‘lugares de passagem’ da elite intelectual e ‘republicana parisiense’.
No entanto, a escrita de Les Français d’Algérie (1961) despertará seu interesse pelos arquivos. Nora idealiza, ainda na editora Julliard, o lançamento de uma coleção de bolso que apresentaria aos leitores a integralidade dos arquivos, acompanhados de comentários por parte de especialistas. Intitulada “Archives”, essa coleção, publicada em 1964, parece renovar a disciplina história. Seu projeto de lançamento de novas coleções, desta vez na editora Gallimard, se concretizaria na “Bibliothèque des sciences humaines”, na “Bibliothèque des histoires” e na coleção “Témoins”.
Seus sucessos editoriais, no entanto, o impedem de elaborar seu próprio pensamento. Em carta redigida no final da década de 1960, Edgar Morin demonstra sua inquietude e afirma:
cada vez mais, você encarcera sua primeira personalidade, que penso que é sonhadora, meditativa, afetuosa, plena de curiosidades profundas que vão alhures. Não existe uma solução em vista, mas existe um caminho: cultive sua própria filosofia. Isto não quer dizer: faça uma tese ou um livro, ou ande a cavalo. Isto quer dizer, apenas, que é hora de partir em busca da expressão daquilo que mais conta dentro de você mesmo.
Ora, segundo François Dosse, a grande obra na vida de Pierre Nora realizar-se-á através de sua ligação íntima com a França, por intermédio dos ‘lugares da memória’; ele até afirma que um ‘momento Nora’, semelhante a um ‘momento Michelet’ e a um ‘momento Lavisse’, marcará a historiografia francesa.
Esse empreendimento ‘memorial’, coordenado por Pierre Nora, tem por origem seu seminário sobre história do presente, na École des Hautes Études en Sciences Sociales, e durará mais de 10 anos, concluído em 1993 com a publicação do último tomo dos “Lugares da memória”. Propondo o retorno ao questionamento sobre a nação mediante a análise dos ‘lugares da memória’ (material, simbólico, funcional), o primeiro tomo consagra-se à “República” (1 volume sobre o século XIX), o segundo (3 volumes) à “Nação” (a partir da Idade Média), e o terceiro (3 volumes) às “Franças” (les France).
Trabalho historiográfico e epistemológico notável na trajetória intelectual de Nora, esse ‘empreendimento’ ocupa um espaço central em sua biografia. No capítulo intitulado “A fábrica dos lugares da memória”, François Dosse descreve a confecção dessa produção historiográfica lembrando que, nas décadas de 1980 e 1990, a expressão ‘lugares de memória’ passa a integrar a linguagem corrente. Se a noção da memória emerge no território dos historiadores franceses, ela se apresenta como coadjuvante da categoria da história. Através dos ‘lugares da memória’, Pierre Nora fornecerá “uma resposta histórica pessoal a esta situação ‘ambígua’ do intelectual francês judeu; desta [situação] resulta sua relação passional com este monumento editorial”.
No entanto, a partir da década de 1970, a França conhece o ressurgimento das memórias ocultas, reprimidas e recalcadas pela história oficial. Consequentemente, o fenômeno do après coup, do traumatismo, expresso pelos sobreviventes das catástrofes do século XX, modificará sensivelmente a abordagem do passado. Contudo, longe de exprimir a dialética da memória e do esquecimento (da memória coletiva), os ‘lugares da memória’ (responsáveis pelo retorno da questão nacional, por intermédio da memória e da política) se erigem como um estudo do patrimônio francês.
Embora reconhecendo seu valor heurístico, compartilho as críticas emitidas por alguns historiadores franceses (citadas por Dosse). Enquanto patrimônio nacional (simbólico e material), os ‘lugares da memória’ sacralizam a história oficial, os mitos da nação, os lugares de culto. Assim, os sete volumes que formam os três tomos dessa coletânea não deixam de representar um ‘monumento histórico’, uma celebração da história nacional francesa. Voltados à trilogia – a República, a Nação e as Franças – os ‘lugares da memória’, injustificadamente, não levam em conta a análise do passado colonial, ou seja, do império francês e da guerra da Argélia, esquecendo-se dos traumatismos da memória coletiva (o governo de Vichy, a guerra da Argélia e o tráfico de escravos, dentre outros).
Analisar, retrospectivamente, o chamado ‘momento Nora’ nos tempos atuais da vigência do paradigma da global history leva os historiadores a exprimir sérias reservas em relação à matriz histórica do Estado-nação. Além do mais, a noção de ‘identidade nacional’ (intrínseca e explícita a esta obra), que se transformou em uma categoria polêmica e perigosa na França atual, obriga os historiadores a rever as interpretações históricas e historiográficas das décadas anteriores.
Em contrapartida, é de fundamental importância o empreendimento posterior de Pierre Nora para a história intelectual. Criada em 1980, a revista Le Débat (dirigida por Pierre Nora, Marcel Gauchet e Krzysztof Pomian) se propõe a repensar novos modelos intelectuais e/ou ‘a mudança de paradigmas’ nas ciências humanas. Aberta à inovação, à reflexão, às contribuições estrangeiras e, sobretudo, à heterogeneidade das ideias, ela se instala na paisagem intelectual como uma referência obrigatória.
“A palavra-chave para caracterizar Le Débat é a abertura, uma vontade de descompartimentalização, de romper as fronteiras, tanto disciplinares como nacionais.” Ao longo dos 30 anos de sua existência, o espírito de renovação e a sensibilidade em relação às mutações históricas e intelectuais do momento da revista permanecem atuais.
Conjugando história do intelectual, história intelectual e história da historiografia francesa (dos últimos 50 anos), este estudo biográfico oferece ao leitor um estimulante percurso através das ideias. Abordando diferentes cenários – instituições, pessoas, obras e redes sociais -, François Dosse reconstitui tensões políticas e intelectuais, debates ideológicos, modelos de análise etc. através do percurso original de um discreto ‘aristocrata de esquerda’..
Helenice Rodrigues da Silva Silva – Professora Associada, Universidade Federal do Paraná. Rua General Carneiro, 460. 80060-150 Curitiba – PR – Brasil. E-mail: helenrod@terra.com.br.
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