Posts com a Tag ‘Pensamento’
Dom Rodrigo de Sousa Coutinho: pensamento e Ação político-administrativa no Império Ultramarino Português (1778-1812) | Nivia Pombo
Para o início dessa narrativa tomemos como ponto inicial o título da obra em questão, Dom Rodrigo de Sousa Coutinho: pensamento e Ação político-administrativa no Império Ultramarino Português (1778-1812), da historiadora Nívia Pombo, publicado em 2015, fruto da pesquisa de mestrado. Retirando por um momento todo conteúdo escriturário, de outro modo, todo fazer historiográfico que ordena o caos, o nome Dom Rodrigo de Sousa Coutinho marca um tempo. Para historiografia colonial, sobretudo a que se debruça sobre a virada do século XVIII para o XIX, o nome Dom Rodrigo remete a uma série de acontecimentos. Os códigos alfabéticos, amontoados uns aos outros formando o nome de um sujeito, uma sonoridade ímpar, transfere sorrateiramente quem o ler a um tempo histórico acelerado; de rupturas e continuidades de uma determinada ordem. Leia Mais
Inmigración pensamiento y nación: 1880- 1930 | Aquiles Castro e Ana Félix (R)
De acuerdo con Maria Ligia Coelho Prado, la idea de unidad regional nace con la propia emancipación. Pugna por borrar las diferencias y rechazar los conflictos en pro de una identidad homogénea favorable al dominio político. La pregunta por quiénes somos estaba presente en la Carta de Jamaica (1815), la respuesta originales y autónomos. Este horizonte modeló las tradiciones nacionales e inspiró a políticos, intelectuales y artistas que se manifestaron sobre el futuro ideal y la legitimidad de la nación emergente (PRADO, 2008, p. 597).
El nacionalismo de finales del siglo XIX, presente en la historiografía, el periodismo, la literatura y el arte, procuró la adhesión social a un proyecto común de nación mediante símbolos e imágenes nacionales. La élite intelectual, blanca y letrada, consideraba que “los negros, los indios, los mestizos, los pobres, las mujeres, los no propietarios, los campesinos” eran incapaces de entender la dimensión del proyecto político (PRADO, 2008, p. 600). Lo no blanco era considerado inferior, y la pigmentación de la epidermis, sinónimo de barbarie. Leia Mais
O pensar complexo na educação: sustentabilidade, transdisciplinaridade e criatividade – MORAES; SUANNO (EPEC)
MORAES, Maria Cândida; SUANNO, João Henrique (Org.). O pensar complexo na educação: sustentabilidade, transdisciplinaridade e criatividade. Rio de Janeiro: Wak, 2014. Resenha de: BASSALOBRE, Janete Netto. A COMPLEXIDADE APLICADA À EDUCAÇÃO. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v.17, n. 3, p. 795-800, set./dez., 2015.
Vivenciamos hoje o paradoxo de, ao mesmo tempo em que nos utilizamos de extraordinários avanços tecnológicos, ressentimo-nos de caminhar aleatoriamente, sem um norte ético. Vivemos em uma sociedade cada vez mais globalizada, submetida à política neoliberal geradora de graves processos de exclusão: são muito mais atendidos os interesses de mercado do que os dos seres humanos. Os ideais de igualdade social transmutaram-se em competição e massificação e a liberdade que a modernidade conhece é a liberdade de todos pensarem da mesma forma, ignorando-se o núcleo central da questão que é, na verdade, o exercício do direito à desigualdade.
Dentro desse contexto, algumas reflexões no campo da educação tendem a buscar visibilidade para novas práticas educacionais: as que intentem o fortalecimento de um ser humano conectado com a humanidade e o planeta, cada vez mais pretendente ao direito de ser e de se expressar através de seus potenciais e suas diferenças e que, igualmente, possam contemplar na ação educativa o respeito e a valorização dessa diversidade.
E nesse sentido, a obra resenhada, organizada por Maria Cândida Moraes e João Henrique Suanno (respectivamente, coordenadora e pesquisador do Grupo de Pesquisa Ecologia dos Saberes e Transdisciplinaridade), vem exatamente ao encontro desses objetivos quando analisa um princípio epistemológico que contribui para uma metodologia que auxilia a renovação de práticas pedagógicas que privilegiem a multidimensionalidade humana e o indivíduo como autor e protagonista do seu próprio processo de construção do conhecimento – a complexidade.
No primeiro capítulo – “Educação e sustentabilidade: um olhar complexo e transdisciplinar”, Maria Cândida Moraes1 inicia os trabalhos abordando o atual cenário socioeducacional, sinalizando alguns dos problemas mais emergentes, tais como a globalização e a degradação ecossistêmica e ambiental, o que nos transformou em um modelo de sociedade em crise que vem gerando novas demandas sociais, econômicas, culturais e educacionais, uma vez que essas últimas caminham paralelas aos problemas globais. Todo esse panorama, somado às problemáticas relacionadas ao “estresse docente e ao sofrimento discente” (p. 24), revela uma cultura que compromete as relações dos indivíduos com o mundo que os cerca; exclui a subjetividade no processo de aprendizagem, ignorando as demandas pessoais de cada aluno e fragmenta o homem ao negar suas emoções e outros aspectos constitutivos, forjando uma razão deturpada que apenas disseca e classifica ao invés de integrar.
Daí, então, educar na sustentabilidade, transdisciplinarmente, oferecendo um potencial enorme de possibilidades para o desenvolvimento humano, zelando pela reunificação das dimensões emocionais intuitivas e espirituais dos indivíduos dentro de um enfoque pluralista do conhecimento que, por sua vez, através da articulação entre as muitas formas de apreensão do mundo, pretende unir as mais variadas disciplinas para que se torne possível um exercício mais amplo da cognição humana.
Em “Educación, transdisciplinaridad y pensamiento ecosistémico: uma aproximación a la prática” Juan Miguel Batalloso2 leva-nos a uma exposição detalhada do seu entendimento acerca do conceito de transdisciplinaridade, postulando- o não como uma nova ciência, mas sim como uma nova forma de abordar a realidade, a existência humana e a educação – uma atitude perante a vida, ou seja, uma forma de desenvolvimento integral pessoal interno, comprometida com valores de vida e responsabilidade social e política. O autor realiza uma consistente análise das implicações práticas desses conceitos em diferentes âmbitos educacionais, o que faz mediante muitos questionamentos que reconhecem a transdisciplinaridade como um posicionamento diante da construção do conhecimento vinculado à integração com os mistérios do universo e da existência humana.
Marilza Suanno3, no terceiro capítulo “Em busca da compreensão do conceito de transdisciplinaridade” apresenta-nos resultados parciais de sua pesquisa relacionada com as inovações na educação superior, sob a ótica da complexidade, junto a 25 professores universitários de pós-graduação provenientes de vários países, cujos trabalhos baseiam-se na epistemologia da transdisciplinaridade.
Caminhando por entre as explicitações dos conceitos de disciplinaridade, pluridisciplinaridade, multidisciplinaridade e interdisciplinaridade, a autora realiza suas reflexões a partir de documentos-síntese, formulados em importantes eventos científicos internacionais, e comenta suas principais contribuições para a construção dos conceitos fundamentados no paradigma emergente, concluindo que os entrevistados mostraram desejos de ruptura com a fragmentação cognitiva em favor da perspectiva complexa que visa, principalmente à articulação do conhecimento em uma visão multidimensional e multireferencial.
A seguir, o artigo de Izabel Petraglia4 “Entre o esgarçamento e a tessitura” ressalta a indispensabilidade tanto de uma educação com consciência, voltada para a vida em sociedade, quanto de uma prática docente universitária criativa como condição de substituir o modelo quantitativo e pradonizado. Conclui argumentando sobre a urgência de uma reforma no pensamento que vise uma mudança comportamental que dirija a educação no sentido de se edificar sobre a cultura humanística, que retém em seu bojo os ideais de complexidade e atitudes conscientes perante o universo, a natureza e a existência individual e coletiva.
O capítulo seguinte, por Cleide Silvério de Almeida5, tem como título a sugestiva questão “É possível exercer uma prática educativa baseada no pensamento complexo?”. A partir dessa pergunta e alicerçada nas postulações de Edgar Morin sobre a complexidade, a autora parte em uma viagem a partir de análises e reflexões para as diversas situações enfrentadas pelos muitos operadores da educação, enfatizando que o pensamento complexo não se configura como um produto finalizado e sim como uma possibilidade em constante movimento. Em sua totalidade, o texto, rítmico e objetivo, é um convite para o trabalho educacional a ser efetuado sob novas perspectivas, abarcando diferentes áreas do conhecimento e suas subjetividades (e não só através de “fórmulas já estabelecidas que se apresentam como um porto seguro” – p. 144), e ressalta o objetivo de “enriquecer” (p. 145) a educação e tentar fazer da escola e do saber que ela traz uma parte importante da existência dos indivíduos.
Olzeni Ribeiro6 e Maria Cândida Moraes, em “Criatividade sob a perspectiva da complexidade e da transdisciplinaridade”, procuram definir o conceito de criatividade, questionando os postulados de diferentes autores que trabalham com o tema e assertivando que outro referencial faz-se necessário para o estudo dessa temática. Buscam no pensamento complexo de Edgar Morin as bases para avançar no mencionado campo, através desse novo olhar que se fundamenta em outro paradigma que não o positivismo. A partir dessa conscientização, as autoras, por intermédio de considerações e análises a respeito, refletem sobre os equívocos conceituais no campo da investigação da criatividade (como, por exemplo, confundir objetivos com a própria conceitualização do tema), afirmando a ideia de que a investigação da criatividade baseada nesse paradigma emergente não pode ser realizada fora do contexto transdisciplinar.
Por sua vez, João Henrique Suanno oferece-nos o artigo intitulado “Ecoformação, transdisciplinaridade e criatividade: a escola e a formação do cidadão do século XXI”, onde trata de uma questão de extrema importância: o papel da escola na formação de indivíduos que possam vir a forjar novas formas de enfrentamento da realidade circundante e estar completamente cientes de suas responsabilidades perante eles próprios, a coletividade e o mundo em que habitam. Como instituição social, a escola tem a responsabilidade de promover a transformação e o crescimento da comunidade em que se insere. O autor enfatiza, inclusive, o fato de que essa tarefa, ou seja, a de formar cidadãos aptos a lidar com as demandas do seu momento, não é nova: períodos anteriores também assim o exigiram; entretanto, a novidade centra-se na consciência e na responsabilidade exigidas hoje para com o planeta em que vivemos, explorado e exaurido em seus recursos.
Para o autor, a consciência ecoformadora, transdisciplinar e criativa deve ser o suporte para a concretização de ações no rumo do resgate do humano e da cidadania planetária, a partir de uma educação e de práticas educacionais ressignificadas que possam garantir melhores espaços e condições para as gerações futuras.
Em sequência, Maria Dolores Alves7, no artigo “Psicopedagogia e transdisciplinaridade: a sabedoria da diversidade” trata da articulação entre a transdisciplinaridade e a psicopedagogia, demonstrando como a segunda, sob o olhar abrangente da primeira, pode contribuir para a libertação do pensamento e viabilizar os processos inclusivos e os encontros com a diversidade, trazendo existência e poder de expressão para cada ser humano em sua singularidade. A psicopedagogia integrada à transdisciplinaridade, segundo a autora, possibilita a edificação de um mundo onde toda a diversidade terá seu lugar, em um caminho para a “humanização do humano” (p. 191).
Em “El aprendizaje mediante el teatro: uma mirada compleja y transdisciplinar”, Montse González8 analisa os aspectos criativos e formativos da arte teatral sob o manto da complexidade e da transdisciplinaridade. Buscando rever os cenários educativos formativos, realiza uma leitura do teatro como local de aprendizagem, rico em estímulos para o conhecimento das alteridades e amplia nossa visão de mundo. Citando Jacques Delors (2014, p. 198, tradução nossa), a autora pensa que podemos conceber o teatro como um espaço “… para propagar os quatro pilares da educação: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser”.9 Em seguida, Álvaro Schmidt Neto10, em “A metáfora na perspectiva da didática transdisciplinar” enfoca a temática da metáfora e sua importância na didática transdisciplinar, para isso utilizando o conto infantil anônimo “A lição do papagaio”. Baseado na transdisciplinaridade e no pensamento complexo, o autor procura evidenciar a necessidade de superação do paradigma positivista.
Encerrando os artigos, temos “Os operadores cognitivos do pensar complexo na docência universitária: possibilidades e desafios”, no qual Michelle Machado11, Patrícia Nascimento12 e Deliene Leite13 nos trazem sua pesquisa com 118 docentes universitários a respeito de como o pensamento complexo, por meio de seus operadores cognitivos, pode colaborar no fazer pedagógico dos professores, auxiliando-os a ressignificar a prática docente. Ressaltam que o uso de ferramentas tecnológicas ajuda a melhor se dar conta das relações antes despercebidas; entretanto, é uma técnica complementar que jamais poderá substituir o olhar e a percepção do pesquisador.
Dessa maneira, a obra resenhada, que evidencia diferentes olhares de diversos autores, apresenta-se como uma importante contribuição no âmbito da educação, tanto quando reflete sobre as urgências de novas perspectivas paradigmáticas como resposta às muitas indagações e inquietudes relativas à eficácia das práticas educacionais atuais, como também quando enfoca a complexidade e a transdisciplinaridade como caminhos producentes na construção de novas ferramentas intelectuais, capaz de contribuir para uma reforma do pensamento que possa promover uma política de educação associada a novas políticas de civilização e humanização.
A escola não deve abandonar sua função primordial de transmissão de conhecimentos; entretanto, esses ensinamentos necessitam abranger mais do que a parte cognitiva. Precisam abarcar o conhecimento da realidade e do contexto dos alunos; compreender e transmitir a cultura existente nessa realidade concreta para que as crianças e os jovens possam adquirir um conhecimento real das suas condições de vida e uma consciência crítica e empenhada na transformação social (= consciência social), dentro de um clima incentivador da criatividade, da dúvida (ingrediente indispensável para o desenvolvimento da capacidade crítica), da autonomia de espírito, da empatia com todos os indivíduos e do amor à natureza e ao planeta.
Notas
1 Professora de Pós-Graduação na UCB/DF e do Master em Educação da Universidade de Barcelona.
2 Doutor em Ciências da Educação pela Universidade de Sevilha.
3 Professora das Universidades Federal e Estadual de Goiás – UFG e UEG.
4 Professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação da Universidade Nove de Julho – Uninove e Coordenadora do NIIC – Núcleo Interinstitucional de Investigação da Complexidade.
5 Professora e pesquisadora em Educação e Complexidade junto ao Núcleo Interinstitucional de Investigação da Complexidade e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Nove de Julho – Uninove.
6 Doutoranda em Educação e Especialista em gestão de instituições educacionais pela Universidade Católica de Brasília.
7 Pesquisadora dos Grupos Ecotrans/ UCB/ CNPq; GEPI/PUCSP/CNPq e Adeste, da Universidade de Barcelona.
8 Cofundadora da Companhia Teatral Barakas/Madrid e membro integrante do Grupo de Pesquisa GIAD, da faculdade de Pedagogia e Formação de Professores da Universidade de Barcelona.
9 No original: “… para propagar los cuatro pilares de la educación: aprender a conocer, aprender a hacer, aprender a vivir juntos y aprender a ser”.
10 Educador Corporativo da SPDM/Unifesp e membro do Grupo de Pesquisa Ecotransd/UCB/ CNPq.
|800| Revista Ensaio | Belo Horizonte | v.17 | n. 3 | p. 795-800 | set-dez | 2015 Janete Netto Bassalobre 11 Doutoranda em Educação. É diretora dos cursos de graduação à distância da Universidade Católica de Brasília.
12 Doutoranda em Educação foi professora da Universidade Católica de Brasília.
13 Professora do Curso de Pedagogia e coordenadora de Reconstrução das Práticas Docentes da Universidade de Brasília.
Janete Netto Bassalobre – Mestre em Educação pela Universidade Católica de Santos (UNISANTOS). Professora, psicóloga clínica pós-graduada em Neuropsicobiologia.
[MLPDB]O conhecimento da vida – CANGUILHEM (SS)
CANGUILHEM, Georges. O conhecimento da vida. Tradução de Vera Lucia Avellar Ribeiro. Revisão técnica de Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. Resenha de: PUTTINI, Rodolfo Franco. Ética, conhecimento e vida. Scientiæ Studia, São Paulo, v.13, n. 2, p. 449-58, 2015.
O objetivo não será aqui aprofundar a asseveração de que, desde a sua famosa tese de doutoramento (1995a), Georges Canguilhem (1904-1995) iniciou e propulsionou a estruturação de um programa de pesquisa cujo trabalho filosófico voltou-se para os problemas contemporâneos da biologia e da medicina iniciados pelas diretrizes da tradicional escola francesa de epistemologia histórica desde Gaston Bachelard. No entanto, acentuarei que os primeiros testemunhos vigorosos desse percurso intelectual podem ser verificados no livro La connaissance de la vie, publicado em 1952, nove anos após a defesa de seu doutoramento em 1943, republicado em 1952 pela editora francesa Hachette, reeditado por doze vezes até 1965 com textos inéditos pela editora J. Vrin, e cuja tradução em língua portuguesa somente em 2012 foi realizada pela editora brasileira Forense Universitária.
O livro reúne em oito ensaios o nexo entre o pensamento e a vida, uma associação pouco valorizada nas ciências biológicas. Canguilhem apresenta os ensaios segundo uma ordem de importância histórico-filosófica, assim distribuída: Introdução, “O pensamento e o vivente”, ensaio escrito em 1952; um ensaio sobre o método, “A experimentação em biologia animal”, de 1951; um ensaio de história da ciência, “A teoria celular”, de 1945; e um conjunto de textos de filosofia da ciência escritos em 1946, 1947 e 1951 – “Aspectos do vitalismo”; “Máquina e organismo”; “O vivente e seu meio”; “O normal e o patológico”; “A monstruosidade e o monstruoso” –, e apêndices (três pequenas notas, sem datas), seguidas de bibliografia ou indicações de livros recomendadas pelo próprio autor. Essa estruturação aproxima várias temáticas relevantes ao problema da vida: a teoria celular, o vitalismo, o mecanicismo, a máquina, o organismo, o pensamento, o vivente, o meio, o normal, o patológico, a monstruosidade, o monstruoso, a experimentação em biologia animal.
É certo que esses escritos foram elaborados antes da descoberta do DNA (cf. Watson & Crick, 1953) e poderiam até sugerir preocupações retrógradas por parte dos biólogos. Porém a controvérsia entre raça, inteligência e genética permanece ativa (cf. Milmo, 2007; Charlton, 2008; Malloy, 2008) e levanta discussões sobre a relação entre atividade científica e valores (cf. Lacey, 2008). Para uma leitura atualizada do livro de Canguilhem proponho combinar questões ligadas ao projeto genoma, cuja técnica associada possui desdobramentos para a vida e para a vida profissional de biólogos e geneticistas atuantes em procedimentos médicos – tais como a verificação do grau de risco de desenvolvimento de doenças, os testes genéticos, o aconselhamento genético, a terapia para doenças genéticas, as células-tronco para regenerar tecidos, a terapia celular, a escolha de embriões para reprodução humana –, com questões sobre os fundamentos éticos que garantem o respeito aos direitos humanos na aplicação de teorias biológicas no desenvolvimento biotecnológico de dominação da vida e, particularmente, da vida humana (cf. Garcia, 2006). Não estariam as práticas biotecnológicas dirigidas de tal modo a refletir o eugenismo (cf. Stepan, 1991)? Qual o limite da prática da medicina, aliada às ciências biológicas, que afiança com responsabilidade sobre os perigos do eugenismo de modo a criar um contexto social de bom senso?
Mantendo a posição de que, em alegação atualizada, Canguilhem promove no livro O conhecimento da vida o empenho em fundamentar o campo ético nas ciências da vida atreladas à medicina e à sociedade; sua postura crítica ao antropocentrismo diante da vida e do sentido do conhecimento (em relação à vida humana) revela a originalidade logicamente arranjada em quatro tópicos que estruturam argumentos historiográficos, éticos e filosóficos sobre problemas concernentes às ciências biológicas interligadas à medicina, argumentos que se desdobram em ponderações no campo da produção de conhecimento que incluem a prática científica em geral. A classificação atual das áreas do conhecimento permite interpretar de modo mais objetivo os vínculos entre os ensaios,1 decorrentes de interrogações de fundo sobre a relação entre o conhecimento e a vida, para cujo entendimento pesa o sentido antropológico de alteridade (cf. Canguilhem, 2012b, p. 367), uma relação entre o vivente (uma forma universal de vida material) e o vivido (a experiência singular de um ser vivo):
A vida é formação das formas, o conhecimento é análise das matérias informadas. É normal que uma análise não possa nunca dar conta de uma formação e que se perca de vista a originalidade das formas quando nelas vemos somente resultados cujos componentes buscamos determinar. As formas vivas, sendo totalidades cujo sentido reside em sua tendência a realizarem-se como tais ao longo de sua confrontação com seu meio, podem ser apreendidas em uma visão, jamais em uma divisão (p. 3).
Considerando esse conjunto de problemas de fundamentação da vida, farei a exposição do livro seguindo esta sequência de leitura: “A teoria celular” (1945), “Aspectos do vitalismo” (1946), “Máquina e organismo” (1947), “A experimentação em biologia animal” (1951), “O normal e o patológico” (1951), “A monstruosidade e o monstruoso” (1951), “O pensamento e o vivente” (1952).
1 O MÉTODO HISTORIOGRÁFICO
Dois pontos congruentes destacam-se no artigo “A teoria celular” de 1945: a apresentação do método historiográfico e o raciocínio para o conhecimento da vida. A história da ciência é produzida pelo exame da formação de conceitos, um empreendimento que se assemelha a um laboratório de epistemologia. Especialmente para a história da ciência da vida importa reconstruir os conceitos científicos célula e vida, que aparentemente nada tem em comum com o objeto da ciência da vida. Entretanto, para Canguilhem, há um campo ético que expressa um princípio, oposto ao método e à prática de historiadores, cientistas e filósofos da época que, a exemplo do médico e cientista Claude Bernard, atribuíam à história a inferioridade lógica das teorias passadas (p. 40, nota 2). Canguilhem propõe a epistemologia histórica como fundamento e postura crítica contraposta ao “preconceito científico”, estendido ao método experimental da biologia:
as teorias não nascem dos fatos que coordenam e que são supostos de tê-las suscitado (…) os fatos suscitam as teorias, mas não engendram os conceitos que as unificam interiormente, nem as intenções intelectuais desenvolvidas por elas (p. 82).
Debru (2004) elucidou a posição fortemente holística de Canguilhem, derivada de sua crítica ao dogma nas ciências da vida, com o seguinte destaque nas reflexões sobre o normal e patológico dos Ensaios: “uma norma não é um fato, mesmo estatístico, mas um valor” (Debru, 2004, p. 33), referindo-se ao poder de criação dos valores vitais criados pela fisiologia e patologia, especialmente em comparação à concepção de vida assumida por Claude Bernard ao descobrir a etiologia da diabete como uma patologia, resultado da variação quantitativa do estado normal pela constante da glicemia, modo em que valorizava a crença da técnica médica de domínio sobre a vida em bases científicas. Em oposição a esse cientificismo, Canguilhem afirmaria o conhecimento da diabete partindo do estado de um organismo inteiro, pois “ser doente significa viver uma outra vida, um outro olhar da vida, uma outra relação com o meio” (Debru, 2004, p. 34).
Essas elucidações sobre fato e valor, entre o normal e o patológico, ganham destaque com o problema, vinculado à história da teoria celular, de que não é o microscópio o instrumento que permite, pelos órgãos dos sentidos da visão, constatar, comprovar e identificar a célula, mas “a história da formação do conceito de célula”, carregada de valores afetivos e que atestam a validade da teoria celular (p. 45). Embora essa discussão favoreça o argumento do papel da valorização moderna do controle (Mariconda, 2006), tal ambivalência epistemológica (fato e/ou valor) em Canguilhem aplica-se ao campo científico, mas também, como veremos adiante, à vida mesma.
Para o campo científico das ciências da vida a ambiguidade aparece como coordenada valorativa na história da teoria celular. “Célula” e “vida” são conceitos que se associam à força psicológica e instrumental da noção de indivíduo que motiva a gênese do “vivente elementar, demonstrando assim o valor do termo ‘célula’ na história das teorias sobre a vida”. São 43 páginas (p. 39-82) dedicadas a fazer coincidir o curso da história dos empreendimentos científicos com os interesses de cientistas em meio a descobertas e palavras inventadas, que progressivamente elevam a noção de célula a um estatuto científico. Haeckel, Hooke, Malpigni, Grew trabalharam com plantas, cada qual em seu tempo, e configuraram a anatomia microscópica da célula; a teoria da metempsicose de Lineu; a teoria das moléculas orgânicas e hibridação de Buffon e a teoria fibrilar de Haller, todas essas teorias são marcadores de uma história do conhecimento científico sobre a vida definida no interesse de garantir a questão da individualidade do organismo.
Por outro lado, para Canguilhem, a história das ciências da vida não se distancia de uma história da medicina na medida em que o argumento da passagem da individuação da célula à individualidade do organismo faz eco na prática científica da medicina: Virchow, Robin, Haeckel, Bernard sugerem o uso da teoria celular em explicações para a anatomia, a fisiologia e a histologia na busca da homogeneidade do ser humano enquanto totalidade orgânica. Nesse contexto biomédico, Canguilhem atualiza o problema linguístico do termo “indivíduo” com a controvérsia sobre qual é a classificação dada ao vírus-proteína, uma unidade viva ou não? (p. 72). Tal indagação tem uma resposta adequada à demarcação científica do uso do termo relacional “meio”, com o qual é possível ligar realidades e escalas de observação diferentes (p. 73), de modo que no tempo histórico a individualidade biológica teria sido verificada enquanto princípio de individuação (realidade, ilusão ou ideal).
2 FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS DA VIDA E/OU FILOSOFIA DA VIDA
Remontar aos conceitos de célula e indivíduo para chegar a um entendimento não linear da história das ciências da vida em intersecção com a história da medicina é a estratégia que estrutura a filosofia das ciências da vida atrelada à medicina em um meio vital, mas não exclui o ser humano enredado a um meio social. Como se conjuga o problema da relação entre fato e valor tendo por foco a medicina e o ser humano na sociedade?
A identificação de obstáculos epistemológicos transforma-se em uma ferramenta de análise que auxilia compreender com discernimento o campo científico. Os cinco ensaios de 1946 a 1951 – “Aspectos do vitalismo”; “Máquina e organismo”; “O vivente e seu meio”; “O normal e o patológico”; “A monstruosidade e o monstruoso” – identificam e averiguam os fundamentos do conhecimento da vida de modo concomitante, ora voltado ao progresso científico da ciência físico-química e da biomedicina, ora estendido para a própria vida do vivente.
Inicialmente a força do vitalismo no campo científico pode ser verificada pela vitalidade e fecundidade do discurso vitalista no contexto das refutações teóricas. A comunidade científica pensa o vitalismo por meio de ambivalências: vitalismo/ mecanicismo (problemas de estrutura e função), descontinuidade/continuidade (problemas de sucessão das formas), pré-formação/epigênese (no desenvolvimento do ser), atomicidade/totalidade (problema da individualidade). Para Canguilhem, importa a crítica no interior do campo científico, não se deve excluir do aspecto vigoroso do vitalismo a relação entre os conceitos de vida, de vivente, de ser humano e de consciência da vida.
(…) o vitalismo é a expressão da confiança do vivente na vida, da identidade da vida consigo mesma no vivente humano, consciente de viver (…) um vitalista, proporíamos, é um homem induzido a meditar sobre os problemas da vida (p. 91).
Em reforço ao projeto de fundamentação da vida, Canguilhem examina a formação do conceito de reflexo no campo científico (cf. Canguilhem, 1955a), mostra a decadência da abordagem vitalista identificada como um obstáculo epistemológico primordial deixado de lado na história da medicina. Desde o século xvii a abordagem vitalista, principal obstáculo epistemológico à abordagem mecanicista de Descartes, perde gradualmente valor para as explicações da teoria newtoniana as quais, por sua vez, servem de obstáculo para as conquistas graduais da química positivista que tendem à matematicidade das ciências da vida. Médicos, cientistas e filósofos dedicados à história das ciências da vida e da medicina (Driesch, Goldstein, Van Helmont, Barthez, Blumenbach, Bichat, Lamark, Radl, Bernard) poderiam naquela época oscilar entre a abordagem vitalista de “exigência permanente da vida no vivente” e a abordagem mecanicista, “uma atividade permanente do vivente humano diante da vida (…) tentando unir-se à vida pela ciência” (p. 89).
No confronto entre o vitalismo e o mecanicismo, Canguilhem retorna à teoria cartesiana do homem-máquina em sua defesa do vitalismo, a qual requer uma semântica qualificada, cuja herança reclama dois sentidos, o do engenho (astúcia) e o da máquina (mediação, instrumento), perguntando se
não estaríamos fundamentados em concluir que a teoria do vivente-máquina (de Descartes) é uma astúcia humana que, tomada literalmente, anularia o vivente? Se o animal nada mais é do que uma máquina, e assim também a natureza inteira, por que tantos esforços humanos para reduzi-los a ela? (p. 90).
Sua intenção é de inverter o sentido da relação máquina-organismo para compreender “o sentido de assimilação do organismo a uma máquina” (p. 108), no qual salienta a auto-organização do organismo, inaplicável à máquina (p. 124-5). No caso da medicina, como a técnica pode ser aplicada à ideia do ser humano como um todo orgânico? Canguilhem põe frente a frente o vitalismo e o mecanicismo diante do mais alto valor humano, a importância da consciência humana da vida, criadora e fecunda, ou seja,
se o vitalismo traduz uma exigência permanente da vida no vivente, o mecanicismo traduz uma atitude permanente do vivente diante da vida. O homem é o vivente separado da vida pela ciência, tentando unir-se à vida através da ciência. Se o vitalismo é vago e não formulado como uma exigência, o mecanicismo é estrito e imperioso como um método (p. 89).
O núcleo de problemas ideológicos do vitalismo sugere que “caberia aos fatos e à história pronunciarem-se quanto ao problema da fecundidade no vitalismo” (p. 95), servindo de contra-argumento que, se o vitalismo é considerado cientificamente retrógrado por seus críticos, como deixar de notar tanto o uso da biologia vitalista pelos nazistas, “a fim de justificar uma eugênica racista, as técnicas de esterilização e de inseminação artificial, quanto o [uso do] darwinismo para a justificação de seu imperialismo, de sua política do Lebensraum”? (p. 103).
Em resposta a essa ambivalência Canguilhem reforça em 1966 o tema da medicina intervencionista no mundo social (cf. Canguilhem, 2012c). Tudo depende do sentido do termo “vida”, ora significando o particípio do presente (vivente), ora o particípio do passado (vivido), em uma relação entre o conceito e a vida mesma, que sugere o acesso à própria vida. Recoloca-se então a questão: “o que é o conhecimento, se a vida é conceito e esse fato nos dá acesso à inteligência?” (cf. Canguilhem, 2012c, p. 399).
Esse tema foi revisto por Canguilhem vinte anos após a publicação dos Ensaios (cf. Canguilhem, 1995b), propondo uma revisão da relação normal/patológico na qual correlaciona os termos “norma”, “normal” e “anormal” para distinguir atribuições à norma vital e à norma social, justificando assim o conceito de normatividade social. Em sua análise do contexto das ciências da vida, Canguilhem afirma:
As normas comparam o real a valores, exprimem discriminações de qualidades de acordo com a oposição polar de um positivo e de um negativo; a polaridade da experiência de normalização, cientificamente antropológica ou cultural, baseia a prioridade normal da infração na relação da norma com seu campo de aplicação. Uma norma na experiência antropológica não pode ser original. A regra só começa a ser regra fazendo regra e essa função de correção surge da própria infração (Canguilhem, 1995b, p. 218).
Nessa mesma revisão, Canguilhem propôs uma análise sobre o erro a qual, embora na patologia o geneticista e o bioquímico atribuam à hereditariedade, associa o erro ao modelo da teoria da informação, “que diz respeito tanto ao próprio conhecimento quanto a seus objetos, a matéria ou a vida” (Canguilhem, 1995b, p. 252). Canguilhem revê a origem dos sentidos do termo “norma” como uma exigência de racionalização da época, da nascente política econômica de industrialização, que se popularizou ora como protótipo escolar (escola normal, normas da reforma pedagógica), ora como modelo de saúde (reforma da medicina, reforma sanitária frente às epidemias). Admite então que a temática da mecanização da vida, originalmente desenvolvida por Augusto Comte no Curso de filosofia positiva, caracterizou as normas da física social, tomando como aspectos do organismo coletivo a regulação, a integração e o funcionamento da vida em sociedade a fim de atingir a humanidade (como parte da cultura) (cf. Canguilhem, 1995b, p. 223-5).
Se para Canguilhem os erros (genéticos) são referências para o interesse da norma vital (anomalias do metabolismo, anomalias de ordem genética etc.), os valores iatrogênicos são os que melhor informam a tendência da normatização de fatos sociais pressuposta em abordagens organicistas da sociedade. No contexto de crítica social do movimento de 1968, Michel Foucault elaborou um programa de pesquisa historiográfica, fundamentando as novas diretrizes para a história crítica da medicina. Frente às tendências iatrogênicas e eugênicas do planejamento de políticas científicas, a crítica de Hermínio Martins adensa a história da medicina com os aspectos orgânicos da prática médica sistemática e inescrupulosa de experimentação biomédica com corpos de seres humanos, datadas as barbaridades da guerra científica de experimentos humanos da biomedicina na Manchúria, Coreia e China como um desvio do conhecimento da vida, fomentado pelo Estado tanatocrático (cf. Martins, 2012, p. 211-50).
Essa história cinzenta da medicina tem servido de parâmetro para o desenvolvimento do discurso da bioética, geralmente valorizado para a proteção de uma corporação profissional mais do que para a apreensão do sentido do princípio de precaução (cf. Lacey, 2006) no contexto da educação médica. Na história da loucura, as atrocidades humanas elaboradas por médicos estiveram atreladas à explicação orgânica das doenças mentais, colaboraram para o estabelecimento de analogias entre a sociedade e o organismo vivo e para a garantia das ideologias higienistas, alienistas e eugenistas no pensamento médico. Nas décadas de 1960 a 1980, a iatrogenia em Ivan Illich (1975), a biopolítica em Michel Foucault (1978), a antipsiquiatria de Thomas Szasz (1961) e David Cooper (1967), o processo de desinstitucionalização de Franco Basaglia (1985), o estigma ou os desvios da consciência no mundo cotidiano de Irving Goffman (2011) desenvolveram argumentos fundamentais para uma alternativa ética no campo da saúde, para além do pensamento médico. Certamente essas discussões aumentam nossos parâmetros para pensar os limites da medicina e da prática científica da saúde na sociedade.
3 FUNDAMENTO PARA A FILOSOFIA E A SOCIOLOGIA DA MEDICINA
Até agora indicamos no livro O conhecimento da vida pontos de leituras que apoiam conceitos e definições para a fundamentação do conceito de vida, estendida às preocupações do campo ético. A genética de populações (cf. Clark & Hartl, 2010) ou a sociobiologia (cf. Wilson, 1975) não seriam candidatas a proporcionar diretrizes para um campo ético da vida e saúde? Hans Jonas aprofundou a linha temática da ética entre a medicina e a tecnologia, mostrando o ser humano como um objeto nos avanços da medicina, o corpo como um artefato para o progresso da biotecnologia (cf. Jonas, 1995; 1997) e propondo, para o contexto ético, o princípio da responsabilidade. Entendo que essa mesma responsabilidade foi colocada por Canguilhem como ajuste ao fenômeno da vida por meio da consciência do cientista.
O conflito não é entre o pensamento e a vida no homem, mas entre o homem e o mundo na consciência humana da vida (…). A inteligência só pode aplicar-se à vida reconhecendo a originalidade da vida. O pensamento do vivente deve manter do vivente a ideia do vivente (p. 2, 5).
É nesse contexto da biotecnologia, repleto de dilemas (cf. Martins, 2012; Garcia, 2003), no qual efetivamente vigoram os comitês de ética, organizados em sistemas de controle cujas normas regulam o desenvolvimento de projetos experimentais com seres humanos, que se verifica, entretanto, que ainda não se instituíram formas de comunicação intersubjetiva entre pesquisadores e pesquisados na prática experimental dos ensaios clínicos. Entendo tratar-se, na verdade, de uma questão atual relativa aos direitos humanos (cf. Declaração, 1948). Diante da singularidade da vida e do vivente, todos nós temos o direito de narrar, com consciência, as disposições da vida e, primordialmente, garantir com isso a própria participação nas decisões de nossos destinos.
A resenha aqui publicada faz parte da pesquisa de pós-doutorado realizada em 2014 no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, sob a supervisão de Pablo Rubén Mariconda.
Notas
1 Tomo aqui por referência a classificação atual das áreas do conhecimento da CAPES (Coordenação Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior), organizada por Colégios de Conhecimentos (Colégio de Ciências da Vida; Colégio de Ciências Exatas; Tecnológicas e Multidisciplinar; Colégio de Humanidades) e respectivas Áreas do conhecimento
Referências
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Rodolfo Franco Puttini – Departamento de Saúde Pública. Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual de São Paulo, Brasil. E-mail: puttini@fmb.unesp.br
[DR]
Michel Foucault: morte do homem ou esgotamento do Cogito? – CANGUILHEM (AN)
CANGUILHEM, Georges. Michel Foucault: morte do homem ou esgotamento do Cogito? Tradução de Fábio Ferreira de Almeida. Goiânia: Edições Ricochete, 2012. (Coleção Inominável). Thiago Fernando Sant’Anna. Anos 90, Porto Alegre, v. 20, n. 38, p. 443-448, dez. 2013.
Precisas as palavras de Georges Canguilhem sobre Michel Foucault no texto “Michel Foucault: morte do homem ou esgotamento do Cogito?”, publicado no número 242 da Revista Critique, em julho de 1967, as quais argumentaram que “[…] o êxito de Foucault pode ser justamente entendido como recompensa pela lucidez que permitiu a ele enxergar este ponto para o qual, diferentemente dele, outros foram cegos” (CANGUILHEM, 2012, p.9). Canguilhem tece, no texto, com palavras afiadas, uma defesa do pensamento edificado por Foucault em seu projeto arqueológico de explorar a rede epistêmica a partir da qual emergiram “certas formas de organização do discurso” (CANGUILHEM, 2012, p.22-23), subvertendo a devoção ao curso progressista da história e interditando “toda ambição de reconsti tuição do passado ultrapassado” (CANGUILHEM, 2012, p. 15). Irônicas, suas palavras desafiavam aos detratores de Foucault: “Humanistas de todos os partidos, uni-vos” (CANGUILHEM, 2012, p. 09)? Profundas teriam sido as relações entre Canguilhem e Foucault.
Nos anos 1960, Canguilhem, no relatório escrito para a avaliação da tese “Loucura e Insânia”, durante o doutoramento de Foucault, declarou ter sentido “um verdadeiro choque” (ERIBON, 1990, p. 130) diante de suas ideias que se inscreviam, indubitavelmente, no espaço da vanguarda acadêmica. Difícil também seria dimensionar a amplitude da inspiração que foi Canguilhem para Foucault quando nos deparamos com as palavras usadas por Eribon (1990, p. 131) para se referir ao reconhecimento do primeiro pelo segundo em seus trabalhos arqueológicos, como lugar onde estaria “gravada a sua marca”.
Conhecido por não publicar “grandes volumes, mas contribuições delimitadas” (ERIBON, 1990, p. 130), Georges Canguilhem, nascido em 1904, no sudoeste da França, e sucessor de Bachelard, na Sorbonne, em 1955, publicou, em 1967, o que Eribon (1990, p. 131) considerou como um “artigo muito vigoroso e muito notado”: um comentário sobre As palavras e as coisas. Canguilhem estaria “irritado com as críticas dos sartrianos contra Foucault” (ERIBON, 1990, p. 131), já que As palavras e as coisas “[…] foi recebida com hostilidade nos meios de esquerda”, acusada pelos comunistas como “um manifesto reacionário” que negava a história, a historicidade e servia aos “interesses da burguesia” (ERIBON, 1996, p. 101).
Esse referido texto, responsável por “[…] tirar Georges Canguilhem da sua tradicional reserva” (ERIBON, 1996, p. 104), é “[…] quase inteiramente consagrado a rebater as críticas que foram feitas a Foucault a propósito da história”, já que o arqueólogo propõe uma analítica que se diferencia das análises dos historiadores da biologia, principalmente no que diz respeito às “relações de continuidade e descontinuidade entre Buffon, Cuvier e Darwin.” (ERIBON, 1996, p. 105). Ao longo do breve e denso texto, objeto desta resenha, dividido em cinco partes, Canguilhem destacou a importância e o alcance da abordagem de Foucault, ao operar ferramentas, ancoradas numa incontornável experiência histórica, que possibilitaram à sua arqueologia perceber “indícios de uma rede epistêmica”, em resumo, descrever uma “episteme” (CANGUILHEM, 2012, p. 19).
Daí, ser inegável, aqui, reconhecer a importância das refl exões realizadas em As palavras e as coisas, onde Foucault entrecruza filosofia e historicidade. Machado (2005, p. 100) destacou bem as palavras de Canguilhem, para quem esse texto, aqui resenhado, significava a “[…] impugnação do fundamento que certos filósofos creem encontrar na essência ou na existência do homem”. Impugnação essa denunciadora da falência da filosofia moderna em “[…] manter a distinção entre o empírico e o transcendental, ao tomar o homem das ciências empíricas, o homem que nasceu com a vida, o trabalho e a linguagem, como o modo de ser do homem da modernidade” (MACHADO, 2005, p. 100). O próprio Canguilhem já havia reconhecido quando de sua relatoria sobre a tese de Foucault, que este “[…] leu e explorou pela primeira vez uma quantidade considerável de arquivos”; que “[…] um historiador profissional não deixaria de ser simpático ao esforço feito pelo jovem filósofo” ao analisar docu mentos em primeira mão; e que “[…] nenhum filósofo poderá censurar a M. Foucault ter alienado a autonomia do juízo filosófico pela submissão às fontes da informação histórica” (ERIBON, 1990, p. 133). Como poderíamos compreender esse fenômeno – Foucault – à luz de suas críticas às perspectivas tradicionais a partir das quais se escreve história e na direção de sinalizar para inversões outrora tão distantes de serem compreendidas por aqueles que o atacavam? Tais afirmações conduzem-nos a reconhecer que emoldurar em um quadro o contexto dos anos 1960/1970, e ali inscrever o pensamento de Michel Foucault, sinalizar-nos-ia equívocos. Impreciso também seria se, nesse enquadramento, optássemos por anunciar a fixação de alguma teoria foucaultiana à propalada crise dos paradigmas, quando, no plano geral, os modelos explicativos, orientados por conceitos de “ordem”, “evolução”, “linearidade”, “racionalidade”, “progresso” e “verdade inquestionável” não respondiam satisfatoriamente às questões colocadas às Ciências Humanas; a mesma coisa se deu em um plano específico, quando se emergiu uma revisão e desestabilização das certezas no interior da disciplina da História, confrontada com a suspeita quanto ao seu estatuto de inteligibilidade diante da ampliação de seu campo temático, de suas abordagens e de seus objetos, enfim, de ruptura com as metanarrativas.
Não seria menos insuficiente dizer que aqueles anos fundaram o pensamento de Foucault em um contexto de dissolução da sociedade burguesa, de crescente uniformização da cultura de massas e de questionamento da posição de “centro” por parte daqueles movimentos sociais como os movimentos feministas, negro, gay etc.
Inegável, por outro lado, seria reconhecer que a transgressão do paradigma iluminista, moderno, racionalista, cartesiano foi possível com as histórias das pessoas inomináveis de Michel Foucault e a contestação da construção discursiva da História na qual os acontecimentos ganhavam sentidos, desconstruindo a ideia de “verdade” impressa nos documentos. Atualmente, o pensamento de Foucault imprimiu, no campo de estudos da História, uma subversão incontornável, o que tornaria qualquer desprezo a essa incursão uma ingenuidade, na mesma direção que seria percebida se tentássemos rotular suas problematizações em qualquer outro tipo de enquadramento. O pensamento de Michel Foucault, ou melhor, o seu estilo de pensamento não é um bloco monolítico a ser apreendido, domesticado dentro dos limites de uma teoria, ou sequer enquadrado em qualquer contexto social, econômico ou cultural a priori.
A esquiva destes aprisionamentos discursivos que contextualizam e tipologizam masmorras do pensamento pode ser percebida na leitura do texto de Georges Canguilhem sobre o livro As palavras e as coisas.
O que Michel Foucault quis dizer com o conceito de episteme quando o escreveu, ao longo do livro, As palavras e as coisas? Trata- -se de problemática que permeia as refl exões de Georges Canguilhem em “Michel Foucault: morte do homem ou esgotamento do Cogito?”, traduzido agora para a língua portuguesa pelas Edições Ricochete, inaugurando a Coleção Inominável, coordenada por Marlon Salomon.
Canguilhem assinalou o texto de Foucault com pistas que fizessem surgir “um ponto” de abertura de uma “avenida” (CANGUILHEM, 2012, p. 09), que indicasse uma analítica sobre a constituição do “homem” como objeto de investigação das ciências humanas, distante de uma história social de uma ciência, e próxima, por outro lado, de uma rede de enunciados. O texto decifra os contornos de uma chave, usada e elaborada simultaneamente pelo filósofo francês para abrir sentidos em textos, diga-se de passagem, originais, empoeirados e desprezados por estudiosos. Chave essa da qual o leitor de Foucault pode lançar mão para encontrar não o seu proprietário ou inventor, não para revelar algo ou fenômeno escondido, à espera da iluminação. Mas uma chave a ser forjada no movimento de seu uso, a ser decriptada na direção de sinalizar para “a sucessão descontínua e autônoma das redes de enunciados fundamentais”, sucessão essa que “[…] interdita toda ambição de reconstituição do passado ultrapassado” (CANGUILHEM, 2012, p. 15).
A essa altura, podemos afirmar, conforme o texto de Canguilhem, que já não é mais possível recusar a incontornável presença da historicidade na constituição da cultura, em recusa a qualquer isolamento de Foucault a um tipo de pensamento que sonhasse naturalizar a cultura ou que aspirasse a superar, progressivamente, uma contradição (CANGUILHEM, 2012, p. 11). A analítica deste arqueólogo exuma descontinuidades radicais – fronteiras entre pensamentos possíveis de serem pensados e pensamentos que não podem mais ser pensados – sem receios em retomar pontos já abordados ou suspender o tráfego por questões não apropriadas naquele momento em que tecia As palavras e as coisas. Como a lâmina de uma katana de samurai, Foucault, que “[…] não tinha medo da morte […]” (VEYNE, 2009, p. 149), exercita a perigosa prática de pensar, “[…] correndo o risco de espantar-se e até de aterrorizar- -se consigo mesmo […]” (CANGUILHEM, 2012, p. 29), corta as palavras, decepa evidências, desentranha “condições práticas de possibilidades” (CANGUILHEM, 2012, p. 30) que constituíram o homem como objeto do saber e denuncia, com isso, o “sono antropológico” daqueles que tomavam o homem como um objeto dado para, daí em diante, fazer progredir, uma ciência.
Canguilhem, por sua vez, afia ainda mais a lâmina de Foucault em sua obra traduzida por Fábio Almeida. José Ternes e Marlon Salomon afinam-se, respectivamente, no prefácio e na gestão da coleção inaugurada pela Edições Ricochete. Os cinco estudiosos aqui citados nos permitem abdicar do recurso do contexto como explicador de um fenômeno. Longe disso, possibilitam uma transgressão do pensamento ao percorrer a rede de enunciados proposta pela episteme de Foucault, de forma a recusar as raízes, a origem ou a iden tidade fixa do objeto. Os referidos estudiosos elucidam a percepção de um “ponto”, um caminho, uma “avenida”, para além das estruturas engessadas, para além dos personalismos, mas na direção das descontinuidades, das rupturas, dos entrecruzamentos nos processos que o constituem. Foucault não se inscreve, portanto, em um quadro, mas o analisa no mesmo movimento em que o constitui, através 447 Thiago Fernando Sant’Anna. da sua “técnica de incursão reversível” (CANGUILHEM, 2012, p.19). Ele não lê um mundo previamente dado como um texto, mas o observa como quem observa o quadro inscrito, simultaneamente, em seu processo de pintar. Canguilhem afia o estilo de pensamento de Foucault, enfatizando, como um argumento em contra-ataque, o “sono antropológico” – termo de Michel Foucault – que definia “[…] a segurança tranqüila com a qual os promotores atuais das ciências humanas tomam como objeto dado aí antecipadamente para seus estudos progressivos o que, de início, era apenas seu projeto de constituição” (CANGUILHEM, 2012, p. 29). Em seu artigo, Canguilhem destaca a importância do conceito de episteme no livro As palavras e as coisas, em que o filósofo analisa, constitui, elabora uma “técnica laboriosa e lenta” (CANGUILHEM, 2012, p. 16), que percorre por Borges, Velásquez, passando por Cervantes, na reconstituição de uma rede de saberes que faz emergir as Ciências Humanas e o homem como sujeito e objeto deste saber, anunciando a morte do homem e o esgotamento do Cogito, em um mesmo ataque.
Referências
CANGUILHEM, Georges. Michel Foucault: morte do homem ou esgotamento do Cogito? Tradução de Fábio Ferreira de Almeida. Goiânia: Edições Ricochete, 2012. (Coleção Inominável)
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VEYNE, Paul. Foucault. O pensamento, a pessoa. Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2009.
Thiago Fernando Sant’Anna – Doutor em História pela Universidade de Brasília, com pós-doutorado em Arte e Cultura Visual, pela Universidade Federal de Goiás. Professor do Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual, Universidade Federal de Goiás/ Faculdade de Artes Visuais. Docente do curso de Serviço Social da Universidade Federal de Goiás/ Campus Cidade de Goiás. E-mail: tfsantanna@yahoo.com.br.