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A Arte da Guerra | Sun Tzu
Em julho de 2008, Adam Sun (1953-2008) publicava na Revista Piauí uma séria – e muito bem humorada – crítica as inúmeras traduções do livro Sunzi Bingfa 孫子兵法, tradicionalmente vertido para o português como A Arte da Guerra de Sun Tzu (Sun 2008). Adam Sun era chinês de nascença, mas foi criado no Brasil e dominava perfeitamente tanto português como chinês. Ele trabalhou como checador de jornais e revistas como Veja, Época e Piauí, função que tinha por objetivo avaliar a procedência e veracidade de informações, revisar equívocos de cronologia ou de citação e mesmo, se a construção do texto estava clara e conseguia entregar o conteúdo pretendido. Ou seja, Sun era um caçador de Fake News (muito antes delas virarem moda), acidentais ou não, que poderiam frequentar as redações onde trabalhara (Redação da Piauí 2008).
Com essas qualificações em mãos, ele decidiu investigar as centenas de versões do livro Sunzi Bingfa que existiam no mercado, para descobrir que não havia uma sequer que fosse uma tradução direta do chinês. Todas as versões disponíveis eram traduções de traduções, plágios e recriações, na sua maioria feita as pressas e de má qualidade. Um dos maiores sucessos editoriais no Brasil em termos de vendagem, A Arte da Guerra era, na verdade, um problema literário sério, e não podíamos contar com uma versão confiável do mesmo. Leia Mais
A Arte da Guerra | Sun Tzu
Em julho de 2008, Adam Sun (1953-2008) publicava na Revista Piauí uma séria – e muito bem humorada – crítica as inúmeras traduções do livro Sunzi Bingfa 孫子兵法, tradicionalmente vertido para o português como A Arte da Guerra de Sun Tzu (Sun 2008). Adam Sun era chinês de nascença, mas foi criado no Brasil e dominava perfeitamente tanto português como chinês. Ele trabalhou como checador de jornais e revistas como Veja, Época e Piauí, função que tinha por objetivo avaliar a procedência e veracidade de informações, revisar equívocos de cronologia ou de citação e mesmo, se a construção do texto estava clara e conseguia entregar o conteúdo pretendido. Ou seja, Sun era um caçador de Fake News (muito antes delas virarem moda), acidentais ou não, que poderiam frequentar as redações onde trabalhara (Redação da Piauí 2008).
Com essas qualificações em mãos, ele decidiu investigar as centenas de versões do livro Sunzi Bingfa que existiam no mercado, para descobrir que não havia uma sequer que fosse uma tradução direta do chinês. Todas as versões disponíveis eram traduções de traduções, plágios e recriações, na sua maioria feita as pressas e de má qualidade. Um dos maiores sucessos editoriais no Brasil em termos de vendagem, A Arte da Guerra era, na verdade, um problema literário sério, e não podíamos contar com uma versão confiável do mesmo. Leia Mais
The Sleepwalkers: How Europe Went to War in 1914 – CLARK (LH)
CLARK, Christopher M. The Sleepwalkers: How Europe Went to War in 1914. London: Penguin Books, 2013. Resenha de: ASSIS, Jóse Luiz. Ler História, n.66, p.161-169, 2014.
1 Christopher Munro «Chris» Clark é um historiador australiano que estudou na Grammar School na University of Sydney e na Freie Universität Berlin. Desenvolve a sua carreira académica em Inglaterra como professor de História Moderna da Europa na Faculty of History, St. Catherine’s College na University of Cambridge. Os seus interesses estão direcionados para o estudo da História da Alemanha e da Europa Continental. No seu primeiro trabalho The politics of conversion: missionary Protestantism and the Jews in Prussia, 1728-1941. Oxford: University Press, que compreende o estudo de, sensivelmente, dois séculos de atividade protestante, analisa os aspectos teológico, social e racial na relação entre a maioria da população cristã e a minoria judaica na Prússia Oriental. Desde então, publicou vários artigos e ensaios sobre temas relacionados com a religião, a política e a cultura e livros dos quais destacamos: Kaiser Wilhelm II. Harlow, England & New York: Longman; Culture Wars: secular-Catholic conflict in nineteenth-century Europe. Cambridge UK & New York: Cambridge University Press; Iron kingdom: the rise and downfall of Prussia, 1600-1947. Cambridge: Belknap Press of Harvard University Press.
2 Christopher Clark, neste seu trabalho, apresenta-nos um novo olhar sobre as origens da Primeira Grande Guerra Mundial. Afasta-se do estudo das grandes batalhas e dos danos provocados pela guerra que de certo modo têm caracterizado a historiografia (Gilbert: 2013) e centra-se nos factos e nas relações políticas e diplomáticas complexas que levaram os diferentes líderes europeus ao conflito. Com um carácter marcadamente científico, mas também didático, o docente e investigador da Faculty of History da University of Cambridge sintetiza de forma pragmática, mas extremamente esclarecedora, a produção científica da sua investigação sobre as origens da Guerra realizada nos arquivos das principais potências envolvidas (Clark, 2013, p. XXVIII). A partir da narrativa dos factos e dos cortes de relação entre os principais centros de decisão política localizados em Viena, Berlim, São Petersburgo, Paris, Londres e Belgrado, recria o itinerário que levou as nações à guerra (Ibid.). Faz uma análise das décadas de história que antecederam os acontecimentos de 1914 e pormenoriza as incompreensões entre os diferentes líderes europeus que em pouco mais de um mês atiraram a Europa para uma situação de conflito (Ibid.). Percebe-se a necessidade do autor em dividir o seu livro em três partes estruturantes. Na parte I – Caminhos para Sarajevo compreende os pontos 1 e 2, Fantasmas Sérvios e Império sem Qualidades, focaliza-se no estudo dos dois antagonistas, a Sérvia e a Áustria-Hungria, seguindo pormenorizadamente a sua interação até às vésperas do assassinato de Sarajevo (Id., 2013, pp. 3-99). Na parte II – Um continente dividido compreende os pontos 3. Polarização da Europa, 1887-1907, 4. As muitas vozes da política externa europeia, 5. Envolvimentos Balkan, 6. Última oportunidade: desanuviamento e perigo, 1912-1914. Nesta parte afasta-se da abordagem narrativa dos acontecimentos para procurar responder a quatro questões em cada um dos quatro pontos: como ocorreu a polarização da Europa em blocos opostos? Como é que os Balcãs, uma região periférica afastada dos centros de poder e da riqueza da Europa, deram lugar a uma crise de enorme grandeza? E, por fim, como é que o sistema internacional, que parecia estar numa era de détente proporcionou uma guerra geral entre as nações? (Id., 2013, pp. 121-361). Na parte III – Crises, compreende os pontos 7. Assassinato em Sarajevo, 8. O alargamento do círculo, 9. Os franceses em São Petersburgo, 10. O Ultimato, 11. Tiros de aviso, 12. Últimos dias. Esta parte começa com os assassinatos do arquiduque Francisco Fernando (1863-1914) e de sua mulher Sofia Shotek (1868-1914) em Sarajevo e apresenta uma narrativa da crise de julho de 1914. Examina as interações entre os centros políticos, referenciando as decisões que proporcionaram o evoluir da crise (Id., 2013, pp. 367-562). É um argumento central deste livro que os acontecimentos de julho de 1914 só fazem sentido quando analisados a partir das medidas dos principais decisores. Nesse sentido, o autor mais do que simplesmente rever as consequências da crise internacional que antecedeu o início da guerra, procurou entender como é que esses eventos foram produzidos em narrativas que estruturaram as percepções e motivaram os diferentes comportamentos e reconstrói as posições ocupadas pelos principais atores durante o Verão de 1914 (Id., 2013, p. XXIX).
3 Sobre as origens da Guerra, Clark começa por afirmar que os in-
vestigadores devem ter em atenção as interações multilaterais entre as cin-
co grandes nações (a Alemanha, a Áustria-Hungria, a França, a Rússia e a Grã-Bretanha) e a Itália e outros atores soberanos estrategicamente importantes como o Império Otomano e os Estados da Península Balcânica, região de grande tensão e instabilidade política nos anos que precederam a guerra (Id., 2013, p. XXIV). Esta perspectiva é também considerada por MacMillan (2014, pp. 541, 573-612) no seu recente estudo A Guerra que Acabou com a Paz. Contudo, Gilbert (2013) no seu trabalho a Primeira Grande Guerra, afasta-se desta ótica e concentra-se especificamente nos paradigmas da guerra.
4 Clark (2013, p. XXIV) alerta para outro aspecto que considera importante: o facto de as políticas dos Estados envolvidos não serem totalmente transparentes. As estruturas de soberania que criaram e implementaram as políticas durante a crise estavam extremamente desunidas o que criou incertezas quanto à localização do poder que moldava a política dentro dos executivos (Ibid.). As políticas não vinham diretamente do topo do sistema político, podiam emanar de pontos periféricos: do aparelho diplomático, da hierarquia militar, de funcionários ministeriais e de embaixadores que muitas vezes eram os decisores políticos (Ibid.). Neste contexto, também MacMillan (2014, p. 23) alerta para os aspetos relacionados com as forças, as ideias, os preconceitos, as instituições, os conflitos e, obviamente, os atores políticos que tinham o poder de decisão de desencadear ou de parar a guerra. Clark (2013, p. XXIV) anota a sua preocupação com as fontes existentes na medida em que em consequência da sua natureza ajudam a explicar a diversidade de estudos e interpretações sobre as origens da Guerra. Realça que as publicações documentais europeias alemãs, austríacas, francesas, inglesas e soviéticas, além do seu inegável valor histórico para a compreensão dos acontecimentos que levaram à guerra, contêm omissões tendenciosas que criaram uma imagem desequilibrada do papel de cada nação nos acontecimentos do prelúdio da Guerra (Id., 2013, p. XXI). Do mesmo modo, as «memórias» de estadistas, de militares e de outros decisores, embora indispensáveis, também são problemáticas (Ibid.). Algumas são mesmo duvidosas em questões importantes. Clark dá-nos como exemplo: as reflexões sobre a Guerra publicadas em 1919 pelo chanceler alemão Theobald von Bethmann Hollweg (1856-1921) pouco referem sobre os assuntos em que ele e os seus colegas estiveram envolvidos durante a crise de julho de 1914; as «memórias» políticas do ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergey Dmitrievich Sazonov (1860-1927), são intermitentemente falsas, pomposas e desprovidas de informação sobre a sua ação nos assuntos mais sensíveis; as «memórias» do presidente Raymond Poincaré (1860-1934) publicadas em dez volumes são propagandísticas e encerram discrepâncias entre o recordar dos acontecimentos durante a crise e os apontamentos no seu diário; as «memórias» do British Foreign secretary Sir Edward Grey (1862-1933) são vagas sobre a delicada questão dos compromissos que tinha assumido com as potências da Entente antes de agosto de 1914 e o papel desempenhado durante a crise (Id., 2013,
p. XXII). Muito permanece desconhecido acerca dos contactos entre Viena e Berlim quanto às medidas a tomar em resposta aos assassinatos de Sarajevo. As atas da reunião realizada em junho de 1914 em São Petersburgo entre os líderes políticos franceses e russos, que são da maior importância para se compreender esse momento, nunca foram descobertas e os responsáveis diplomáticos franceses não encontraram a versão francesa (Id. 2013, p. XXIV). Esta documentação sobre as origens da Grande Guerra consultada e divulgada por Christopher Clark representa um incomensurável acervo colocado à disposição dos investigadores para apoio à elaboração dos seus estudos.
5 Clark (2013, p. 3) deu início à sua obra sobre as causas da origem da Primeira Grande Guerra Mundial com o assassinato de Alexandre I (1876-
-1903) rei da Sérvia e da rainha Draga (1864-1903) em Março de 1903 pela rede terrorista secreta «Mão Negra» que anos depois, em Sarajevo, capital da província Austro-Húngara da Bósnia e Herzegovina, estaria envolvida no assassínio do arquiduque Francisco Fernando (1863-1914) a 28 de junho de 1914, o que daria origem ao conflito militar mais sangrento da Europa.
6 Na primeira parte do livro delineia os contornos do sistema internacional, em que a Europa em 1913 parecia estar a entrar num período de détente (Id. 2013, pp. 3-118). Partes da história são familiares: a Aliança Germano-Austríaca (1879); a Aliança Franco-Russa (1894-1917); a Entente Cordiale entre a França e a Grã-Bretanha (1904); e o mais dramático de tudo a Entente Anglo-Russa ou Convenção Anglo-Russa (1907) entre os antigos adversários, a Grã-Bretanha e Rússia. De forma brilhante coloca o conflito no contexto da época, mostrando como nos momentos que precederam 1914 a Europa estava numa situação instável e dilacerada por fações étnicas e nacionalistas (Id., 2013, p. XXVI). Esta ideia de uma Europa despedaçada está presente em estudos realizados por Gilbert (2013, pp. 29-49) e MacMillan (2014, p. 22).
7 Devemos ter presente que recentemente, os estudiosos das origens da Grande Guerra acreditavam que a questão da destruição de séculos de progresso técnico e científico na Guerra de 1914-1918 estava resolvida com a opinião de que a Alemanha teria avançado para o conflito temendo o crescente poder Russo (Stone: 2011, 30). Esta corrente germanocentrica começou a perder sentido com os estudos que têm vindo a ser publicados, nomeadamente por Clark nesta sua obra onde é restabelecida a importância dos Balcãs num conflito militar que teve o seu início a 28 de Março de 1914 com o assassinato em Sarajevo. O autor, além de outros pontos, descreve o crescimento do antagonismo entre a Áustria-Hungria e a Sérvia, passando pela anexação da Bósnia-Hersegovina em 1908 e as Guerras Balcânicas de 1912-1913 em que a Sérvia conseguiu aumentar a sua área territorial. Faz uma descrição da diplomacia europeia como se de uma peça de teatro do dramaturgo Harold Pinter se tratasse na qual todas as personagens se conhecem muito bem umas às outras, mas não se estimam (McMeckin, 2014, p. 4). Estabelece o seu ponto de vista numa discussão «hipertrófica de masculinidade» em que os intérpretes são todos homens, contrariamente ao que acontecera anos antes em que predominavam as mulheres de Estado (Idid.). Laqueur (2014, pp. 11-16) acha a discussão de Clark em torno da «crise de masculinidade» pouco convincente porque é muito difícil de afirmar se Bismark era mais seguro na sua masculinidade do que von Moltke. Contudo, os problemas com a «masculinidade» têm estado no centro das guerras desde o século XII a.C. (Id., 2014, p. 8). Parece-nos fazer mais sentido o argumento levantado por MacMillan (2014, pp. 22, 26-27) relacionado com as exigências impostas pela honra e pela virilidade que implicavam não recuar nem demonstrar sinais de fraqueza, ou o darwinismo social que classificava as sociedades humanas como se fossem espécies e promovia a fé não só na evolução e no progresso, mas também na inevitabilidade da luta. Devemos estar conscientes que se estava na presença de uma sociedade bélica, guerreira que aparentemente não é relevada pelo autor.
8 No entender de Clark (2013, p. XVI) a crise de julho de 1914 e o assassinato em Sarajevo são tratados em muitos estudos como um mero pretexto – uma ocorrência com pouca influência sobre as forças que originaram o conflito. Esta ideia tem vindo a ser alterada, nomeadamente com o estudo de MacMillan (2014, pp. 663-697) que lhe atribui especial importância. Trabalhos recentes mostram que não foram os acontecimentos em si mesmos que levaram à guerra, mas o uso que foi feito desse acontecimento (assassinato em Sarajevo) é que levou as nações ao confronto militar (Richar & Holguer: 2004, p. 46). MacMillan, (2014, p. 672) entende que o assassinato de Sarajevo foi o momento oportuno para a Áustria-Hungria resolver a questão dos eslavos do sul, o que significava a destruição da Sérvia e o primeiro momento para a afirmação do domínio Austro-Húngaro nos Balcãs. Clark, (2013, p. XVI) procurou compreender a crise de julho de 1914 como um evento contemporâneo, no seu dizer o mais complexo dos tempos contemporâneos e talvez de todos os tempos. Está mais interessado em compreender como é que a guerra aconteceu do que saber a razão do seu surgimento. Essa visão levou o autor a abordar o acontecimento em duas vertentes distintas. As questões de «como» e «porquê», embora inseparáveis, levam-nos em diferentes direções. A questão do «como» levou o autor a dirigir a sua atenção para a sequência das interações que produziram determinados resultados. A questão do «porquê» dirige-nos para as causas remotas – o imperialismo, o nacionalismo, o armamento, as alianças, a alta finança, as ideias de honra nacional, a mecânica de mobilização. Laqueur (2014, pp. 11-16) também partilha da ideia de que a guerra teve grandes causas: a crise do imperialismo; o nacionalismo em finais do século XIX; a corrida ao armamento; o sistema de alianças; as políticas internas de esquerda e direita; e como referiu o professor Arno Mayer as grandes pressões que começaram a varrer os velhos regimes da Europa em 1789 e finalmente o conseguiram em 1918 (p. 4). Também a historiadora MacMillan (2014, p. 22) aponta nesse sentido.
9 Na análise de Clark, (2013, p. XXV) complexa, brilhante e esclarecedora, podemos ver debatida a ideia de se atribuir a culpabilidade da tragédia apenas a uma nação – a Alemanha. A este respeito importa salientar que também a historiadora MacMillan (2014, pp. 32-33) levanta a questão da culpabilidade da guerra, uma guerra, em que os diferentes Estados proclamavam a sua inocência e apontavam o dedo uns aos outros. Stone (2011, p. 30) por seu lado, indica dois aspectos que poderão tê-la precipitado: a construção da marinha alemã (perfeitamente desnecessária) cujo propósito era atacar a Grã-Bretanha e os militares alemães que queriam claramente uma Guerra, sendo surpreendidos depois no dia 31 de julho pela mobilização geral de São Petersburgo. Clark analisa e evidencia a ação dos diferentes atores em termos de carácter, influência política interna e externa e também de percepção geopolítica. Coloca a ação humana com todas as suas fraquezas, equívocos, falta de lógica e emoções na narrativa dos acontecimentos. Recria as diferentes alianças e crises que antecederam o assassinato do arquiduque Francisco Fernando para depois destacar o elemento humano cujos erros originados pelas más decisões levaram ao detonar da catástrofe mundial.
10 A mestria das últimas duzentas páginas de Os Sonâmbulos está na autoridade científica com que o autor nos elucida de como o desastre aconteceu. Releva que a 6 de julho a Alemanha parecia falar a uma só voz em resposta às súplicas austro-húngaras que o Kaiser Guilherme II e o seu chanceler Theobald von Bethmann-Hollweg (1856-1921) prometeram apoiar, garantindo que o exército estava pronto. Esta ideia sugere que, contrariamente à falta de planos de guerra e mesmo de uma guerra localizada, os líderes alemães demonstram que o seu exército estava preparado para um eventual conflito militar. Foi a conhecida situação do designado «cheque em branco» da Alemanha que alguns historiadores defendem que precipitou a eclosão da guerra (MacMillan: 2014, 705). Contudo, para Clark, (2013, pp. 469-470) existem fortes sinais de que a Alemanha não pretendia a Guerra, mas antes limitá-la a uma guerra local entre a Áustria-Hungria e a Sérvia. Acrescenta que o exército alemão não tinha elaborado os seus planos para uma guerra geral e o Kaiser acreditava que o conflito seria realmente localizado. MacMillan (2014, p. 18) contraria essa ideia e anota que, de facto, a Alemanha tinha planos que implicavam uma guerra em duas frentes, com uma ação de contenção contra a Rússia, o inimigo do leste, e uma rápida invasão e derrota da França a oeste. Entretanto, os alemães esperavam que a Bélgica, país neutro, aceitasse a situação tranquilamente, enquanto as tropas alemãs atravessassem o seu território em direção ao Sul. Essa suposição revelou-se errada, as autoridades belgas decidiram resistir, o que destruiu as pretensões alemãs e levou a Grã-Bretanha, depois de alguma hesitação, a entrar na guerra contra a Alemanha (Id., 2014, p. 18 e 29).
11 Devemos ter presente que a elite militar alemã tinha o exército organizado de modo a que em 17 dias conseguiria colocar 3.000.000 de soldados, 86.000 cavalos, peças de artilharia e respectivas munições em prontidão operacional na fronteira (Stone: 2011, p. 31). Esta versão de MacMillan e de Stone que corroboro, contraria Clark quanto à inexistência de um plano geral de guerra alemão e revela-nos que a Alemanha tinha planos de ação para um conflito de grandes dimensões. Tendo como suporte as opiniões de MacMillan e Stone consideramos que qualquer uma das grandes potências atuais com todo o seu poder científico e tecnológico dificilmente colocaria no mesmo período temporal aquele número de efetivos em prontidão operacional. Nenhuma nação do mundo prepara um efetivo militar daquela dimensão se não tiver objectivos políticos-militares muito precisos.
12 Na Alemanha, também não se entendeu o significado do afastamento do primeiro ministro russo Vladimir Nicolayevich Kokovtsov (1853-1943). Tanto os russos como os britânicos acreditavam que o partido pro-alemão estava em ascensão. Se os russos, de facto, pretendiam aproveitar a ocasião para entrar numa guerra, o momento seria oportuno, uma vez que era melhor nesse momento do que mais tarde. A Alemanha tinha cooperado com a Grã-Bretanha nos Balcãs e, por esse motivo, acreditava que a Inglaterra não se envolveria.
13 O outro aspecto tem a ver com o ultimatum Austro-Húngaro à Sérvia enviado a 23 de julho com as exigências ao governo do reino da Sérvia que poderia ter sido um documento muito diferente. O primeiro lorde do almirantado britânico Winston Churchill escreveu à sua mulher que a Europa «tremia na eminência de uma guerra geral» e que o ultimatum era «o mais insolente documento do seu género alguma vez imaginado» (Gilbert: 2013, p. 60) cujo objetivo seria a criação de um «casos belli» com a Áustria-Hungria a invadir e a punir a Sérvia. A ousadia das exigências referidas no ponto 5 e 6 do ultimatum, frequentemente referido como um impedimento ao compromisso, era uma certeza de um conflito nos Balcãs e, de forma mais ampla, eventualmente uma guerra Mundial. O primeiro deles exigia que a Sérvia permitisse «Aceitar a colaboração de organizações do governo Austro-Húngaro na supressão de movimentos subversivos direcionados contra a integridade territorial da monarquia» e o segundo a «Iniciar uma investigação judicial contra os cúmplices da conspiração de 28 de junho que estão em território sérvio, com órgãos delegados pelo governo Austro-Húngaro fazendo parte da investigação». A França, a Rússia e Belgrado entenderam a atitude da Áustria-Hungria como um ultraje sobre a soberania Sérvia e que o ultimatum era uma declaração de Guerra. Segundo Clark (2013, p. 303) o ultimatum austríaco violou menos a soberania Sérvia que o Acordo de Ramboillet 1999, que Henry Kissinger entendeu como «uma provocação uma desculpa para iniciar o bombardeamento». Para Clark (2013, p. 385) não está claro que foi o papel da Sérvia no plano de 28 de junho e o seu cumprimento que originaram a situação. Além disso, parece que o primeiro ministro sérvio Nikola P. Pašić e os seus colegas estavam concentrados no ultimatum e em evitar uma guerra. Para o autor, foi o pedido de resistência da Rússia à Sérvia e a mobilização do exército que mudaram a situação. Enquanto isso, representantes franceses e russos reuniam-se em São Petersburgo. Aconteceu que mesmo depois disso ocorreram alguns momentos de indecisão (2013, p. 426).
14 A 29 de julho, na resposta ao famoso telegrama «Querido Nicky», o Czar Nicolau II não podia assinar a ordem de mobilização geral, mas finalmente a 30 de julho assinou (p. 352). Segundo Clark (2013, pp. 358-361), os líderes britânicos, depois de várias hesitações e expetativas de se conter a guerra quanto à invasão da Bélgica pela Alemanha, que aliás não consideravam um «casos belli» desde que o exército alemão ficasse a sul da linha Sambre-Mense, a 4 de julho declaravam guerra à Alemanha e a Entente fortalecia a sua aliança.
15 Na sua conclusão, Clark apresenta uma explicação geral e esse é o ponto em que Laqueur entende que Clark está errado. Para Clark (2013, p. 562) os «Protagonistas de 1914» eram sonâmbulos, vigilantes mas adormecidos, assombrados por sonhos, ainda não despertos para a realidade do horror que estava prestes a trazer ao mundo. Para Laqueur (2014, pp. 11-16), há três aspectos errados em tudo isso. Em primeiro lugar, os «passos calculados e vigilantes» de que nos fala ao longo das páginas não constituem sonambulismo. Em segundo lugar, a evidência que Clark mostra para a falta de visão dessa época não é mais do que um gesto baseado num artigo de auto-congratulação publicado em Le Figaro de 5 de Março de 1913 no qual se exalta a «força terrível» das armas francesas e a organização médica da Nação. Em terceiro, de acordo com Laqueur (2014,
pp. 11-16) era mais fácil não dar importância aos horrores provocados por uma guerra convencional do que seria nos momentos posteriores a uma guerra nuclear. Por isso, a Guerra Fria foi a maior guerra da história do mundo e houve maior sensibilidade dos atores políticos para os horrores que podia provocar do que houve nos decisores que levaram, na altura, à Primeira Grande Guerra (Ibid.).Ver o artigo de Le Figaro como sonambulismo é não perceber a questão importante do porquê dos contemporâneos perfeitamente alerta imaginarem o curso da guerra de forma confiante e não conseguirem ver as evidências de que a guerra seria horrorosa (Ibid.). Os protagonistas europeus que tiveram responsabilidades na guerra deveriam saber que a Guerra Civil Americana tirou a vida a centenas de milhares de homens quando em campos abertos progrediam contra o fogo das armas inimigas. Posto isto, Laqueur reforça a sua crítica, lembrando que a História da imaginação não é uma história de Sonambulismo (Ibid.).
16 Os Sonâmbulos é uma obra muito estimulante que combina uma investigação minuciosa com uma análise sensível dos acontecimentos que levaram a Europa a um conflito cruel. Pela extraordinária organização, quantidade e qualidade das fontes consultadas e natureza científica dos seus conteúdos apresentados, é um estudo que os futuros investigadores das origens da Primeira Grande Guerra Mundial não poderão deixar de consultar.
17 Como a obra de Barbara Tuchman The Guns of August publicada em 1960, foi uma referência para o seu tempo, também Os Sonâmbulos é um livro para os tempos de hoje quanto ao seu realce e contingência no que diz respeito ao que o autor designa de múltiplos «mapas mentais».
José Luís Assis – CEHFCi – UE. IHC – UN. E-mail: joselassis@gmail.com.
Keynes: The return of the master – SKIDELSKY (NE-C)
SKIDELSKY, Robert. Keynes: The return of the master. Londres: Penguin Books, 2009. Resenha de: FRACALANZA, Paulo Sérgio. As lições de Keynes. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.88, dez, 2010.
O título é auspicioso: o retorno do Mestre. O Mestre é John Maynard Keynes e Lord Skidelsky não oculta seu otimismo: para compreendermos as razões da grave crise econômica atual e, quem sabe, evitar uma sucessão de novas débâcles, é necessário reabilitar Keynes.
Muitos economistas não abraçarão o título provocativo, mas por diferentes razões. Alguns pretenderão, a exemplo de Gregory Mankiw, com indisfarçável temor, negar que o debate realmente importe. Talvez concedam em dizer que Keynes foi um atento observador dos eventos econômicos de seu tempo, mas pouco ou nada mais do que isso1. Outros, na trilha de Joseph Stiglitz, arvorandose como fiéis discípulos de Keynes, dirão sem pudores que ele pouco teria a dizer sobre a crise atual, uma vez que sua compreensão dos mercados financeiros era rudimentar2. Outros talvez, como Paul Krugman, mesmo admitindo alguma simpatia à recuperação das ideias de Keynes, tomarão precauções em rechaçar a apreciação inconveniente de Skidelsky de que a reflexão econômica tenha seguido um rumo absolutamente desacertado3.
Mas seguramente haverá economistas que se jubilarão com Skidelsky. Talvez se perguntem o porquê do retornode Keynes, uma vez que creem nunca ter abandonado seus ensinamentos. A questão é : quantos de nós estariam realmente dispostos a abraçar, para além dos estreitos limites das fronteiras do pensamento que a Economia se impôs, as perguntas que Keynes ousou fazer?
A provocação é bem vinda. RobertS kidelsky, nascido em 1939 em Harbin, na China, de pais súditos britânicos com ascendência russa, é um dos mais eminentes historiadores econômicos em atividade, atuando como professor emérito de Economia Política da Universidade de Warwick, na Inglaterra. Autor da mais prestigiosa biografia sobre Keynes, escrita em três caudalosos volumes, é referência incontornável para aqueles interessados no estudo do pensamento do grande economista de Cambridge4.
Em sua obra mais influente, A teoria geral do emprego, do juro e da moeda, de 1936, Keynes lamentava que a Economia ocupasse papel de tamanha importância na organização da vida social. Ansiava pelo dia em que ela ocuparia seu devido lugar – no banco de trás – e não mais estivesse, como então sucedia, a guiar a carruagem da História. Para ele, mesmo os homens de negócios, que em sua empáfia se criam livres de qualquer influência intelectual, eram escravos de algum economista morto5.
A Teoria Geral marca o nascimento da macroeconomia, campo de especulação científica dedicado a interpretar as relações de agregados estatísticos como, entre outros, o volume de emprego, a composição da demanda efetiva e a taxa de juros, na tentativa de compreender o (mau) funcionamento do sistema econômico. Keynes pretendia tornar inteligíveis – no contexto da crise de 1929 e na contramão da doutrina hegemônica à época – as razões para o desemprego da força de trabalho e os remédios para debelar esse flagelo.
Naquele período, os alarmantes níveis de desemprego que se verificavam nos Estados Unidos e na Europa seguiamse a uma profunda crise creditícia e de desorganização da produção que combalira a confiança dos capitalistas. Assim como Karl Marx, Keynes compreendera que as assimetrias de poder eram constitutivas das relações sociais sob a égide do capital. Em face de conjunturas nada alentadoras e prognósticos sombrios, os detentores do capital simplesmente não desejavam contratar mais trabalhadores, por mais que houvesse muitos dispostos a oferecer seu trabalho por salários irrisórios. A natureza do desemprego era involuntária, clamava Keynes. Mais do que isso, Keynes asseverava que, a depender dos mecanismos de mercado, a economia poderia permanecer indefinidamente numa situação de desemprego de sua força de trabalho.
O termo involuntário não fora escolhido ao acaso: ao referirse assim ao fenômeno do desemprego, Keynes forçava a comparação com o desemprego voluntário da tradição dominante que o concebia como fruto de uma escolha racional – e maximizadora – de alguns trabalhadores que, em virtude de suas preferências individuais, se recusavam a aceitar os empregos disponíveis ao cotejar os salários que se ofereciam com o penoso esforço requerido no consumo de sua força de trabalho.
É possível imaginar o assombro daqueles familiarizados com as lidas do pensamento então hegemônico ao tomarem contato pela primeira vez com A Teoria Geral. Keynes planejara seu ataque em múltiplas frentes. Insistia sobre a importância de se compreender a economia como uma economia monetária da produção, na qual a moeda desempenha papel de suma importância e não apenas por consubstanciar a forma mais geral da riqueza, conferindo a seu detentor a possibilidade de comando sobre o trabalho alheio, mas fundamentalmente por representar em simultâneo os papéis – somente em aparência contraditórios – de refúgio contra a incerteza e de objeto de desejo compelindo à valorização do capital. Insistia sobre a importância das intervenções estatais a sustentar a demanda efetiva sempre que as decisões privadas de gasto se mostrassem insuficientes. Insistia sobre o vazio das proposições que prometiam a redenção no porvir, pois, segundo seu célebre adágio, “no longo prazo, todos estaremos mortos”. As heresias eram tantas e tão agudas que admitilas significaria comprometer irremediavelmente as fundações da tradição dominante.
Mas se esses fatos são bem conhecidos e se a importância de Keynes ao longo do século XX é incontroversa, também não é nada difícil imaginar o assombro daqueles não familiarizados com as práticas rudes de nossa lúgubre ciência ao tomarem contato com a moderna macroeconomia ensinada nas melhores escolas. E aqui nos referimos apenas à tradição dominante, ao assim intitulado mainstream.
Skidelsky, sem dispensar uma pitada de fina ironia, faz, no segundo e quinto capítulos de seu livro, uma competente descrição da história do pensamento e do estado atual da tradição dominante da macroeconomia. Com linguagem clara e acessível, convidanos a uma visita guiada aos principais conceitos da macroeconomia contemporânea e organiza uma clara demarcação entre o pensamento original de Keynes e as versões mais recentes da tradição dominante.
Como recurso, o autor retoma o debate sobre a posição dos economistas norteamericanos divididos entre freshwaters e saltwaters (literalmente, “de água doce” e “de água salgada”), respectivamente, os economistas das universidades da região dos Grandes Lagos (Chicago, entre outras) e os economistas das costas leste e oeste dos Estados Unidos (Berkeley, Harvard, MIT, entre outras).
De forma um pouco esquemática, os primeiros, que comporiam o grupo dos assim denominados economistas Novos Clássicos, atribuiriam as flutuações econômicas a mudanças no lado da oferta (choques tecnológicos, aumento do capital humano etc.) e afirmariam que o governo seria incapaz de alterar o nível de atividade econômica. Já os economistas saltwaters, representados pelos economistas Novos Keynesianos, dariam relevo ao papel da demanda na explicação do ritmo da atividade econômica e concederiam, não sem reticências, que o governo poderia ter um papel na atenuação dos ciclos de atividade6.
Independentemente das considerações que se possa fazer sobre a justeza dessa distinção, importa mesmo assinalar a apreciação mais geral de Skidelsky sobre o panorama atual da macroeconomia. Para ele, entre as posições de Novos Clássicos e Novos Keynesianos, de um ponto de vista essencialmente keynesiano, há muito mais semelhanças a unilas do que diferenças a separálas. Nesse sentido, ao esboçar em poucas linhas o recente programa de pesquisa da Nova Síntese Neoclássica, a reunir os esforços e os métodos de Novos Clássicos e Novos Keynesianos, Skidelsky sugere uma manifestação concreta dessa sua correta apreciação.
Contudo, ele talvez devesse ter poupado o leitor de alguns dispensáveis desvios no caminho que convida a percorrer: para os economistas a trilha é bem conhecida, mas muitos a considerarão rasa demais; para os não iniciados o percurso é pedregoso e não se chega a ver a paisagem. O risco, creio, é desorientar o leitor e induzilo a imaginar que a grave deficiência da macroeconomia moderna repousa na escolha equivocada das hipóteses e dos métodos de trabalho.
Melhor seria reforçar o que permanece o mais das vezes apenas subentendido: os autores do mainstream, Novos Clássicos ou Novos Keynesianos, compartilham de uma mesma visão de mundo. E essa visão diz respeito a uma crença particular na natureza do funcionamento do sistema capitalista. Creem que existem forças automáticas que (se destravadas) conduziriam a economia a uma situação de pleno emprego dos recursos. Acreditam que ofertantes e demandantes de mercadorias, inclusive da força de trabalho, se defrontariam no mercado como iguais. Compreendem a economia capitalista como uma economia de trocas (barter economy), em que ofertantes de variadas mercadorias se relacionam para a satisfação das necessidades de consumo. Nessa senda, encontramonos no paraíso hedonista.
Para melhor sugerir a influência das ideias de Keynes em seu tempo, Skidelsly procura então comparar os resultados econômicos de dois grandes períodos da história recente, mormente para os países desenvolvidos: aquele que se iniciou ao final da Segunda Grande Guerra e findou no início dos anos de 1970, conhecido como a golden age, e o período imediatamente subsequente que tem início com a referida crise e se encaminha até os dias de hoje. A estratégia consistiria em evidenciar que os melhores frutos colhidos nos anos dourados, quando comparados aos do período mais recente, se devem ao triunfo das políticas keynesianas no primeiro vis-à-vis a hegemonia das doutrinas neoliberais e não intervencionistas no segundo. No entanto, uma abordagem mais histórica teria sido mais convincente do que a ampla utilização de dados a que procedeu o autor. Ademais, a tarefa teria sido menos exigente, visto que os argumentos já estão todos lá perfilados: a ordem de Bretton Woods, a hegemonia benigna exercida pelos Estados Unidos, o objetivo do pleno emprego e a forte participação do Estado nos anos dourados. Em contraponto, a reafirmação da supremacia norteamericana, o desmonte da ordem internacional, o acirramento da concorrência com a emergência de novas potências, as políticas de desregulamentação dos mercados financeiros e as reformas liberalizantes nos anos do triunfo do Consenso de Washington.
Mas, sem dúvida, o grande trunfo de Skidelsky encontrase no interessante painel da vida e do pensamento de Keynes organizado ao longo dos capítulos 3 a 8. Como são várias as ideias instigantes – algumas incômodas, outras engenhosas, muitas provocativas e poucas absolutamente dispensáveis -, resgato algumas mais importantes.
Keynes beneficiouse dos estímulos e da imensa riqueza intelectual do meio em que vivia. A relação comunal com seus diletos amigos de Bloomsbury7, a intensa vida universitária em Cambridge, o contato com grandes pensadores de seu tempo – a exemplo de G. E. Moore e Sigmund Freud -, seu genuíno interesse pelas artes, suas habilidades como financista, sua crença na humanidade e em sua capacidade de persuasão, sua confiança de que as ideias corretas poderiam mudar o mundo e seu posicionamento apaixonado em todas as questões importantes de seu tempo ajudamnos a compreender a originalidade e as múltiplas facetas de seu pensamento. Nesse particular, Skidelsky esmerase, e seu texto é fluente e seguro.
Revisitando a vida de Keynes e a ousadia de seu pensamento não convencional, Skidelsky confessa uma mudança de sua perspectiva em relação a Keynes tal como se encontrava em sua aclamada biografia: “Eu o chamei de ‘economista pouco convencional’ . Mas ele não era, absolutamente, um economista”8.
Keynes formulara uma pergunta hoje completamente estranha à moderna reflexão econômica: afinal, qual o objetivo do capitalismo, essa forma de organização social evidentemente imperfeita?
Para o autor, o progresso tecnológico (e o crescimento econômico) não poderia ser considerado um fim em si mesmo. Recusava se a admitir que as realizações humanas pudessem se reduzir à métrica da acumulação de riquezas. Na sociedade que almejava, quando o problema econômico houvesse sido definitivamente superado, o “amor ao dinheiro” seria considerado uma patologia social e os acometidos dessa neurose, objetos de piedosa comiseração, deveriam ser recomendados aos especialistas de doenças mentais. Mas afinal qual era o problema econômico a ser superado? Em Possibilidades econômicas para nossos netos, de1930, Keynes esboçara os traços de seu projeto utópico. Em mais cem anos, caso se lograsse produzir uma expansão da atividade econômica às taxas que até então se verificavam, seriam reunidas, pela primeira vez, ascondições efetivas para que a humanidade pudesse superar o problema econômico, ou seja, libertarse da necessidade imperiosa do trabalho. No entanto, os obstáculos não eram de pequena monta: as guerras e a instabilidade social deveriam ser evitadas, o crescimento populacional necessitaria ser contido e a ciência precisaria ser dirigida para a finalidade do progresso social. Mas até que esse estado de coisas fosse alcançado os homens deveriam fingir acreditar que “fair is foul, and foul is fair”9 e muitos ainda deveriam se sacrificar no estouvado propósito de acumular riquezas.
Porém, como Skidelsky de forma arguta adverte, Keynes não ignorava outros óbices ainda maiores. A libertação do fardo do trabalho compulsório e a promessa de uma vida plena, sábia e boa exigiria que o “império da ganância” fosse rechaçado, uma vez que seus préstimos para alcançar a abundância não fossem mais necessários. No mesmo sentido, as necessidades dos homens pelos bens materiais não poderiam ser reconhecidas como ilimitadas e teriam de ser pautadas por uma concepção de suficiência para a vida boa.
Creio que essa advertência é mais do que atual e urge retomála. A Economia há tempos enveredou, e nesse particular comungam os economistas do mainstream e grande parte dos heterodoxos, numa linha irrefletida de que se há uma variável síntese que permite avaliar o sucesso ou insucesso de uma determinada sociedade, essa é o crescimento econômico. Retomamos, portanto, a questão formulada há pouco: se o crescimento é o meio para alcançar um determinado fim, que fim é esse?
Alguns bens treinados num utilitarismo vulgar poderão se contentar em responder que a satisfação das necessidades humanas é o objetivo da produção material, e quanto mais e melhores bens, maior o bemestar social e, em conseqüência, não custará muito acrescentar, maior a felicidade humana. Contra a objeção de que um sistema assim animado não conhecerá um fim, dirão que a natureza humana é feita desse material, que os homens são alimentados por necessidades ilimitadas e que se encontram permanentemente insatisfeitos e que não é por outra razão que o progresso nunca cessará.
Mas para Keynes a resposta era outra. Asseverara que o objetivo da vida humana apontava para a Ética. Nesse domínio bebera da fonte de G. E. Moore, que em 1902 publicara Principia Ethica, obra que exerceu um verdadeiro fascínio sobre Keynes. Moore identificava como questão ética primordial “o que é bom?” e sustentava que apenas com o concurso da resposta a essa questão, a dimensão moral que indagava sobre “como devemos nos comportar” poderia ser adequadamente respondida.
As coisas “boas em si mesmas” e que deveríamos procurar atingir são os estados da mente elevados. Estes poderiam ser alcançados no enlevo amoroso, na criação, na contemplação de obras artísticas e – uma adição pessoal de Keynes à lista de Moore – na busca do conhecimento. A associação entre o bem (goodness) e o prazer não poderia, porém, ser facilmente estabelecida, uma vez que estados d’alma elevados, a exemplo do arrebatamento amoroso, seriam simultaneamente fonte de prazer e dor.
Keynes não ignorava a miséria de muitos e a enorme injustiça do desemprego, reconhecendo que as condições para a consecução de seu ideal de vida plena só seriam alcançadas quando os requisitos de conforto material, de uma certa estabilidade política e da liberdade intelectual fossem contemplados. Mas se recusava a imaginar que a vida humana poderia se consumir de forma irrefletida e que os homens poderiam consagrar suas melhores energias e talentos na adoração do bezerro de ouro.
Nos dias de hoje, é cada vez mais aguda a consciência de que o sistema de relações sociais que forjamos e os impulsos de morte que ele abriga poderão comprometer irremediavelmente a possibilidade de nossos netos em herdarem uma Terra que lhes permita viver com dignidade. Sobejam razões para crermos que nunca, em termos de progresso material, estivemos tão perto da utopia keynesiana da abolição do fardo do trabalho. Contudo, em termos das aspirações dos homens, empenhados numa luta sem trégua em distinguirse de seus semelhantes com os signos conspícuos do consumo ostentatório, nunca estivemos dela tão longe. Tal contradição sugere que, antes do ponto final neste texto, se dê lugar a uma pergunta crucial: Não seria bem o caso de, pelas razões que realmente importam, retornar aos ensinamentos do Mestre?
Notas
1 MANKIW, Gregory, “Back in demand”. Wall Street Journal, 21/9/2010, em <http://online.wsj.com/article/NA_WSJ_PUB:SB10001424052970204518504574417810281734756.html> [Links].
2 STIGLITZ, Joseph. “The non-existent hand”. London Review of Books, 22/4/2010, em <http://www.lrb.co.uk/v32/n08/joseph-stiglitz/the-non-existent-hand> [Links].
3 KRUGMAN, Paul. “Keynes: The Return of the Master, by Robert Skidelsky”.The Observer, 30/8/2009, em <http://www.guardian.co.uk/books/2009/aug/30/keynes-return-master-robert-skidelsky> [Links].
4 SKIDELSKY, Robert. Keynes. Nova York: Penguin Books, 1994, 3 vols. (Vol. 1: Hopes betrayed: 1883-1920; Vol. 2: The economist as saviour: 1920-1937; Vol. 3: Fighting for Britain: 1937-1946). [Links]
5 KEYNES, J. M. A teoria geral do em prego, do juro e da moeda. São Paulo: Nova Cultural, 1985 [1936]. [Links]
6 Skidelsky omite o esclarecimento, talvez por recear controvérsias evitáveis, que esses termos haviam sido cunhados em 1976, por Robert Hall. Uma versão em pdf desse texto original mimeografado pode ser encontrada em <http://www.stanford.edu/~rehall/Notes%20Current%20State%20Empirical%201976.pdf>. Hall admitia que se a clivagem era bastante ilustrativa das posições do debate no campo da macroeconomia, na realidade havia um espectro mais contínuo de salinidade a separar os economistas.
7 Grupo de artistas, escritores e intelectuais britânicos do começo do século XX, que incluía, entre outros, os escritores Virginia Woolf e Lytton Strachey, o pintor e crítico de arte Roger Fry e o próprio Keynes.
8 SKIDELSKY, R. Keynes: the return of the master, op. cit., p. 59. [Links]
9 KEYNES, J. M. “Economic possibilities for our grandchildren”. In: Essays in persuasion. Nova York: Classic House Books, 2009 [1930]. [Links]
Paulo Sérgio Fracalanza – Professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Black mass – GRAY (RBH)
GRAY, John. Black mass. New York: Penguin Books, 2008. 352p. Resenha de: DE DECA, Edgar Salvadori. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.28, n.56 2008.
Ele não é muito lido nas universidades brasileiras. Acho até que cometo um exagero. Ele não é sequer conhecido nos nossos meios universitários. Refiro-me a John Gray, filósofo da Universidade de Oxford e professor da London School of Economics, figura de destaque no mundo intelectual europeu e americano, considerado uma das inteligências mais brilhantes deste novo século XXI. Apesar de desconhecido entre nós universitários, há algum consolo diante de uma feliz constatação: a maioria dos livros de John Gray foi traduzida no Brasil e teve boa recepção. Para mencionar alguns livros importantes, quem aprecia sínteses filosóficas não deve deixar de ler o ensaio sobre Voltaire, da Editora da Unesp (1999), mas também o ensaio sobre Isaiah Berlin, publicado pela Difel (2000), onde esboça as suas críticas às utopias sociais, antecipando os contundentes ataques ao Cristianismo e ao Iluminismo presentes em seu mais novo livro, ainda inédito no Brasil, Black Mass. No ensaio sobre Voltaire mesclam-se as críticas contundentes à religião do Iluminismo e a sinceridade em valorizar a obra desse filósofo. As considerações de Gray sobre Voltaire são polêmicas, a ponto de concluir que: “a filosofia de Voltaire pouco tem a nos ensinar. O maior legado de Voltaire talvez seja o seu desdém pelas consolações da teodicéia — inclusive a do Iluminismo, que o guiou por toda a vida. A ambição voltairiana de ajudar a humanidade a ser um pouco menos miserável pode bem constituir a mais valiosa herança do Iluminismo” (Voltaire, p.54). Podemos reconhecer em Gray os traços característicos de Voltaire, porque apesar de ser também um herdeiro do Iluminismo, seus escritos têm um profundo desdém por uma filosofia que se consola ao reconhecer que apesar de todos os males, vivemos no melhor dos mundos possíveis.
Antes do seu mais recente ensaio filosófico, Gray já nos tinha brindado com obras de profundo conteúdo crítico, derrubando as ilusões de um mundo comandado por um mercado auto-regulado e baseado nos valores da democracia liberal. Há ainda o provocante livro Falso amanhecer (Ed. Record, Rio de Janeiro, 1999), resposta a Fukuyama e à sua utopia do fim da história. No entanto, se essa ilusão utópica do Ocidente mereceu contundente crítica de John Gray, ainda não podíamos imaginar o que estava por vir, depois dos ataques às Torres Gêmeas de 11 de setembro. Num ensaio brilhante e ao mesmo tempo desconcertante, John Gray afasta do 11 de setembro as possíveis conotações tradicionais do islamismo e encara o terrorismo da Al Qaeda, como o produto mais recente da modernidade ocidental. Em um ensaio de forte impacto, John Gray esmiúça as tramas desse novo terrorismo sem fronteiras nacionais e anunciado já no título do livro, Al Qaeda e o que significa ser moderno, também publicado pela Record (2004). Suas conclusões não são nada animadoras, se considerarmos que o terrorismo da Al Qaeda, como o nazismo e o comunismo, pretende criar um novo mundo utópico através do terror. Trata-se, portanto, de uma nova capacidade de potencializar a violência em níveis jamais imaginados por outras épocas históricas anteriores à modernidade. Gray nos alerta, “Nenhuma época anterior acalentou projetos semelhantes. As câmaras de gás e os gulags são modernos. Há muitas maneiras de ser moderno, algumas delas monstruosas” (p.16).
Mas, antes de concluir esse preâmbulo e passar a expor alguns pontos inquietantes do novo livro, Black Mass (Missa Negra), não poderíamos deixar de mencionar a obra que o tornou conhecido em todo o mundo, inclusive no Brasil. Trata-se do ensaio filosófico intitulado Cachorros de palha (Ed. Record, 2005), onde o autor desfere um ataque verdadeiramente contundente contra a nossa ilusão antropocêntrica. Buscando a inspiração em poema de Lao Tsé que diz que o céu e a terra tratam miríades de criaturas como cachorros de palha, John Gray acredita que a terra irá também descartar o ser humano e que estamos em contagem regressiva desse processo. Para ele, qualquer crença no progresso humano é ilusória, e, ainda que possa haver progresso no conhecimento científico e tecnológico, pouco se pode esperar de qualquer tipo de progresso no plano da ética e da política, dado que uma hora ou outra todos esses avanços poderão tornar-se meios de destruição. O livro Cachorros de palha descarta as nossas ilusões sobre o livre-arbítrio e também, na esteira de Darwin, nos equipara a todos os outros animais, com a nossa incapacidade e impossibilidade de sermos donos de nosso próprio destino. Das crenças cristãs até o Iluminismo, ainda somos prisioneiros do livre-arbítrio e das doutrinas da salvação. A prova é que, já no início do século XXI, “o mundo está apinhado de grandiosas ruínas de utopias fracassadas. Com a esquerda moribunda, a direita tornou-se o abrigo da imaginação utópica. O comunismo global foi seguido pelo capitalismo global. As duas imagens do futuro têm muito em comum. Ambas são horrendas e, felizmente, quiméricas” (Cachorros de palha, p.3).
Esta visão pouco condescendente com o antropocentrismo, das origens no Cristianismo até sua principal herança filosófica, o Iluminismo, será a linha mestra do mais novo desafio de John Gray ao campo do pensamento filosófico e político da atualidade. Em Black Mass, há algo de muito mais inquietante e que já se anunciava de modo sutil nas obras anteriores do autor. Afinal, a “Missa Negra” é a versão satânica da missa cristã, e, com essa metáfora poderosa, Gray nos faz mergulhar no universo da utopia, tal como ela se anunciou desde o livro da Revelação, até as mais modernas visões apocalípticas da política. Ao contrário do que imaginamos, as utopias políticas modernas, segundo Gray, nada mais são do que modelos de idealização quiméricos da sociedade, que tiveram seu ponto de partida no Cristianismo. Na companhia de Gray, o leitor estará sempre se defrontando com a suas convicções e suas crenças, mesmo porque, aventurar-se na leitura de Black Mass é enfrentar o dilema de que a política moderna nada mais é do que uma variante da história da religião.
A leitura de Black Mass, além de desafiadora é também instigante e entremeada de nuances históricas, ao abordar a utopia desde as suas dimensões religiosas, como nas revelações bíblicas, passando pelo milenarismo medieval e chegando até as utopias políticas modernas, cuja matriz é a revolução francesa. No entanto, há um foco no livro de Gray que nos deixa em situação incômoda, a começar pelo seu primeiro capítulo, sobre a morte da utopia. Não há como não se incomodar com a constatação de que ao pensamento crítico não cabe mais se deixar levar por qualquer tipo de modelo de idealização da sociedade, porque, todas essas variantes da utopia nada mais são do que a revelação da enorme falácia humanística de que o homem é capaz de moldar o seu próprio destino e ter o controle do sentido da história. Essa crença utópica torna-se ainda mais perigosa, segundo Gray, quando constatamos que a maioria dos movimentos revolucionários modernos compartilha a crença de que a violência é uma força purificadora da história. Em outras palavras, tanto pela esquerda, como pela direita do espectro político moderno, a violência e o terror se apresentam como elementos capazes de liberar a história de suas opressões. Os anarquistas do século XIX, os bolcheviques como Lênin e Trotsky, os pensadores anticolonialistas como Frantz Fanon, os regimes de Mao e Pol-Pot, os grupos terroristas como Baaden Meinhof, os movimentos radicais islâmicos e os movimentos neoconservadores, todos eles se encantaram com as fantasias do poder libertador da violência realizado pela ação revolucionária na história. Assim também se comportaram os regimes totalitários, como o nazismo e o fascismo de Hitler, Franco ou Mussolini, que acreditaram na violência como força libertadora da história. No entanto, se todas essas utopias nascidas na esteira do Iluminismo pareciam estar sucumbidas no final do século XX, mais aterrorizante é imaginar que a busca pela utopia tornou-se o objetivo principal e exclusivo de um capitalismo moderno de estilo americano. Essa nova utopia, comandada pelos Estados Unidos, tem o aval de muitos governos do Ocidente com a promessa de que no final dos dias o mundo estará dominado pela democracia de estilo americano, nem que para isso seja necessário destruir as bases de uma sociedade e de uma cultura, como está sendo realizado pelo exército americano no Iraque. As correntes conservadoras da direita política do mundo atual estão possuídas por fantasias e utopias de remodelação de sociedade, tanto como estiveram as correntes políticas de esquerdas no século XX. Apesar dos seus sucessos aparentes, essas utopias neoconservadoras, forjadas na violência e no terror, estão se transformando em pó, mais rapidamente do que os sonhos do comunismo e do nazismo do século XX.
Os desafios ao pensamento colocados pelo livro Black Mass não cabem nos limites de uma resenha. Mereceriam um amplo ensaio capaz de acompanhar todas implicações filosóficas e políticas contidas no conjunto de sua obra. Por ora, podemos nos contentar em ter diante de nós uma obra tão inspiradora e, ao mesmo tempo, tão polêmica. Dividido em cinco capítulos, Black Mass começa tratando da morte da utopia, deixando um sinal de alerta para a sua dimensão religiosa e apocalíptica, capaz de renascer onde nós acreditássemos que estivesse liquidada. O segundo capítulo é talvez o mais provocativo. Nele Gray investiga as dimensões religiosas da utopia laica do Iluminismo e extrapola o seu pensamento para as forças do terror e da violência na história. Dessa matriz de filosofia da história, Gray deriva tanto as utopias de esquerda como as de direita, não condescendendo com o comunismo nem com o nazismo e o fascismo, todos eles baseados no terror totalitário. No entanto, a novidade da obra está reservada para os três últimos capítulos, onde o autor se dedica à análise da nova utopia neoconservadora e à americanização do apocalipse, principalmente depois dos acontecimentos do 11 de setembro, culminando com a invasão do Afeganistão e do Iraque.
No entanto, se vivemos esse dilema do fim da utopia, sem com isso dizer que estamos no fim da história, que lições nos deixa, afinal de contas, esse livro tão perturbador? Sua lição não é muito construtiva, mesmo porque, Gray não é adepto da filosofia do progresso. Muito pelo contrário, a rejeita, porque não acredita que possa haver qualquer progresso humano na moral e na ética, mesmo com os enormes avanços científicos e tecnológicos hoje disponíveis. Aliás, esse progresso científico e tecnológico não nos trouxe nenhuma garantia, porque os homens poderão utilizá-lo para fins de destruição. Apenas uma certeza fica subjacente ao final da leitura de um livro tão provocativo: se a utopia é apenas um capítulo da história da religião, não devemos menosprezar essa primeira necessidade humana. Afinal, desses embates de crenças religiosas é que nasceram tanto as vertentes místicas como as vertentes seculares da utopia.
Assim, chegamos ao fim desta resenha, com um indisfarçável ceticismo no que se refere à natureza humana. Afinal, segundo Gray, somos tão donos de nosso destino, como qualquer outro animal que habita este mundo. Para enfrentar esse impasse, Gray nos propõe um retorno ao realismo na política, depois de dois séculos de fracassos da religião secular do progresso. Mas de um realismo político sem posturas conservadoras. O mito de um final feliz cristão e o mito secular, herdado do Iluminismo, de se construir uma sociedade conciliada consigo mesma, já causaram enormes prejuízos e ainda podem causar danos muito maiores. Isso nos leva à conclusão de que a política não é um veículo para projetos universais, mas uma peculiar “arte de responder ao fluxo das circunstâncias”. Segundo Gray, essa percepção não requer uma visão muito abrangente do avanço da humanidade, requer apenas a coragem de saber lidar com os males do mundo. Afinal, esse opaco estado de guerra no qual a humanidade se meteu é apenas um desses males. Ao fecharmos o livro Black Mass, resta-nos ainda uma indagação e um desconforto: será possível vivermos neste mundo, sem o elixir das utopias?
Edgar Salvadori de Decca – Pesquisador do CNPq — Depto. de História, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Caixa Postal 6110. 13081-970 Campinas — São Paulo — Brasil. E-mail: edecca@terra.com.br
[IF]Lajja – Shame / Taslima Nasrin
Os problemas que ora se agudizam na denominada região da Caxemira remontam ao período imediatamente posterior à separação das regiões noroeste e nordeste da Índia, respectivamente no dia 15 de agosto de 1947, quando os ingleses deixaram a Índia e foi criado o Estado do Paquistão, e em 26 de março de 1971, quando o Paquistão oriental ganhou sua independência, tornando-se o país Bangladesh. Houve um tempo em que povos de crenças distintas conviviam com relativa harmonia naquelas terras hoje divididas e rebatizadas. Com a formação dos Estados do Paquistão e de Bangladesh em conseqüência dessa partilha do território indiano, iniciou-se o reordenamento de fundamentalistas religiosos em busca de novas causas. O desastre do domínio imperial britânico na região resultou no que hoje conhecemos de Bangladesh ou da região de Bengala (atual Bangladesh, Calcutá e arredores). O que era antes um dos lugares mais ricos do mundo tornou-se um abrigo da miséria humana: Não resta dúvida de que o domínio imperial tenha sido um desastre. Veja a Índia por exemplo. Quando os britânicos chegaram pela primeira vez, Bengala era um dos lugares mais ricos do mundo. Os primeiros mercadores britânicos descreveram-na como um paraíso. Essa é, atualmente, a área de Bangladesh e Calcutá, um símbolo de desespero e pobreza (Chomsky, 1999 p. 84).[1] O Mahatma Gandhi, líder indiano da revolução pela não-violência, buscou liberdade para seu povo. Mas nem tudo gerou benefícios. Um dos conflitos oriundos dessa história nasceu com a reestruturação das fronteiras internacionais e a criação de novos países a partir da Índia. Falamos, portanto, de um conflito que se estende por mais de meio século. Não fazia parte dos desejos do Mahatma a divisão da Índia depois de sua libertação do jugo britânico. Para o líder indiano, problemas de convivência entre as diferentes religiões no subcontinente asiático não deveriam ser motivo para separar seus irmãos, fossem eles hindus ou muçulmanos. Mas essa visão romântica durou pouco. Após menos de um ano da independência, em 30 de janeiro de 1948, Gandhi foi assassinado por um extremista hindu. Os problemas na região estavam apenas por começar.
Primeiro veio a independência da Índia seguida pela criação do Paquistão cujo território compreendia parte do noroeste e do nordeste do subcontinente asiático. O Paquistão oriental deu origem ao que hoje conhecemos por Bangladesh, como resultado de uma guerra sangrenta na qual hindus e muçulmanos lutaram juntos em nome de uma nova pátria para os bengaleses. Os conflitos se somaram ao longo dos anos. A paz cultivada e almejada pelo Mahatma não foi duradoura. Mesmo os hindus e muçulmanos de Bangladesh, combatentes comuns contra a tirania do Estado do Paquistão ocidental, que corresponde ao atual Paquistão, voltaram a se dividir.
Posteriormente à criação da nova pátria bengali, surgiram diversos conflitos de cunho religioso. Um dos maiores ocorreu a 6 de dezembro de 1992, quando a mesquita de Babri Masjid em Ayodhya, cidade do norte da Índia, foi destruída por fundamentalistas hindus, levando os dois grupos religiosos em Bangladesh a entrar em uma nova fase de discórdia e sublevações. Ainda hoje, a minoria hindu vê-se acuada pela hegemonia muçulmana daquele país.
Por ocasião da tragédia de Ayodhya, causando conflitos intermináveis em Bangladesh, antigos camaradas da guerra libertária se tornaram, por força do fanatismo religioso local, inimigos sanguinários. Nesse cenário a autora do livro que ora comentamos viveu as agruras de uma apátrida em sua própria casa. Taslima Nasrin descreve as jornadas de então em um diário “psicológico”, que se apropria de sentimentos e nuanças das relações interpessoais metamorfoseadas em função das mudanças sociopolíticas em Mymensingh, o seu habitat. O amálgama afetivo oriundo do sentimento de pertinência nacional entre os dois grupos religiosos foi sendo progressivamente substituído pelo ódio elaborado e recriado a partir dos novos conceitos de povos e nações construídos sobre uma base de preconceito e intolerância.
O livro em forma de diário descreve apenas 13 dias em um crescente bélico, iniciando em 7 de dezembro de 1992, dia fatídico, depois que a mesquita de 450 anos foi posta ao chão por fanáticos hindus. Os problemas da família Dutta-Sudhamay que povoa o romance autobiográfico da sra. Nasrin apenas começavam. O dr. Sukumar Dutta, patriarca e médico respeitado, vivia com a família em um Bangladesh de maioria muçulmana, mas que até então ainda tinha na memória a libertação de seu país pela força da união de todos os seus filhos. A autora descreve o dilema do povo hindu em Bangladesh por meio da saga da nomeada família Dutta, que se recusa a deixar seu país em conseqüência da intolerância religiosa de outrora amigos muçulmanos, acreditando na vitória da razão e no retorno aos tempos em que Bangladesh emergiu como uma república secular, democrática e socialista. A longa trajetória iniciada nos idos da década de 60 do século passado, quando juntos conseguiram se libertar da tirania do Estado paquistanês, parecia não terminar. Continuava para além daqueles tempos, só que dessa vez a guerra se fazia entre irmãos: os hindus por serem minoria eram preteridos em seus direitos de concidadãos. Com sua históriaromance a autora informa-nos ao mesmo tempo que nos sensibiliza para um trecho da história da humanidade geralmente negligenciado e esquecido. A linguagem é simples, mas rica em detalhes psicológicos captados a partir das experiências pessoais relatadas pela autora-narradora. Daí poder-se compartilhar sentimentos os mais diversos de quem se vê abduzido de seu meio e tem roubados seus projetos de vida por motivos irracionais. Motivos esses que culminaram com a verdadeira ameaça dos extremistas em Bangladesh, decretando o Fatwa (punição de cunho religioso) sobre a autora, tendo esta que se ausentar de fato do seu país para não sofrer retaliações. No seu livro, como na sua vida, a religião termina sendo, à sua revelia, o ponto de partida para o bem ou mal (con)viver: Suranjan got up. The sense of pain and suffering which had already found root in his heart was now growing… He left Palashi behind and headed in the direction of Tikatuli. He decided against taking a rickshaw, because he had only five takas with him. He bought a cigarette at Palashi crossing. When he asked for a Bangla Five, the shopkeeper gave him a strange look.
Suranjan’s heart sank. Did the shopkeeper guess he was a Hindu? And did he know that ever since the breaking of the Babri Masjid, every Hindu could be beaten up with impunity? He quickly paid for the cigarette and moved on. He was surprised by the way he felt, especially as he had never really felt this way before. To think he had left the shop without lighting his cigarette, just because he thought they would make out that he was a Hindu! (p. 82).
Taslima Nasrin tem origem em uma família de classe média de Bangladesh, médica e escritora de outros trabalhos de repercussão local, conseguiu por meio do seu livro Lajja – Shame informar o mundo sobre as mulheres e os seus destinos, sobre a impossibilidade do seu devir em uma sociedade na qual o fanatismo sobrepõe-se à razão. Impossibilitada de viver em seu próprio país, encontra abrigo, como outras vítimas de violências político-religiosas naquela região, na Índia. É um erro absurdo o mundo virar as costas e não tratar diferencialmente uma das maiores democracias do mundo e a única da região. A Índia pode refletir num grande círculo geográfico uma tendência oposta ao totalitarismo religioso e político característico das nações que a cercam.
Apesar do caráter ficcional de seu trabalho, a autora é fiel a aspectos históricos, tendo sido fonte de informação as publicações regionais sobre os eventos que subsidiam sua trama. Por motivos óbvios a questão da delicada relação entre os Estados do Paquistão e da Índia que se complica nos dias de hoje não é abordadada diretamente em seu trabalho, mas Taslima Nasrin aborda os seus antecedentes e pressupostos ideológicos. Pode-se, portanto, acompanhar em segundo plano a problemática atual, muito relacionada com aqueles fatos que deram origem ao seu trabalho literário. É por isso que vimos, com ajuda de sua compreensão da cultura local, que o modelo sociopolítico indiano poderia promover uma convivência melhor e mais humanizada para os diferentes povos da região em se comparando com outros modelos políticos vizinhos. Pois desde que conquistou sua independência, a Índia tem provado ser o único país da região com uma certa vocação democrática. A despeito dos problemas que enfrenta com as desigualdades sociais em quase todo o seu território, vem sendo reconhecida internacionalmente como um celeiro de talentos nos mais diversos campos da ciência e pelo respeito à sua integridade nacional. Ao contrário de muitos países do Terceiro Mundo, a Índia não se deixou encantar pelas falsas promessas da globalização. Pode-se falar, portanto, da maior democracia no globo, com seus 35 estados, mais de cinco mil cidades, 18 idiomas reconhecidos oficialmente e uma população de cerca de 1 bilhão de pessoas que se confessam majoritariamente como hindus. Margareth Tatcher, a dama de ferro do Reino Unido, conhecida por sua fria política em relação ao Terceiro Mundo, não pôde deixar de reconhecer na Índia uma veia democrática que a fazia preferi-la à poderosa Alemanha em pleitos de novos membros para o Conselho de Segurança da ONU.
A Caxemira é na atualidade diferenciada por ser a única região da Índia com maioria muçulmana. Essa característica termina por aproximá-la da região de mesmo nome em território paquistanês, tornando-se solo fértil para a propagação da Jihad (guerra santa). As autoridades indianas acusam os grupos terroristas de atrapalharem o restabelecimento da paz na Caxemira e de disseminarem a miséria entre a população da região. Trata-se, portanto, na lógica da ação indiana, de uma luta contra um terrorismo subsidiado pela ditadura militar paquistanesa. Por meio desses métodos, Islamabad pode vir a pagar um alto preço por suas incursões além-fronteiras em vez de reprimir as ações terroristas dos grupos extremistas islâmicos que agem sob diferentes denominações. Levando-se em conta os modelos políticos dos dois países, é mais presumível que haja liberdade no mosaico multicultural e religioso da democracia indiana do que em países liderados por extremistas religiosos.
Conflitos religiosos como o que moveu a autora para escrever seu livro ainda fazem parte da ordem do dia naquela região. Tais conflitos têm se intensificado após o ataque contra o Parlamento indiano em Nova Délhi, no dia 13 de dezembro de 2001, que causou a morte de 14 pessoas. Segundo os indianos, esse ataque foi perpetrado por grupos separatistas apoiados pelos paquistaneses, em uma espécie de terrorismo de estado. As dificuldades para o premier indiano Atal Bihari Vajpayee e o líder paquistanês Pervez Musharraf negociarem uma solução para o problema na sua versão atual terminaram por dominar a pauta da reunião dos países que formam a Cúpula da Ásia do Sul, realizada em Katmandu (Nepal), em 6 de janeiro de 2002, sob os auspícios da Associação da Ásia do Sul para a Cooperação Regional (Saarc). A Saarc foi criada em 1985 e é formada pela Índia, Paquistão, Sri Lanka, Nepal, Bhutan e as Maldivas. O problema da pobreza que atinge 40% de 1,5 bilhão de habitantes do sul da Ásia deveria dominar as preocupações do encontro, mas foi tirado de cena pelos conflitos indo-paquistaneses.
No quadro atual de caça às bruxas não há como Musharraf querer se deixar associar ao patrocínio de terrorismo internacional, mesmo que as ações terroristas se limitem aos seus vizinhos. Para o governo da Índia, grupos muçulmanos extremistas com base na Caxemira se fortalecem com o apoio financeiro e estratégico oriundo de solo paquistanês. Nos altos e baixos das negociações entre Paquistão e Índia, foram algumas vezes proferidas palavras bonitas expressando boas intenções dos líderes locais sem, contudo, lograr êxito na diminuição do fosso entre os inimigos declarados. As guerras que vêm ocorrendo desde a independência dos dois países, que só na última década deixou cerca de 30 mil mortos, se repetidas, podem virar tragédia, pois neste caso estamos falando de inimigos com armas atômicas. Espera-se que o aperto de mão dos dois líderes no final da reunião de Cúpula da Saarc signifique a intenção de fazer valer as palavras de Musharaf, proferidas em maio de 2001, em reação à proposta do premier indiano de negociar o fim da violência na região. Naquela altura parecia haver mais esperança de se encontrar uma saída para a crise por vias diplomáticas, como pode ser percebido na afirmação do líder paquistanês: “No início do novo século, nossos dois países devem fazer seu melhor para superar esse legado de falta de confiança e hostilidade, para que possamos construir um futuro melhor para nossos povos”.
Como relata a autora, desde que a Índia foi dividida em dois “Paquistãos” e uma “Índia”, muitos hindus tiveram que abandonar suas casas em busca de um porto seguro no qual o extremismo religioso não fosse a tônica da convivência humana. Talvez Taslima Nasrin sonhe muito ao querer secularizar nações governadas por tiranos religiosos, mas, sem dúvida, todo o seu livro está impregnado de certo otimismo em meio ao caos anunciado nos piores dias de seu personagem Suranjan: Suranjan explodiu em risos, como Goon. Ele tinha senso de humor e a capacidade de se sentir em casa onde quer que estivesse. Ele jogaria confortavelmente em um cassino em Las Vegas como, da mesma forma, ficaria nas favelas de Palashi sendo picado por mosquitos. Parecia que não ligava pra nada, nunca se irritava. Demonstrava ser feliz no seu pequeno quarto, passando seus dias com pequenos prazeres insignificantes. Suranjan se admirava como ele podia viver tão feliz? Era sua felicidade de fato uma fachada para todas as mágoas que ele tinha escondidas em seu coração? Esteve ele se obrigando a ser feliz por que não havia qualquer chance de fugir da cruel realidade da vida? [2]
Notas
1 CHOMSKY, Noam. A minoria próspera e a mutidão inquieta. Brasília: Editora da UnB, 1999, p.82.
2 Traduzido pelo autor a partir da versão inglesa de Tutul Gupta: “Suranjan burst out laughing, as did Goon. He had a good sense of humor and the ability to be at home anywhere. He would be equally comfortable gambling in a casino in Las Vegas as he would be in the slums of Palashi getting bitten by mosquitoes. He never seemed to mind anything, never showed his irritation. He was quite happy in his tiny room, spending his days enjoying small insignificant pleasures. Suranjan wondered how he could live so happily? Was his happiness in fact a facade for all the sorrows that he was hiding in his heart? Was he compelling himself to be happy because there was no getting away from the grim realities of life?” (p. 82).
Antônio Caubi Ribeiro Tupinambá – Universidade Federal do Ceará.
NASRIN, Taslima. Lajja – Shame. (Tradução do bengali para o inglês: Tutul Gupta.) Nova Délhi, Índia: Penguin Books, 1994. Resenha de: TUPINAMBÁ, Antônio Caubi Ribeiro. Revista Trajetos, Fortaleza, v.2, n.3, 2002. Acessar publicação original. [IF].
Lajja – Shame | Taslima Nasrin
Os problemas que ora se agudizam na denominada região da Caxemira remontam ao período imediatamente posterior à separação das regiões noroeste e nordeste da Índia, respectivamente no dia 15 de agosto de 1947, quando os ingleses deixaram a Índia e foi criado o Estado do Paquistão, e em 26 de março de 1971, quando o Paquistão oriental ganhou sua independência, tornando-se o país Bangladesh. Houve um tempo em que povos de crenças distintas conviviam com relativa harmonia naquelas terras hoje divididas e rebatizadas. Com a formação dos Estados do Paquistão e de Bangladesh em conseqüência dessa partilha do território indiano, iniciou-se o reordenamento de fundamentalistas religiosos em busca de novas causas. O desastre do domínio imperial britânico na região resultou no que hoje conhecemos de Bangladesh ou da região de Bengala (atual Bangladesh, Calcutá e arredores). O que era antes um dos lugares mais ricos do mundo tornou-se um abrigo da miséria humana:
Não resta dúvida de que o domínio imperial tenha sido um desastre. Veja a Índia por exemplo. Quando os britânicos chegaram pela primeira vez, Bengala era um dos lugares mais ricos do mundo. Os primeiros mercadores britânicos descreveram-na como um paraíso. Essa é, atualmente, a área de Bangladesh e Calcutá, um símbolo de desespero e pobreza (Chomsky, 1999 p. 84). 1 Leia Mais