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Mulheres em Macau – PENALVA (VH)
PENALVA, Elsa. Mulheres em Macau: donas honradas, mulheres livres e escravas (séculos XVI e XVII). Lisboa: CHAM/CCCM: 2011, 237 p. Resenha de: WAGNER, Ana Paula. Varia História. Belo Horizonte, v. 28, no. 47, Jan./ Jun. 2012.
Macau está longe de nós, se tivermos como ponto de referência o espaço geográfico brasileiro. Entretanto, o trabalho de Elsa Penalva chega para fazer uma aproximação, trazendo àqueles que desconhecem as particularidades da história macaense elementos que permitem um contato com a sociedade em questão. Numa parceria entre o Centro de História de Além-Mar e o Centro Científico e Cultural de Macau, o trabalho da autora foi publicado na Coleção Estudos e Documentos, que tem divulgado investigações relacionadas com a História dos Descobrimentos e da Expansão Lusa, assim como a presença portuguesa no mundo.
O primeiro ponto a ser evidenciado é que as mulheres são as protagonistas dessa obra, o que já se encontra anunciado no próprio título do trabalho. São mulheres de diferentes estatutos sociais, que viviam em Macau entre finais de Quinhentos e meados de Seiscentos. No topo da hierarquia local estavam as “donas honradas”. Conforme ressaltado por Elsa Penalva, essa condição, ser “honrada”, não se ligava necessariamente a uma conduta moral reta; mas era acrescida de uma valoração positiva facultada “pelo enlace com um homem com poder econômico, e com possibilidades de acesso às elites atinentes ao exercício do poder político”. Abaixo desta categoria, “donas honradas”, encontravam-se as mulheres livres e, depois, as escravas. Para estas últimas, equivalia situar-se na base da pirâmide social macaense, no lugar mais indesejado. Num campo intermediário estavam as mulheres livres. Entretanto, para esses dois segmentos sociais, independentemente da condição de livre ou escrava, “significava ter que se organizar, atendendo à sociedade patriarcal em que se inseriam”. Eram mulheres que, no geral, tinham dinâmicas de vida muito trabalhosas.
Porém, o universo feminino em Macau era muito mais complexo e diversificado do que a existência dessas três categorias, contando também com a presença de órfãs, religiosas, viúvas com posses ou não etc. Essa heterogeneidade é devidamente explorada pela autora no livro, além de ser redimensionada em razão do caráter multicultural da sociedade macaense, com indivíduos de diferentes procedências, como Portugal, China e Japão, por exemplo. Desse amplo quadro, a autora acaba por apresentar maiores detalhes do segmento das mulheres economicamente mais favorecidas. Tal circunstância deriva, possivelmente, de uma escolha feita por Elsa Penalva e, certamente, do tipo de documentação utilizada para a elaboração da pesquisa.
Em grande medida, ao problematizar a inscrição das mulheres na vida social de Macau, a autora procura não superestimar as ações delas, buscando equilibrar sua argumentação. A conclusão que chega é que “sem capacidade política, nem autoridade pública, e com reduzida intervenção social, a mulher em Macau, dificilmente escapava à dominação masculina a partir da riqueza de que dispunha”. Ou seja, a maior parte delas encontrava-se submetida a uma valoração fundamentada em índices de riqueza e, nesse ambiente, o casamento era considerado a principal garantia de segurança e de sobrevivência material. Mas, por outro lado, a condição de viúva, quando acompanhada de poder econômico, facultava à mulher a “manutenção do prestígio social e a aproximação ao universo masculino”.
Elsa Penalva não valoriza demasiadamente o papel da mulher em Macau, mas também não as vitimiza, procurando sempre um ponto de equilíbrio. No que diz respeito ao casamento, por exemplo, percebido como um importante mecanismo do processo de inserção social e de diferenciação entre o grupo feminino, ele foi um instrumento bem aproveitado pelas mulheres que viviam em Macau. Ainda que em algumas circunstâncias o matrimônio tenha sido imposto, as mulheres buscaram construir espaços de movimentação e, na medida do possível, procuraram atuar independente dos códigos sociais a que estavam sujeitas.
Como indicamos, a autora acabou privilegiando, em seu estudo, as mulheres economicamente melhor favorecidas, no caso, as viúvas com posses. Particularmente no que se refere a esse grupo social, as ideias de passividade feminina não se configuravam como majoritárias no período em análise, séculos XVI e XVII. Em relação ao aspecto econômico, algumas viúvas conseguiram ultrapassar determinadas barreiras e chegaram a ser as responsáveis pelo gerenciamento de seus patrimônios (garantindo a sua rentabilidade), constituindo-se em grande feito para a conjuntura daquela sociedade:
Algumas [mulheres], após terem enviuvado, tornaram-se elementos activos no meio mercantil em que viviam. Foi o caso de Isabel Reigota que entre 1652 e 1663 se opôs ao jesuíta Manuel de Figueiredo à data, Procurador da Vice-Província da China. Em causa estava o comércio do sândalo, e uma luta pelo poder travado no seio da Companhia de Jesus. O comportamento desta viúva deixa entrever uma aprendizagem de âmbito prático, fruto da observação atenta da actividade do marido, Francisco Rombo de Carvalho, e do contacto com os jesuítas com que privava. A sua casa, local de práticas dos vários saberes a que tinha acesso como mulher, permitira também a aquisição de conhecimento próprios do universo masculino, que, face à morte do marido, se tornaram recorrentes, funcionando como mecanismos de manutenção e sobrevivência.
A história da Isabel Reigota, indicada acima, sintetiza muito bem a argumentação da autora, e apresenta todos os elementos envolvidos na trama oferecida pelo livro. Ou seja, revela o cotidiano de mulheres que, por meio do casamento com um indivíduo com posses, tem acesso a um ambiente que lhes possibilita desenvolver conhecimentos e habilidades, que foram utilizados no momento em que seus cônjuges faltaram. Do mesmo modo, evidenciam as relações estabelecidas entre algumas ordens religiosas instaladas em Macau e determinados segmentos populacionais, fosse no contato para cuidar dos assuntos sagrados, ou sociais, ou econômicos.
Como se nota, paralelamente à história da condição social das mulheres de Macau, a autora descortina alguns aspectos do mundo religioso institucional da localidade, particularmente aquele que dizia respeito à Companhia de Jesus. Conforme Elsa Penalva, essa ordem era a que tinha maior poder em Macau, “pela sua antiguidade, modelo de aproximação à população, e ocupação logística do terreno. Isto pelo menos desde 1565 até inícios da centúria seguinte”. As Clarissas, ordem religiosa feminina que se instalou em Macau, em 1633, também ganhou atenção da autora. Segundo seu argumento, a partir de 1642, essas religiosas “funcionaram como um grupo de pressão nas lutas pelo poder que se desencadearam na cidade”, passando a se constituírem nas grandes oponentes à Companhia de Jesus naquele território. Entre as Clarissas estavam as filhas de mercadores abastados e influentes que se estabeleceram em Macau. Nota-se, assim, a configuração de um quadro bastante complexo que interliga o cotidiano das mulheres e as disputas religiosas e econômicas locais.
Sem dúvida, o livro em questão atende aos interesses daqueles leitores que buscam informações sobre as experiências das mulheres na Macau dos séculos XVI e XVII; contudo, também contempla a história de algumas ordens religiosas instaladas naquela localidade. Em grande medida, esse é um dos méritos do livro, fazer com que diminuam as distâncias que separam Macau de seus leitores. Embora a sociedade macaense tenha suas particularidades, devidamente exploradas e contextualizadas pela autora, tem-se a impressão de que é possível identificar algumas semelhanças com a história de outros territórios de colonização portuguesa, em especial nas questões relacionadas ao cotidiano das mulheres. É nesse sentido que dizemos que o livro de Elsa Penalva permite estabelecer algumas aproximações, desde o contato com esse espaço geográfico que constituía Macau até o conhecimento de experiências sociais nele desenroladas e comuns a outras sociedades.
Outra grande contribuição do livro Mulheres em Macau é a publicação, como anexos, de três documentos redigidos no século XVII, especificamente entre 1644 e 1690. Embora esses textos tenham sido escritos por homens e, portanto, nos digam muito do universo masculino, as mulheres que tiveram suas histórias vividas em Macau continuam sendo as protagonistas daquelas narrativas. Aliás, essa preocupação com as fontes e o recurso a um sólido trabalho documental é um dos pontos fortes da obra. Elsa Penalva pesquisou uma vasta documentação para compor seu trabalho, como os legados da Santa Casa da Misericórdia de Macau, documentos relativos a Câmara Municipal, processos inquisitoriais e registros de contendas relativos a Macau. Saliente-se, a propósito, a cuidadosa transcrição e referenciação dos documentos e da bibliografia consultada. Por fim, os capítulos apresentados no livro têm como base os estudos empreendidos pela autora em sua tese de doutorado (defendida em 2005) e comunicações apresentadas em congressos, porém ampliados à luz de novas indagações. Enfim, o que se tem em mãos é uma investigação de grande fôlego que requer e merece uma leitura atenta.
Ana Paula Wagner – Pesquisadora do Centro de Documentação e Pesquisa em História dos Domínios Portugueses (CEDOPE)/DEHIS-UFPR. Rua Senador Xavier da Silva, n. 272, ap. 41. Curitiba/Paraná. Cep: 80.530-060 anapwagner@gmail.com.