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Sul do Sul: memória, patrimônio e identidade | Carmem Schiavon, Adriana K. Senna e Rita de Cássia P. Silva
A população do arquipélago formado por nove ilhas e várias ilhotas de origem vulcânica foi batizada “açoriana” em reverência às aves da espécie falconídea (“açor”) que povoavam o lugar. Parte desses ilhéus que lá vivia imigrou para o extremo Sul do Brasil em meados do século XVIII, na esperança de conseguir melhores condições de vida e de alcançar um futuro próspero. O deslocamento para o Rio Grande de São Pedro configurou, desde o início, um grande desafio para aqueles que enfrentavam o percurso marítimo que os levaria às terras brasileiras. Ao longo das viagens, a carência de alimentos e a precariedade das condições de higiene fatalmente ocasionavam a emergência de enfermidades e mortes. O contingente que conseguiu sobreviver aos infortúnios da travessia teve um papel essencial na colonização e no desenvolvimento da região após 1752.
A partir desse enfoque, cada um dos autores do livro “Sul do Sul: memória, patrimônio e identidade” investiga a historiografia rio-grandense e luso-açoriana, observando-as criticamente. Organizada por Carmem Schiavon, Adriana Senna e Rita de Cássia Portela, a obra apresenta os resultados de pesquisas sobre os aspectos da história e da cultura do Rio Grande 1, privilegiando as tradições açorianas que se enraizaram entre a população residente naquele lugarejo. Leia Mais
Uma pré-história do turismo no Brasil: recreações aristocráticas e lazeres burgueses (1808-1850) – CAMARGO (RBH)
CAMARGO, Haroldo Leitão. Uma pré-história do turismo no Brasil: recreações aristocráticas e lazeres burgueses (1808-1850). São Paulo: Aleph, 2007. 383p. Resenha de: PELEGRINI, Sandra C. A. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.28, n.55 jan./jun. 2008.
Na efeméride dos duzentos anos da chegada da Coroa Portuguesa a terras brasileiras e na esteira das inovações que trouxe consigo — como a criação de instituições de ensino superior, indústrias, imprensa e museus, entre outras —, observamos que a historiografia tem revisitado esses temas. No entanto, poucos especialistas têm se debruçado sobre o estudo das formas de lazer introduzidas no Brasil Colônia, após 1808 — temática eleita por Haroldo Leitão Camargo em Uma pré-história do turismo no Brasil. Trata-se de um volume que retoma a análise dos percalços das viagens transoceânicas realizadas entre os séculos XVI e XIX e das transformações que distintas formas de diversão adquiriram no Brasil. Todavia, sua principal contribuição diz respeito à conceituação do ‘proto-turismo’ e ao estudo das conotações atribuídas às recreações, aos banhos de mar, às caldas e às estâncias hidrominerais desfrutados pelos membros da corte e seus pares.
Uma narrativa envolvente e fundamentada em documentação diversificada nos introduz em um universo que abarca desde relatos de navegadores anônimos manifestos por tripulantes de embarcações, funcionários da Companhia das índias ocidentais, comerciantes, jesuítas e capuchinhos, até correspondências pessoais de aspirantes a marinheiro como Manet, que se tornaria reconhecido artista plástico. Registros de exploradores e cientistas estrangeiros que se aventuraram pelas terras tropicais e comentários de personagens emblemáticos, como Pero Vaz de Caminha, também não escaparam de uma cuidadosa análise por parte do autor.
Com efeito, Camargo nos deleita com impressões transmitidas por olhares estrangeiros através da literatura de viagem, muito apreciada entre os europeus no século XIX. Um gênero que corroborou para transformar o exercício individual da leitura numa prática de sociabilidade compartilhada em serões domésticos não apenas na Europa, mas também no Brasil. Além dessa literatura, o autor toma como referenciais investigativos folhetins, anúncios, vinhetas, ilustrações e diários de membros da corte com o intuito de apreender o sentido atribuído para as práticas sociais que incluíram os benefícios medicinais das águas minerais e sulfurosas, as atividades em balneários marítimos e as diversões desfrutadas por parte significativa da aristocracia portuguesa instalada no Brasil no início do século XIX, reproduzidas também pela fidalguia mais abastada.
Tal empreitada exigiu a averiguação de pistas acerca das motivações e as inovações tecnológicas capazes de propiciar a oferta de atividades que levariam os indivíduos a se afastarem do trabalho (ou do não-trabalho) e seriam, na atualidade, decodificadas como anseios associados às necessidades psíquicas e culturais de os cidadãos esquivarem-se de suas rotinas cotidianas. Nesse percurso, Camargo não se furta da investigação sobre os significados históricos da vilegiatura, das caçadas e dos jogos de carteado, da hospedagem nos cottages na Serra, da construção de casas de veraneio, enfim, de recreações em tempos e espaços sociais distintos. Aborda a origem etimológica dos vocábulos e as suas similaridades e diferenças em relação ao turismo, tal como é concebido pela sociedade capitalista.
O livro examina de que maneira determinados costumes passaram a ser reconhecidos como embriões do turismo no país e procura desvelar visões simplistas, cujo intuito se circunscreve a associar, por exemplo, os banhos ao turismo. Interessado em compreender as alterações que, simultaneamente, enredaram a ritualização desse fenômeno, pesquisa os hábitos que passaram a adquirir sentidos lúdicos e a envolver serviços remunerados sem, no entanto, excluir as indicações médicas que os inflaram. Para tanto, opta por analisar a gênese e o desenvolvimento de determinadas práticas cotidianas, como as desenvolvidas nos antigos balneários romanos e outras que, ao longo dos séculos, se transformaram em atividades recreativas ou terapêuticas recorrentes entre a aristocracia européia, igualmente adotadas no Brasil pela ‘Corte Tropical’.
Do seu ponto de vista, a vilegiatura, as visitas à Floresta da Tijuca, ao Corcovado ou ao Horto Real ou Jardim Botânico indicam a busca de ares mais puros e a fuga da usualidade. Os banhos em águas salgadas ou passeios à beira-mar difundidos entre aristocratas e burgueses, a princípio recomendados por médicos, posteriormente assumiram um perfil hedonista e prazeroso distante das motivações terapêuticas e profiláticas iniciais.
Nessa linha argumentativa, o autor salienta que as visitas às fontes de águas minerais e às caldas, praticadas desde a Antiguidade, assumiram uma dimensão disciplinada e regular a partir da amplitude que atingiram no discurso médico no século XVIII e ora se imbricaram a empreendimentos médico-hospitalares, ora se associaram ao ‘curismo-turismo’, como ocorreu na Grã-Bretanha, na Europa Ocidental e Central. No Brasil, o usufruir das chamadas ‘águas virtuosas’ implicou as facilidades de acesso a esses locais, bem como diferentes percepções sobre suas finalidades. Enquanto para o comerciante inglês John Luccock1 elas apresentavam um potencial comercial a ser explorado, para D. João VI, fundamentado talvez em princípios de ‘eqüidade’ ou em perspectivas empresariais limitadas, a virtude curativa dessas águas devia ser consagrada a remediar “moléstias rebeldes aos esforços da Medicina e da Cirurgia” (p.259).
As viagens transoceânicas e os seus infortúnios constituem um outro assunto abordado por Haroldo L. Camargo, um tema recorrente na literatura especializada que deu e continua dando vazão às fábulas alimentadas no imaginário social. Assim, por intermédio de fragmentos de relatos dos vários viajantes, o historiador evidencia situações vivenciadas no cotidiano das embarcações que se precipitavam mar adentro e remete à precariedade das condições de vida a bordo, entre os séculos XVI e XVIII. Para esses passageiros e tripulantes, o conceito de uma viagem profícua se circunscrevia à condição de escapar com vida ao seu término.
Apenas para aguçarmos a diligência de futuros interlocutores, vale retomar determinados relatos analisados nesse volume, como os do jesuíta Antônio Sepp, do funcionário da Companhia das índias ocidentais da Holanda Joan Nieuhof e do marquês de Távora. Alguns deles descrevem suas impressões sobre o Brasil e seus habitantes, mas salientam os contratempos enfrentados no transcurso das viagens, tais como: sucessivas tempestades, a putrefação dos alimentos, a contaminação da água potável, o desconforto psicológico e material, a necessidade de superar a ‘lenta’ passagem do tempo, as pestes e doenças. Como se não bastassem tais mazelas, mencionam ataques de corsários inculpados de saquear as embarcações, ferir os tripulantes e escravizar os sobreviventes. O temor dos ‘perigos do mar’, por exemplo, é exposto com minúcias por Joan Nieuhof que, em 1640, desembarcou no Recife.
Os relatos tomados como fontes por Camargo tendem a desmistificar o imaginário ocidental relativo às imagens romanescas criadas em torno dos tripulantes das naus e suas ‘façanhas heróicas’. Se nos séculos XV e XVII alguns registros dessas viagens se aproximam do que o autor define como ‘confissões catárticas’, os relatos dos séculos XVIII e XIX apontam alterações no perfil dos viajantes e, principalmente, da tripulação — em geral, composta por pessoas marginalizadas socialmente e que abraçavam a profissão sem conhecer as artimanhas do ofício. O jesuíta Antônio Sepp, cujo translado iniciou-se em Cádiz (Espanha) com destino a Buenos Aires (Argentina), no segundo quartel do século XVII, inquieta o leitor porque se refere aos ‘conceitos e preconceitos’ manifestos no ambiente social interno dessas embarcações. Ele admite nutrir rancores contra o comandante considerado mesquinho e ambicioso. Já em 1750, o marquês de Távora mostra-se indignado frente à brutalização dos marinheiros e chega a afirmar: “Posso lhes assegurar que … sentem mais a morte de um de seus frangos do que a perda de cinco ou seis companheiros de viagem” (citado na p.53).
De todo modo, cabe-nos destacar que o historiador extrai das entrelinhas dessas narrativas algumas verossimilhanças e esmiúça as imagens idealizadas impressas na literatura que se reporta à pirataria ou aos desafios das viagens transoceânicas. Tais temas foram e continuam sendo alvo de inspiração para produções cinematográficas e literárias que não raro são apropriadas por empreendimentos turísticos e pela publicidade. Nessa direção, assevera: “O turismo reelabora para os seus próprios fins as imagens e a produção delas decorrentes…” e ao referir-se às recreações dessa natureza lembra que “Em torno delas, há uma orquestração que pretende revivê-las, mitigadas e conseqüentemente desprovidas de suas características reais…” (p.55).
Sem dúvida, as perspectivas de desfrutar da aventura, do terror ou do prazer estimulam sensações muito bem exploradas por empresas que se ocupam do turismo desde que a sociedade industrial criou o axioma ‘tempo é dinheiro’. O tempo deve ser integralmente aproveitado, até mesmo aquele destinado ao descanso, à recreação e ao lazer. Encerramos esta resenha citando o historiador Evaldo Cabral de Mello quando afirma que “o prazer de falar de um bom livro só é inferior ao prazer de lê-lo”,2 e salientamos a propriedade com que Haroldo Camargo trata a problemática pesquisada — tema candente na atualidade.
Notas
1 Luccock viveu no Rio de Janeiro entre 1808 e 1818. Ao retornar ao seu país publicou Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil, em 1820. O livro foi traduzido para o alemão um ano depois e compilado em 1831 numa versão destinada ao público juvenil, dada a significativa aceitação do tema entre os europeus. No Brasil, há duas edições: Itatiaia (Belo Horizonte) e São Paulo (Edusp, 1975). Cf. CAMARGO, 2007, p.79, 367.
2 Cf. MELLO, E. C. “Em O modelo italiano, Fernand Braudel examina o apogeu cultural, político e econômico do país nos séculos 15, 16 e 17″. Folha de S. Paulo, 23.dez.2007, Caderno Mais, p.8. [ Links ]
Sandra C. A. Pelegrini – Depto. de História – Universidade Estadual de Maringá. Avenida Colombo, 5790, Jardim Universitário.87020-900 Maringá – PR – Brasil. E-mail: spelegrini@wnet.com.br
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Los usos de las imágenes: estúdios sobre la función social del arte y la comunicación social | Ernst H. Gombrich
Ernst Gombrich (1909-2001) é um dos historiadores da arte mais bem-conceituados internacionalmente. Sua obra abrange livros como A história da arte, Arte e ilusão e vários volumes que reuniram ensaios como: Temas de nuestro tiempo, Meditations on a Hobby Horse, La imagen y el ojo, entre outros. No decorrer de sua trajetória intelectual, ministrou aulas de História da tradição clássica, na Universidade de Londres e foi diretor do Instituto Warburg, organização deslocada para a capital da Inglaterra após a diáspora causada pelo nazismo, que obrigou intelectuais alemães a se exilarem em várias partes do mundo.
A produção de Gombrich, como destacou Omar Calabrese (1987), apresenta traços do chamado “visualismo” de Riegl e do “formalismo” de Wolfflin – pesquisadores germânicos com os quais conviveu no Instituto Warburg. Tanto é que criticou duramente as abordagens sobre a arte, fundamentadas em princípios sociológicos, como foi o caso da obra Historia social da literatura e da arte, de Arnold Hauser (1982). Leia Mais
Muitas memórias, outras histórias | Déa Ribeiro Fenelon, Laura Antunes, Paulo R. de Almeida e Yara A. Khoury
A coletânea “Muitas memórias, outras histórias”, organizada pelos professores Déa Ribeiro Fenelon, Laura Antunes Maciel, Paulo Roberto de Almeida e Yara Aun Khoury, apresenta o resultado dos trabalhos desenvolvidos pelos pesquisadores que integram o PROCAD – Programa Nacional de Cooperação Acadêmica – composto por docentes de diferentes instituições de ensino superior [3]. Esse projeto, desenvolvido entre 2001 e 2004, promoveu um intercâmbio de experiências entre pesquisadores das ciências humanas visando ao fortalecimento de questões relacionadas à memória e à história.
No seu conjunto, o volume reúne ensaios que, mediante distintas interpretações, apresentam abordagens que enfocam a memória, compreendida como uma das mais importantes experiências do tempo, representadas pela capacidade humana de reter vínculos com o passado e de reconhecer neles múltiplas experiências do viver. A memória, no entendimento dos autores, faz “falar o indizível”, trazendo para o presente momentos históricos pretéritos e experiências silenciadas. Leia Mais
Representações. Contribuições a um debate transdisciplinar – CARDOSO; MALERBA (RBH)
CARDOSO, Ciro Flamarion; MALERBA, Jurandir (orgs.). Representações. Contribuições a um debate transdisciplinar. Campinas: Papirus, 2000. 288p. Resenha de: PELEGRINI, Sandra C. A. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.22, n.43, 2002.
A organização de uma coletânea voltada para o debate acerca das representações configura um projeto ambicioso, dada a complexidade que o próprio tema encerra. A obra, além de contemplar o necessário equacionamento do conceito, indica diferenciadas tendências teóricas e contribui para o aprofundamento da reflexão no âmbito da pesquisa histórica, sua natureza epistemológica e hermenêutica. Se uma ressalva pudesse ser feita, apontar-se-ia a ausência de uma detida análise sobre as relações entre a história das artes e as representações ¾ um terreno fértil, mas pouco explorado pela historiografia, especialmente no campo das produções pictóricas e da plasticidade.
No seu conjunto, o volume reúne ensaios que, mediante distintas interpretações, apresenta abordagens que enfocam desde as implicações da representação como objeto histórico até a constatação de sua dimensão lingüística na produção historiográfica. Embora aponte os riscos da utilização indiscriminada da noção supracitada e de determinados paradigmas teóricos sem as devidas precauções metodológicas, o trabalho parte do reconhecimento de que a representação tornou-se uma das pedras angulares do discurso histórico contemporâneo e, como tal, procura caracterizar sua índole e função cognitiva.
Entre as contribuições do volume, chama especial atenção a análise do conceito de representação política na esfera da produção historiográfica brasileira, efetuada por Maria Helena Rolim Capelato e Eliana Regina de Freitas Dutra. As autoras reconhecem a multiplicidade das abordagens, objetos e referenciais metodológicos que têm sido alvo das investigações no âmbito do político, todavia advertem que tal fato não deve ser atribuído aos modismos historiográficos passageiros que tendem a privilegiar os estudos voltados para as representações do poder e do exercício político e sua articulação com a vida social brasileira. Muito pelo contrário, esse deslocamento, do ponto de vista das historiadoras, resulta das aberturas epistemológicas e da operacionalidade proposta pelo estruturalismo e pós-estruturalismo. Nesse contexto, a análise proposta volta-se inicialmente para a identificação dos caminhos percorridos pelo conceito de representações, sua dimensão epistemológica e prática no campo das investigações históricas. E, num segundo momento, procura verificar o impacto do mesmo em cerca de uma centena de dissertações de mestrado e teses de doutorado concluídas nos anos 90, no Brasil.
Com o intento de promover um balanço historiográfico dessa produção, a reflexão abarca desde a análise do elenco dos temas abordados1 até o cômputo das fontes utilizadas nos referidos trabalhos2. A incidência de um confronto entre as posturas adotadas nesses trabalhos e os pressupostos teóricos que informaram as produções dos períodos anteriores às analisadas revelou a tentativa desses pesquisadores estabelecerem um exercício de interlocução com as tendências historiográficas internacionais. Se, por um lado, como salientam as autoras, percebe-se que o resultado de tais iniciativas parecem ter-se reduzido a um tratamento descritivo e pouco analítico, que em última instância revelou significativa dificuldade de compreensão do espaço da política. Por outro, a referida pesquisa possibilitou constatar a importância desse novo campo para a historiografia nacional, além da incorporação de novas fontes e objetos.
Não obstante a constatação do esforço dos profissionais brasileiros, torna-se imperioso admitir, segundo Capelato e Dutra, que mesmo os estudos portadores de maior eficácia empírica e metodológica, não conseguem superar as armadilhas inerentes às simplificações e demonstram uma efetiva dificuldade de aprofundamento teórico pertinente aos conceitos formadores da explanação do conhecimento histórico. Tal assertiva fundamenta-se no rastreamento da noção de representação e na instrumentalização do termo associada às teorias semiolingüísticas consolidadas nos anos 60 e vinculadas à lógica das articulações entre linguagem, símbolo, imaginário e representação. Na trilha dos suportes que embasaram teórica e metodologicamente as pesquisas no campo das humanidades, as autoras pontificam os encaminhamentos propostos por destacados pensadores como Marin, Castoriadis, Lefort, entre outros expoentes.
Nessa direção, a proposta de Capelato e Dutra termina intercruzando-se com as inferências implícitas no texto de Francisco J. C. Falcon, que se ocupa prioritariamente da discussão das matrizes teóricas que informam a construção do conceito de representações. Este, por sua vez, apropriadamente, antes de investigar as acepções das representações, propõe-se a pontuar a concepção do discurso histórico mediante a análise de distintas correntes historiográficas, mais precisamente, na perspectiva dos modernos e na dos pós-modernos. De um extremo ao outro, tende a sublinhar o trânsito do conceito: para esses últimos a representação figuraria como negação do conhecimento histórico, enquanto para os primeiros seria reconhecida como parte integrante do próprio discurso da disciplina. Enveredando pelo circunstanciamento dessa problemática no campo da história cultural, Falcon recupera usos e interpretações do conceito na historiografia atual. Assim, termina resgatando etimológica e cognitivamente acepções do termo e do conceito, ocupando-se das articulações entre representações, ideologia e imaginário, e também do mapeamento de algumas das principais obras dedicadas ao tema em questão.
Assim como Falcon, Helenice Rodrigues da Silva empenha-se na recuperação genealógica das representações e seus sentidos na disciplina histórica, debatendo a operacionalidade da noção de representação na esfera da historiografia francesa. Ao procurar acompanhar a trajetória na qual os estudiosos da história cultural e da história política foram atribuindo primazia ao conceito, ao longo da década de 1970, a autora alerta para a necessidade de se relativizar a importância da noção de representação na prática histórica. Nesse horizonte, ressalta que no universo das renovações teóricas e metodológicas processadas nessa área, a história das representações tendeu a firmar-se como complemento e nova orientação da história cultural, uma vez que significou, para os herdeiros da tradição dos Annales, a possibilidade de integração dos atores individuais ao social e histórico. Desse modo, como propõe Roger Chartier, o conceito permitiria a associação entre antigas categorias que a história social, a história das mentalidades e a história política mantinham separadas3. Em síntese, Silva procura evidenciar como a noção de representação, largamente utilizada em disciplinas como a sociologia e a psicologia (entre outras), tendeu a substituir o conceito de mentalidades na pesquisa histórica e de que forma viria a contribuir para a integração dos distintos domínios da disciplina.
Reportando-se às múltiplas facetas que o conceito implica, Ciro Flamarion Cardoso principia sua análise por intermédio de uma tentativa de perceber as motivações que informaram a denominada “virada cultural” na produção histórica da atualidade. Nesse sentido, detecta as implicações de três dos seus desdobramentos na esfera da nova história cultural4. Do seu ponto de vista, essas tendências tenderiam a inverter as premissas estruturais e explicativas do marxismo e dos Annales, terminando por promover a confecção de uma história cultural do social, em detrimento de uma história social da cultura.
Apesar de entender que as representações contribuem para a edificação de uma dada inteligibilidade do passado, Cardoso mostra-se temeroso em relação à crescente negação do realismo epistemológico, identificado em um número significativo de estudos na área das ciências humanas. Nessa direção, desnuda uma série de vícios que tem informado as pesquisas nessa área do conhecimento, analisa os pressupostos teóricos que fundamentam a obra de Roger Chartier e, posteriormente, debruça-se sobre um minucioso acompanhamento dos usos das representações nos horizontes da psicologia social.
Numa trilha similar, mas apresentando o tema do ponto de vista do sociólogo Norbert Elias, Jurandir Malerba analisa a apropriação que a história vem realizando da noção de representação. Considerando que essa questão deva ser deslocada para o campo da narratividade, o autor busca problematizar os procedimentos mais comuns nessa área. Assim, debate os ditames que orientam a indiscriminada utilização do conceito na historiografia contemporânea, reconduzindo a temática para uma síntese distinta das proposições mais recorrentes. Esse encaminhamento privilegia as articulações entre a teoria simbólica de Elias e a definição de habitus proposta por Pierre Bourdier.
Para Malerba, a teoria simbólica de Elias sugere uma leitura de representações que supera os limites circunstanciais da oposição maniqueísta entre o mundo real e o mundo representado. Nessa linha de argumentação, tal enfoque possibilita a incorporação do homem à natureza escapando de falsos dilemas, processados na edificação da teoria processual do conhecimento e da linguagem, de modo a permitir uma compreensão diferenciada do hábito social. Este, por sua vez, contempla a recuperação de visões da experiência de vida dos indivíduos em sociedade5.
Não menos relevantes são as assertivas de Lúcia Helena C. Z Pulino, Graciela Chamorro e Gustavo Blázquez. Enquanto Pulino equaciona o problema das representações em filosofia a partir da obra de Richard Rorty, Chamorro estabelece as possíveis articulações entre o referido conceito e a teologia, rastreando as representações de Deus na história, apontando as relações da teologia feminista com múltiplas formas do simbolismo (paterno e materno). Por seu turno, Blázquez aborda a maneira como a antropologia social tem-se relacionado com a noção de representação.
À guisa de conclusão, Jurandir Malerba reporta-se, por um lado, à proposta de alinhar possíveis conexões entre os textos que compõem a coletânea, respeitando as particularidades das análises propostas em cada um deles, e por outro, ao desconforto cunhado nas abordagens que tendem a limitar os efeitos das representações em toda e qualquer problemática. Oportunamente, acaba apontando os paradoxos de uma história que se propõe nova, mas enfrenta uma crise de “consciência” da própria disciplina. Para tanto, enfoca tantos os impasses teóricos enfrentados pela história como os problemas inerentes ao estatuto epistemológico da história cultural.
Curiosamente, as evidências ilustram o fato de que a abertura do diálogo da história com outras áreas do conhecimento, a conseqüente ampliação de seus objetos, o corpus documental e as estratégias metodológicas deflagraram aquela que poderíamos nomear como crise de identidade da disciplina e um intenso processo de fragmentação da mesma em múltiplas histórias, tomadas como eixo norteador da explicação sobre as contínuas transformações da sociedade moderna.
Por certo, as razões que motivaram o surgimento desse impasse teórico diante das constantes mutações do objeto histórico passam pela questão do narrativismo histórico. Mas, no contexto de tais transformações, a reflexão acerca das representações tornou-se providencial e seus aportes ganharam, cada vez mais, relevância e interesse por parte dos profissionais da área. Contudo, os excessos unilaterais detectados nas formas de interpretação histórica têm se circunscrito a modismos transitórios e efêmeros.
Sem dúvida, tais contingências explicitam a necessidade de se buscar soluções intermediárias para a abordagem das demandas mais urgentes da sociedade humana, suscitando paradigmas explicativos alternativos. Numa visão de conjunto, torna-se forçoso admitir que as restrições ao conceito de mentalidade propiciaram aos historiadores da cultura a busca de premissas alternativas àquelas assentadas na ambigüidade e na imprecisão, observadas nas articulações entre o mental e o social.
A nova história cultural, longe de tomar como objeto preponderante as interpretações dos expoentes filosóficos e as manifestações formais de cultura (como a arte e a literatura), demonstrou sua “estima” pelas práticas populares ou pelas manifestações das massas inominadas expressas nos rituais religiosos, crenças, festas e resistências cotidianas ao poder instituído.
No terreno da história social e política, o descontentamento com os modelos tradicionais impulsionou também a revisão de axiomas pautados por obnubilantes explicações globais. Desse modo, talvez a conjugação entre o poder e as representações venham a assinalar novos dispositivos de apreensão do saber histórico, sejam eles centrados no estudo do imaginário ou da simbologia política.
Por fim, não se deve furtar de proclamar que os resultados dessa coletânea foram plenamente satisfatórios. Ao superar os propósitos iniciais do projeto, com certeza esse volume se tornará uma obra de referência na esfera da produção historiográfica contemporânea.
Notas
1 Identidade nacional, imagens do poder, representações da política, espetáculos políticos, imagens e símbolos do progresso/modernidade/modernização/desenvolvimento capitalista, produção artística, veículos de propaganda política; instrumentos pedagógicos e meios de comunicação e imagens da cidades, são os temas diagnosticados pelo levantamento efetuado. CARDOSO, Ciro Flamarion e MALERBA, Jurandir (orgs.). Representações. Contribuições a um debate transdisciplinar. Campinas: Papirus, 2000, p. 247.
2 Entre as fontes mais citadas destacaram-se: jornais/revistas/pasquins/relatos jornalísticos; obras literárias/narrativas/crônicas/dramaturgia; memórias/diários/biografias/autobiografias/relatos de viagens; discursos/mensagens/manifestos/escritos políticos; depoimentos; iconografia; fotografia; correspondência; música; estátuas/monumentos/obras arquitetônicas/planos urbanísticos; filmes; álbuns; almanaques; objetos simbólicos/moedas, bandeiras, escudos, emblemas, cartazes; rádio/TV; publicidade; mapas e plantas. Idem, p.249.
3 Idem, pp. 82-83.
4 O autor as nomeia como “virada lingüística”, “virada para o interior” e “virada para exterior”, indicando os respectivos representantes de cada uma delas. Idem, p.11.
5 Idem, p. 218.
Sandra C. A. Pelegrini – Universidade Estadual de Maringá.
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