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Cartografias imaginárias: estudos sobre a construção da história do espaço nacional brasileiro e a relação história e espaço – PEIXOTO (HH)
PEIXOTO, Renato Amado. Cartografias imaginárias: estudos sobre a construção da história do espaço nacional brasileiro e a relação história e espaço. Natal: EDUFRN; Campina Grande: EDUEPB, 2011, 182 p. Resenha de: OLIVEIRA, Adriana Mara Vaz de. Margens e interstícios do espaço. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 7, p.345-349, nov./dez. 2011.
Enviado em: 29/9/2011 Aprovado em: 23/10/2011 345 Margens e interstícios do espaço 346 Tratar o espaço requer cautela e definição de abordagem. O espaço se amplifica na percepção e compreensão, ao mesmo tempo em que implica dicotomia de interpretação, sugerindo posições diversas e complementares como lugar ou território. Para Certeau (1994), em Invenção do cotidiano, o espaço é um lugar praticado, porque envolve vetores como tempo, direção e velocidade, ao contrário da estabilidade do lugar. Para o mesmo autor, “o espaço é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de programas conflituais ou de proximidades contratuais” (CERTEAU 1994, p. 202).
Desse modo, as práticas espaciais refletem a junção de objetos e operações que se traduzem em vários tipos de estruturas narrativas, como relatos e mapas. Os produtos gerados a partir das práticas condensam informações que as expressam. “Pensar o espaço não é apenas entender sua representação, considerar sua inscrição, perscrutar sua construção; é também necessário buscar suas conexões” (PEIXOTO 2011, p. 157).
Na direção dessas reflexões, o livro Cartografias imaginárias de Renato Amado Peixoto descortina uma edificante abordagem do espaço com base na cartografia. Para o autor, a cartografia deve ser problematizada para além da sua escrita, enveredando mais […] em torno dos processos cognitivos que a originam e dos métodos em que se investe sua inscrição. Para se pensar o espaço é necessário considerar antes um espaço imaginário onde se produz uma linguagem através de múltiplas experiências de outras linguagens; é preciso pensar os pressupostos que possibilitaram as condições de composição da gramática e da sintaxe dessas linguagens; entender cada um dos mapas das imaginações e das geografias pessoais que extrapolaram em um dado momento seus limites para constituir uma gramática e uma sintaxe cartográfica. Pensar o espaço significa investigar uma construção humana que só existe enquanto parte de um campo de forças no qual a energia é o falante e a linguagem seu gerador […] (PEIXOTO 2011, p. 159, grifos do autor).
Ao encontro de tal referencial teórico, Peixoto apresenta seus oito artigos.
O que se mostra, em princípio, como fomento ao debate dentro do Programa de Pós-Graduação da qual faz parte, extrapola-o. Segundo o autor, os quatro primeiros artigos discutem a construção do espaço nacional, objeto de sua tese de doutoramento, em consonância com as proposições da linha de pesquisa Literatura, Espaço e História. Os demais artigos explicitam a sua posição teórica no debate de ideias do Programa, articulando as contribuições de Jacques Derrida e Michel Foucault, assim como as reinterpretações de Karl Marx na interlocução entre sujeito e ideologia na produção do espaço. Em todos eles, o fio condutor são o espaço e a cartografia.
A problematização da cartografia desdobra-se em estudos de caso que elucidam a urdidura de circunstâncias que extrapolam as configurações materiais e iconográficas dos mapas. A atuação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e o seu papel na construção da história do espaço nacional no século XIX oferecem a oportunidade de averiguar o jogo de interesses e de poder que os envolve. No seu primeiro texto, “Enformando a nação”, Peixoto se esmera nos desdobramentos que direcionam os olhares para a relação espaço e identidade nacional. Essas reflexões se completam nos textos posteriores “A produção do espaço no Terceiro Conselho de Estado (1842-1848)”, “Impertinentes, desinteressados ou sem escolha”, “O espelho de Jacobina”, “O mapa antes do território” e “Os dromedários e as borboletas”.
Na construção da memória nacional, como afirma Sandes (2000), o IHGB precisava se apoiar nos referenciais espaciais. Afinal, como bem avaliou Halbawchs (1990), não há memória coletiva que não se desenvolva num quadro espacial. Nesse sentido, estabelece-se uma tessitura, ainda que não explícita, entre o IHGB, a Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros (SENE) e o Conselho de Estado. É nessa trama que se localiza a cartografia, pois é um processo coletivo, qualificado e de múltiplas etapas que incluía planejamento estratégico, execução no campo e confecção no gabinete e atelier gráfico, realizado, muitas vezes, em conjunto pelo Estado e pela iniciativa privada, dado o seu grau de complexidade (PEIXOTO 2011, p. 18).
No empenho em desenredar essa trama, o autor expõe premissas para o estudo cartográfico em face da pesquisa histórica: 1) Expor, investigar e questionar os processos cognitivos e as relações de forças que constituem e resultam em determinado saber cartográfico ou atividade cartográfica; 2) Entender esta atividade cartográfica não como um fim, mas enquanto um processo mesmo, que depende da formação de um saber sobre o espaço e que se desdobra a partir de suas estratégias e práticas; 3) Compreender que a investigação da atividade cartográfica não se resume ao trabalho sobre o mapa, mas que antes deve resgatar um regime da exequilibilidade dos mapas que nos permite discernir certas continuidades ou descontinuidades, especialmente no que tange ao agenciamento das técnicas e das condições da escrita e à distribuição e atribuição de tarefas […]; 4) Analisar os produtos cartográficos cuidando de entender que suas particularidades, estilos, especificidades técnicas e características de mercado das quais se revestem ou são investidos emprestam novos sentidos à compreensão desses produtos […]; 5) Buscar uma leitura hermenêutica dos produtos cartográficos por meio de uma investigação semiológica e iconológica dos elementos disponibilizados no mapa (símbolos, colorações, legendas etc.) e a sua volta (decoração, ilustrações, grafismos etc.), considerando o contexto cultural e social dos seus produtores; 6) Entender o espaço registrado nos mapas como um campo sobre o qual são rebatidos enunciados e discursos, que se revelam nos enquadramentos utilizados […] e nos silêncios ou silenciamentos […]; 7) Procurar perscrutar os usos e as funções que estes produtos assumem inclusive procurando-se entender sua disseminação em outros produtos cartográficos ou mesmo outros saberes, sua divulgação e circulação (PEIXOTO 2011, p. 19-20, grifos do autor).
Observa-se a construção de uma metodologia que ampara o uso da cartografia como fonte na pesquisa histórica. Jeremy Black, em seu livro Mapas e história: construindo imagens do passado (2005), cujo original é de 1997, já dava mostras da potencialidade dos mapas como fonte das investigações históricas. Contudo, o que se sobressai nessa metodologia é a compreensão de que a produção do espaço depende de um jogo de significados e ressignificações do próprio espaço instituídos por quem a manipula.
Apesar de uma tênue aproximação com Lefebvre (1991), quando diz que a produção do espaço deve ser entendida dentro da estrutura social, abarcando- -a em toda sua complexidade, Peixoto afirma seu suporte em Roger Chartier, no seu livro À beira da falésia, que defende a análise epistemológica em que os dispositivos de representação desencadeiam modos de compreensão dos discursos dos que os sustentam e de quem os atribui. Essa postura articulada por Chartier sustenta a aproximação da história em relação à filosofia e à crítica literária, posição endossada por Peixoto.
Em “O mapa antes do território”, Peixoto afirma que “o mapa é construído, a priori, no conjunto das representações culturais dos narradores e está sujeito a constantes reinvenções, que são também reelaborações de sua identidade”, ou seja, “mapear o território significa inscrevê-lo num determinado espaço e, ao mesmo tempo, possibilitar que a escrita desse território possa transformar o mapa” (PEIXOTO 2011, p. 111).
Dessa forma, o autor transita com maestria pela literatura e sua crítica, bem como pela filosofia, referendando Chartier. Essa interlocução é conduzida nos textos “Impertinentes, desinteressados ou sem escolha”, “O espelho de Jacobina”, “Por uma análise crítica das políticas do espaço” e “Espaços imaginários” que se apoiam em narrativas de H. P. Lovecraft e de Machado de Assis, bem como no pensamento de Arthur Schopenhauer, Ludwig Wittgenstein, Jacques Derrida e Michel Foucault. Destacam-se especialmente os diálogos com Foucault sobre as relações de poder e de Schopenhauer acerca da representação, aplicado nos seus objetos de estudo, especificamente, a construção do espaço e da identidade nacional no século XIX ou no século XX.
Para a compreensão dos jogos do poder e as relações com a construção dos mapas, apoiado no conceito de biopoder de Foucault, Renato Peixoto discute a geopolítica como um saber sobre o espaço, amplificando o seu conceito para as políticas de espaço dela derivadas. Nessa articulação constitui-se uma cartografia desses saberes e políticas descortinando sobreposições de mapas com linguagens autônomas e passíveis de compreensão. Aqui, nomeia essa discussão como geopoder e oferece caminhos metodológicos para os que se interessam em investigar as dinâmicas do espaço desencadeadas com base nos grupos que exercem políticas de poder ancoradas nos saberes espaciais.
Concentra-se ainda no encontro das desrazões foucaultianas ao lado das razões implícitas na elaboração dos mapas e, por conseguinte, da condução da cartografia. Os espaços e mapas imaginários imprimem-se naqueles materiais e visíveis. Para tal, contextualiza a questão do espaço em relação à própria obra de Foucault, em especial aquela que tece observações sobre Antonin Artaud.
Ao final, Peixoto empreende uma síntese em que coloca o historiador dos espaços como cartógrafo. O exercício da cartografia que defende é aquele em que se reconhecem os interstícios e as margens dos mapas, mas também a economia de suas linguagens, que está na sua produção e reelaboração. Em certo sentido, reconhece-se a argumentação de Sueli Rolnik (1989, p. 65) que diz que “o cartógrafo é um verdadeiro antropófago: vive de expropriar, se apropriar, devorar e desovar”.
Referências
BLACK, Jeremy. Mapas e história: construindo imagens do passado. Tradução de Cleide Rapucci. Bauru: Edusc, 2005.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1994.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Laurent Leon Shaffter. São Paulo: Vértice; Ed. Revista dos Tribunais, 1990.
LEFEBVRE, Henri. The production of space. Translated by Donald N. Smith. Blackwell Publishing, 1991.
ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Editora Estação Liberdade, 1989.
SANDES, Noé Freire. A invenção da nação: entre a Monarquia e a República. Goiânia: Ed. UFG; Agepel, 2000.
Adriana Mara Vaz de Oliveira – Professora adjunta Universidade Federal de Goiás. E-mail: amvoliveira@uol.com.br Rua 5, 361/601, Condomínio Veladero – Setor Oeste 74115-115 – Goiânia – GO Brasil.