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História das mulheres, das relações de gênero e das sexualidades dissidentes / Estudos Ibero-Americanos / 2021
A pesquisa sobre História das Mulheres, relações de gênero e sexualidades dissidentes da cisheteronormatividade vem rendendo muitos textos publicados na forma de livros, capítulos e artigos. Essa trajetória de pesquisa que, em 1989, rendeu o primeiro dossiê intitulado “A mulher no espaço público”, publicado na Revista Brasileira de História e organizado por Maria Stella Martins Bresciani,[3] tem crescido significativamente, ampliando seus debates, incorporando novas discussões e enfrentando novos desafios.
Quando fomos convidadas a propor uma chamada de artigos para o dossiê, sabíamos que havia no campo uma grande quantidade de resultados merecendo ser divulgados. Foi com agradável surpresa que recebemos 43 artigos. Desses, 12 estavam fora das normas e foram devolvidos; e 31 foram enviados para avaliação. Da lista dos que tiveram pareceres ad hoc favoráveis, escolhemos apenas 12, como constava das regras da revista.
Essa experiência foi gratificante, mas nos causou preocupação. Muitos artigos com grande qualidade e bons pareceres não puderam ser publicados aqui, nesse dossiê. No entanto, demonstram a potencialidade do campo, resultado de recursos investidos na pesquisa, especialmente entre 2005 e 2016, da criação de grupos de estudos nas universidades e da vitalidade de movimentos sociais. Mostra, também, que a chamada “onda conservadora” antifeminista e homofóbica na América Latina, apesar dos seus ganhos eleitorais, não tem conseguido implantar seu “pânico moral”[4] na academia. Ao contrário, observa-se resistência, crescimento e diversificação.
Os artigos escolhidos para publicação neste dossiê se concentram, principalmente, na discussão sobre História das Mulheres. Apenas um dos artigos focalizou as sexualidades dissidentes da cisheteronormatividade. Pelo menos três artigos fizeram balanços historiográficos. O debate com a mídia, tendo como fontes livros, novelas e jornais, foi o principal suporte para a discussão sobre as subjetividades e a prescrição de normas para mulheres em diferentes momentos.
Abrindo o dossiê, o artigo “Relações de gênero, capitalismos afetivos, literatura ‘Chick-lit/Soft Porn’ e a ‘nova’ escrita contemporânea de/para mulheres”, escrito por Ana Carolina Eiras Coelho Soares, focaliza a literatura recente, sucesso de vendas, voltada para mulheres. A autora mostra como, apesar de essa literatura partir do pressuposto de que o prazer no sexo é um direito das mulheres, muitas imagens antigas são revisitadas. Nos pares que se formam, nessa literatura, os homens são sempre brancos, bem-sucedidos profissionalmente e muito mais ricos que as mulheres. Essas, possuem empregos insignificantes e nunca têm carreiras de sucesso. Elas se submetem “livremente” aos desejos do homem, por mais violentos que esses sejam. Uma cinderela contemporânea?
Raquel de Barros Pinto Miguel, no artigo “Fotonovelas: prescrevendo normas, modos e modas”, analisou as fotonovelas publicadas na revista Capricho nas décadas de 1950 e 1960. Nelas, as mocinhas, em geral pobres e órfãs, sofriam até encontrar a felicidade, casando-se com homem rico e lindo. A autora analisa essa “literatura de escape” e mostra o sucesso que obteve, observando a constituição das subjetividades engendradas.
O artigo “Modernidad, cultura y vanguardia feminista: Concha Méndez, una adelantada a su tiempo. De la voluntad emancipadora al exilio trasatlántico”, de Esmeralda Broullón, trata de analisar a trajetória pessoal e cultural da poetisa da geração de 1927, Concha Méndez, destacando o seu papel como escritora, editora e promotora cultural na Espanha nos anos 1920 e 1930, juntamente com o conhecido poeta Manuel Altolaguirre. Enfoca o período caracterizado pela grande efervescência política, pelo avanço do feminismo no país ibérico e por instituições de estudos como o Lyceum Club, um influente círculo cultural do qual Concha Méndez fez parte e onde se conheceram destacadas feministas que, pouco depois, em 1931, defenderam a conquista do voto feminino. A trajetória da autora no exílio mexicano, após a derrota da república espanhola em 1939, é, também, rapidamente delineada no artigo.
As discussões que articulam gênero e decolonialidade ou, como dizem as autoras, as “perspectivas contra coloniais” estão presentes no texto de Cintia Lima Crescêncio e Gleidiane de Sousa Ferreira, intitulado “Da História das Mulheres às perspectivas Contra-Coloniais? Reflexões sobre a historiografia do gênero no Brasil (2001-2019)”. Buscando, em eventos promovidos pela Associação Nacional de História (ANPUH-Brasil) e pelo Fazendo Gênero a presença da discussão contra-colonial entre pesquisadoras/es que discutem História das Mulheres e gênero, as autoras constatam que esse é um tema iniciante e com pouca presença, o que demonstra um pouco de resistência do campo da historiografia para essa questão.
Utilizando com principal fonte o periódico argentino Brujas, Júlia Glaciela da Silva Oliveira, no artigo “’Sin senderos prefijados’: a defesa da autonomia feminista nas páginas de Brujas (1981-1996)”, discute a autonomia do movimento feminista. Além de apresentar a historicidade desse debate nos anos 1970, a autora articula o tema com o avanço neoliberal na América Latina.
Também usando periódicos como a principal fonte, o artigo “As mulheres e suas tramas impressas: um repensar historiográfico das produções sobre a sociedade carioca e portenha dos anos iniciais da segunda metade do século XIX”, escrito por Bárbara Figueiredo Souto, mostra como a historiografia da imprensa e a que focaliza intelectuais ainda não deu a devida visibilidade às mulheres que escreveram e dirigiram periódicos em Buenos Aires e no Rio de Janeiro no século XIX. No artigo, Joanna Paula Manso de Noronha, por sua trajetória como editora e escritora, tanto na Argentina como no Brasil, é classificada como uma intelectual-mediadora-feminista-transnacional.
Patrícia Lessa e Claudia Maia, no artigo “Feminismo, vegetarianismo e antivivisseccionismo em Maria Lacerda de Moura”, trazem do início do século XX uma discussão que tem ganhado força neste início do século XXI: o antiespecismo. No caso de Maria Lacerda de Moura, tratava-se de um feminismo que se articulava com a questão da classe, com a luta pelo vegetarianismo e contra a vivissecção. Importante destacar como questões que hoje ganham destaque eram alvo de discussões e de publicações por Maria Lacerda de Moura e, no entanto, ficaram esquecidas.
O artigo “Algunas reflexiones sobre género y memoria en las narrativas sobre los años setenta en Argentina”, de Ana Laura Noguera, levanta questões importantes sobre a memória e a História do Tempo Presente na Argentina. A autora aponta as discussões teórico metodológicas que articulam gênero e memória na história recente. Mostra a importância da história oral para a pesquisa em História das Mulheres e do Gênero. Destaca, também, a forma como homens e mulheres narram suas histórias de vida e o impacto historiográfico das diferentes histórias para a noção de agência.
Caroline Pereira Leal, no artigo “’Mais bela do que o sol, mais bela do que o céu’: representação feminina no discurso carnavalesco da Porto Alegre do início do século XX (1906-1914)”, nos leva de volta ao início do século passado para mostrar as tentativas de definir, nas elites e com repercussões duvidosas, como deveriam se comportar as mulheres nas festas de carnaval.
O artigo “Memória em disputa: Inah Costa e os desafios da história das mulheres artistas”, escrito por Rebecca Corrêa e Silva, discute a invisibilidade, as dificuldades e o impacto do gênero na vida das mulheres que atuam no campo da arte. Ela traz a história de uma artista que passou da pintura figurativa para a moderna e abstrata.
O único artigo que discute sexualidades dissidentes é o de Marina Leitão Mesquita, intitulado “Gênero, dissidência e tradição na (re)invenção da feminilidade em concursos de beleza gay”. Trata- -se de uma etnografia sobre concursos de beleza gay em Fortaleza, Ceará. A discussão sobre as hierarquias, formas de feminilidades aceitas, assim como a memória de momentos em que a polícia interferia, marcam a narrativa. A discussão sobre a “feminilidade espetacular”, como padrão de beleza, ajuda a questionar as configurações de gênero.
O artigo de María Laura Osta Vázquez, intitulado “Manos que mecen la cuna: las nodrizas uruguayas bajo el control del discurso médico en el siglo XIX”, mostra o fim de uma profissão assumida por muitas mulheres pobres, negras, mestiças e estrangeiras: as amas de leite. Na segunda metade do século XIX, o discurso médico passou a questionar as mulheres que entregavam seus filhos para amas de leite e a discutir a saúde e a moral dessas profissionais. Toda essa campanha foi feita pela imprensa e pelo discurso médico higienista que – em nome da redução da mortalidade infantil – passou a cobrar das mulheres o “amor materno”.
Temos a honra que encerrar este dossiê com a entrevista de Maria Odila Leite da Silva Dias, professora emérita da Universidade de São Paulo (USP). Autora, entre outros, do livro Quotidiano e Poder, que abriu caminhos para a história das mulheres no Brasil, focalizando mulheres pobres, escravizadas e forras nas suas lidas para prover a existência no início do século XIX, ela é responsável pela formação de pesquisadoras que trouxeram inúmeras contribuições para o campo da História das Mulheres, do gênero e das sexualidades dissidentes.
Boa leitura.
Notas
3. BRESCIANI, Maria Stella Martins (org.). A Mulher no Espaço Público. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 9, n. 18, p. 7-8, ago./ set. 1989.
4. MISKOLCI, Richard; CAMPANA, Maximiliano. “Ideologia de gênero”: notas para a genealogia de um pânico moral contemporâneo. Sociedade e Estado, Brasília, v. 32, n. 3, p. 725-744, set./dez. 2017
Joana Maria Pedro – Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), em São Paulo, SP, Brasil; pós- doutora na França, na Université d’Avignon e, também, nos Estados Unidos, na Brown University; professora titular da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis, SC Brasil. Coordenadora do Instituto de Estudos de Gênero (IEG), Florianópolis/SC, Brasil. Atuou como Presidenta da Associação Nacional de História (ANPUH), na gestão 2017-2019. orcid.org/0000-0001-5690-4859 E-mail: joanamaria.pedro@gmail.com
Pilar Domínguez Prats – Doctora en Historia por la Universidad Complutense de Madrid (UCM), en Madrid, España. Profesora honorífica del área de Historia del Pensamiento Político y Movimientos Sociales de la Universidad de Las Palmas de Gran Canaria, España. En la actualidad es investigadora del proyecto: Redes de Cooperación Interuniversitaria Canarias-Africa en Políticas de Igualdad desde metodologías colaborativas” y del Centro de Estudios y Difusión del Atlántico, CEDA. Socia fundadora del Seminario de Fuentes Orales de la Universidad Complutense de Madrid y del Instituto de Investigaciones Feministas de la UCM; presidenta de la Asociación Internacional de Historia Oral, IOHA (2008-2010) y miembro del Consejo de IOHA (2004 a 2012). orcid.org/0000-0002-8829-2508 E-mail: dominguezprats@gmail.com
PEDRO, Joana Maria; PRATS, Pilar Domínguez. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 47, n. 1, jan./ abr. 2021. Acessar publicação original [DR]
A virada de gênero na historiografia brasileira: pesquisas, temáticas e debates | Revista Territórios & Fronteiras | 2021
Trinta e um anos se passaram desde a tradução, no Brasil, de Gênero: uma categoria útil de análise histórica, artigo da historiadora americana Joan Scott e obra decisiva para os estudos sobre gênero e sexualidades na historiografia brasileira. De lá para cá, graças também a abertura de mais programas de pós-graduação em História e nascimento de revistas acadêmicas da área de História, a categoria gênero germinou, fincou raízes e formou campos decisivos que têm nos ajudado a esclarecer questões sensíveis do passado e apontar para a construção de mundos possíveis.
Em 2011, no artigo Relações de gênero como categoria transversal na historiografia contemporânea, Joana Maria Pedro refletia sobre esses efeitos sinalizando como eles enriqueceram a historiografia. De fato, se considerarmos, por exemplo, os Simpósios temáticos dos dois últimos encontros da ANPUH veremos o destaque para estudos que tematizam as relações de gênero, inclusive nas duas últimas edições tivemos simpósios sobre História LGBTQIA+. Leia Mais
Lutas feministas e LGBTQ+ pela democracia no Brasil / Anos 90 / 2019
Em junho de 2010, Judith Butler proferiu uma conferência em Berlim por ocasião do Christoph Street Day, sendo condecorada com o prêmio Courage, o qual recusaria. Queere Bündnisse und Antikriegspolitik, título em alemão dado à fala de Butler, traduzida e publicada em português como Alianças queer e política anti-guerra1, expressa os motivos da filósofa para tal recusa. O texto também ilumina os objetivos que orientaram a proposta do presente dossiê.
Na conferência de Berlim, Butler destacou o quão surpreendente eram as alianças na Turquia (aparentemente “atrasada”), onde feministas trabalhavam com pessoas gays, lésbicas, trans e queer contra a violência policial, “unidas na sua oposição ao militarismo, ao nacionalismo e àquelas formas de machismo que os sustentam”2. Em contraponto, lembrou seu encontro, durante uma conferência sobre gênero e educação em Lyon, na França (aparentemente “avançada”), com uma feminista que havia escrito um livro sobre a “ilusão” da transexualidade e que tinha suas palestras públicas “atacadas” por várias ativistas trans e seus / suas aliados(as) dissidentes queer.
As especificidades da homofobia, da transfobia e da misoginia precisam ser entendidas, reconhece Butler. Contudo, nenhuma delas pode ser bem compreendida sem referência uma à outra. Elas estão profundamente ligadas em um mundo no qual certas normas governam como os corpos podem e não podem se mover no mundo, como corpos devem surgir ou fracassar em surgir, como a discriminação e a violência ocorrem com base no modo como corpos e desejos são percebidos3 . A luta de uma minoria desprivilegiada está invariavelmente ligada à luta de todas as minorias desprivilegiadas.
Nesse sentido, Lutas feministas e LGBTQ+ pela democracia no Brasil também poderia ter como título “Alianças queer e política anti-guerra”. Os artigos reunidos aqui pretendem historicizar e problematizar as lutas feministas e LGBTQ+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Queer e +) no Brasil. Privilegia como marco temporal a segunda metade do século XX, momento em que emergem, internacionalmente e no Brasil, os feminismos de “segunda onda” e os movimentos homossexuais; e as primeiras décadas do século XXI, quando esses movimentos multiplicam e diversificam sujeitos, reivindicações e estratégias de mobilização. Desse modo, os textos reunidos analisam as estratégias de resistências empreendidas por mulheres e LGBTQ+ a partir do final da ditadura civil-militar, no período da redemocratização, nos últimos governos democráticos.
No artigo que abre o dossiê, Não é mole não, ser feminista, professora e sapatão: apontamentos de uma história a partir do espaço das lésbicas e da lesbianidade na produção de conhecimento sobre mídia, Cláudia Regina Lahni e Daniela Auad analisam as pesquisas apresentadas em 2015, ano em que a Suprema Corte dos Estados Unidos aprovou o casamento entre pessoas do mesmo sexo, em eventos de Comunicação, como o Grupo de Pesquisa Comunicação para a Cidadania da Intercom, o Grupo de Trabalho Comunicação e Cidadania do Encontro Nacional da Compós e o GT de História da Mídia Alternativa, a fim de questionar se os textos selecionados tematizavam a comunicação de lésbicas — organizadas em grupos ou presentes de forma individual em mídias diversas. Conforme as autoras, nos eventos científicos mencionados, pouco ou nada se discutiu sobre a temática das lésbicas.
Jamil Cabral Sierra, em Identidade e diversidade no contexto brasileiro: uma análise da parceria entre Estado e movimentos sociais LGBT de 2002 a 2015, estuda os processos de constituição, no cenário brasileiro, da noção de diversidade sexual e de gênero, bem como de que maneira tal noção se associou às políticas identitárias das últimas décadas no Brasil. O autor problematiza a parceria entre Estado e movimentos sociais, especialmente LGBT, de modo a caracterizar como essa relação tem produzido as formas de governamento dos sujeitos LGBT nos últimos 13 anos (até o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff).
No texto “Que Possamos Ser o que Somos”: memórias sobre o Movimento Gay de Alfenas no processo de luta pelos direitos de cidadania LGBT (2000-2018), Marta Gouveia de Oliveira Rovai analisa parte da memória coletiva expressa por meio da história oral de vida de quatro membros mais antigos do Movimento Gay de Alfenas (MGA), fundado no ano de 2000 no sul de Minas Gerais. Com isso, a autora lança luz sobre a atuação da organização na defesa dos direitos humanos, em questões jurídicas e em manifestações culturais e políticas.
O que nos faz humanos? Maria Lídia Magliani e a solidão do corpo em tempos fascistas, de Gregory da Silva Balthazar, se apropria do conceito de rosto conforme discutido por Judith Butler como um operador decisivo de uma ética intersubjetiva em tempos de fascismos individualizantes. Para tanto, o autor traz a debate as pinturas de Maria Lídia Magliani, problematizando “sua potência em nos sugerir possibilidades de repensarmos, conjuntamente, o próprio sentido do que nos faz humanos.
Inaugurando as discussões no dossiê sobre o período da ditadura civil-militar no Brasil, Antonio Mauricio Freitas Brito analisa, em “Um verdadeiro bacanal, uma coisa estúpida”: anticomunismo, sexualidade e juventude no tempo da ditadura, algumas representações anticomunistas heteronormativas elaboradas por militares sobre sexualidade, moralidade e juventude durante a ditadura no Brasil. A partir da preocupação de membros da caserna com a ação comunista junto aos jovens, o autor revela a concepção de mundo que estigmatizava e temia comportamentos desviantes de gênero.
Em seguida, no artigo Sob vigilância: os movimentos feministas brasileiros na visão dos órgãos de informação durante a ditadura (1970-1980), Ana Rita Fonteles Duarte analisa as informações produzidas por diferentes órgãos de vigilância ligados ao aparato repressor durante a ditadura civil militar brasileira sobre os movimentos feministas nas cidades de Rio de Janeiro, São Paulo e Fortaleza, a partir de documentos encontrados nos Arquivos do Estado do Rio de Janeiro, no Arquivo do Estado de São Paulo e no Arquivo Nacional.
Por sua vez, em Feminismo vende? Apropriações de discursos democráticos pela publicidade em Claudia (1970-1989), Soraia Carolina de Mello propõe estabelecer relações entre publicidade, feminismos e democracia nas décadas de 1970 e 1980 no Brasil a partir da Revista Claudia. A ideia da publicidade como espaço de informação e educação e seu potencial como divulgadora de ideias feministas ou propagadora de estereótipos de gênero também são abordados no artigo, a partir de teorias feministas, estudos culturais e as noções de subjetivação / singularização.
Por fim, no artigo “Constituinte pra valer tem que ter palavra de mulher”: Movimento de Mulheres do IAJES, Movimento Regional de Mulheres e a luta por democracia no Brasil, Cíntia Lima Crescêncio e Mariana Esteves de Oliveira apresentam a mobilização do Movimento de Mulheres do Instituto Administrativo Jesus Bom Pastor (IAJES) e do Movimento Regional de Mulheres (MRM), rede formada no interior de São Paulo e Mato Grosso do Sul, na construção da Carta das Mulheres aos Constituintes de 1987. A Carta foi resultado de ampla discussão a nível nacional de inúmeros movimentos de mulheres e feministas que, entre 1985 e 1987, fizeram debates e coletaram assinaturas para garantir “demandas das mulheres” na nova Constituição (1988). Como lembram as autoras, “a documentação selecionada permite uma reflexão fundamental sobre os movimentos de mulheres e feministas de ontem e de hoje, bem como as sensíveis aproximações e afastamentos desses grupos”.
Lutas feministas e LGBTQ+ pela democracia no Brasil também está assinalado, em sua gênese, pela vulnerabilidade e pela precariedade que marcam as vidas das mulheres e de LGBTQ+s no Brasil contemporâneo. Segundo os dados do Ministério da Saúde, compilados pelo Atlas da Violência, lançado em 2019, foram registrados 4.936 assassinatos de mulheres em 20174 . A maior parte das vítimas (66%) é negra! Por outro lado, o Anuário Brasileiro da Segurança Pública, que pela primeira vez trouxe um recorte específico de casos relacionados à violência contra o público LGBTQ+, informou que 99 gays, lésbicas, bissexuais, travestis ou transexuais foram assassinados(as) em 20175 . Segundo o Anuário, divulgado este ano durante o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número de LGBTQ+s agredidos fisicamente teve alta de 1,3% entre 2017 e 2018.
Parafraseando Butler, este dossiê é sobre essa vulnerabilidade e essa precariedade que marcam as sexualidades e os gêneros dissidentes, mas é também sobre os desejos, as ocupações dos espaços públicos, as reivindicações por visibilidade e escuta ontem e hoje, sendo tudo isso absolutamente essencial para qualquer movimento político / sexual / de gênero. É absolutamente essencial para a vida em democracia com justiça de gênero, sexualidade, raça e classe.
Agradecemos aos / às autores(as) por terem enviado suas propostas. Somos gratos também ao Alessander Mario Kerber e à equipe da revista Anos 90 pelo espaço e pelo diálogo. Finalmente, agradecemos a cada leitor, leitora, leitxr, por fazer da leitura deste dossiê uma possibilidade política de lutas feministas e LGBTQ+ pela democracia, de alianças queer e política anti-guerra. Boa leitura!!
Notas
1. BUTLER, J. Alianças queer e política anti-guerra. Bagoas: Estudos Gays: Gêneros e Sexualidades, v. 11, n. 16, p. 29-49, 2017. Disponível em: https: / / periodicos.ufrn.br / bagoas / article / view / 12530. Acesso em: 22 dez. 2019.
2. Ibidem, p. 31-32.
3. Ibidem, p. 37.
4. CERQUEIRA et al. Atlas da Violência 2019. Brasília, DF: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2019.
5. FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Brasília, DF: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2019
Joana Maria Pedro – Professora titular da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) com pós-doutorados na França, na Université d’Avignon, e nos Estados Unidos, na Brown University. E-mail: joanamaria.pedro@gmail.com http: / / orcid.org / 0000-0001-5690-4859
Elias Ferreira Veras – Professor da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Doutor em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: eliashistoria@yahoo.com.br http: / / orcid.org / 0000-0001-7726-4475
PEDRO, Joana Maria; VERAS, Elias Ferreira. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 26, 2019. Acessar publicação original [DR]
Gênero e História / Fronteiras – Revista Catarinense de História / 2007
Há algum tempo, em Santa Catarina, vem se constituindo um campo de estudos de gênero. Data de 1984 a constituição do “Núcleo de Estudos da Mulher”, na UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina. Em 1989 foi organizado o primeiro evento interdisciplinar, intitulado “1º Encontro de Estudos sobre a Mulher”. Foi a partir deste evento que surgiu o NEG – Núcleo de Interdisciplinar de Estudos de Gênero, reunindo pesquisadoras de diversas áreas acadêmicas tais como Literatura, Antropologia, Psicologia, História, Enfermagem, Nutrição e outras. Foi, ainda, em 1989, que ocorreu o 3° Encontro Nacional de Mulher e Literatura”, organizado pela UFSC. Neste período, as categorias “Mulher”, “Mulheres” e Relações de Gênero”[1] foram objeto de discussão, delimitando-se áreas de interferência, pontos de disputa e de conexão.
A partir de 1994, na UFSC, começaram a ser realizados eventos que passaram a assumir a categoria “Gênero” como constitutiva de um campo de estudos que englobava as demais. Foi, assim, no interior do “I Simpósio Fazendo Gênero”, que categorias como Mulher, Mulheres e Gênero, acrescidas de “Masculinidades”, “Feminilidades”, “Sexualidades”, “Direitos Reprodutivos”, “Direitos Sexuais” entre outras, passaram a ser discutidas, apresentadas, problematizadas, definidas. Estes simpósios “Fazendo Gênero” foram se repetindo a cada dois anos, chegando, em 2006, à sua sétima versão, ampliando o horizonte de análises e do número de participantes.
Se esta trajetória foi interdisciplinar em diferentes lugares, e não somente na UFSC, cada disciplina viveu-a como um caminho específico. Para a História, o percurso também começou com os estudos sobre a Mulher, embora a História das Mulheres ganhasse, rapidamente, versões editoriais de sucesso, como se observa na obra em 5 volumes, História das Mulheres, organizada por Georges Duby e Michelle Perrot, [2] ‘em 1993. Outro aporte que facilitou a presença da História neste campo de estudos foi o texto fundador da historiadora Joan Scott: “Gênero uma categoria útil de análise histórica”, [3] publicado no Brasil em 1990, que supria de legitimidade acadêmica os estudos feitos até então e costumeiramente acusados de “militantes”.
Na historiografia brasileira, o livro de Maria Odila Leite da Silva Dias, Cotidiano e poder, [4] publicado em 1984, é, certamente, o que abrirá portas para inúmeros estudos sobre História das Mulheres. Na historiografia de Santa Catarina, a dissertação de Cristina Scheibe Wolff, As mulheres da colônia Blumenau,[5] foi pioneira no campo de estudos da História das Mulheres em Santa Catarina. Este trabalho, evidentemente, foi seguido por muitos outros; estes configuraram um campo de estudos que se expressa em obras, artigos, capítulos, teses, dissertações e monografias que seria impossível citar sem cometer a gafe de esquecer muitos.
Dentro da UFSC, as pesquisas de história têm participado das atividades interdisciplinares que são apresentadas nos “Simpósios Fazendo Gênero”, mas, também, têm tido presença significativa em outras ações, como na editoria da Revista Estudos Feministas, e, atualmente, no Instituto de Estudos de Gênero. Nestas mesmas atividades, as pesquisadoras da UDESC – Universidade Estadual de Santa Catarina -, têm participado em todos os níveis, constituindo, também elas, núcleos e grupos dentro da instituição em que trabalham, formando, assim, com a UFSC, atividades de cooperação e parceria.
Dentro do campo da História em âmbito nacional, as historiadoras, tanto da UFSC como da UDESC e da UNISUL, [6] têm participado do GT de gênero da ANPUH – Associação Nacional de História, criado em 2001 em Niterói, e vêm se reunindo, anualmente, seja nos encontros nacionais, seja nos encontros regionais, definindo pautas de atuação e buscando reforçar o campo de estudos em que atuam.
Foi dentro desta trajetória que, em 2006, reuniu-se em Florianópolis, no Encontro Estadual de História, o GT de Gênero da regional de Santa Catarina, a partir de um Simpósio Temático: “Gênero e Gerações: novas perspectivas de pesquisas”. Neste GT, várias pesquisas foram divulgadas, e foi realizada uma chamada de artigos para publicação. Neste mesmo ano, em Assis, São Paulo, no Encontro Regional da ANPUH, reuniu-se o GT de Gênero e foi realizada, também, uma chamada de artigos: a reunião destes Permitiu selecionar seis deles, que agora estão compondo este dossiê.
Os assuntos ai tratados permitem perceber as inúmeras possibilidades deste campo de estudos. Para este dossiê, dois assuntos são focalizados com mais intensidade: sexualidade e memória.
A sexualidade é tratada por Maria de Fátima da Cunha, através dos PCN – Parâmetros Curriculares Nacionais. Neste autora reflete sobre a forma como a temática do gênero e da sexualidade aparecem nos PCNs, e questiona sobre como tratar destes assuntos em sala de aula, especialmente nas sétimas e oitavas séries. Maria Cristina de Oliveira Athayde focaliza as obras de Marta Suplicy, e a maneira como esta autora divulgou as questões da sexualidade nos anos setenta e oitenta, nas revistas, nos jornais, na rádio e na televisão, transformando-se numa grande divulgadora das questões do feminismo de “Segunda Onda”7, no Brasil. Discutindo, também, esta questão, mas Já focalizando muito mais a memória, o artigo Gabriel Felipe Jacomel destaca a forma como a sexualidade, dentro da abordagem do feminismo de Segunda Onda, foi para o teatro, através da peça Homem não entra! encenada por Cidinha Campos.
Já o trabalho de Jaqueline Aparecida M. Zarbato Schmitt abre o bloco dos textos que focalizam mais especificamente a memória. Neste artigo, a autora reflete sobre as histórias e memórias dos idosos dos grupos de convivência em Florianópolis, centrando sobre a forma como o gênero define o que pode ser lembrado. Joana Vieira Borges mostra como as leituras do livro O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, são referenciadas pelas pessoas que se identificaram com o feminismo de Segunda Onda, no Brasil. Ainda, Soraia Carolina de Mello recorre à memória dos Periódicos alternativos do feminismo no Brasil, ao focalizar o jornal Nós Mulheres, apontando para a maneira como deram destaque às discussões sobre os trabalhos domésticos, questão pendente até os dias de hoje.
Dos artigos publicados neste dossiê, somente um deles, o de Jaqueline Aparecida M. Zarbato Schmitt, tem Santa Catarina como local de estudo; todos os demais se localizam em diferentes locais do país, ou, simplesmente não têm qualquer vinculação com a localização espacial. Assim, embora em sua maioria os autores sejam de Santa Catarina, não é o local que está definindo seu objeto de estudo. Todos eles mostram as ricas possibilidades que os estudos de gênero permitem, inspirando outras pesquisas, ampliando horizontes. Foi isto que pretendemos, ao reuni-los neste dossiê.
Notas
1. Para uma discussão da hlstorlcldade de “Mulher”, “Mulheres” e “Relações de Gênero”, ver PEDRO. Joana Maria. Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica. Revista História. São Paulo: Editora UNESP. 2005. vol. 24 (1). p. 77-98.
2. DUBY, Georges. & PERROT, Michelle. História das mulheres Porto: Ed. Afrontamento & Ebradll 1993
3. SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria de análise histórica. Educação e Realidade. Porto Alegre 16(2); 5-22. Jul. / dez. 1990.
4. DIAS. Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo o século XIX. São Paulo: Ed Braslliense, 1984.
5. WOLFK Cristina Scheibe. As mulheres da colônia Blumenau – cotidiano e trabalho (1850- 1900). Mestrado, História, PUC / SP. 1991.
6. UNISUL – Universidade do Sul de Santa Catarina.
7. Enquanto o feminismo de “Primeira Onda” esteve principalmente centrado na reivindicação de direitos políticos- como o de votar e ser eleita- o feminismo chamado de “Segunda Onda” surgiu depois da Segunda Guerra Mundial e deu prioridade ás lutas pelo direito ao corpo, ao prazer, e contra o patriarcado. Neste momento, uma das palavras de ordem era: “o privado é político”.
Joana Maria Pedro– UFSC
Cristiani Bereta da Silva – UDESC
Jaqueline Aparecida Zarbato Schmitt – UNISUL
PEDRO, Joana Maria; SILVA, Cristiani Bereta da; SCHMITT, Jaqueline Aparecida Zarbato. Apresentação. Fronteiras: Revista catarinense de História. Florianópolis, n.15, 2007. Acessar publicação original [DR]