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Diplomacia Patrimonial: o patrimônio como mediador das relações internacionais | Faces de Clio | 2021
A Revista Faces de Clio, periódico discente vinculado ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), publica a sua 14ª edição com o dossiê temático “Diplomacia Patrimonial: o patrimônio cultural como mediador das relações internacionais”. O presente número reúne quinze trabalhos e uma entrevista: seis artigos vinculados ao dossiê, sete artigos livres e duas resenhas. A presente publicação possui diversos trabalhos pertencentes ao eixo Patrimônio e Relações Internacionais e que dialogam a partir da vinculação do patrimônio cultural, memória, poder e diplomacia.
Agradecemos a toda equipe da revista Faces de Clio que se compromete a cada edição para entregar o melhor produto para os leitores e autores que confiam suas pesquisas ao nosso periódico. Mesmo neste momento difícil de cortes de recursos na educação e na ciência, seguimos resistindo e publicamos esta edição, o quarto dossiê durante a pandemia do COVID-19. Estendemos nosso agradecimento aos pareceristas que nos auxiliam na avaliação dos artigos para publicação. Leia Mais
Patrimonio, arte y política. Producción simbólica y prácticas patrimoniales y de representación | Sophia Austral | 2021
Referências deste dossiê
[Patrimonio, arte y política. Producción simbólica y prácticas patrimoniales y de representación]. Sophia Austral. Punta Arenas, v. 27, 2021. Acessar dossiêFruição Patrimonial | Memória em Rede | 2021
O presente dossiê “Fruição Patrimonial” reuniu pesquisadores de distintas regiões do Brasil, de norte a sul, contemplando principalmente uma ampla diversidade de perspectivas teóricas e metodológicas, com destaque para a apresentação dos estudos de casos. Conforme Yin (2010), como método de pesquisa, os estudos de casos corroboram com a apresentação de múltiplas situações dos fenômenos sociais complexos, com ampla riqueza de dados e relatos, desde casos individuais, grupais, organizacionais, sociais e políticos, que podem ser utilizados pelas mais diversos áreas do conhecimento.
Neste sentido, os estudos elencados para este editorial da Revista Memória em Rede tiveram como tema comum, a fruição patrimonial, com destaques para as interações do caminhar por locais históricos e sítios arqueológicos, seja pelo resgate de contranarrativas e de memórias submersas, com relação à preservação do patrimônio material e das memórias locais. Os autores elencados neste editorial apresentaram constantes preocupações quanto à ampliação do uso público dos patrimônios, seja para a adequação das políticas públicas de preservação do patrimônio, seja pela necessidade de ampla participação dos atores sociais e das reflexões sobre o consumo dos espaços turísticos. Leia Mais
Arqueologia, Patrimônio e Gênero: provocações feministas | Revista Arqueologia Pública | 2021
O contexto atual tem sido marcado por retrocessos nas políticas públicas voltadas ao setor educacional, cultural e patrimonial, por manifestações reacionárias frente aos debates sobre identidades de gênero e diversidade sexual e pelo escancaramento do racismo que caracteriza, historicamente, a sociedade brasileira e tantas outras. Tal conjuntura traz, portanto, desafios específicos para pesquisadoras/es e profissionais do campo da Arqueologia e do Patrimônio. Não por acaso, exemplos mundo afora têm evidenciado tensões e descontentamentos vinculados a essas áreas. Insurgências contra monumentos masculinistas e que representam figuras responsáveis pela colonização e escravização de povos indígenas e africanos têm provocado debates acerca da retirada dos mesmos, evidenciando a luta pelo patrimônio e pelo direito à memória.
Este número da Revista de Arqueologia Pública reúne reflexões que, de diferentes formas, demonstram o papel da crítica feminista e dos debates em torno da historicidade das identidades de gênero no campo da Arqueologia, do patrimônio cultural e da memória, bem como refletem a multiplicação de abordagens, inspiradas sobretudo pelas discussões feitas por feministas negras, lésbicas e trans, em diálogo com os marxismos, os estudos culturais, pós-coloniais e decoloniais. Em decorrência disso, variáveis como raça, classe, sexualidade, geração, dentre outras, aparecem como eixos incontornáveis, analisados de forma interseccional ao gênero. Leia Mais
Perda de informação e de bens em arquivos e instituições responsáveis por guarda do patrimônio / Revista do Arquivo / 2020
Sinistro, palavra comum no jargão arquivístico e também no vocabulário de seguradoras e órgãos de prevenção a desastres, em quaisquer dos sentidos indicados por sua sinonímia transmite ideia de negatividade.
Segundo o dicionário [1], no adjetivo, sinistro é tudo o que é de “mau agouro, que pressagia desgraças”, ou ainda que “infunde temor, ameaçador, assustador, temível”, ou “o que provoca o mal, perigoso, pernicioso… o que é trágico, calamitoso”. No caso específico do significado substantivo da palavra, sinistro é “qualquer acontecimento que acarreta dano, perda ou morte; acidente, desastre, soçobro”, ou “grande prejuízo material, dano …. sobre o qual se faz seguro”, e finalmente, “risco”.
Entretanto, o sinistro aqui é tratado como uma dimensão da preservação. Dito de outro modo, sob o astuto viés da dialética, o sinistro é a preservação em sua negatividade.
Nesta décima primeira edição da Revista do Arquivo, esse ‘mau agouro’, ou ‘acontecimento’ que incide na realidade dos arquivos, é o foco central de nossas preocupações.
Não é para gostar, é para ficar atento!
Introdução ao Dossiê
Desta vez, um pequeno e substancial mosaico de olhares sobre o tema. Cinco assinaturas em quatro textos a refletirem sobre o tema da preservação nas suas variadas dimensões.
Marcelo Chaves e Marcio Amêndola abrem o espectro da Revista com contundente grito de alerta sobre a cotidianidade e a invisibilidade dos sinistros nos arquivos brasileiros. Faltam números e estatísticas, mas sobram condições e motivações para o “mau agouro que pressagia desgraças” nos arquivos brasileiros. Buscam-se números nos silenciosos relatórios administrativos e também na barulhenta e nem sempre consequente imprensa. Leiam e reflitam com A perda de patrimônio cultural como negatividade da preservação.
Uma das maiores autoridades em conservação e preservação de patrimônio cultural e “alto funcionário” do ICCROM [2], Luiz Pedersoli nos deu a honra de sua entrevista que destila muito conhecimento, equilíbrio e assertividade: O gerenciamento de riscos é um processo contínuo e tem que constar entre as prioridades institucionais.
Tratando da Perda de informações e de bens em arquivos e segurança da informação e o viés digital, Vanderlei dos Santos reitera estudo realizado pelo Ministério da Justiça canadense, que conclui serem quatro os grupos que ameaçam a segurança da informação nos arquivos digitais: a) de natureza tecnológica; b) falha da instituição na adoção de medidas de segurança adequadas; c) ação de usuários autorizados; e d) ação de usuários não autorizados. Confiram!
“Então, é fundamental a visão da preservação digital sempre levando em consideração o que eu chamo do tripé do documento digital, que é o hardware, o software e o suporte, ou seja, onde a informação está registrada”. Com esse trecho da ótima entrevista que conclui o brilhante bloco introdutório, convidamos o leitor a ‘escutar’ com atenção as orientações de Humberto Innarelli em texto intitulado Sinistros em ambientes digitais de arquivos.
Artigos
Recomendações para acervos de arquivo após perdas causadas por incêndio é o título de artigo em que “apresenta-se parte dos resultados da pesquisa que teve como objetivo servir de orientação para o desenvolvimento de um plano de recuperação do acervo pós-desastre. Tudo isso baseado no caso da Seção de Memória e Arquivo do Museu Nacional (SEMEAR), sinistrado em setembro de 2018”. Os seus autores são Jorge Dias da Silva e Eliezer Pires da Silva.
Denise Aparecida Soares de Moura, no seu Montando as peças de um quebra-cabeças: dispersão de informações e bens em arquivos, trata de um dos fenômenos mais comuns e dos menos difundidos no rol de sinistros que causa perda de informações e fere pilares da ciência arquivística, como os princípios da proveniência e da organicidade dos documentos de arquivo: trata-se do pouco conhecido fenômeno da dissociação.
“Cada vez mais, obras de arte, artefatos arqueopaleontológicos, antiguidades, fauna/flora e obras bibliográficas são subtraídas, furtadas ou roubadas de seus lugares de salvaguarda para que sejam empregadas no mercado internacional…”. Este tema abordado por Rodrigo Christofoletti e Nathan Agostinho é de suma importância e remete-nos à reflexão sobre os sistemas de segurança das instituições de guarda de bens culturais. Leiam Tráfico ilícito de bens culturais: uma reflexão sobre a incidência do furto de patrimônio bibliográfico raro no Brasil.
Pablo Antonio Salvador Vasquez e Maria Luiza Emi Nagai são autores que nos apresentam a Contribuição da tecnologia de ionização gama na recuperação de acervos do patrimônio cultural, a partir de revisão bibliográfica e de exposição de práticas realizadas pelo Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN). Um alento em meio às sombras.
Isis Baldini escreve ensaio em que arrola dados comparativos de diferentes fontes, de vários sinistros ocorridos no mundo, e no Brasil, em particular, chamando a atenção para o aumento significativo desses eventos nas instituições de patrimônio cultural. Suas análises são também baseadas em ocorrências experimentadas em sua vida profissional, com as quais ela se deparou “com inúmeras situações de emergências, sendo que algumas vieram a público, pela sua própria magnanimidade do evento, e outras não”.
Ainda dentro do tema do dossiê, esta edição nº 11 oferece aos seus leitores a oportunidade de acesso inédito em nossa língua pátria, ao excelente artigo do canadense Jean Tétreault, gentilmente cedido e autorizado pelo periódico Jornal da Associação Canadense para a Conservação e Restauro (J.CAC). Trata-se de verdadeira obra de referência sobre o assunto.
A subseção Autor(a) convidado(a) traz excelente texto coletivo que nos oferece a oportunidade de conhecermos Waldisa Rússio, sob a perspectiva apontada pelos complexos trabalhos de organização do arquivo pessoal dessa importantíssima museóloga brasileira. A assinatura é coletiva e multidisciplinar: Viviane Panelli Sarraf, Paula Talib Assad, Karoliny Aparecida de Lima Borges, Sophia Oliveira Novaes, Guilherme Lassabia Godoy, Carlos Augusto de Oliveira e Lia Cazumi Yokoyama Emi. O título do artigo é Museus, Arquivos Pessoais e Memórias Coletivas – uma análise baseada na experiência de sistematização do Fundo Waldisa Rússio no Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.
Tanto conteúdo de primeira qualidade é para encher de alegria e de orgulho a instituição e os editores da Revista do Arquivo.
Intérpretes do Acervo
Karoline Santana Moreira, assistente social e pedagoga, Katherine Cosby, historiadora e Joyce A. Martirani, comunicadora social. Pesquisadoras, cujos interesses abrangem distintas áreas do conhecimento e a busca por dados e contextos que agregam veracidade às suas respectivas linhas de pesquisa, tendo em comum a singularidade da presença no (do) Arquivo do Estado de São Paulo.
Prata da Casa
Desta vez, não é um setor em destaque, mas uma atividade coadjuvante e silenciosa para resguardar o trabalho dos diversos setores e fazeres técnicos de uma instituição arquivística. Convidamos o leitor a conhecer um pouco das estratégias utilizadas por profissionais responsáveis pela coordenação dos trabalhos de gerenciamento de riscos no Arquivo Público do Estado de São Paulo.
Vitrine
Os dramas para quem quer pesquisar arquivos da televisão brasileira; a riqueza dos documentos cartoriais para a escrita da História; a falta de visão patrimonial para manutenção de arquivos escolares e crônica de memórias de uma garagem. Esses são grandes assuntos tratados no formato ligeiro desta seção, assinados, respectivamente, por Eduardo Amando de Barros Filho, Mara Danusa Bezerra, Priscila Kaufmann Corrêa e Isaura Bonavita.
Arquivo em Imagens
O inverso (perverso) da preservação. O título já nos incita a um mergulho em imagens do “lado B” da preservação. Para quem tem sensibilidade e apreço pelo patrimônio cultural, são imagens chocantes, como uma arte em estado degenerado.
Memórias na Pandemia
Oferecemos duas distintas expressões do impacto da “pandemia” em nós. Camila Brandi, que condensou suas sensações relacionadas ao cotidiano do(s) arquivo(s), no exato dia 19 de junho; e Isaura Bonavita, em sua crônica lírica desaguada na poesia de Cora Coralina.
Atentem. Comentem. Critiquem!
Notas
1. Ver: http://michaelis.uol.com.br/busca?id=kLNdM
2. Centro Internacional de Estudos para a Conservação e Restauro de Bens Culturais (a sigla ICCROM é a original do Inglês)
Apresentação. Revista do Arquivo, São Paulo, Ano VII, N. 11, out., 2020. Acessar publicação original [DR]
Patrimônio e Relações Internacionais / Locus – Revista de História / 2020
As relações internacionais ligadas à preservação do patrimônio mudarão em um mundo pós pandemia?
Como é de costume em épocas de crise, a COVID-19 evidenciou a
necessidade da existência da cultura para o aliviar o estresse de pessoas e
comunidades. Em um momento no qual bilhões de pessoas estão
fisicamente separadas umas das outras, a cultura nos une.
(Ottone 2020)
Em momentos de crise, pessoas precisam de cultura. É com esse chamamento que Ernesto Ottone, Diretor Assistente Geral para a Cultura da UNESCO ilustra o cenário em que vivemos no primeiro semestre de 2020. É esta a dimensão que os atores vinculados ao patrimônio mundial começam a tomar conhecimento. Atualmente, estamos enfrentando uma crise global diferente de qualquer outra que vimos neste século. Milhares de pessoas perderam a vida para o COVID-19 e muitas outras foram infectadas. Bilhões de pessoas agora tem estado confinadas em suas casas em todo o mundo. O impacto do COVID-19 provavelmente será sentido muito tempo após o término desta crise sanitária.
A UNESCO está incentivando os locais do Patrimônio Mundial e plataformas da UNESCO, como as Jornadas Europeias do Patrimônio Mundial, a oferecerem meios para as pessoas explorarem o Patrimônio Mundial em suas casas. Numa época em que bilhões de pessoas estão fisicamente separadas uma da outra, a cultura nos une, mantendo-nos conectados e diminuindo a distância entre nós. Então, diante dessa mudança na visão global, como ficarão os agora já “antigos” temas do patrimônio? Como não sair impactado dessa nova ordem mundial?
Em publicação recente, Guilherme d’Oliveira Martins convoca a atualidade do tema do patrimônio cultural e de seu valor econômico, afirmando a urgência em desenvolver a ligação entre o patrimônio comum, os valores humanos universais e o equilíbrio entre as diferenças (2020, 32). Num contexto de isolamento social imposto pela pandemia COVID-19 colocado à escala internacional urge questionar o lugar do patrimônio na sociedade. De acordo com o mesmo autor, “quando falamos de patrimônio cultural, há a tentação de pensar que falamos de coisas do passado, irremediavelmente perdidas num canto recôndito da memória coletiva” (Martins 2020, 33). Daí que anteveja que “a necessidade de promover a diversidade cultural, o diálogo entre culturas e a coesão social, (…) bem como, salientar o papel do patrimônio nas relações internacionais, desde a prevenção de conflitos à reconciliação pós-conflito ou a recuperação do patrimônio destruído” (Martins 2020, 33-34). Foi motivado por esta nova realidade que nasceu a ideia deste Dossiê. Provavelmente, as relações internacionais nunca mais serão as mesmas após essa pandemia e, por extensão, o patrimônio e sua gestão também não serão como antes.
A título de exemplo, recorde-se que os maiores museus do mundo disponibilizaram recursos digitais sobre as suas coleções que até então tinham o seu acesso condicionado. Nunca como antes a visita virtual teve tanto impacto, perante a impossibilidade colocada pela ausência de acesso físico causado pelo isolamento social. Diante de um cenário interconectado pela veiculação de informação (não raras vezes, na chave da inverdade), essa temática se apresenta como um dos domínios a ser debatido, pois tem atuado na compreensão de elementos variados, funcionando como embaixadores de novas demandas mundiais. O tema é não só atual, como de discussão urgente.
O imediatismo dos media e das redes sociais tem trazido novo olhar sobre o patrimônio em escala internacional. O registro e a notícia de catástrofes, recentemente reportadas como a dos incêndios do Museu Nacional do Rio de Janeiro ou da Catedral de Notre-Dame de Paris, ou das enchentes de Veneza, bem como as ações iconoclastas desenvolvidas em Bamiyan ou Mossul, só para referir alguns exemplos, tinham dado um novo lugar ao Patrimônio à escala das relações internacionais. Dois fatores se somam às assertivas elencadas acima. O primeiro diz respeito à incorporação crescente do patrimônio cultural em outras áreas do discurso internacional. O patrimônio cultural passou a ter maior visibilidade e participação relevante, muito por força da ação das redes sociais e dos media, havendo como consequência um avanço na presença de organismos de valorização nas mesas de negociação das políticas internacionais como jamais visto antes. O segundo se refere ao crescente poder econômico e político que países detentores de agendas preservacionistas desfrutam no cenário internacional.
À medida que o novo século se desnuda, a radiografia dessas relações de poder revela novos atores, espaços e representações. O patrimônio cultural tem se tornado um ator cada vez mais importante dos diálogos multilaterais e, como tal, faz parte do alargamento das ações no âmbito das relações internacionais. Daí derivam outros objetos de estudo, ainda pouco incorporados pela temática: as marcas de um soft power cada vez mais multilateralizado; as dinâmicas de hierarquização dos temas e critérios consagrados pelos órgãos de assessoria da UNESCO; a presença cada vez maior de temas que abordem as “africanidades”, “asianidades”, “latinidades” e os “orientalismos” (tão pouco explorados por nossos pesquisadores, dada a hegemonia da visão europeísta / estadunidense); dentre outros. Em consonância, sítios arqueológicos, museus, espaços culturais, organismos internacionais de preservação, Estados nacionais, atores da paradiplomacia, expressões de tradição, vivência e modos de se fazer, a dicotomia entre inflação e destruição de patrimônios, dentre outros elementos tornaram-se protagonistas dessas representações mentais sobre o patrimônio que tem se transformado constantemente. Apreender os mecanismos de compreensão dessa expansão temática favoreceria a montagem de novas valorações do patrimônio, nacional e internacionalmente. Acrescentamos a este cenário o mundo digital que, superando os constrangimentos de um isolamento social forçado à escala global se assume como o único veículo de visita e transmissão de conhecimento dos recursos patrimoniais.
Como se percebe, todas as temáticas elencadas faziam sentido em um mundo sem restrição social, isolamento compulsório e combate a um vírus letal. Os temas elencados neste dossiê, seguiram uma realidade anterior à pandemia. As preocupações, necessidades e objetos respondiam a um mundo complexo, mas conhecido. As regras do jogo eram todas acordadas. Agora, diante desse novo alinhamento, tudo muda, inclusive as relações internacionais e suas preocupações. Por este motivo, acreditamos que este Dossiê poderá colaborar para unirmos os dois mundos: o das preocupações pregressas e das novas necessidades. Não fazemos futurologia quanto ao universo da preservação dos patrimônios no mundo, mas sinaliza-se uma considerável modificação nas políticas públicas, no financiamento e na projeção de novas regras para um jogo que ainda não se saber jogar. Por este motivo, os textos selecionados para este Dossiê discutem realidades que provavelmente deverão também ser impactadas por esta mudança brusca nos caminhos recentes do mundo globalizado.
O texto de Amélia Polónia e Cátia Miriam Costa, Preservar patrimônios e partilhar memórias em cidades-porto latino-americanas. Um projeto em ação: CoopMar – Cooperação Transoceânica, Políticas Públicas e Comunidade Sociocultural Ibero-Americana analisa o projeto de uma rede de investigação e desenvolvimento financiada pelo CYTED (Programa Ibero-americano de Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento) que promove formas ativas de diplomacia científica, visando potenciar sinergias existentes entre vários parceiros em torno de uma agenda de “mar e sociedade para o desenvolvimento”. CoopMar dá prioridade à circulação de conhecimento entre diferentes atores (universidades, museus, fundações, empresas, instituições públicas e sociedade em geral) e visa contribuir para uma sociedade do conhecimento, transnacional e transdisciplinar. Assume a troca cooperativa de valores e visões como um valor intangível que funciona como capital social capaz de beneficiar cidades portuárias da região Ibero-latino-americana.
Frédéric Lerich discute em Regional Assets, Industrial Growth, Global Reach: The Case Study of the Film Industry in the San Francisco Bay Area, uma dimensão pouco conhecida do público. De acordo com Lerich, dentro da indústria cinematográfica dos EUA, Hollywood é uma (grande) árvore que esconde a floresta. De fato, além desse cluster poderoso e dominante, existem outras formas – embora menores – de indústria cinematográfica, particularmente em Nova York e São Francisco. O artigo enfoca o último e argumenta que o desenvolvimento da indústria cinematográfica na área da baía de São Francisco depende de ativos regionais específicos: (1) uma cultura alternativa, (2) uma cultura tecnológica e (3) uma experiência urbana única. O artigo se baseia na ideia de que São Francisco é um local acolhedor para filmar e produzir filmes e que, como corolário, hoje em dia acolhe um cluster industrial dinâmico e com vários locais. Destaca diferentes estratégias que visam promover o desenvolvimento de ativos regionais relacionados à indústria cinematográfica e questiona suas capacidades de recuperação destacando seus impactos na influência global de São Francisco.
Jaime Nuño González constrói uma narrativa envolvente ao analisar em Patrimonio Cultural y globalización: Trayectoria, proyectos y estrategias de la Fundación Santa María la Real (Aguilar de Campoo, Castilla y León. España), as dinâmicas de preservação em torno das ruínas de um mosteiro medieval situado na pequena localidade de Aguilar de Campoo (Palencia, Castilla y León. Espanha). Em 1977 uma associação foi formada com o objetivo de recuperar o monumento e transformá-lo no centro da dinamização cultural de uma região em crescente processo de despovoamento. A Fundação Santa María la Real, herdeira dessa associação, diversificou os setores em que atua, ampliando suas intervenções em toda a Espanha. Neste texto, González apresenta os projetos de gestão, comunicação e preservação da fundação, apontando os caminhos pelos quais essas ruínas se tornaram um dos mais proeminentes exemplos de preservação patrimonial ibérico.
Gilberto Marcos Antônio Rodrigues discute os impactos do Patrimônio cultural como inserção internacional de cidades. Em Política Externa de Cidades: Estratégia Internacional Modelada e Patrimônio Cultural aborda uma questão central: no caso de patrimônios culturais, sejam eles materiais ou imateriais, que não dispõem de valorização ou proteção nacional, como pode a cidade aproveitá-lo como vetor de uma ação internacional? No âmbito da dimensão cultural das relações internacionais de cidades, o patrimônio cultural é um vetor pouco explorado em sua potencialidade e capacidade de promover a inserção internacional local no Brasil. O objetivo do artigo é analisar como o patrimônio cultural pode ser transformado em recurso ativo para uma Estratégia Internacional Modelada (EIM) visando alavancar e apoiar a política externa de cidades médias ou pequenas no Brasil.
Em diálogo com o texto de Rodrigues, Gustavo de Jesus Nóbrega, perscruta o universo da paradiplomacia e apresenta os resultados parciais de pesquisa ligada ao projeto interdisciplinar “Os diversos usos dos espaços institucionais na preservação do Patrimônio Cultural”, na qual analisa o uso e a apropriação da Universidade de Coimbra (UC) e da própria cidade em questão por diversos agentes, a partir da apresentação da instituição de ensino como um Patrimônio Cultural da Humanidade e seus bens edificados como verdadeiros acervos de um museu a céu aberto. A hipótese levantada por Nóbrega em A Universidade de Coimbra e as diversas apropriações da chancela internacional de Patrimônio da Humanidade atribuída pela UNESCO, é que a nomeação pela UNESCO, em 2013, alavancou a iniciativa de utilizar a marca “Coimbra”, como um soft power que objetiva reestabelecer a notoriedade da cidade e da Universidade como espaços de ponta em nível mundial.
O artigo de Bruno Miranda Zétola, Troféus de guerra e relações diplomáticas examina as singularidades do troféu de guerra como patrimônio cultural e sua relevância para as relações diplomáticas. A partir de três estudos de caso, aponta-se para possíveis paradigmas do uso desse tipo de patrimônio como recurso de política externa. Troféus de guerra são uma categoria muito especifica de patrimônio, visto tratar-se de artefatos militares obtidos no campo de batalha e cujo valor cultural é aferido após sua apreensão. Prática recorrente desde a Antiguidade clássica, a obtenção e exibição de troféus de guerra nunca foi considerada ilícito internacional. Suas implicações para as relações internacionais, entretanto, podem ser significativas, consoante a valorização do artefato tornado troféu pelas narrativas historiográficas das sociedades que o perdem ou que o conquistam.
O Louvre, renomado museu e patrimônio francês, agora responde a um pedido do governo para aperfeiçoar sua interação e influência internacionais. A internacionalização do Louvre é, portanto, entendida não como a reputação do Louvre em nível internacional, mas como o uso dessa herança em estratégias políticas internacionais. O texto de Marie-Alix-Mólinier-Andlauer, Political Issues of the Louvre’s Internationalisation enfoca a internacionalização do Louvre desde os anos 2000. O Estado francês, através de sucessivos governos, vem mobilizando o Louvre, como intermediário em acordos internacionais. Este museu e instituição cultural tornou-se participante direto das relações internacionais francesas, o que motivou Andlauer a analisar as questões e controvérsias que cercam a estreita relação entre o Louvre e o Estado francês. Concluí este trabalho, uma análise do discurso da mídia francesa sobre a mobilização do Louvre pelo Estado o que revela tensões e controvérsias em torno da internacionalização de um dos museus mais famosos do mundo.
Se por um lado museus guardam estátuas (independentemente da discussão se devem ou não manter sob sua tutela peças controvertidas de origens, muitas vezes, duvidosas), por outro, em certas ocasiões, são palco de destruição e vandalismo. A onda de destruição de museus e estátuas locais realizados pelo DAESH (Estado Islâmico) na Síria e no Iraque não deve ser considerada simples ato de vandalismo ou ação iconoclasta com base em sua interpretação radical e distorcida do Islã. Tais atos ocultam um discurso complexo que deve ser compreendido no debate atual sobre a redefinição do patrimônio, particularmente de estátuas, questionada por representar um passado colonial ou autocrático que não é mais considerado digno de ser preservado e lembrado. Em Las estatuas también mueren. Patrimonio, museos y memorias en el punto de mira de DAESH, Jorge Elices Ocón apresenta o estado da arte deste debate focalizando a diferença notável entre as ações iconoclastas mencionadas no texto e as do DAESH. Para os terroristas, não há possibilidade de ressignificação das estátuas. Como vaticina Ocón, “não é um discurso de justiça, mas de ódio, e não busca apenas a morte de estátuas, mas a de pessoas e culturas”.
Para além da destruição, do tráfico ilícito de bens culturais e da revisão histórica de símbolos outrora extorquidos, um dos temas de maior visibilidade dentro das relações internacionais é o das solicitações de restituição de patrimônios espoliados. Colabora nesta temática o texto de Karine Lima da Costa que analisa a questão da restituição ou repatriação dos bens culturais, especialmente os artefatos da África subsaariana, a partir da publicação do Relatório Savoy-Sarr, concluído em 2018. Em, A restituição do patrimônio cultural através das relações entre a África e a Europa Costa aborda o caso dos bronzes do Benin, retirados da África no século XIX, e atualmente distribuídos em diferentes instituições museológicas, sobretudo na França e na Inglaterra. A repatriação e / ou restituição também diz respeito à uma mudança de atitude em relação ao tratamento e entendimento dos bens culturais, que deve considerar algo que, às vezes, parece ser esquecido nesse processo: o seu sentido coletivo. Por este motivo, são as novas formas de se relacionar com o patrimônio cultural que a problemática da repatriação convoca, pois ao falarmos de restituição estamos falando, também, de diplomacia. Essas formas não devem se limitar apenas ao retorno permanente, mas ao empréstimo, ao intercâmbio cultural, à circulação das obras – algo que já faz parte do cotidiano de muitas instituições museológicas, mas que são limitados por falta de acordos e cooperação entre os agentes envolvidos.
Em diálogo aberto com o texto de Costa, Manuel Burón Díaz, apresenta o caminho percorrido pelo patrimônio da Nova Zelândia, analisando o estudo da construção, intercâmbio, exibição, reclamação e restituição do patrimônio, por meio de uma leitura crítica do próprio estatuto de devolução. Para o autor, o patrimônio, os materiais que o compõem, assim como os significados que lhes damos, não são estáticos; variam com o tempo e, na sua mudança, desenham no mapa interessantes trajetórias. Neste texto, Díaz aborda como as recentes demandas da restituição patrimonial supõem um desdobramento mais atuante na alargada série de significados que atribuímos a certos materiais culturais, sublinhando como, na atualidade, a repatriação de certos objetos tem se convertido em uma importante ferramenta de relações internacionais. Cabezas y pájaros: La construcción y restitución del patrimonio en Nueva Zelanda é, portanto, uma busca por clarificar a ideia de que o patrimônio tem sido um instrumento fundamental para as relações diplomáticas, pois ao simbolizar diferentes desejos e atender a diferentes necessidades, regula os contatos entre culturas ou nações. Mas isso, adverte o autor, não deve fazer o observador cair no mais estéril relativismo nem no mais imóvel essencialismo cultural.
Em, Soft Power Mineiro: O edital Circula Minas (2015-2018) como medida de preservação e difusão nacional e internacional da cultura e do patrimônio de Minas Gerais, Vanessa Gomes de Castro e Thiago Rodrigues Tavares discutem o programa de internacionalização da cultura do estado de Minas Gerais, por meio do Programa Circula Minas. Os autores analisam os resultados e implicações do intercâmbio cultural patrocinado pela Secretaria de estado da Cultura de Minas Gerais, sobretudo, em relação ao patrimônio cultural, apresentando seus argumentos a partir de uma leitura crítica do conceito de soft power. Para os autores o Edital Circula Minas, ao receber e apoiar financeiramente projetos na área da cultura, possibilitou a participação da sociedade civil na salvaguarda dos bens culturais, mas, políticas culturais não podem ser apenas prerrogativa exclusiva do Estado e seus representantes, devendo envolver a participação da sociedade civil nas diversas etapas do processo de preservação, fato legitimado pelos dispositivos jurídicos internacionais.
O texto As timbila de Moçambique no concerto das nações, de Sara S. Morais discute aspectos do processo de patrimonialização das “timbila chopes” de Moçambique que culminou com seu reconhecimento como Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade em 2005, pelo Programa das Obras-Primas da UNESCO. Inspirada em análises sobre processos de objetificação e redução semântica implicados no reconhecimento oficial de expressões como patrimônio cultural, a autora abordo elementos da trajetória histórica e social das timbila para compreender seu lugar no imaginário nacional e sua escolha como o primeiro bem cultural imaterial em Moçambique consagrado em arenas internacionais. Enfatiza diversos elementos que localizam esse país africano no âmbito das suas relações internacionais; discutindo algumas das dinâmicas perpetuadas pelo colonialismo, traçando reflexões sobre a relação de Moçambique com a UNESCO, à luz da história política do país e de sua recepção em relação a certos critérios e entendimentos desse organismo internacional no que tange ao patrimônio imaterial. Destaca, por fim as interpretações dadas pelo Estado moçambicano aos ideais de participação social da UNESCO e mostra como o dossiê produzido pelo governo moçambicano utilizou o critério de autenticidade para justificar a escolha das timbila.
Encerra o Dossiê, o texto provocativo de Marcos Olender que aborda nova leitura sobre um dos documentos mais conhecidos da preservação do patrimônio. Para responder às indagações do presente e compreender as dinâmicas na construção do imaginário dos patrimônios mundiais, Olender retroage à icônica Carta de Atenas de 1931, produzindo uma leitura verticalizada dos bastidores do primeiro documento internacional referente à proteção do patrimônio histórico e artístico em âmbito institucional internacional. O texto “O abismo da história é grande o suficiente para todos”. Os primórdios da Carta de Atenas de 1931 e a afirmação da noção de patrimônio da humanidade aborda o processo histórico que constrói a conjuntura da elaboração do citado documento, iniciado no contexto da Primeira Grande Guerra e pela implantação de instituições que começaram a estruturação de uma política internacional de proteção ao patrimônio, na qual é destacada a preocupação pela conceituação de um patrimônio da humanidade.
As inquietações apresentadas pelos autores ajudaram na elaboração da entrevista transcrita neste volume. A premissa básica foi discutir: como a leitura de um observador do presente dá conta de compreender as mudanças que se aceleram no universo da preservação dos patrimônios em um mundo oscilante entre a perpetuação e efemeridade? Este foi o mote da entrevista com o historiador britânico, Peter Burke, interlocutor que buscou consolidar respostas concisas, “diante do tempo das indefinições”. Frente a um cenário interconectado e em função do caráter de “novidade temática”, como enxergar a crescente preocupação sobre a preservação do patrimônio em tempos que pendulam entre o esquecimento generalizado e a super produção de memórias? O patrimônio (sobretudo, o chancelado como mundial) tem força para ser combustível de mudança social e política? E diante da pandemia de COVID-19 e as sequentes restrições ao nível da acessibilidade, como fugir da “despatrimonialização” desses lugares? Estaremos já a caminhar para um tempo do “pós-patrimônio”? Responder a esses questionamentos não foi tarefa fácil, mas as respostas elencadas por Burke, podem nos auxiliar a compreender um pouco mais o cenário em que vivemos, independentemente da concordância ou discordância de seus posicionamentos.
Mesmo diante do imponderável, continuaremos trabalhando para que a temática ganhe cada vez mais destaque e que as mudanças que se projetam sejam assimiladas pelos temas correlatos à preservação do patrimônio cultural e seus aspectos internacionais. Conseguir responder ao questionamento central desse dossiê, se as relações internacionais ligadas à preservação do patrimônio mudarão em um mundo pós pandemia? nos parece precipitado. No entanto, a cada dia que passa projeta-se um cenário no qual o planeta e, por tabela, o próprio patrimônio mundial refletirão as mudanças ocorridas nas agendas dos governos, na preferência dos estudiosos e na dinâmica global de um mundo afetado em grande escala.
As palavras de Oliveira Martins, para quem: “o valor do patrimônio cultural, material e imaterial exige a aceitação da verdade dos acontecimentos, positivos e negativos, para que possamos ganhar em experiência, pelo ‘trabalho de memória’” (2020, 28), nos motiva a continuar preservando. Neste mundo, marcado por uma pandemia sem igual, cabe questionar os acontecimentos, buscar compreendê-los, criar deles memória patrimonial e, por meio da experiência obtida, abrir novos caminhos para a compreensão sobre nós mesmos. Certos estamos que tais caminhos jamais serão como antes, mas que o novo aprendizado venha carregado de significados para que saibamos dosar a preservação entre o novo e o ancestral. Que o patrimônio (elemento que transita entre a memória e a história) encontre nas agendas internacionais espaço de protagonismo, mediando as demandas existentes entre o local e o global, sem sobreposições ou prejuízos de nenhuma natureza. E não podemos deixar de lembrar, as palavras visionárias de Carlos Alberto Ferreira de Almeida (1998), publicadas em tempos tão diferentes daqueles em que vivemos, que “Patrimônio é tudo o que tem qualidade para a vida cultural e física do homem e tem notório significado na existência e na afirmação das diferentes comunidades” às mais diversas escalas. Se assim o é, também concordamos com este autor quando tão antecipadamente escreveu que
o Patrimônio não pode ser olhado apenas como uma reserva e, menos ainda, como uma recordação ou nostalgia do passado mas, antes, como algo que tem de fazer parte do nosso presente. O Patrimônio, para o ser, tem de estar presente e vivo, de algum modo (Almeida 1998).
O Dossiê que agora se dá ao prelo bem o reflete e demonstra. O patrimônio tem hoje um novo lugar: é um ator efetivo nas relações internacionais às mais diversas escalas. Alcançou este status porque não é mais uma reserva do passado. Está no presente e tem valores prospectivos.
Referências
ALMEIDA, Carlos Alberto Ferreira de. Patrimônio. O seu entendimento e a sua gestão. Porto: Edições Etnos, 1998.
MARTINS, Guilherme d’Oliveira. Patrimônio cultural: realidade viva. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2020.
OTTONE, Ernesto. 2020. “Em momentos de crise, as pessoas precisam de cultura”. https: / / pt.unesco.org / news / em-momentos-crise-pessoas-precisam-cultura
Rodrigo Christofoletti – Professor de Patrimônio Cultural no curso de graduação e Pós-graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Líder do grupo de pesquisa Patrimônio e Relações Internacionais (CNPq). Conselheiro do COMPPAC – Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico de Juiz de Fora. Colaborador do Centro de Investigação Transdisciplinar “Cultura, Espaço e Memória” (CITCEM) – Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Doutor em História, Política e Bens Culturais pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-CPDOC). Atua na interface entre História e Relações Internacionais com foco no patrimônio cultural. E-mail: r.christofoletti@uol.com.br https: / / orcid.org / 0000-0002-6346-6890
Maria Leonor Botelho – Professora Auxiliar do Departamento de Ciências e Técnicas do Patrimônio da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e Diretora do Curso de Mestrado em História da Arte, Patrimônio e Cultura Visual. É investigadora do Centro de Investigação Transdisciplinar “Cultura, Espaço e Memória” (CITCEM / FLUP). Com a Prof. Lúcia Rosas e o Prof. Mário Barroca, coordena a Enciclopédia do Românico em Portugal (2018-2021), no âmbito do protocolo de colaboração celebrado entre a FLUP e a Fundación Santa María la Real del Patrimônio Histórico, un Proyecto desde Castilla y Leon. Os seus interesses de investigação são a gestão do patrimônio, o patrimônio mundial, o digital heritage, a história urbana e a historiografia da arquitetura da época românica. E-mail: mlbotelho@letras.up.pt http: / / orcid.org / 0000-0002-2981-0694
CHRISTOFOLETTI, Rodrigo; BOTELHO, Maria Leonor. Apresentação. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.26, n.2, 2020. Acessar publicação original [DR]
Cultura Material, Arqueologia e Patrimônio | Memória em Rede | 2020
Memória apresenta duas facetas, a individual e a social, interlaçadas, mas diferentes. Em termos individuais (ἴδιος = dele), ou próprios (αὐτός = auto, próprio) a cada um, a lembrança é algo efêmero, seletivo, sujeito a contingências biológicas, além das psicológicas. As enfermidades podem alterar ou mesmo impedir as lembranças, a mostrar a sua base na fisiologia cerebral. Além disso, as recordações estão sujeitas à seletividade psicológica, a impulsos ou afetos, no sentido proposto pelo filósofo Bento de Espinosa (1632-1677) (Ética, 3,3,3,), de modo que qualquer impressão do passado é sempre uma invenção no presente, em constante mutação. Invenção vem de “eu encontro” (inuenio), sempre experiência objetiva e subjetiva, daí descoberta/invenção, a cada momento. A cerimônia de casamento, a primeira experiência no mundo do trabalho ou na escola, são reinventadas, a depender da época e das circunstâncias.
A utilização do mesmo termo, memória, para referir-se à lembrança social parte de uma transposição metafórica do indivíduo para o coletivo (Halbwachs 1950). Convém refletir um pouco sobre o sentido mesmo da palavra: a raiz -men, mente, pensamento, desejo, remete à vontade e, daí, à mente. Lembrança e prazer, parceiros insuspeitos. Se não há memória biológica, à diferença daquela de um indivíduo, como ela se manifesta na sociedade? Outro conceito, desta vez do hebraico, talvez possa jogar luz sobre isso: Zikaron, dispositivo de memória (da mesma raiz de “zakhor” = lembrar), de , zécher = resto. Leia Mais
Festa, memória e patrimônio | Memória em Rede | 2020
O presente dossiê congregou pesquisadores de diferentes regiões do Brasil, de Portugal e da Galiza, Espanha, que trabalharam com as relações entre festas, patrimônio, história e memória a partir de diferentes perspectivas teóricas e metodológicas, contribuindo para um número da Revista Memória em Rede que oferece um excelente aporte para os pesquisadores que se dedicam ao estudo desse tema. Antropólogos, geógrafos, historiadores, turismólogos, entre outros profissionais apresentaram trabalhos com estudos de caso que possibilitam pensar a refletir as diferentes dimensões, elementos, atividades e práticas que permeiam e compõem o universo de diferentes festividades (festas religiosas, festas populares, comemorações cívicas).
Os autores também exploraram seus objetos a partir de diferentes olhares, que estão relacionados com suas formações como pesquisadores, o que revela a importância de congregar estudos de diferentes áreas do conhecimento, pois as festas constituem um objeto de estudos interdisciplinar, que podem, e devem, ser pesquisadas levando em consideração esses diferentes olhares. Tanto uma festa religiosa, como uma festa em torno de um prato típico regional, ou mesmo uma festa popular como um carnaval, são objetos de estudo multifacetados, que devem ser entendidos a partir de sua historicidade (de suas transformações ao longo dos anos, da experiência temporal que os sujeitos envolvidos com esse atividade experimentam), de suas práticas e performances, de suas representações, de seus impactos econômicos e tensões políticas e sociais, dos imaginários gerados e da transmissão de saberes entre os participantes. Leia Mais
Memórias, Narrativas e Patrimônios | Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica | 2020
A vida humana e suas trajetórias, desde algum tempo, passaram a ter, nas práticas museológicas e de cunho patrimonial, uma centralidade e importância significativas, pois somente ao se considerar as experiências individuais e coletivas é que os atos de preservação se justificam. Tal perspectiva impõe-se, pois, se por um lado, a trajetória é marcada por conexões com territorialidades e materialidades, por outro, toda a produção de cultura material, matéria-prima das ações de preservação, não pode ser entendida afastada da vida humana e suas aventuras.
O dossiê Memórias, Narrativas e Patrimônios reúne 16 artigos que provocam e cruzam discussões sobre práticas patrimoniais, experiências e memórias de modos diversos como os sujeitos vivem e constroem patrimônios e potencializam ações dos agentes envolvidos nesses processos. Leia Mais
Democracia, Patrimônio e Direitos: a década de 1980 em perspectiva / Anais do Museu Paulista / 2020
Os artigos reunidos nesse dossiê têm como foco as experiências e reflexões do campo do patrimônio cultural brasileiro na década de 1980. A motivação primeira que nos uniu para pensar os anos 1980 foi a percepção de um desafio historiográfico de superação dos sensos comuns da década tida como perdida, entendendo que nas práticas e políticas de preservação de patrimônio houve uma expansão sem precedentes dos espaços, temáticas e agentes possíveis. Na luta pela democracia, o patrimônio constituiu-se como lugar de tensões, debates e ações, nem sempre lineares ou bem-sucedidos, sobre as identidades, os direitos culturais e urbanos, as práticas e os conceitos estabelecidos.
A necessidade de debater a década foi impulsionada também pelos duros ataques e desmontes das instituições de cultura e de patrimônio que têm ocorrido desde 2017 e estão sendo aprofundados em 2019. A partir de uma perspectiva multidisciplinar e ampla em termos de território nacional, organizamos um encontro com pesquisadores tendo em vista o desafio de problematizar a década e os mais variados questionamentos.
Buscamos atentar para situações concretas daquele contexto e também projetar um olhar prospectivo. Nesse sentido, fontes muito variadas foram consideradas nas análises, evidenciando sua riqueza e densidade. Destaque para a Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, que marcou presença na maioria dos artigos. A releitura dos números lançados nos anos 1980 surpreende o leitor, pelos temas variados, pela salutar presença do debate e do contraditório, de certa forma espelhando um sentimento de esperança, que tem nos feito muita falta nos dias atuais, em que só vemos a destruição de toda ordem.
Em junho de 2019, no auditório da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP), realizou-se o seminário “Democracia, patrimônio e direitos: a década de 1980 em perspectiva”, uma parceria da FAUUSP com a Escola de História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UFRJ). Os textos aqui reunidos decorrem diretamente do seminário e têm por objetivo mais geral ampliar a compreensão das práticas patrimoniais e de sua história no Brasil, concentrando-se na década da redemocratização.
Acreditando na multidisciplinaridade do patrimônio também no que se refere aos diálogos acadêmicos, foram reunidos autores com vinculações institucionais diversas, oriundas da história, geografia, sociologia, museologia e arquitetura, que se dispuseram a discutir o período lançando olhares a agentes e lugares variados, bem como produzindo narrativas a partir de suas próprias centralidades: do Ceará a Santa Catarina, passando por Minas Gerais, Bahia, São Paulo, Rio de Janeiro, pelas práticas de estados e municípios, pelo patrimônio natural, bens móveis, bens edificados, pelos agentes e sujeitos sociais, sem deixar de lado o chamado “patrimônio nacional”. Os textos mostram a variedade e complexidade das ações, sem a pretensão de ver nelas caráter exemplar, mas de apontar as inúmeras possibilidades de investigação. Um campo de desafios que não se encerra aqui, mas que, assim se espera, abra novos caminhos de pesquisa, reflexão e, quem sabe, ação.
A década de 1980 no Brasil foi marcada pelas disputas políticas no processo de redemocratização. As articulações para a saída do regime militar e os caminhos para a democracia levaram quase uma década de consolidação. Da Lei da Anistia, em 1979, até a Constituição Cidadã em 1988 e as eleições diretas em 1989 – de acordo com a periodização proposta para a redemocratização –, dez anos de pressões e lutas democráticas tiveram lugar. A luta por direitos urbanos e a ação dos grupos sociais nas demandas pelo direito à moradia e, sobretudo, à cidade já estavam presentes desde o final dos anos 1970 e ganharam protagonismo na década de 1980. Neste processo, assiste-se a muitas reações às sucessivas transformações do período de ditadura militar, no qual a modernização conservadora autoritária modificou, entre outras coisas, o padrão de urbanização do país.
O patrimônio cultural passou a se situar no vértice das ações e debates sobre o urbano, mas não somente nesse ponto. As disputas por memórias e narrativas acerca da identidade nacional colocaram o passado e a preexistência física das cidades no campo de disputas que pressionaram por ações para além daquelas impostas pela chamada “ortodoxia do patrimônio”. Dentro do órgão federal, à época denominado Subsecretaria ou Secretaria do Patrimônio do Histórico e Artístico Nacional / Fundação Nacional Pró-Memória (Sphan / PróMemória), e, para muito além dele em órgãos estaduais e municipais não somente do campo específico do patrimônio cultural, chegando às políticas que são formuladas a partir da Constituição, assiste-se a uma ampliação sem precedentes.
A década foi um momento de muitas transformações no pensamento sobre a preservação em âmbito nacional, redundando em ações, debates e políticas inovadoras no contexto da história do patrimônio brasileiro, que não necessariamente tiveram continuidade, como analisado neste dossiê.
O período culminou na promulgação da Constituição Federal de 1988, em que os preceitos de patrimônio cultural brasileiro foram legalmente transformados, incluindo toda sorte de temas da cultura e expressões que extrapolaram o excepcional. Em 2020, completam-se 32 anos desde a promulgação da nova Constituição Brasileira, e podemos afirmar que o campo do patrimônio transformou-se profundamente. Essas mudanças, largamente incrementadas pelas políticas culturais dos anos 2000, referem-se à amplitude e diversificação das políticas públicas, em conexão intersetorial, com base nos novos conceitos de patrimônio, que aproximaram a temática do universo dos direitos – urbanos, por exemplo, como o direito à moradia, e o direito à cultura. Referem-se também à inclusão de novos sujeitos no amplo debate sobre diversidade cultural brasileira, associada ao direito à memória, bem como ao reconhecimento de grupos tradicionalmente pouco assistidos pelas políticas patrimoniais, especialmente após a implantação de uma política em 2001 para a salvaguarda do patrimônio imaterial.
No caso dos afrodescendentes brasileiros, o debate remonta aos anos 1970, período em que os movimentos negros foram fortalecidos, em parte na esteira dos amplos debates que se davam nos EUA. No contexto da redemocratização, a luta antirracista e por direitos iguais tornou-se bandeira partilhada por setores progressistas da intelectualidade, que se juntaram a representantes dos movimentos negros, mediando várias de suas reivindicações no campo do patrimônio. Ao mesmo tempo, como sujeitos desse processo, integrantes do movimento passaram a lutar por espaços políticos e institucionais, para conduzir uma política de afirmação da cultura negra. No artigo de Márcia Chuva, essa discussão se coloca no âmbito das políticas de memória e patrimônio no Rio de Janeiro, a partir da análise das medidas adotadas pelo órgão estadual de patrimônio, o Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac) e pela Sphan / Pró-Memória, nos anos 1980, e, numa leitura também prospectiva, do Rio de Janeiro tornado Patrimônio Mundial nos anos 2010.
O contexto também demandava o conhecimento das práticas distintivas desse grupo formador da sociedade brasileira, e em seu artigo Márcia Sant’Anna analisa um projeto muito bem-sucedido realizado em Salvador, que foi o Mapeamento de Sítios e Monumentos Religiosos Negros da Bahia. Mapeamentos e inventários são metodologias tradicionais no campo do patrimônio e sua utilização, nesse caso, produziu material inédito. Sua importância extrapola o evento em si, tendo contribuído para formular o conceito de patrimônio cultural, que hoje substituiu amplamente o tradicional patrimônio histórico e artístico, como também para incluir bens relacionados à cultura afro-brasileira no seletivo rol do patrimônio, tendo em vista os vários terreiros de candomblé tombados a partir do ato inaugural do Terreiro da Casa Branca em Salvador, em 1984.
Contudo, esse universo de bens ainda permanece sub-representado na lista geral de bens protegidos. Outro problema que merece ser apontado, e que se repete em outras situações, é a insistência em adotar rigores estilísticos inadequados ao tipo de bem. Vimos, portanto, mudanças importantes no sentido de novos sujeitos de atribuição de valor intervindo nas políticas de seleção, mas a gestão desses bens tombados ainda requer mudanças substanciais na cultura patrimonial. Problema similar se deu com o tombamento da Serra da Barriga, local do Quilombo dos Palmares, em Alagoas, em 1985. Fruto da pressão do movimento negro, sua gestão colocava questões que se misturavam a desafios urbanos e habitacionais, para os quais a instituição federal não tinha respostas. O artigo de Joseane Brandão contém uma riqueza de informações sobre a trajetória de reconhecimento dos quilombos como patrimônio brasileiro, no qual a pesquisadora analisa o processo histórico e jurídico de construção social da categoria de comunidades remanescentes de quilombos. Esse processo teve início na Constituição Federal Brasileira de 1988, que determinou o tombamento de quilombos, enfatizando assim o caráter de reparação desse gesto. Isso ocorreu graças à pressão dos movimentos negros na Constituinte.
Num olhar prospectivo, consolida-se a ideia de pedidos de reparação como solicitações de reconhecimento. Todo esse processo tem contribuído para a reflexão sobre a escravidão no Brasil, o pós-abolição e o racismo como problemas estruturais de nossa sociedade e como oportunidade para o campo do patrimônio intervir social e culturalmente, ao associar processos de reparação ao reconhecimento do patrimônio afro-brasileiro.
Portanto, no universo dos direitos, o patrimônio aproximou-se de políticas afirmativas, de reparação e de inclusão, com experiências inúmeras e bastante diversificadas que resultaram em novas estratégias políticas. Esse crescimento do campo também resultou na e da ampliação de investigações acadêmicas e da formação profissional, com a criação de cursos de pós-graduação ou a inserção do tema em áreas de formação tradicionais, voltando-se para a reflexão sobre o patrimônio e as políticas públicas no setor, bem como sua inclusão nas graduações por meio de diversas disciplinas. Dessa forma, os trabalhos aqui reunidos são fruto do campo acadêmico do patrimônio cultural e mostram a importância da reflexão histórica sobre o assunto. Os autores se debruçam sobre aspectos diversos e complementares do período, e os artigos contribuem para a compreensão da história e da historiografia do patrimônio cultural brasileiro, uma vez que apresentam e problematizam o período de modo inédito.
Entre narrativas e práticas, o campo do patrimônio se redimensiona nos anos 1980. A historiografia é ponto-chave e talvez inicial para lançar luz sobre a década. Por isso, optamos por abrir o dossiê com o artigo de Luciano Teixeira, que aborda os primeiros passos da construção de uma historiografia do patrimônio, a partir de duas publicações seminais desse contexto, que demarcaram a possibilidade de uma escrita da história do patrimônio no Brasil. Acompanhada da efervescência dos debates que transcorriam em São Paulo, nos anos 1980, numa rede distinta de agentes e instituições, acirravam-se os debates e as disputas sobre o controle do discurso patrimonial no processo de redemocratização, especialmente no caso do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat) e pela Sphan / Pró-Memória, órgão de grande importância para o período, presente em todos os artigos deste dossiê. Sua história é, sem dúvida, mais uma frente de pesquisa a ser abordada, como aponta este dossiê.
Como o campo do patrimônio se distingue historicamente pelas práticas que se rotinizam na agência federal, optamos pelo contraponto entre narrativas e práticas, colocando em sequência o artigo de Beatriz Kühl sobre as restaurações realizadas pela Sphan / Pró-Memória. Justamente pela ausência de documentos reflexivos, normativos ou teóricos sobre essas restaurações desde os anos 1930, as fontes privilegiadas neste artigo foram os quatro números da Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional dos anos 1980, já mencionados, nos quais há densos artigos sobre restaurações emblemáticas realizadas na época. Esse material é analisado com olhar crítico, e reflete sobre a forma de circunscrição do tema e de sua abordagem, trazendo outros artigos desses números para matizar os debates sobre a restauração de então.
É consenso entre estudiosos que uma das grandes mudanças perpetradas pela modernização conservadora autoritária do regime militar foi a do perfil urbano do Brasil, dada por diversos processos, dentre os quais a urbanização e a metropolização somadas às novas conexões territoriais pela onda rodoviarista. A emergência de um debate urbano do patrimônio no Brasil surge pari passu às transformações nas cidades e às ações de planejamento urbano e territorial organizadas pelo governo militar. A pressão urbana nas cidades consideradas “históricas” e as perdas substanciais em outras tantas estão claras desde a década de 1970, mesma época em que o “patrimônio urbano” como campo conceitual se consolida no cenário internacional, com a promulgação de cartas patrimoniais e políticas urbanas específicas para áreas patrimonializadas, como aconteceu na França, Itália e Reino Unido.
No Brasil, as ações são assumidas ainda nos anos 1970 – o que tensiona, como já visto, as temporalidades da década de 1980 – pelo campo do planejamento urbano de municípios que organizaram inventários, conceitos e novas formas de acautelamento a partir de leis urbanas e planos diretores. Os conceitos de ambiente urbano e de patrimônio ambiental urbano foram mobilizados no contexto de áreas urbanas no Rio de Janeiro e em São Paulo – aqui discutidas pelos textos de Marly Rodrigues e Andréa Tourinho, Mariana Tonasso e Flávia Brito do Nascimento –, ao mesmo tempo que buscaram incluir a cidade nas práticas patrimoniais. No entanto, e apesar das importantes mudanças que foram capazes de implantar na área – com a inclusão de novos agentes e novas áreas urbanas até então não consideradas como patrimônio –, muitas vezes recaíram nos cânones arquitetônicos, protegendo bens isolados e afastando-se das demandas por consideração das relações entre habitantes e bens culturais.
Nos anos 1980, o debate sobre a cidade e o patrimônio cultural assume-se democrático em níveis municipal, estadual e federal, quando a Sphan / Pró-Memória passa a proteger muitas áreas urbanas a partir dos argumentos da história, entendendo a própria cidade como um documento. A cidade-documento, discutida no texto de Lia Motta, viabiliza a permanência do Iphan no debate urbano que passou a proteger novos núcleos urbanos e utilizar critérios inéditos, como são exemplares os casos de Laguna, Natividade e Petrópolis.
O ambiente como argumento de preservação urbana era parte de um quadro ainda mais amplo da discussão ambiental, um dos temas latentes do período. Da mesma forma, nas cidades, a pressão da urbanização desde os anos 1960 e seus impactos nefastos nas áreas ditas naturais ou nas comunidades tradicionais levou à mobilização da comunidade internacional, com o papel decisivo da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco). No Brasil, o protagonismo do debate sobre as áreas naturais veio de dois agentes novos no campo, ainda na década 1970: a geografia e o Estado de São Paulo. O papel decisivo de Aziz Ab’Saber, geógrafo e professor da Universidade de São Paulo, no Condephaat, estabelecendo parâmetros conceituais para a consideração da natureza como patrimônio nos seus aspectos memoriais, foi analisado por Simone Scifoni.
A atuação do Condephaat nas áreas naturais é característica do envolvimento de novos agentes na busca pela preservação de novos objetos, espaços e práticas. A abertura do conselho às universidades públicas paulistas permitiu práticas para além das ortodoxias, emblemáticas do acolhimento de novos temas e possibilidades de expansão das práticas patrimoniais a partir da legislação de tombamento. Abertura essa hoje ameaçada, com a redução da presença das universidades no conselho. A natureza tombada era salvaguardada naquilo que tinha de valores memoriais, históricos e culturais. A criação de novos instrumentos de proteção, segundo o interesse do planejamento pela preservação urbana, aparece também nos debates sobre o licenciamento ambiental, tratado por Claudia Leal. Trata-se de uma temática urgente, em razão da recente política ambiental perversa e destruidora da vida, que vem sendo implantada no Brasil, com imensas interseções com o campo do patrimônio.
Outra vertente de atuação no campo é sua relação com a museologia, aqui também apresentada a partir do Condephaat. Inês Gouveia analisa o assunto a partir da trajetória de Waldisa Rússio, voltando-se para a contribuição teórica e política da museóloga, que incorpora na ideia de museu a noção de direito e acesso aos patrimônios e às memórias. Daí também a ampliação do debate da museologia enquanto área de conhecimento específica que ocorre nos anos 1980. A interlocução da museologia com o patrimônio fica marcada por sua atuação no grupo executivo que propõe a criação do Condephaat. Contudo, o campo museológico pouco aderiu, naquele momento, às transformações que o diálogo com o patrimônio trouxeram. Ainda assim é surpreendente o protagonismo dessa mulher, aqui tangenciado pela perspectiva dos estudos de gênero, cujas relações com o patrimônio merecem ser aprofundadas.
A cultura que adjetiva o patrimônio mudou, desde os anos 1970, as perspectivas de atuação dos novos agentes nos níveis municipal e estadual, não somente em instituições de patrimônio, mas também em associações da sociedade civil. A dimensão política da preservação tornou-se evidente nos anos 1980, como novo instrumento da luta política por direitos, aspecto que é ressaltado em vários artigos deste dossiê. O texto de Lucina Matos mostra a presença da sociedade civil organizada na valorização do patrimônio ferroviário, colocada em marcha pelos movimentos sociais e associações de defesa deste patrimônio, que lutaram pelo direito à memória e ao passado ferroviário, abrindo diálogos e embates pela sua preservação. Trata-se de um processo longo e disputado, cujos desdobramentos serão vistos quase três décadas depois com a Lei 11.483 de 2007, que atribuiu ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) a responsabilidade de administrar os bens móveis e imóveis nesse âmbito da extinta Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA).
Um aspecto fundamental do olhar voltado para a década de 1980 neste dossiê foi a possibilidade de compreender as temporalidades da patrimonialização no Brasil, constituídas ao longo das últimas quatro décadas. Se muitas das práticas foram estabelecidas nos anos de redemocratização e puderam ser, de certa forma, atendidas naqueles anos, outras tantas tiveram na Constituição de 1988 um ponto de chegada e de partida. O patrimônio ferroviário é exemplo claro: os sucessivos desmontes dos anos 1990 ampliaram as demandas do direito à memória ferroviária e se tornaram tema de atenção institucional nos anos 2000.
Este dossiê também põe em pauta aspectos regionais das políticas de patrimônio, que surgem antes mesmo dos anos 1970 em diversos locais, incentivados especialmente pelas possíveis associações entre patrimônio, turismo e desenvolvimento. A progressiva organização de movimentos e associações locais em favor do patrimônio é indício de novas narrativas patrimoniais, articuladas por argumentos de pertencimentos e identidades urbanas. Várias iniciativas dessa época trouxeram novos agentes para o campo, bem como temas ainda ausentes dos processos de patrimonialização. Um deles é a imigração e modos de vida dos colonos imigrantes no Brasil. Esse tema é trabalhado por Daniela Pistorello, que problematiza a imaginação do imigrante alemão em Santa Catarina a partir da dissecação do projeto “Roteiro Nacional da Imigração”, que gerou não apenas um enquadramento do imigrante alemão, como o apagamento de outras etnias ali presentes.
A entrada ou não de novos agentes e outros sujeitos sociais tem desdobramento nas novas visualidades no final da década de 1970 e nos anos 1980, quando a diversidade cultural se anunciava como tema. A fotografia, tal como tratada por Eduardo Costa, embora presente desde o início da atuação do Iphan, vai dialogar com distintas formas de compreensão do patrimônio, seja por meio da inclusão dos habitantes nas representações ou pelas novas profissões que se ocupam do patrimônio, como a do designer Aloísio Magalhães.
Outras formas de construção patrimonial aparecem na regionalização do patrimônio ou nas ações regionais interessadas nas tradições locais como temáticas de grande significado para o campo da cultura no Brasil, explícitas em manifestações diversas desde os anos 1960. No patrimônio, novamente, a temporalidade dessas explorações conceituais finca raízes nos anos 1970: por exemplo, nas tão propaladas ações do Centro Nacional de Referência Cultural de Aloísio Magalhães (CNRC). A experiência do Centro de Referência Cultural do Estado (Ceres), entre 1975 e 1990, tratada por Antonio Gilberto Nogueira, de mapeamento e registro audiovisual da memória da cultura tradicional popular no Ceará é também emblemática do alcance das ações locais e de seus efeitos na relação entre cultura e turismo.
O debate sobre o local ou, mais especificamente, dos estados e municípios na valoração e gestão do patrimônio tem se intensificado desde a década de 1970. A questão regional e a ação dos estados e municípios – em caráter colaborativo e não concorrente, tal como posto no Artigo 216 da Constituição – são um dos temas ainda importantes e irresolutos para o patrimônio no Brasil. A tentativa de estabelecer um sistema nacional de patrimônio nos anos 2000 e os ensaios de gestão compartilhada que começaram nos anos 1980 têm sido interrompidos ou são pontuais. Na época, as experiências se basearam no planejamento urbano ou na criação de instituições municipais e estaduais de preservação, sendo o caso de Belo Horizonte, tratado por Flávio Carsalade, significativo para pensar a questão, principalmente quando Minas Gerais assumiu o protagonismo ao incluir municípios na valorização e salvaguarda do patrimônio a partir da “Lei Robin Hood” de 1995. Como essas experiências mimetizaram a legislação federal de preservação e seguiram a ortodoxia do patrimônio nacional ou abriram novos caminhos de valoração é ainda campo de investigações futuras. As questões aqui tratadas apontam para a reiteração de lógicas fincadas no patrimônio arquitetônico e monumental, ao mesmo tempo que buscam novas formas de acautelamento e proteção.
Como se pode confirmar com a leitura deste dossiê, as mudanças no campo do patrimônio condensadas nos anos 1980, e sintetizadas no marco legal da nova Constituição, são evidentes e passaram, acima de tudo, por uma análise diacrônica. Desse modo, a reflexão se deu em conjunto, por vezes indiretamente, sobre a hegemonia da chamada ortodoxia do patrimônio, com seu império estético e formal, e trouxe à luz inúmeras situações que dela divergem ou com ela se confrontam. Apontou também aqui a inércia dessa ortodoxia, que ainda perdura nos dias atuais. Talvez em posição menos evidente, mas ainda em combate.
É na dimensão política da preservação evidenciada nos anos 1980 que nota-se uma mudança estrutural, capaz de suscitar novos paradigmas, colocados em disputa no campo. Isso diz respeito à ideia de que o patrimônio não existe em si e, portanto, não pode mais ser (des)vendado ou (des)coberto. Tudo o que alcançou o status de patrimônio cultural – categoria também forjada naquele contexto – tornou-se patrimônio pela vontade dos homens.
Evidentemente, não tivemos a intenção de esgotar todas as frentes que a política patrimonial abrange, tampouco trazer casos exemplares para o dossiê. Buscamos, sim, enfatizar a complexidade do campo e, sobretudo, apontar o modo como integra a história política e social brasileira, recusando a abordagem empobrecedora que coloca o tema à parte, como assunto apenas técnico, para digestão por especialistas.
Desejamos uma boa e instigante leitura!
Referências
AARÃO REIS FILHO, Daniel. Ditadura e democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
CAMPOFIORITO, Ítalo. “Muda o mundo do patrimônio”, Revista do Brasil, n. 4. Rio de Janeiro: Secretaria de Estado de Ciência e Cultura; Rioarte, 1985.
CHUVA, Márcia Regina Romeiro. Os arquitetos da memória: sociogênese das práticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil (anos 1930-1940). Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2009.
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Flávia Brito do Nascimento – Professora na graduação e pós-graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Bacharel e licenciada em História pela Universidade Federal Fluminense, graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, obteve o título de mestre e de doutora em Arquitetura e Urbanismo pela USP. Realizou pós-doutorado na Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne. https: / / orcid.org / 0000-0002-6889-7614
Márcia Regina Romeiro Chuva – Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com pós- -doutorado na Universidade de Coimbra. Pesquisadora do CNPq. É professora associada do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e do Mestrado Profissional em Patrimônio Cultural do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
CHUVA, Márcia Regina Romeiro. Introdução. Anais do Museu Paulista. São Paulo, v.28, p.1-12, 2020. Acessar publicação original [DR].
História da Educação: sensibilidades, patrimônio e cultura escrita / Revista História da Educação / 2020
No ano de 2018, o 24º Encontro da ASPHE, organizado pela Associação Sul-Rio-Grandense de Pesquisadores em História da Educação, discutiu o tema “História da Educação: sensibilidades, patrimônio e cultura escrita”[3]. Atentando para as recentes temáticas que vêm sendo desenvolvidas no âmbito históricoeducativo, o encontro reuniu pesquisadores e pesquisadoras a partir desses três eixos.
Ao propor uma introdução ao tema da História Cultural, a historiadora Sandra Jatahy Pesavento (2005), com base em teóricos que fundamentam a discussão por ela tematizada – com destaque para Stone (1981), Certeau (1982), Chartier (1988, 1991), White (1994), entre outros presentes em sua obra –, fez um resumo dos principais conceitos norteadores de um conjunto de mudanças epistemológicas que proporcionaram um novo olhar a historiadores e historiadoras. A entrada em cena desses conceitos reorientou a escrita da história; nesse sentido, destacamos: representação, imaginário, narrativa, ficção e sensibilidades – todos esses presentes, de uma forma ou de outra, nos textos que compõem o dossiê que ora apresentamos. Leia Mais
Alimentação: História, Cultura e Patrimônio | Revista Latino-Americana de História | 2019
Na chamada de artigos que publicamos e divulgamos para este dossiê, havíamos afirmado que “é notável que as discussões em torno dos hábitos e das culturas alimentares têm ganhado cada vez mais espaço na sociedade e na academia”. Podemos considerar o grande número de produções de pesquisadoras e pesquisadores [3] que recebemos para compor este número da Revista Latino-Americana de História um acontecimento que ajuda a comprovar aquela sentença. Hoje, no Brasil, os estudos sobre alimentação estão em vias de consolidação, sendo a perspectiva interdisciplinar um dos seus principais trunfos. Há poucos dias do lançamento desta publicação, experienciamos um evento ocorrido na Universidade de São Paulo que demonstrava justamente isso. O II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação [4] reuniu mais de uma centena de historiadores, sociólogos, antropólogos, museólogos, nutricionistas, gastrólogos, economistas – além de cozinheiros, produtores rurais e ativistas sociais –, compartilhando diferentes mesas, discussões e grupos de trabalho.
Por mais que tenhamos um caminho já trilhado por acadêmicas e acadêmicos que se debruçam sobre a história e a cultura da alimentação desde a década de 1990 [5], há uma nova geração de estudiosos que acabou por ampliar não só o número de projetos de pesquisas em programas de pós-graduação, mas as possibilidades de investigação em termos de objetos, perguntas e metodologias. Pode-se conjecturar que a procura pela temática da alimentação e o alargamento das perspectivas possíveis para abordá-la na academia sejam possíveis e estejam orientando-se pelas próprias demandas e reflexões da sociedade contemporânea. Leia Mais
As cidades entre a memória, o imaginário e o patrimônio | Revista Latino-Americana de História | 2019
Ítalo Calvino (1990), em sua obra “As cidades invisíveis”, demonstra, a partir da literatura, como as cidades relacionam-se com variadas dimensões da experiência humana – a memória, o desejo, os símbolos, as trocas, os sonhos… todas essas representações podem descrevê-las, ou desvendar as múltiplas faces de uma mesma cidade. Cada urbe descrita revela uma vivência possível dentro de um universo de possibilidades que as mais diferentes e variadas cidades oferecem aos seus moradores.
Ao propor um dossiê envolvendo cidade, memória, imaginário e patrimônio, uma vasta gama de possibilidades foi aberta aos pesquisadores. Alternando temas, fontes, problemas, metodologias e abordagens, diversos artigos foram submetidos a Revista Latino-Americana de História. No entanto, todas as pesquisas apresentam a cidade como foco de análise e objeto de reflexão por parte dos autores. Leia Mais
Patrimônio e Sociedade: as várias faces de um debate | Revista Historiar | 2019
Liquidação
A casa foi vendida com todas as lembranças
todos os móveis todos os pesadelos
todos os pecados cometidos ou em via de cometer
a casa foi vendida com seu bater de portas
com seu vento encanado sua vista do mundo
seus imponderáveis
por vinte, vinte contos.
Carlos Drummond de Andrade. Boi Tempo.
A casa anunciada no poema de Carlos Drummond de Andrade lido acima, foi vendida por apenas vinte contos. A preço de liquidação. No entanto, algo muito sensível chama nossa atenção: nós não conseguimos dimensionar o tamanho da construção, no entanto, a grandeza da casa parece estar numa dimensão para além da pedra e cal. Porque a casa vendida está cheia de lembranças. Está cheia de móveis, mas também de pesadelos, de pecados do presente e do futuro. A casa não está vazia, certamente, da dimensão humana que a habitou um dia. A casa, pelo que entendemos da poesia, tem um peculiar bater de portas, causa de um vento encanado, mas também abre uma vista para o mundo, sendo, por isso mesma, parte invisível do imponderável de cada dia e de cada existência, e que nesse sentido não pode ser medida apenas pelo preço vendido. Leia Mais
Memória, patrimônio e democracia / Fronteiras – Revista Catarinense de História / 2018
O Número 32 da Fronteiras: Revista Catarinense de História apresenta o Dossiê Memória, Patrimônio e Democracia, traz textos que se articulam ao conjunto de debates promovidos durante o XVII Encontro Estadual de História, realizado entre os dias 21 e 24 de agosto de 2018, na Universidade da Região de Joinville (UNIVILLE), em Joinville, Santa Catarina.
Ao propor a combinação dos termos memória, patrimônio e democracia, o Dossiê visa oportunizar o compartilhamento de resultados de pesquisas interessadas em compreender as maneiras pelas quais bens culturais são (re)convertidos em patrimônios por meio do trabalho de agentes sociais de natureza diversa (individuais, coletivos, públicos, privados, entre outros).
À sua maneira, os textos que integram este Número evidenciam que os entrecruzamentos entre patrimônio, memória e democracia precisam ser pensados para além da mera contemplação de ícones considerados valiosos e relevantes para um determinado grupo ou para uma sociedade como um todo. Antes disso, é preciso ter em mente que o patrimônio se inscreve em um campo de lutas e reivindicações sociais mais ou menos democráticas, muitas das quais se utilizam do patrimônio para reforçar ou contestar significados atribuídos a bens que, presumidamente, constituem-se enquanto referências na complexa trama de políticas de memória na contemporaneidade. Em outras palavras, os autores desta edição, a partir de diferentes enfoques e abordagens teórico-metodológicas, problematizam complexidades políticas e culturais que atravessam processos contemporâneos de fabricação, ativação, uso e difusão de patrimônios culturais.
O Dossiê constitui-se de oito artigos, uma tradução e uma resenha. O artigo intitulado A memória fardada: a criação do Museu Histórico Nacional e as relíquias do Contestado, de autoria de Rogério Rosa Rodrigues, investiga o processo de coleta de vestígios materiais por parte de oficiais militares que atuaram na repressão ao movimento do Contestado, vestígios que foram incorporados ao acervo da reserva técnica do Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro. No desenvolvimento de suas análises, o autor procura debater a valorização da história militar do Brasil em um período em que tensas disputas foram travadas em torno da reconstrução de uma suposta memória nacional (primeiras décadas do século XX).
No escrito Fortalezas abandonadas, saqueadas, redescobertas, restauradas, patrimonializadas: da democratização à pluralização do patrimônio, Pedro Mülbersted Pereira e Elison Antonio Paim analisam como agentes envolvidos com a gestão das Fortalezas de Anhatomirim, Ratones e Ponta Grossa, situadas em Florianópolis / SC, historicamente envidaram esforços no sentido de elaborar e disseminar uma narrativa palatável acerca do passado dessas edificações. Apoiados em um conjunto diversificado de fontes (bibliografias, entrevistas, reportagens digitais e documentos oficiais), os autores problematizam retóricas patrimoniais que seguem dando força para um “discurso sobre a ruína”, negligenciando, em suas formas de expressão, narrativas de memória que não se afinam à versão glamourizada que certos órgãos encarregados da gestão das Fortalezas procuram manter e propalar.
No escrito Patrimônios difíceis, demanda social e reparação nos Asilos Colônias em São Paulo, Gabriela Lopes Batista aciona a noção de “patrimônios difíceis” para refletir sobre as representações relacionadas ao tombamento de espaços que, no transcurso do século XX, funcionaram como instâncias de isolamento compulsório de pessoas acometidas pela hanseníase.
O artigo Tombamentos, processos, disputas e tensões nas histórias do patrimônio cultural de Joinville – outras questões para o debate público, de Cristiano Viana Abrantes, Dietlinde Clara Rothert e Giane Maria de Souza, constitui-se como um estudo sobre estratégias político-institucionais ligadas à gestão do patrimônio cultural em uma cidade de médio porte (Joinville). No desenvolvimento do texto, os autores procuram refletir sobre tensões que se fazem presente no campo patrimonial do município de Joinville, atentando para o papel exercido por agentes e agências da administração pública encarregados de assessorar, monitorar e acompanhar o cumprimento de requisitos legais que são diretamente relacionados com a patrimonialização ou não de determinado bem cultural.
No artigo intitulado Diálogos arriscados: do direito de participação cidadã na patrimonialização ao direito cidadão de aparecer no patrimônio cultural, o historiador Diego Finder Machado reflete sobre relações tensas e conflituosas que se desdobram de perspectivas divergentes acerca do lugar, da função e dos modos de interação com o patrimônio nas sociedades do presente. A partir da análise de processos de patrimonialização que perpassaram a história de Joinville, o autor discute como cidadãos comuns, de maneira mais ou menos declarada, apropriaram-se do patrimônio cultural para reivindicar espaços de aparecimento na vida pública das cidades contemporâneas.
Em A UNESCO, o patrimônio e o turismo cultural: uma abordagem inicial (1960- 1980), Valéria Fernanda Serpa Steinke, Fernando Cesar Sossai e Ilanil Coelho apresentam um histórico da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), bem como examinam algumas das discussões sobre patrimônio que atravessaram o processo de elaboração da Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural (UNESCO, 1972). Em seguida, os autores refletem a respeito de como essa Organização, durante a década de 1970, atuou de maneira a aproximar entre si os termos patrimônio e turismo cultural.
No artigo Desenvolvimentismo, industrialização e ensino superior em Chapecó: bases para a criação de um movimento estudantil, Vinicius de Almeida Peres e Monica Hass problematizam os interesses envolvidos com a oferta do Ensino Superior em Chapecó, bem como discutem como se deu a constituição de um movimento estudantil junto ao Centro de Ensino Superior da Fundação Universitária do Desenvolvimento do Oeste de Santa Catarina. Vale a pena destacar que os autores fazem uso de fontes que integram o acervo do Fundo Documental do Diretório Central dos Estudantes, um acervo custodiado pela equipe técnica do Centro de Memória do Oeste de Santa Catarina (CEOM / UnoChapecó).
Em Campos entre taipas e aramados: novos olhares sobre a paisagem serrana catarinense, a autora, Cristiane Fortkamp Schuch, busca elaborar uma escrita histórica a respeito de experiências culturais e modos de vida que impactaram a paisagem dos campos de altitude do planalto catarinense. Em seu texto, a autora dispensa atenção à análise da paisagem histórica da região, procurando diferenciar e ampliar o conceito de paisagem para além de sua vertente imagética.
Na seção Resenha, Adriano Denovac explicita algumas das discussões presentes no livro O que pode a biografia, obra organizada pelos historiadores Alexandre de Sá Avelar e Benito Bisso Schimidt. Trata-se de uma obra interessante para o campo da História, uma vez que aprofunda o debate sobre os possíveis lugares da biografia no campo da História, em especial nos domínios da História Pública.
Esta edição da Fronteiras conta ainda com a tradução do texto intitulado A fabricação do patrimônio, de autoria de Nathalie Heinich, socióloga e diretora de pesquisa do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS, Paris). Elaborada pelos historiadores Diego Finder Machado e Fernando Cesar Sossai, a tradução é uma contribuição importante para os estudiosos que atuam no campo do patrimônio cultural no Brasil, uma vez que Heinich desenvolve em seu escrito questões bastante espinhosas: como um determinado objeto adentra o conjunto do patrimônio cultural nacional? Sob quais critérios? Sob quais dinâmicas de atribuição de valores? A tradução também é uma oportunidade de conhecer as proposições de Nathalie Heinich para o desenvolvimento de pesquisas mais pragmáticas a respeito do patrimônio cultural.
Esperamos que este Número da Revista Fronteiras seja uma contribuição relevante para os que, assim como nós, procuram investigar as complexidades contemporâneas que emergem dos entrecruzamentos entre Memória, Patrimônio e Democracia.
Boa leitura a todas e a todos!
Fernando Cesar Sossai
Ilanil Coelho
Samira Peruchi Moretto
Organizadores do Dossiê Memória, Patrimônio e Democracia
SOSSAI, Fernando Cesar; COELHO, Ilanil; MORETTO, Samira Peruchi. Apresentação. Fronteiras: Revista catarinense de História. Florianópolis, n.32, 2018. Acessar publicação original [DR]
História e Patrimônio: questões teóricas e metodológicas / Anos 90 / 2018
O presente dossiê pretende contribuir para os debates recentes acerca das interfaces entre história e patrimônio. Para tanto, agrega artigos que enfocam questões teóricas e metodológicas referentes a três possibilidades de interface entre história e patrimônio. A primeira delas trata das investigações acadêmicas sobre os processos de patrimonializacão e usos do passado, cuja acolhida não se estabeleceu apenas em programas de pós-graduação stricto sensu em História, mas em uma miríade de programas interdisciplinares criados no Brasil nas últimas décadas. A segunda possibilidade envolve a atuação do profissional historiador em um campo de disputas, onde estão em jogo os embates em torno de práticas e representações sobre os bens culturais e sobre o passado. Finalmente, a terceira interface está relacionada ao ensino de história e envolve especialmente as políticas educacionais que, no Brasil, tem colocado o patrimônio como eixo de abordagens transversais no currículo escolar. Em qualquer destes lugares de produção histórica sobre o patrimônio, o aprofundamento teórico e metodológico constitui-se em prerrogativa para o avanço da reflexão sobre a especificidade das contribuições do conhecimento histórico para a questão, bem como para o compartilhamento e debate interdisciplinar com outras áreas envolvidas. Desse modo, o Dossiê História e Patrimônio agrega reflexões de ordem teórica e metodológica relacionadas às possibilidades de interface acima elencadas, discutindo autores e conceitos utilizados, bem como metodologias postas em ação para elucidação de problemas.
A ideia da proposição desse dossiê partiu de debates acerca da importância das questões teórico-metodológicas desenvolvidos no GT História e Patrimônio Cultural da ANPUH e foi aprovada pela Comissão Editorial da Anos 90 no primeiro semestre de 2017. Foi feita uma chamada ampla no dia 31 de julho de 2017 para que todos os doutores que investigam acerca dessa temática interessados em publicar artigos no dossiê fizessem as submissões. O prazo para submissão estendeu-se até o dia 30 de abril de 2018, quando iniciou a busca por outros doutores especialistas no tema para que fizessem gratuitamente a avaliação dos artigos submetidos, conforme as normas da revista. Agradecemos a esses avaliadores anônimos que muito contribuíram para a seleção e qualidade dos textos aqui publicados.
Ao final do processo de avaliação, foram aprovados os artigos que seguem:
“O lugar do patrimônio na operação historiográfica e o lugar da história no campo do patrimônio”, de Zita Rosane Possamai, mapeia a história do patrimônio no Brasil a partir da contribuição dos museus e destaca a presença da produção historiográfica nesses espaços. Problematiza as aproximações e distanciamentos desse saber nesse campo e finaliza com a análise de dados recentes sobre a produção em nível de pós-graduação sobre patrimônio em diversas áreas, com ênfase na história.
“Patrimônio cultural na contemporaneidade: discussões e interlocuções sobre os campos desse saber”, de Elis Regina Barbosa Angelo e Euler David de Siqueira, discute, a partir dos aportes conceituais da História e da Antropologia, as relações entre o patrimônio, como elemento de diálogo com o passado, e os processos vinculados à memória, à identidade, ao tempo e à cultura. Situa a configuração do patrimônio associado ao Estado-nação e problematiza os movimentos identitários mais recentes, presentes em diversas regiões do mundo, que reivindicam a valorização dos patrimônios locais no contexto da globalização.
“Memórias e identidades: a Patrimonialização e os usos do passado”, de autoria de Sandra C. A. Pelegrini, busca mostrar os “perigos” aos quais estão sujeitos os profissionais de diversas áreas atuantes em comissões ou conselhos ligados à preservação dos bens culturais. O estudo de caso do processo de tombamento e de registro de bens patrimoniais, na Estância Balneária de São Vicente (São Paulo), permitiu à autora relacionar aportes teóricos e metodológicos na abordagem da questão.
“Patrimônio cultural e turismo: tensões contemporâneas”, de Fernando Cesar Sossai e Ilanil Coelho, enfrenta os tensionamentos decorrentes da relação entre patrimônio e turismo, ao ter como foco a cidade de Barcelona, Espanha. Os autores mostram como bens culturais ativados como patrimônios mundiais constituíram-se como suportes para contestações contra a presença dos turistas na cidade e contra a expansão desenfreada do turismo internacional na região. Através das imagens fotográficas chega-se a vozes / imagens dissonantes produzidas por sujeitos individuais ou coletivos, contrários à presença desses visitantes na cidade.
“Patrimônio e performance cultural: experiência e territorialidade na conquista do espaço”, de Eloísa Pereira Barros, através dos conceitos de território, performance cultural e sua relação com o patrimônio, propõe refletir sobre as ideias de memória, performance, cultura e identidade. Considera o patrimônio cultural como prática social que performa o movimento realizado pelos grupos sociais ao materializar os aspectos simbólicos e codificados da cultura nos espaços sociais, seja ele material ou imaterial.
“O registro do Cordel como patrimônio imaterial e as políticas de preservação da cultura popular no Brasil”, de Antonio Gilberto Ramos Nogueira, aborda os desafios da preservação dos aspectos culturais intangíveis e percorre as mudanças conceituais e metodológicas nas políticas públicas sobre essa problemática. Trata do processo de construção dos sentidos de patrimônio cultural imaterial e da patrimonialização do Cordel no Brasil. Através da trajetória da Literatura de Cordel, o autor mapeia os deslocamentos de sentidos, indo do folclore ao patrimônio imaterial, nas políticas públicas no que se refere à noção de cultura popular.
“A patrimonialização e suas contradições: o patrimônio prisional na França do tempo presente”, de Viviane Trindade Borges, aborda os embates em torno das práticas de patrimonialização de espaços prisionais na França, tendo como foco o caso da Prison de La Santé. A autora analisa os destinos contraditórios desses patrimônios monumentais, obsoletos na atualidade, e problematiza a atuação de intelectuais franceses nesse processo, entre os quais alguns historiadores, que debatem a emergência do conceito de patrimônio carcerário ou patrimônio prisional.
“Entre a sala de aula e o gabinete do museu: as primeiras coleções do Museu Histórico de Londrina / PR na gestão do Padre e Professor Carlos Weiss (1970-1976)”, de Cláudia Eliane P. Marques Martinez e Angelita Marques Visalli, analisa o processo de constituição das primeiras coleções no Museu Histórico de Londrina, a partir das iniciativas de seu primeiro diretor, Pe. Carlos Weiss (1970 a 1976). A atuação desse diretor determinou a escolha e prioridade dada a alguns objetos específicos, sobretudo artefatos arqueológicos e etnográficos. A quantificação do acervo por meio de um banco de dados com os registros do Primeiro Livro de Registro do Museu Histórico de Londrina permitiu analisar a recorrência nessas coleções de artefatos arqueológicos e etnográficos, provenientes da região.
Finalmente, “Goiânia: dinâmicas do patrimônio e da memória entre a instituição da cidade-monumento e a cidade-praticada”, de Edmar Aparecido de Barra e Lopes, aborda a discussão acerca dos usos sociais do passado e suas relações com a dinâmica da patrimonialização a partir da análise de narrativas dominantes sobre o urbano e a cidade de Goiânia / GO.
Essa variedade de problemas, objetos e casos empíricos apresentados demonstra, por um lado, a fertilidade das investigações sobre o patrimônio desenvolvidas no âmbito dos estudos históricos. Por outro lado, essas pesquisas demonstram a necessidade de diálogo com outras áreas de conhecimento e como essas permitem apreender a complexidade dessas questões. Finalmente, apontam para a problematização e legitimação da atuação do profissional de história e de outras áreas nesse campo. Sem exaurir as possibilidades, certamente inesgotáveis, desejamos que esse dossiê venha a contribuir para a reflexão e inspiração para novas pesquisas. E, especialmente nesse momento em que o patrimônio brasileiro sofreu uma perda inestimável com o incêndio do Museu Nacional, renove nossas esperanças em seguir agindo na defesa da preservação dos traços de nossas memórias e dos nossos passados.
Zita Possamai – Professora associada da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio da UFRGS. Doutora em História com pós-doutoramento na Universidade Paris 3 Sorbonne Nouvelle (França). Bolsista de Produtividade do CNPq. E-mail: zitapossamai@gmail.com , http: / / orcid.org / 0000-0003-4014-5389
Alessander Kerber – Professor associado do Departamento de História e do PPG em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutor em História com pós-doutoramentos na Universidade de São Paulo (USP) e na Universidad Nacional de Cuyo (UNCUYO, Argentina). E-mail: alekerber@yahoo.com.br , https: / / orcid.org / 0000-0002-7604-7484
POSSAMAI, Zita; KERBER, Alessander. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 25, n. 48, dez., 2018. Acessar publicação original [DR]
O que o patrimônio muda (II) / História – Questões & Debates / 2018
Within this issue, readers will find the remaining papers resulting from the session we organized at the 2016 meeting of the Association of Critical Heritage Studies (ACHS), in Montréal, Canada. The first papers of the session were published in early 2018, in volume 66, issue 1, of História: Questões & Debates. While some papers in that issue relate to the practice of archaeology and the management of buried heritage locally, in the Province of Quebec, other papers explore international examples, such as management of heritage in Turkey and the impact of archaeology on the local population in Egypt, a centre for cultural tourism since the 19th century. A methodological case study presents the classification of Chinese large-scale archaeological sites. Several First Nations were present at the meetings, and five of these Nations presented papers or participated in our session. The Waban-Aki Nation contributed to the first set of published papers, presenting its approach to co-managing cultural heritage and natural resources.
The present group of papers brings together a variety of topics surrounding how heritage studies can serve the development of identity. Their contents span community archaeology in Newfoundland and Labrador, a 14th-century mythical figure having built castles in southern France, a hermit living on a small island in the St. Lawrence River, the need for an emic perspective in archaeological research into Huron-Wendat heritage, the Cherokee conception of landscape, the memory of enslavement in French Guiana, and public archaeology in Brazil.
What do these seven papers have in common? First, they all answer the question “What does heritage change?” The answers stem from a thoughtful and purposeful archaeology that considers visitor interest and the development of knowledge. Second, they all relate to the theme of economics, reminding us of a question asked two years ago by economists concerning heritage. They argued that, rather than asking “What does heritage cost?” to a society that values the study of its past, we should be asking “How much does heritage contribute to societal development?” Through the spirit and meaning it gives to a place, heritage can be a means of creating a sense of belonging. Together, economic benefits and a sense of belonging enhance the quality of life.
As we mentioned above, the ACHS meetings are an appropriate venue for bringing together scholars who have chosen to study heritage as a field of critical inquiry. Critical heritage studies challenge conservative views and encourage inclusive, participatory practices while increasing dialogue and debate among researchers, practitioners, and communities. Critical heritage studies also contribute to the decolonization of the humanities through the encouragement and training of communities and through collaborations with indigenous communities (BAIN & AUGER, 2018).
In the current issue, the first paper, by Gaulton and Rankin, discusses the use of archaeology as a catalyst for public engagement. The authors eloquently demonstrate how the Province of Newfoundland and Labrador was the first to ask itself “What does heritage change and what can it bring to the province?” rather than “How much does it cost?” Through conscious community engagement – first at the World Heritage Red Bay site and now at the Ferryland site, which has become an important purveyor of employment – archaeology has been making a difference in Newfoundland and Labrador since 1979. The authors’ most recent community archaeology project, in southern Labrador, has brought a sense of identity and recognition to Labrador Métis communities. Their public engagement “prioritized community-based research agendas, promoting social justice at the local scale by providing education; training; and economic opportunities; and, more recently, paths toward reconciliation with indigenous communities.” Gaulton and Rankin show how each project learned from the previous ones about the economy of heritage studies.
What characterizes the next two papers is that both of these projects in public archaeology were initiated at the request of the local community, both involved a local legend, and both were intended to stimulate the economy through tourism. The archaeology undertaken went beyond simply reinforcing local lore and, instead, documented history properly, through good archaeological practices. Béague challenges the existence of a legend from the Middle Ages which insists that a particular style of castle construction can be attributed to a larger-than-life figure, that of Gaston Fébus.
Béague developed a project in the Béarn region of southwestern France, where the mythical figure was supposed to have built a defensive line as protection against an English invasion. This is an exemplary project in public archeology, as it demonstrates that a scientific approach to archaeology can appeal to a wider audience in search of a sound explanation of history and legend.
As for Savard and Beaudry’s contribution, they took the opportunity that was offered to them, in a project conceived by a well-intentioned group of laypeople, and went beyond proving what was already known about a mythical figure reputed to have lived during the 18th century on an island in the estuary of the St. Lawrence River, opposite the town of Rimouski, Quebec. They used the assignment at hand to show their sponsor that anchoring a regional tourism attraction with a single event or character is problematic. They eventually expanded their mandate to include the interpretation of the prehistory of a wider area. Although the project was short-lived, it did allow for the creation of a field school to train students registered in the history and geography programs at the University of Québec in Rimouski.
Two other papers examine indigenous history. The first paper, by Sampeck, discusses how research on landscape heritage is used as a tool for the development of self-identity, while the second paper, by Hawkins and Lesage, takes the reader one step further in making explicit the need to draw up a research design which tries to take into account an emic perspective when practicing archaeology with First Nations peoples.
The central argument of Sampeck’s paper is that cultural dispossession has worked against the Cherokee Nation. Their culture was almost destroyed during the contact period, when trans-Atlantic colonists took half of their territory. The current collaboration helps restore the Cherokee’s connection to their lands. Spaces that were previously simply considered “empty” have been identified as being crucial to the construction of Cherokee communities.
As exemplified by the first set of papers published in História: Questões & Debates, a theme that has developed over the past decade is the decolonization of archaeology and anthropology. The paper on Huron-Wendat heritage is an example of what the practice of decolonization can mean in archaeology. The authors show that First Nations are now actively making decisions related to the study of their past. Citing Warrick and Lesage (2016), Hawkins and Lesage define the respective limits of competence and responsibility of each: “… archaeology can make meaningful contributions to interpretations about technology, economy, and settlement patterns but […] archaeologists are not qualified to make pronouncements on the ethnic identity of past peoples.” Quoting Warrick and Lesage (2016, p.139), they state, “Indigenous people know best who they are and where they come from.” This position highlights two contrasting, yet valid, paradigms of their history.
The paper by Auger, on the work he and his collaborators conducted on a plantation cemetery in French Guiana, discusses their experience of making archaeology socially relevant. They created a lieu de mémoire, with the intention of memorializing the place occupied by the local population and their ancestors in France’s colonial history and of thus beginning a dialogue about this history. They discuss the dilemma of working on the delicate issue of slavery in the Caribbean and the reaction of the local, French authorities.
The last paper, presented by three Brazilian scholars, Garraffoni, Funari, and de Almeida, focusses on the use of archaeology and material culture as tools of social inclusion in Brazil. The authors discuss the history of Brazilian archaeology across various political regimes and examine how archaeology can be “instrumentalized” to suit a specific political vision. During the 20th century, archaeology in Brazil was heavily influenced by European practices. Today, Brazil is strongly invested in developing its own brand of public archaeology, which strives to be inclusive, while being aware of the present political climate.
Our Ontario colleague Gary Warrick, who was present at the ACHS meetings in Montréal, has kindly prepared a discussion that addresses the conference’s main question: “What does heritage change?” Covering both sets of papers, this discussion is presented at the end of this issue. He has grouped the papers into two themes: ownership and management of archaeological heritage and community-based archaeology. While his discussion highlights both strengths and challenges facing our discipline, Warrick rightfully reminds us that “archaeological heritage is best conserved, examined, and interpreted through collaborative partnerships of archaeologist and community members, in which ownership […] and production of knowledge is shared.”
Acknowledgments
We offer our sincere acknowledgment to the organizing committee and to Lucie K. Morrisset, chair of the 2016 ACHS meetings, for the invitation to participate. The CELAT research centre of Université Laval, Québec, and the Groupe de recherche en archéométrie at Université Laval also generously supported our initiative. We wish to thank all the participants in our session for the lively discussions and for preparing their contributions to these two issues of História: Questões & Debates in a timely manner. Finally, we wish to mention the support we received from the editorial board of História: Questões & Debates while preparing the papers for publication; it has been a wonderful collaboration.
Referências
BAIN, Allison, and AUGER, Réginald. Introduction. História: Questões & Debates, n. 66 (1), 2018, p. 7–9.
WARRICK, Gary, and LESAGE, Louis. The Huron-Wendat and the St. Lawrence Iroquoians: New Findings of a Close Relationship. Ontario Archaeology, n. 96, 2016, p. 133–143.
Réginald Auger
Allison Bain – Professors of Archaeology, CELAT, Université Laval, Québec, QC, CANADA, G1V 0A6. E-mail: allison.Bain@hst.ulaval.ca
BAIN, Allison; AUGER, Réginald. Introduction. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.66, n.2, jul./dez., 2018. Acessar publicação original [DR]
O que o patrimônio muda (I) / História – Questões & Debates / 2018
This collection of papers, featured in two issues of História: questões e debates, is the result of discussions held at the 2016 Association for Critical Heritage Studies (ACHS) conference in Montréal, Canada. Over two days, participants from seven countries and four indigenous nations (referred to as First Nations in Canada) presented a diverse array of papers. These meetings were an appropriate venue to bring together these scholars, as the ACHS strives to study heritage as a field of critical inquiry, challenging more conservative views, while encouraging inclusive, participatory practices. The ACHS Manifesto prepared for the 2012 conference suggests “the integration of heritage… with studies of memory, public history, community, tourism, planning and development… while increasing dialogue and debate between researchers, practitioners and communities.” Furthermore, it seeks to democratise “heritage by consciously rejecting elite cultural narratives and embracing the heritage insights of people communities and cultures that have traditionally been marginalised in formulating heritage policy… thereby including diverse non-Western cultural heritage traditions.”[1] Like many archaeologists, we feel that the ACHS Manifesto expresses how we hope archaeology will evolve as a discipline. Since the 2000s, an increasing amount of scholarship is devoted to decolonising the humanities, encouraging training and collaboration with First Nations (ATALAY, 2006; CHALIFOUX and GATES ST-PIERRE, 2017; LYDON and RIZVI, 2010; SAILLANT et al. 2011), as well as creating a more collaborative, or public, archaeology (see the journal Public Archaeology; MATSUDA and OKAMURA, 2011; MOSHENKA, 2017; SKEATES et al., 2012). While most archaeology is robustly multi-disciplinary, a decidedly Western narrative continues to dominate archaeological practice.
In proposing a session that corresponded to the ACHS 2016 theme What does heritage change? and in the spirit of the ACHS 2012 Manifesto, we argued that archaeology, in going above and beyond the traditional goals of research and post-excavation analyses, may indeed contribute to education and to the creation of identities and communities. Our session began with papers on how the practice of archaeology is managed and legislated. Regardless of planned outcomes, the legislation and management of buried heritage is a key part of the archaeological process. Archaeological sites are managed by multiple forms and branches of legislation at the local, regional, provincial / state, and national levels. Competing and at times conflicting interests, poor funding, and weak legislation may hinder the proper integration of archeological heritage in the planning and management of cities, First Nations lands, outlying regions slated for development, and parklands. Four papers and two case studies present some of these shared challenges while also highlighting archaeological success stories.
Desrosiers’ paper outlines how archaeology is legislated and practiced in the Canadian province of Québec, while Moss discusses management at the municipal level in the city of Québec. They discuss the experiences of archaeologists in a legislative setting that is ambiguous about the roles and responsibilities of different stakeholders. Tanaka’s paper focuses on the complex management of archaeology at the site of Patara, Turkey, and explains how a variety of government bodies apply their specific legislations to the site. The perception of what is an archaeological site has evolved since excavations began at Patara, and Tanaka’s paper grapples with these diverging narratives. Treyvaud and her colleagues from the Abenaki Nation in southern Québec explain the Waban-Aki approach to comanaging cultural heritage and natural resources. Incorporating and exploring a variety of research methodologies, they view archaeology as a means to study the Nation’s past as well as to affirm its presence today.
This volume concludes with the presentation of two case studies. Wang and Nakamura discuss the relatively recent classification of Chinese large-scale archaeological sites and presents us with three examples, while Hesham and Baller focus on Luxor, Egypt, and how archaeology has impacted both the local community and the cultural landscape since the nineteenth century. Their papers propose concrete recommendations for improved management and legislation of these sites that, if applied, would improve the lives of local community members, while also respecting the need to maintain and interpret archaeological sites deemed to be significant symbols of national heritage.
Acknowledgments
We wish to thank all participants in our session and for their lively discussions and their contributions to these volumes. Warm thanks also go to Lucie Morrisset, Université de Québec à Montréal, and the Chair of the 2016 ACHS meetings for the invitation to organize our session. The CELAT research centre of Université Laval, Québec, and the Groupe de recherche en archéométrie at Université Laval generously supported this initiative.
Nota
1. Association for Critical Heritage Studies, 2012 Manifesto, www.criticalheritagestudies.org / history /
Referências
ATALAY, Sonya. Indigenous Archaeology as Decolonizing Practice. American Indian Quarterly, n. 30 (3 / 4), pp. 280-310, 2006.
CHALIFOUX, Éric and Christian GATES ST-PIERRE. Décolonisation de l’archéologie : émergence d’une archéologie collective. Salons Érudit, 2017. salons.erudit.org / 2017 / 08 / 01 / decolonisation-de-larcheologie /
LYDON, Jane and Uzma Z. RIZVI (eds.) Handbook of Postcolonial Archaeology. New York: Taylor and Francis, 2010.
MATSUDA, A., and OKAMURA, K. Introduction: New Perspectives in Global Public Archaeology. In: A. Matsuda and K.Okamura, (eds). New Perspectives in Global Public Archaeology. London: Springer, pp. 1–18, 2011.
MOSHENSKA, G. Key Concepts in Public Archaeology. London: UCL Press, 2017.
SAILLANT, Francine, KILANI, Monder and Florence Graezer BIDEAU, (eds.). Le Manifeste de Lausanne : pour une anthropologie non hégémonique. Montréal, Québec : Éditions Liber, 2011.
SKEATES, Robin, MCDAVID, Carol and J. CARMAN (eds.), The Oxford Handbook of Public Archaeology. Oxford: Oxford University Press, 2012.
Allison Bain – Professors of Archaeology, CELAT, Université Laval, Québec, QC, CANADA, G1V 0A6. E-mail: allison.Bain@hst.ulaval.ca
Réginald Auger
BAIN, Allison; AUGER, Réginald. Introduction.História: Questões e Debates. Curitiba, v.66, n.1, jan. / jun., 2018. Acessar publicação original [DR]
Patrimônio, Identidades e Lugares de Memória / Outros Tempos / 2018
Este número da Revista Outros Tempos inclui o dossiê temático Patrimônio, Identidades e Lugares de Memória, relacionado à XVIII Fábrica de Ideias, realizada em São Luís-MA, de 18 a 31 de março de 2017, e coordenada pelos professores Antonio Evaldo Almeida Barros, Sérgio Figueiredo Ferretti e Livio Sansone.
Com o tema Patrimônio, Desigualdade e Políticas Culturais, a XVIII Fábrica de Ideias consistiu em um seminário internacional de pesquisa e pós-graduação, desdobrando-se também em uma disciplina acadêmica planejada e ministrada de forma interinstitucional, ao mesmo tempo em que foi um seminário com palestras ao público mais amplo. A XVIII Fábrica de Ideias foi resultado de parceria entre a Universidade Estadual do Maranhão, através do Programa de Pós-Graduação em História, a Universidade Federal do Maranhão, por meio dos Programas de Pós-Graduação em Políticas Públicas e em Ciências Sociais, e a Universidade Federal da Bahia, através do Centro de Estudos Afro-Orientais e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos, e ainda o Governo do Estado do Maranhão, representado pela Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação, e pela Secretaria de Igualdade Racial. Desse modo, dos nove artigos reunidos neste dossiê, sete deles foram produzidos por pesquisadores, docentes e discentes de programas de pós-graduação de diferentes instituições do Brasil que participaram da XVIII Fábrica de Ideias.
O dossiê Patrimônio, Identidades e Lugares de Memória inicia-se com o artigo “Confederate Monuments, Plantation-Museums and Slavery: Race, Public History, and National Identity”, de Stephen Small, o qual analisa dezesseis cabanas de escravos que foram incorporadas em três locais de turismo de patrimônio em Natchitoches, no noroeste da Louisiana. Os locais são Oakland Plantation, Magnolia Plantation e Melrose Plantation. O autor destaca a incorporação desses lugares de memória na lógica patrimonial, refletindo como a identidade nacional é expressa e articulada nesses lugares de memória e como tais lugares destacam e questionam a identidade nacional.
Em “O Tempo e o Medo: a longa duração da guerra em Moçambique”, Omar Ribeiro Thomaz dedica-se à percepção da passagem do tempo e o constante medo da desordem que se entrelaçam em narrativas e rumores conectados a diferentes momentos da história de Moçambique. O artigo sistematiza reflexões sobre a guerra e o medo da guerra em terras moçambicanas, fruto de um trabalho etnográfico realizado há quinze anos pelo pesquisador.
Monica Lima traz à discussão questões em torno de um Patrimônio Mundial da Humanidade – o sítio histórico e arqueológico Cais do Valongo –, situado na cidade do Rio de Janeiro. A questão central da autora no artigo “História, Patrimônio e Memória Sensível: o Cais do Valongo no Rio de Janeiro” é o significado deste sítio histórico como um lugar de memória, de memória sensível, do tráfico atlântico de africanos escravizados e seus descendentes nas Américas e, em especial, no Brasil. Ideias como violência, dor, sofrimento são levadas a termo para comparar o Cais do Valongo, espaço de resistência e afirmação de populações negras, a outros lugares do mundo onde também ocorreram tragédias humanas.
“Pensar o Dito e o Silenciado: Representações da Escravidão na Historiografia”, escrito por Celeste Silva Ferreira, debate as transformações historiográficas ocorridas no final do século XX que levaram a uma mudança metodológica no modo como a documentação sobre sujeitos escravizados é analisada. O artigo demonstra como o uso de diferentes fontes históricas, como correspondências oficiais ou pessoais, inquéritos, processos judiciais, testamentos, inventários, jornais e diários, passou a direcionar novos olhares e possibilidades interpretativas a partir das influências da chamada “virada linguística”. Ao abordar a historiografia brasileira sobre escravidão, o texto também enfoca a Lei do Ventre Livre (1871) e as mais recentes interpretações acerca dela.
Fernando Santos de Jesus e Valerie Gruber, em “O Mestre de Capoeira: Fortalecendo Filosofias e Práticas de (Re)Existência Negra perante Desigualdades Sociorraciais”, também tratam de um Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO, o qual contribuiria, em termos políticos mundiais, para a valorização e a visibilização da capoeira como prática de resistência negra brasileira. Diante de um olhar filosófico sobre a capoeira e destacando os saberes próprios dessa prática em articulação com o contexto da desigualdade sociorracial, o artigo trata de ressignificações em face das essencializações que envolvem a capoeira. Numa perspectiva sociogeográfica, os autores defendem a noção de pedagogia da (re)existência negra, através do trabalho do mestre de capoeira, o qual representaria um filósofo diaspórico que cria um espaço de possibilidades para coletividades marginalizadas.
“Tempos de Segregação (1948-94): Ensino de história, Políticas de Memórias e Desigualdades Sociais no Universo do Povo Zulu”, de autoria de Aldina da Silva Melo, tem como enfoque o ensino de história, as políticas de memória, as identidades e desigualdades sociais na África do Sul durante o Apartheid. A coleção de livros didáticos History for Today e algumas imagens e jornais encontrados no arquivo sul-africano Alan Paton Center e na biblioteca pública de Pietermaritzburg constituem as fontes examinadas no artigo, as quais possibilitam tratar das políticas educacionais presentes na África do Sul durante aquele regime, bem como sobre os modos como a(s) identidade(s) zulus foram construídas, pensadas e percebidas no período em questão.
Fábio Henrique Monteiro Silva ocupa-se com as representações do carnaval na capital maranhense entre os anos 1970 e 2000, discutindo as memórias de participantes notáveis dessa festa, através de lembranças de brincantes e organizadores locais. No artigo “Memória e Sensibilidade no Moderno Carnaval de São Luís”, utiliza, ainda, matérias de jornais maranhenses e o debate conceitual no campo da memória, a fim de evidenciar os modos de ver e fazer o carnaval na ilha de São Luís.
Desirée Tozi e André Luís Nascimento dos Santos argumentam que os pareceres e laudos antropológicos que instruíram os processos de tombamento de terreiros pelo Iphan, ao longo dos últimos 30 anos, reproduzem, como referência de “verdade”, as etnografias produzidas sobre os candomblés baianos na primeira metade do século XX. No artigo “História de um Legado: as Etnografias de Religiões de Matrizes Africanas no Discurso Patrimonial”, os autores defendem a tese de que a ausência de um recorte mais preciso e de uma análise mais ficcional dessas obras tem produzido um modelo de terreiro de candomblé que não encontra projeção nos processos de tombamento de terreiros que ainda se encontram em aberto na instituição da salvaguarda do patrimônio cultural brasileiro. O texto conjuga o exame da bibliografia etnográfica sobre terreiros na Bahia à análise de documentos dos processos de tombamento já finalizados pelo Iphan.
O artigo “Narrativas sobre a Cidade: Lembranças e Esquecimentos sobre Grupos Étnicos numa cidade do Rio Grande do Sul”, de Bibiana Werle, discute as representações memoriais contemporâneas do município de Estrela, no Rio Grande do Sul, trazendo à baila as narrativas comemorativas da cidade promovidas pelo governo municipal. A autora utiliza jornais locais e narrativas orais para demonstrar como, historicamente, as diversidades étnicas são apresentadas de forma desigual pelo poder público municipal nos patrimônios culturais do local. Destaca também que a composição étnica de Estrela foi marcada por conflitos identitários durante o Estado Novo (1937-45), o que configurou a produção de monumentos que apagam e excluem outras memórias.
Antonio Evaldo Almeida Barros e Viviane de Oliveira Barbosa apresentam o artigo “Estudos Africanos e Afro-Brasileiros em Perspectiva Extensionista”. Trata-se de um estudo de caso que enfoca um conjunto de programas e projetos de extensão universitária voltados para o campo dos Estudos Africanos e Afro-Brasileiros, particularmente, do Ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileiras, e para o âmbito da Educação para as Relações Étnico-Raciais, executados entre 2010 e 2018, no Estado do Maranhão, em parceria com secretarias de governos municipais e estaduais, e organizações da sociedade civil. Os autores partem do reconhecimento de que a instituição universitária tem sido mais inclinada a discursos e ideias do que a práticas, muito menos práticas de transformação social e que, a extensão, que ao lado da pesquisa e do ensino, constitui um dos pilares da universidade, tem a vocação prioritária de promover a interação entre a universidade e a sociedade. Para os autores, as ações de extensão executadas buscaram promover, sobretudo a partir de uma perspectiva humanista, a igualdade racial, e foram desenvolvidas considerando a relevância da história e das sociedades africanas para a formação do mundo contemporâneo e da humanidade, e as sinergias históricas existentes entre África e Brasil, enquanto territórios complexos e mutuamente interligados. Antonio Evaldo A. Barros e Viviane de O. Barbosa argumentam ainda que as ações de extensão executadas fundamentaram-se na possibilidade de construção de uma democratização epistemológica, buscaram alertar para o fato que o silêncio e a omissão comumente sustentam o preconceito e a discriminação na escola, bem como pretenderam evidenciar a história e cultura africana e afro-brasileira como ocasião privilegiada para se observar uma variedade de experiências sociais que apontam para a abertura ao mundo, à vida, para a inclusão e não a exclusão do outro, para a solidariedade na história.
O entrevistado desta edição é o Prof. Dr. Ibrahima Thiaw, um dos maiores especialistas em História e Arqueologia Africanas na atualidade. Thiaw é graduado em História (Universidade Cheikh Anta Diop, Dakar, Senegal, 1990 / 1), mestre em Etnologia e Sociologia Comparativa (Universidade de Paris-Nanterre, França, 1992) e em Antropologia (Universidade Rice, Houston, USA, 1995), e doutor em Antropologia / Arqueologia (Universidade Rice, Houston, USA, 1999). É professor da Universidade Cheikh Anta Diop e diretor do Institut Fondamental d’Afrique Noire (IFAN), com pesquisas no campo da arqueologia dos encontros globais, sobre os impactos do Atlântico e do Saara nas sociedades, processos de escravização e tráfico de escravizados, comemorações e políticas culturais. Destaca-se por seu envolvimento no trabalho de reconhecimento da Ilha de Goré como Patrimônio Mundial da Humanidade e por seu envolvimento em projetos sobre patrimônio no Senegal e em outros países africanos, como Guiné, Guiné-Bissau, Serra Leoa, Burkina Faso e Congo. Nesta entrevista, concedida a Viviane de Oliveira Barbosa, o professor Ibrahima aborda sua inserção acadêmica, seus interesses e projetos de pesquisa, especialmente em torno das políticas culturais e patrimoniais e dos lugares de memória.
A resenha deste número é intitulada Memória Política entre Silêncios e Narrativas: Transição democrática no Brasil e na África do Sul, de autoria de Wendell Emmanuel Brito de Sousa, e realizada a partir de leitura crítica do livro “Democracia e Estado de Exceção: Transição e Memória Política no Brasil e na África do Sul”, escrito por Edson Teles e publicado pela Editora Fap-Unifesp, em 2015. Wendell Sousa demonstra que o livro é fruto da tese de doutoramento defendida no ano de 2007 na Universidade de São Paulo e resulta, também, de anos de militância política e engajamento por parte do autor nas questões que envolvem os direitos humanos. Wendell Sousa entende que a obra sedimenta reflexões no campo da filosofia política, tratando sobre os (ab)usos da memória na assunção das novas democracias no Hemisfério Sul, ante a herança autoritária da ditadura militar no Brasil e do apartheid na África do Sul. Utilizando um método comparativo, o autor do livro analisa os casos brasileiro e sul-africano na tentativa de compreender os sentidos do passado, o que faria de sua análise algo além da filosofia política e próximo à História Social das Ideias, devido à análise contextual e atuação dos agentes nos processos de consolidação das novas democracias no Hemisfério Sul.
Este número da Revista Outros Tempos é composto também de três produções na sessão de artigos livres. O primeiro deles, “Migrações Internas e Conexões Sociais em um Contexto Colonial: Trajetórias de Imigrantes Portugueses na Vila de Paranaguá (décadas de 1770-1790)”, de André Luiz Moscaleski Cavazzani, investiga as formas de inserção de três imigrantes portugueses na vila paulista de Paranaguá, entre as décadas de 1770 e 1790, com ênfase nas formas de absorção de portugueses à vida social de uma vila colonial situada no extremo sul da Capitania de São Paulo. O autor sistematiza quatro argumentos em seu artigo: havia ocasiões nas quais o estabelecimento na vila de Paranaguá por um imigrante português era decorrente do insucesso da iniciativa de fixar-se em praça mercantil de maior porte; os portugueses radicados em Paranaguá possuíam conexões sociais e comerciais em distintas áreas do litoral Sudeste, notadamente a cidade do Rio de Janeiro; a manutenção dessas conexões criava uma dinâmica de absorção de caixeiros à vila de Paranaguá; e a constituição de vínculo com um compatrício era operacional para o jovem reinol enraizar-se na sociedade receptora.
No segundo artigo, de título “Raimundo José de Sousa Gaioso e os 200 Anos da Publicação do Compêndio Histórico-Político dos Princípios da Lavoura do Maranhão (1818): Notas Bibliográficas”, Romário Sampaio Basílio apresenta e analisa traços biobibliográficos acerca do português Raimundo José de Sousa Gaioso, autor da obra Compêndio históricopolítico dos princípios da lavoura do Maranhão, publicada, postumamente, em 1818, e vista como uma das mais importantes publicações sobre o Maranhão do primeiro quartel do século XIX.
Por fim, no artigo de Joseanne Zingleara Soares Marinho, “As Políticas Públicas de Proteção da Saúde Materno-Infantil no Piauí (1930-1945)”, é feita uma discussão sobre a administração dos poderes públicos piauienses a partir da criação de legislação e de órgãos de assistência à saúde de mães e crianças, entre 1930 e 1945. Objetivando demonstrar como a questão da saúde materno-infantil passou a ser tratada como responsabilidade do Estado, a autora utiliza um corpus documental composto de mensagens do governo do Piauí, de legislação estadual e de artigos de jornais impressos.
Acreditamos que este é um número com ricas produções e esperamos que todos(as) tenham uma ótima leitura!
Viviane de Oliveira Barbosa
Omar Ribeiro Thomaz.
BARBOSA, Viviane de Oliveira; THOMAZ, Omar Ribeiro. Apresentação. Outros Tempos, Maranhão, v. 15, n. 26, 2018. Acessar publicação original [DR]
História Regional, patrimônio e arquivo | Outras Fronteiras | 2017
Os debates historiográficos sobre História Regional, patrimônio e arquivos nos instigam a repensar várias questões sobre a escrita da história. Para realizar uma brevíssima reflexão sobre as temáticas desta natureza, irei me valer das discussões empreendidas pela micro-história ou microanálise1, enquanto campo metodológico que nos oferece amplas possibilidades a partir do jogo de escalas2.
Jacques Revel observa que a redução de escala e a escolha por uma análise que tem como fio condutor histórias individuais ou de grupos familiares possibilita outra leitura do social3 . Para Giovanni Levi4, uma análise exaustiva da documentação oferece pistas que viabilizam articulações mais amplas, instigando os historiadores a formularem questões que possam transitar neste jogo entre o micro e o macro, não apenas para a construção de uma simples interpretação, mas para formular explicações históricas sobre uma sociedade. Leia Mais
Patrimônio, pesquisa e cidadania / Revista do Arquivo Público Mineiro / 2015
O Dossiê deste volume celebra os 120 anos do Arquivo Público Mineiro (APM). Essa comemoração não só destaca os múltiplos significados dos arquivos públicos na sociedade contemporânea, como também propõe um momento de reflexão a respeito dos desafios enfrentados e a forma de superá-los. São quatro os textos que remetem a esses tópicos.
O primeiro artigo aborda, em seus desdobramentos, a construção da atual sede do APM e do prédio anexo. A história custodial do acervo, como costuma ocorrer, não foi linear. Recolhido em 1895, o acervo da instituição permaneceu alguns anos na casa de seu criador, José Pedro Xavier da Veiga, sendo, depois, deslocado para Belo Horizonte, nova capital mineira desde 1897. Nesta cidade, vários foram os locais que serviram de sede para o APM, sempre enfrentando o desafio – como revela Mariana Bracarense, autora desse texto – de ampliar os espaços para o depósito dos valiosos fundos e coleções. Leia Mais
Práticas de Memória, Patrimônio e Ensino de História / História Hoje / 2014
Por que seguir pensando, hoje em dia, nas conexões entre práticas de memória, patrimônio e Ensino de História?
Este dossiê propõe – para o público em geral e especialmente para professores e educadores – reflexões orientadas à qualificação do debate acerca dos modos plurais de interpretar, provocar experiências e buscar modos de significação do patrimônio material e imaterial diante da desafiadora tarefa de ensinar História na contemporaneidade. Trata-se de algo que, para nós, suas organizadoras, envolve o enfrentamento de uma discussão crivada pelas práticas de memória que ensejam sentidos múltiplos aos bens culturais no Ensino de História. Partimos, para concebê-lo, de uma aposta teórica central: a de que o saber histórico escolar não se faz só a partir da operação histórica, mas exatamente no espaço limiar, estabelecido por trânsitos e passagens, entre a História e a Memória. Leia Mais
Meio Ambiente, Museus e Patrimônio / História (Unesp) / 2013
O presente número da revista História (São Paulo) traz aos leitores o dossiê Meio ambiente, museus e patrimônio. Organizado com a colaboração do Dr. Paulo Henrique Martinez, da UNESP, o conjunto de artigos oferece diferentes perspectivas de temáticas que cada vez mais têm chamado a atenção dos estudiosos e da sociedade no Brasil e no mundo.
Regina Horta analisa o estimulante diálogo entre o historiador ambiental e a sociedade civil em face dos desequilíbrios ecológicos da atualidade. José Luiz de Andrade Franco aborda a formação do conceito de biodiversidade e a emergência da biologia da conservação por meio de obras, de eventos e da trajetória de pesquisadores. A interação entre a sociedade e a natureza no passado é investigada por Marcelo Lapuente Mahl no contexto da expansão cafeeira no Noroeste Paulista, mediante publicações, fotografias e ilustrações do período. A intervenção institucional e social nos espaços públicos urbanos, com a finalidade de preservar a natureza e promover a cultura, é um desafio dos mais urgentes das cidades brasileiras e objeto de estudo de dois outros trabalhos. No primeiro, três autores – Marta Mantovani, Raquel Glezer e Paulo Massabki – abordam o complexo gerenciamento de um museu universitário de ciências dentro de uma área de preservação ambiental da cidade de São Paulo. No segundo, Luiz Henrique Assis Garcia analisa a implantação de um parque público em Belo Horizonte e as ações ecológicas e culturais ali desenvolvidas.
Na seção de artigos livres, um conjunto variado de temas é abordado de forma original. As relações médico – cientificas entre o Brasil e a Alemanha são sistematizadas por Jaime Benchimol com vistas a compreender as redes e a circulação de saberes em escala transnacional, assim como a conversão do país europeu em modelo das práticas médicas brasileiras, de meados do Oitocentos até a Primeira Guerra Mundial. O trabalho seguinte, escrito a três mãos – Agnaldo Valentin, José Flávio Motta e Iraci del Nero da Costa – propõe uma inovadora metodologia de análise demográfica para o estudo de inventários post mortem, tomando como exemplo duas localidades do interior de São Paulo durante o século XIX. O texto de Victor A. de Melo se debruça sobre um costume esquecido, as touradas, uma prática do Brasil colonial herdada dos colonizadores ibéricos, que despertou polêmicas no Rio de Janeiro do final do Império, quando as posições favoráveis e condenatórias se cruzaram com as mudanças políticas e culturais nacionais. O Estado Novo, regime a respeito do qual tudo parece ter sido dito, merece uma interessante análise de Adriano Codato em torno do papel das Interventorias Federais no exercício do controle político dos estados pelo governo Vargas. O último dos artigos, de Maria Carmen G. M. de Oliveira, analisa como a monja alemã Hildegard de Bingen desenvolveu um imaginário da salvação da alma em uma de suas obras, Scivias, no contexto do reformismo papal do século XII.
Na seção de resenhas, são apreciados livros recentes que tratam de Francisco Adolfo de Varnhagen, da história ambiental e das civilizações da antiguidade.
Os editores
Editores. Apresentação. História (São Paulo), Franca, v.32, n.2, 2013. Acessar publicação original [DR]
História, memória e patrimônio / Historiae / 2012
Neste número a Historiæ traz ao seu público leitor o Dossiê “História, memória e patrimônio”, abordando prismas diversificados a respeito do tema, tal como foi a proposta fundamental do encontro da ANPUH-RS, neste ano de 2012. A articulação de debates envolvendo as inter-relações entre a ciência histórica, a memória e o patrimônio trazem à tona uma das mais importantes interfaces da contemporaneidade em relação ao papel social do historiador, bem como no que tange à regulamentação de sua profissão.
Dessa maneira, o referido Dossiê reflete muito das discussões travadas durante o Encontro Estadual de História, a mais importante dentre as atividades científicas organizadas pela ANPUH-RS. Tal evento é realizado bienalmente, nos anos pares, contando com um tema central escolhido de acordo com a pertinência historiográfica e social. Nesse sentido, o XI Encontro Estadual de História ocorreu entre os dias 23 e 27 de julho de 2012, nas dependências da Universidade Federal do Rio Grande, tendo por escopo principal “História, memória e patrimônio”.
A Revista publica também artigos independentes que trazem variadas abordagens de natureza histórica, envolvendo temas como a imprensa, o trabalho, o livro didático, a política, o ambiente e o ensino. Compõe também este número uma resenha a respeito de obra voltada à formação histórica latino-americana.
Com o volume 3 / número 3, a Historiæ – Revista de História da Universidade Federal do Rio Grande continua em sua empreitada de promover uma ampla divulgação da produção acadêmico-científica e cultural voltada aos estudos de cunho histórico promovidos mormente no meio universitário.
Francisco das Neves Alves – Presidente do Corpo Editorial
ALVES, Francisco das Neves. Apresentação. Historiae, Rio Grande- RS, v. 3, n. 3, 2012. Acessar publicação original [DR]
Elementos materiais da cultura e do patrimônio / Varia História / 2011
Pensar sobre a materialidade e não apenas
a cultura material é um bom ponto de partida.
Arjun Appadurai[1]
As coisas existem e exigem gestos. O homem as inventa, as torna úteis e elas participam de sua sobrevivência e atendem às suas necessidades. Elas são por ele manipuladas como instrumentos de vivência, mas dele requerem gestos artesanais: as técnicas. As coisas conformam a materialidade da cultura, mas, também, são conformadas por significados que vão além de sua concretude. Elementos materiais de nossa cultura e a relevância de seus significados identitários são os objetos de reflexão do presente Dossiê. Se campo ou abordagem, se domínio ou enfoque, se plataforma ou subdisciplina, a tradicionalmente denominada cultura material é objeto importante da história e aqui é tratada como fundamental perspectiva de análise da história social da cultura em uma dimensão pluridisciplinar que articula materialidade, imaginário, simbologia, gestualidade, identidade.
O presente Dossiê, Elementos materiais da cultura e patrimônio, além de tudo, busca focar os elementos materiais da cultura como documentos de realidades sociais, não como reflexos destes, mas integrados à sua construção. Os objetos, assim, não são apenas fetiches ou simples detentores de sentidos sociais deslocados de seus usos. Como quer Vânia Carvalho,
o artefato, como qualquer documento, deve ser compreendido na sua intertextualidade, ou seja, dentro de um conjunto amplo de enunciados que dão sentido, valor, induzem e instrumentalizam as práticas.[2]
Temáticas ligadas à cultura material têm sido recorrentes no campo da História, a cada tempo e em cada lugar privilegiando temas vinculados à arte, às técnicas, aos significados sociais do cotidiano, à domesticidade ou à vida privada, às condutas comerciais, aos processos alimentares, aos consumos do homem etc. Embora não haja efetividade na busca de propostas definitivas de conceituação do termo, ele sempre aparece como uma nova possibilidade do fazer historiográfico. Optando pela obviedade (parâmetro que não pode ser negligenciado na temática da materialidade da cultura), resumiríamos que cultura material é o complexo e dinâmico repertório do que os homens são capazes de produzir, fazer circular e consumir. Tais dimensões das ações não apenas sinalizam a(s) funcionalidade(s) da criação humana, como também denotam os diferentes significados atribuídos a um dado artefato por uma comunidade e / ou sociedade ao longo do tempo.
O conjunto de textos deste dossiê busca subsidiar as reflexões sobre a temática e objetiva mostrar a amplitude de suas perspectivas nos estudos históricos. Tem como objeto os elementos materiais da cultura – expressão mais condizente com uma proposta de que o homem, ao construir culturas, faz coisas concretas e essas são dignas de serem historiadas, oferecendo possibilidades de construírem-se como manifestações sociais identitárias que nomeamos de patrimônio cultural – material e imaterial. Essa última expressão vem nomeando os valores, os símbolos, os modos de fazer e as técnicas decorrentes dessa materialidade da vida. A nosso ver, no entanto, não podem ser dissociados dela. Não há, a rigor, uma cultura que se possa cindir entre o material e o imaterial. O chamado patrimônio imaterial é, sendo mais rigoroso, patrimônio vivencial ou experencial.
Partimos do pressuposto de que os historiadores podem tomar os elementos concretos da cultura, em si mesmos, como expressão social, na dinâmica dos interesses econômicos, das convicções ideológicas; como representações sociais de valores e de símbolos de relevâncias humanas. Cada um deles pode ser compreendido no bojo das relações sociais que os produzem. Concebidos, pois, como matéria da História, os elementos materiais da cultura tornam-se objeto de estudo e análise histórica, ou seja, permitem ao historiador compreendê-los e explicá-los integrados e conformados nas relações sócio-culturais de uma dada realidade histórica.
A recorrência da temática no campo da história e das outras ciências sociais permite novos e enriquecedores enfoques, mas, apenas para ficarmos no último século, nos remete aos trabalhos de Fernand Braudel, Sérgio Buarque de Holanda, Giovanni Levi, Daniel Roche e tantos outros e, mais recentemente, aos estudos acerca do crescente e dinâmico consumo de produtos pelas sociedades a partir do século XVII, sem esquecer que consumos nos indicam, também, gostos, distinções sociais, estratégias de sociabilidade e de poder, como são exemplos os textos de John Brewer, Roy Porter, Lorna Weatherill, Woodruff D. Smith, Jan de Vries, Mary Douglas, Marshall Sahlins, Colin Campbell, Deyan Sudjic, Daniel Miller, Pierre Bourdier e Arjun Appadurai, só para citar alguns.[3]
Como nos atenta Daniel Roche, lembrando a reflexão de Karl Gottlob Schelle ao buscar “reconciliar a filosofia com o cotidiano”, é preciso especular sobre “os objetos da vida” e buscar a compreensão das nossas relações com as coisas e de nossas mediações com os objetos e com o mundo.[4] Para o autor, a noção de cultura material, pouco definida, “permite aos historiadores de qualquer período e de qualquer área cultural relacionar um conjunto de fatos marginais em relação ao essencial, o político, o religioso, o social, o econômico”, possibilitando perceber as “adaptações” que os homens fazem ao viver, “através das quais o natural se revela fundamentalmente cultural”.[5]
As coisas e os objetos da fatura humana não podem ser dissociados das realidades vividas.[6] Na História, teóricos marxistas construíram as primeiras tentativas conceituais para expressar tal relação como cultura material. Tentaram delimitar seu campo para a história posicionando seus limites nos meios de trabalho (o homem e os utensílios), no objeto do trabalho (as riquezas materiais, as matérias primas), na experiência humana nos processos de produção (as técnicas), na utilização dos produtos materiais (o consumo), como se posicionou Henri Dunajewski. Também firmaram outra percepção, simplificando esse esquema anterior e restringindo o campo da cultura material, às condições naturais e às modificações que o homem imprime ao meio, gerando produtos, como definiu Jerzy Kulczyski.[7] Ao pensar elementos materiais na construção das culturas não podemos nos restringir ao campo das técnicas, mesmo entendendo a expressão braudeliana de que “tudo é técnica”.[8] As relações humanas nos usos de seus objetos de sobrevivência e de produção, são mais que os artifícios técnicos. Como quer André Leroi-Gourhan, “Nunca se tinha pensado que quem possui o fuso conhece também o movimento circular alternado e que quem utiliza a roda de fiar utiliza também o moinho e o torno do oleiro”.[9] Diríamos, parafraseando Braudel, que tudo é ação humana e que as técnicas são indissociáveis das ações / relações. Ele próprio completa a sua conclusão anterior exprimindo que “A técnica nunca anda só”.[10]
Podemos distinguir a materialidade da cultura das representações mentais e do pensamento religioso, político, filosófico, artístico, da construção linguística etc, mas não podemos separá-los, tratá-los na individualidade redutiva. Advém dessa premissa, evitarmos a expressão cultura material e adotarmos elementos materiais da cultura, do mesmo modo que estranhamos acima a ideia de uma cultura material e de uma cultura imaterial, separadas em didatismo simplificador. No processo de vivência, ou de outra forma, na dinâmica das experiências humanas ao viver, tudo é cultura, intrinsecamente compondo repertórios de construções de realidades.
Nesses termos, a pesquisa histórica objetiva, não apenas a descrição dos objetos e das técnicas em um processo temporal de mudanças e de permanências, mas a interpretação de realidades sociais que os usam, distintas no tempo. Como quer Daniel Roche:
Os objetos, as relações físicas ou humanas que eles criam não podem se reduzir a uma simples materialidade, nem a simples instrumentos de comunicação ou de distinção social. Eles não pertencem apenas ao porão ou ao sótão, ou então simultaneamente aos dois, e devemos recolocá-los em redes de abstração e sensibilidade essenciais à compreensão dos fatos sociais.[11]
A compreensão dos fatos sociais a partir de sua materialidade é, enfim, o objeto de reflexão dos textos aqui apresentados.
Os elementos materiais de qualquer cultura denotam a construção cotidiana da vida e, assim, têm sido objetos da história do cotidiano. Não apenas os hábitos de consumo e os produtos e serviços feitos e consumidos, mas os significados atribuídos a todas as ações do ser humano e aos instrumentais por ele inventados na relação com o mundo natural, na busca da sobrevivência, no atendimento das suas necessidades, na construção dos gostos, na edificação do repertório de sua cultura. Materialidade e imaterialidade são inseparáveis na análise desse repertório, mesmo que distinguíveis entre si.
O aumento da gama de produtos a que a população tem acesso a partir do processo de contato globalizado da modernidade tem estimulado, no âmbito dos estudos históricos, as reflexões temáticas sobre os elementos materiais da cultura. No entanto, a materialidade de períodos históricos anteriores, também, motiva estudos em perspectivas e enfoques novos.[12]
Esses artefatos da vida são cada vez mais numerosos, complexos e produzidos em velocidade cada vez mais acelerada. A conservação desses objetos no tempo – através do uso e da guarda memorialística, associada aos significados e aos valores a eles atribuídos, evidenciando formas de viver, de manifestar saberes e fazeres, de memorizar sentidos e condutas que não se querem esquecidas, enfim, um acervo de coisas e de gestos, de vivências -, configura patrimônios e formas de patrimonialização, a outra vertente, neste Dossiê, de nosso olhar sobre a materialidade da cultura.
Vivemos um tempo de padronizações de processos interpretativos da cultura que culminam em pasteurizações empobrecedoras da diversidade cultural. Paradoxalmente, os registros do dito patrimônio imaterial suscitam a ampliação do conceito de patrimônio cultural, mas, por outro lado, estimulam um esquadrinhamento didático que reduz a visão sobre a complexidade dinâmica das culturas. Linguagens interpretativas e museológicas tornam-se, assim, um campo de saber exigente e requerem criatividade que ressalte tal dinamicidade e diversidade. Legislações de salvaguarda e práticas educativas exigem igual criatividade. Caso contrário, teremos um gestual interpretativo das manifestações de cultura a negar tal diversidade. No caso da preservação de patrimônios urbanos o risco de homogeneidade é claro e já mensurável e, como critica Henri-Pierre Jeudy segue a mesma fórmula de patrimonialização, estetização, espetacularização, padronização e gentrificação.[13] No Brasil temos exemplos dessa “globalização” empobrecedora, onde as singularidades locais foram extintas, em nome de uma estética urbana uniformizada que atende a um gosto equilibrado / massificado.
As contribuições textuais a este Dossiê, a cujos dedicados autores agradecemos, são exemplos claros dessa diversidade de olhares sobre a materialidade de nossas vivências na história. Em um eixo que traça um percurso de reflexões teóricas e temáticas e que objetiva pensar objetos como bens materiais e identitários e suas formas de constituir riquezas, saberes, consumos, gostos, técnicas e, também, memórias, os textos promovem um diálogo essencial, na medida em que suas leituras ajustam sintonias e promovem embates de pensamentos diversos.
Os artigos dos convidados percorrem um eixo que integra padrões metodológicos e narrativas interpretativas, com problemáticas muito presentes na atualidade: a construção de riquezas familiares, as práticas alimentares, a domesticidade, os processos interpretativos do patrimônio e de musealização, os saberes tradicionais, os usos da água, a educação patrimonial e a leitura documental do historiador. Todos eles discutem a investigação temática e os problemas frente às fontes da materialidade da cultura ou as linguagens memorialísticas do processo de patrimonialização e de musealização.
Em sequência, Legados de um passado escravista: cultura material e riqueza em Minas Gerais, de Cláudia Eliane Parreira Marques Martinez, associa a investigação sobre a materialidade e a riqueza, como estratégia para a compreensão da sociedade escravista diante do fim da escravidão. O problema investigado é a re-organização da riqueza e dos padrões materiais no pós-1888. Seguindo os passos de Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses, a autora lê os Inventários post mortem como possibilidades de “inflexão no circuito da vida social do artefato”.
Cultura material, espaço doméstico e musealização, de Vânia Carneiro de Carvalho, é um estudo das dimensões materiais da vida social e suas formas de expressão no processo curatorial no museu histórico. O museu é visto pela autora como um instrumento estratégico para fomentar as investigações sobre o espaço doméstico e este é tomado “como um lugar fértil para a incorporação das formas de distinção social e de gênero por meio do uso de objetos”.
Em Cultura, história, valores patrimoniais e museus (Culture, histoire, valeurs patrimoniales et musées), Dominique Poulot reflete sobre as diferentes formas de apropriação da ideia de patrimônio no mundo moderno, a partir do século XVIII. Para o autor, o termo patrimônio tem, na atualidade, grande poder de evocação e os museus de história são lugares onde essa evocação parece acompanhar o fluxo da produção contemporânea de artefatos. O museu, lugar exemplar de interpretação histórica e formal específica, conforma diferentes formas de problematizar o passado material, onde a materialidade e a inteligibilidade de seu contexto andam juntas.
Maria Eliza Linhares Borges nos apresenta em Cultura dos ofícios: patrimônio, história e memória, um ethos fundado em formas artesanais de produção e em suas estratégias de regulação, transmissão de saberes, expressão de valores, crenças, comportamentos e sociabilidades que, frente aos modos industriais de produção, tornam-se “pitorescos” e jogados à sombra pelos museus e pela cultura visual. Para a autora, a memória dessa cultura é idealizada “porque saudosista e nostálgica”, mas reconhece que o “tempo gramatical da Cultura dos Ofícios foi mais longo do que se imagina”.
Em A patrimonialização dos saberes técnicos, entre história e memória: o caso dos depósitos de invenção na França e na Inglaterra (La patrimonialisation des savoirs techniques, entre Histoire et Mémoire: le cas des dépôts d’invention en France et Angleterre au XVIIIe siècle), Liliane Hilaire-Pérez trata da tensão entre História e Memória no processo de patrimonialização dos saberes e do papel dos “depósitos legais” que, a partir do século XVIII, inauguram nova forma de pensar o patrimônio, distinta daquela das coleções, gabinetes e museus. A autora, refletindo sobre casos concretos de uma prática nova na França e na Inglaterra, contrapõe um novo direito na economia do conhecimento e nos mercados de inovação técnica com o papel memorialístico da guarda de saberes e de sua importância como leitura das identidades de comunidades técnicas novas, mesmo com a participação das tradicionais corporações de ofícios.
Jaime Rodrigues, na linha de uma história social da alimentação que considera integrados a produção, o consumo e a construção do gosto, analisa o impacto da industrialização, da renda familiar e da propaganda na tradição alimentar paulistana no século XX. Seu texto, Uma história das práticas alimentares de trabalhadores paulistanos em dois momentos do século XX, tem como problema as relações entre culinária e memória, sobretudo no âmbito familiar, analisando-as pelos seus vestígios materiais – a materialidade dos próprios alimentos, de suas embalagens e de suas peças promocionais – e simbólicos.
O desenho e a história da técnica na Arquitetura do Brasil colonial é o texto de Marcos Tognon que propõe aos historiadores um conjunto de procedimentos para explorar os valores artísticos e técnicos dos desenhos como importantes registros documentais. Como fontes, essas “representações” são, para o autor, linguagens capazes de referenciar claramente as mais distintas realidades arquitetônicas. Assim, propõe quatro abordagens que contrapõem o plano artístico e a materialidade cotidiana das edificações.
O artigo de Jesús Raúl Navarro García, Salud y Paisaje: contribución desde el Termalismo a la revitalización de zonas rurales (El caso de Pozo Amargo, cuenca del Guadaira, España), apresenta um processo de interpretação do patrimônio paisagístico (natural) e material (cultural) ligado ao uso da água em instalações termais, onde ação governamental e cidadã se integram em projeto econômico. Historia essa materialidade integrada à paisagem, desde o século XVIII, numa tradição de ligar o ócio à “recuperação anímica” dos visitantes do lugar. O texto nos trás importante reflexão sobre o conceito de paisagem e as teorias acerca de seu papel como patrimônio histórico-cultural, contrapondo suas dimensões natural-hidrológica, cultural, utópica, arquitetônica, material. É, enfim, a interpretação histórica de uma ideia de bem-estar que harmonizava homem e paisagem, como propugnava o geógrafo anarquista Élisée Reclus.
A presença de estudantes: o encontro de museus e escola no Brasil a partir da década de 50 do século XX é o texto de Paulo Knauss que interpreta as raízes da renovação do debate sobre museus e educação a partir de experiências de 1950 e de anos anteriores, como no caso da criação do Museu Histórico Nacional, em 1922, e o do Museu Mariano Procópio, na cidade de Juiz de Fora, que se distinguem dos “museus de ciência” criados no século XIX. Knauss mostra como a questão da relação entre museus e educação contribuiu para renovar o conceito de museus e o perfil dos profissionais de museus no Brasil. As fontes de análise do autor são os textos produzidos por intelectuais do período, ligados aos museus históricos, publicados como livros ou artigos em revistas e que têm como tema a museologia como instrumento educativo da juventude. Nessa história dos museus brasileiros no século XX, o autor percebe a busca do encontro das instituições museológicas e de educação e a força crescente de um diálogo inevitável.
Os homens constroem coisas, seus nomes e gestos que as colocam como instrumentos. Além de tudo, como afirma o dito popular, se tem nome é porque a coisa existe. Inspirado nessa premissa banal articulamos no Dossiê que se apresenta a força temática e documental dos elementos materiais da cultura e do patrimônio cultural com o instrumental de memórias, imaginários, simbologias, técnicas e gestualidades. Seguimos com isso, a tradição das Ciências Humanas e temos a expectativa da crítica dos leitores.
Belo Horizonte, julho de 2011.
Notas
1.Em entrevista concedida à Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.23, n. 45, p187-198, janeiro-junho, 2010.
2.CARVALHO, Vânia Carneiro de. Gênero e cultura material: uma introdução bibliográfica. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v.8-9, p.293-324, 306, 2000-2002. Ver também REDE, Marcelo. Estudos de cultura material: uma vertente francesa. Museu Paulista, São Paulo, v.8-9, p.281-291, 2000-2002.
3. Para citar algumas obras que nos remetem a essa perspectiva de análise histórica: BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVIII. São Paulo: Martins Fontes, 1995. 3 vols.; HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1994; LEVI, Giovanni. A herança imaterial. Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000; ROCHE, Daniel. História das coisas banais. Nascimento do consumo nas sociedades do século XVII ao XIX. Rio de Janeiro: Rocco, 2000; a edição organizada por BREWER, John e PORTER, Roy. (eds.) Consumptions and the world of goods. London-New York: Routledge, 1994, com textos de Jean-Christophe Agnew, Joyce Appleby, T.H. Breen, John Brewer, Peter Burke, Colin Campbell, Patricia Cline Cohen, David Cressy, Jan de Vries, Cissie Fairchilds, C.Y. Ferdinand, Iaroslav Isaievych, Sidney Mintz, John Money, Chandra Mukerji, Jeremy D. Popkin, Roy Porter e Simon Schaffer; WEATHERILL, Lorna. Consumer behaviour and material culture in Britain, 1660-1760. New York: Routledge, 1996; SMITH, Woodruff D. Consumption and the making of respectability. 1600-1800. New York: Routledge, 2002; DE VRIES, Jan. The industrious revolution: consumer behavior and the household economy, 1650 to the Present. Cambridge: Cambridge University Press, 2008; APPADURAI, Arjun. (org.) A vida social das coisas. Niterói: EdUFF, 2008.
4. ROCHE, Daniel. História das coisas banais. Nascimento do consumo nas sociedades do século XVII ao XIX. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p.11.
5. ROCHE, Daniel. História das coisas banais, p.12-13.
6. PESEZ, Jean-Marie. História da cultura material. In: LE GOFF, Jacques. A História Nova. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p.177-213, 186.
7. PESEZ, Jean-Marie. História da cultura material, p.188.
8. BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo, p.303.
9. LEROI-GOURHAN. Cf. PESEZ, Jean Marie. A história da cultura material. In: LE GOFF, Jacques, CHARTIER, Roger e REVEL, Jacques. A Nova História, p.124.
10. BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo, p.397.
11. ROCHE, Daniel. História das coisas banais, p.13.
12. Como por exemplo, estudos sobre alimentação, família e patrimônio no mundo antigo e medieval, como, dentre outros, podemos citar REDE, Marcelo. Família e patrimônio na antiga Mesopotâmia. Rio de Janeiro: Editora Mauad X, 2007.
13. JEUDY, Henri-Pierre. Espelho das cidades. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005. Este livro traduz e conjuga dois estudos do autor: La machinarie patrimoniale e Critique de l’esthetique urbaine. Embora contextualizado em uma realidade europeia da última década do século XX e primeira do XXI, as reflexões têm validade para a problemática das políticas de patrimonialização no Brasil.
José Newton Coelho Meneses – Departamento de História. UFMG. E-mail: jnmeneses@uol.com.br. Organizador
MENESES, José Newton Coelho. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.27, n.46, jul. / dez., 2011. Acessar publicação original [DR]
Patrimônio e Memória / Esboços / 2011
Patrimônio e memória da escravidão atlântica – História e Política / Tempo / 2010
O Dossiê Patrimônio e Memória da Escravidão Atlântica começou a ser planejado há quase dois anos, quando eu voltava de um estágio de pós-doutorado na França, onde tive a oportunidade de participar com Bogumil Koss Jewsiewicki na iniciativa de organizar o primeiro “Festival Internacional do Filme de Pesquisa sobre Patrimônio e Memória da Escravidão Moderna”.1 Como titular da cátedra de história comparada da memória na Universidade de Laval, no Canadá, Jewsiewicki mantinha em Paris um importante seminário sobre história da memória na EHESS (Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales), em conjunto com Philippe Joutard, da Universidade de Aix-en-Provence. Desde 1994, eu desenvolvia no Laboratório de História Oral e Imagem o projeto de documentação e pesquisa Memórias do Cativeiro, que já havia dado origem a um livro, com Ana Lugão Rios2, diversos acervos audiovisuais abertos à consulta (www.historia.uff.br / jongos) e dois filmes: Memórias do Cativeiro e Jongos, Calangos e Folias, desenvolvidos em parceria com Martha Abreu.3 Tive a oportunidade de discutir os filmes e demais resultados do projeto junto ao Centre d’Etudes du Brésil et de l’Atantique Sud, da Universidade de Paris IV e ao CRBC – Centre de Recherche du Brésil Contemporain e ao CIRESC – Centre International de Recherche sur les Esclavages, na EHESS. O festival do filme de pesquisa surgiu de certa forma da rede então constituída e marcou, para mim, o início de uma reflexão comparada sobre história da memória da escravidão nas antigas sociedades escravistas do mundo atlântico.
O impacto na África do processo de patrimonialização da memória da escravidão a partir do projeto Rota dos Escravos da UNESCO e os debates em curso entre historiadores e cientistas sociais franceses sobre explosão memorial e dever de memória estavam, sem dúvida, na base da reflexão. Principalmente, a presentificação da memória da escravidão e sua apropriação política por movimentos antiracistas no Brasil e na França emprestavam novas nuanças às complexas relações entre história da escravidão, memória e usos políticos do passado. O presente dossiê foi pensado na perspectiva de contribuir para aprofundar a compreensão de tais relações, levando em consideração o estado atual da discussão no campo da história e das ciências sociais no Brasil.
Para a escolha dos artigos, parti de uma definição simples de memória: a presença do passado no presente. Os artigos do dossiê procuram refletir sobre a multiplicidade de sentidos atribuídos hoje à experiência da escravidão na era moderna.
Abre o volume o artigo A Herança Musical da Escravidão: da crioulização à world music, de Denis Constant-Martin (Centre d’Etudes d’Afrique Noire, Université de Bordeaux), pesquisador que reúne de forma instigante as competências do cientista político, do historiador e do musicólogo. Sua frase inicial é impactante: “Todas as músicas ditas hoje “populares” ou de “massa” derivam, de uma forma ou de outra, de práticas surgidas no seio de sociedades organizadas em torno da escravidão em territórios conquistados por europeus.” A memória da escravidão no artigo é problematizada como “herança musical” dos processos criativos que emergiram desses contatos, ocorridos “em condições específicas de desigualdade e de violência absolutas fundadas na negação da humanidade de pessoas deportadas”. Nos seus termos, a mestiçagem cultural e os processos de inovação dela decorrentes seriam resultantes imperativas do deslocamento em massa de pessoas para servirem como escravos, em qualquer das sociedades que conheceram a instituição, e para estudar o processo toma como exemplo os casos dos Estados Unidos e da África do Sul. Entre o muito que aprendemos no artigo, está que o contato cultural em situação de desigualdade não impede nem engendra formas específicas de relações raciais, mas produz um nível acelerado de inovação cultural, que atinge igualmente senhores e escravos. Fruto da resistência do escravizado à desumanização, a mestiçagem cultural seria parte inerente às sociedades escravistas e sem dúvida uma herança positiva da escravidão às sociedades contemporâneas, em meio a tantos legados de iniqüidade.
O segundo artigo do dossiê (Aquele que salva a mãe e o filho), da historiadora brasileira Ana Lucia Araujo, professora na Universidade de Howard nos Estados Unidos, nos transporta aos problemas colocados pelo processo de construção de uma memória pública da escravidão e do tráfico negreiro nas sociedades africanas contemporâneas. O tráfico atlântico de africanos escravizados para as Américas foi oficialmente considerado crime contra a humanidade pela ONU que, através da UNESCO, desenvolveu o projeto A Rota dos Escravos, como dever de memória e celebração das contribuições sócio-culturais da diáspora forçada de africanos. Também as condições de desequilíbrio que permitiram a colonização européia da África e a extrema pobreza do continente africano hoje se apresentam, pelo menos em parte, como decorrência do impacto do tráfico negreiro nas sociedades africanas. Neste contexto, a participação das elites africanas no mesmo é tema difícil no exercício da memória no continente ainda hoje. São as tensões entre a pluralidade de memórias sobre o tráfico negreiro e o movimento de patrimonialização da memória da escravidão como crime contra a humanidade no Benin, após a redemocratização do país, que estão no cerne da discussão apresentada por Ana Lucia Araujo em torno da abertura ao público, em Ajudá, do Memorial a Francisco Felix de Souza, negreiro brasileiro radicado no então reino do Daomé, no século XIX.
Os dois artigos seguintes voltam-se para a história da memória da escravidão no Brasil em relação com o processo transnacional de patrimonialização da escravidão e do tráfico como crime da humanidade ainda em curso. Como vimos no caso do Benin, são inúmeras e muitas vezes concorrentes e conflituosas as memórias públicas sobre a escravidão engendradas nesse contexto. Os artigos selecionados procuram dar conta de dois aspectos importantes e diferenciados do momento atual.
O de Matthias Assunção (A memória do cativeiro no Maranhão), historiador da Universidade de Essex, no Reino Unido, pesquisador associado ao LABHOI / UFF e professor visitante na nossa Universidade no ano de 2007, retoma aquele que tem sido o mote principal do projeto Memórias do Cativeiro, desde sua implementação no LABHOI em 1994 – dar visibilidade à memória familiar da experiência do cativeiro presente entre os descendentes da última geração de escravizados no Brasil. Com este objetivo, Assunção revistou as transcrições de entrevistas por ele realizadas ainda no início dos ano 80, no Maranhão, tendo como questão principal a memória da Balaiada, guerra civil que arrasou a região na primeira metade do século XIX. A força da memória do tempo do cativeiro, vivido por pais ou avós dos camponeses então entrevistados emerge com uma força surpreendente, levando-nos mais uma vez a constatar quão próxima ainda é a experiência escravista da realidade do Brasil contemporâneo. O artigo nos faz também indagar sobre o silêncio em que essa memória permaneceu até recentemente. Memória subterrânea, antes enquadrada pelo medo e a ética paternalista, emerge à cena pública através da pesquisa de um historiador e adquire novos significados. Tem-se, assim, uma espécie de efeito secundário da explosão memorial contemporânea, sempre criticada nos seus aspectos superficiais e homogeneizadores por historiadores e cientistas sociais – a emergência de memórias específicas de grupos marginalizados que funcionam como chave para novas leituras do passado.4
O reverso desse processo é a produção de contra discursos públicos e generalizantes sobre a história da escravidão e da abolição no Brasil e sua apropriação por grupos marginalizados em luta por cidadania. É o que acompanhamos no último artigo, sobre uma encenação memorial e educativa levada a efeito pela mãe de santo de um terreiro de candomblé na Baixada Fluminense. O Navio Negreiro, artigo de Francine Saillant, antropóloga da Universidade de Laval, no Canadá, transcreve e analisa a narrativa discursiva e corporal sobre a memória da escravidão produzida naquele contexto, bem como seus significados de reconfiguração de identidade. O artigo complementa, e dialoga com, o filme de pesquisa de mesmo titulo, apresentado na primeira versão do festival do filme de pesquisa sobre patrimônio e memória da escravidão moderna, e disponível em DVD no acervo do LABHOI / UFF, na Biblioteca Central do Gragoatá.
Boa leitura.
Notas
1 A primeira edição do festival itinerante teve início em abril de 2008 em Toronto, Canadá, sob auspícios do Harriet Tubman Resource Centre for the African Diaspora da Universidade de York. Depois repetiu-se em mais 10 cidades no Canadá, França, Senegal, Burkina Faso e Brasil. A edição brasileira ocorreu em novembro do mesmo ano na Universidade Federal Fluminense e no Centro Cultural do Banco do Brasil, no Rio de Janeiro.
2 Rios, Ana Lugão e Mattos, Hebe. Memórias do Cativeiro. Família, Trabalho e cidadania no pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
3 Abreu, Martha e Mattos, Hebe (direção geral). Memórias do Cativeiro, produção LABHOI / UFF 2005 e Jongos, Calangos e Folias. Música Negra, memória e poesia. Produção LABHOI / UFF, Patrocínio Petrobras, 2007.
4 Sobre o tema, ver também Chivallon, Christine. « Mémoires de l’esclavage à la Martinique L’explosion mémorielle et la révélation de mémoires anonymes ». Cahiers D’Etudes Africaines. N. 197, 2010 / 1.
Hebe Mattos
MATTOS, Hebe. Apresentação. Tempo. Niterói, v.15, n.29, jul. / dez., 2010. Acessar publicação original [DR]
Patrimônio e Cultura Material / Projeto História / 2010
A coletânea de textos aqui apresentada tem como meta primordial problematizar as noções de História, Memória, Patrimônio e Cultura Material. Considera-se Patrimônio e Memória, assim como cultura material concebida, segundo Michel de Certeau, artes de fazer, modos de apropriação e utilização de objetos que inventam e reinventam o cotidiano, fazem parte de relações de poder, expressam disputas, conflitos, colaborações e alianças entre os agentes sociais envolvidos com estas questões.
Este campo da historiografia integra as reflexões do Departamento de História da PUC / SP já há algum tempo, consubstanciada, primeiramente, na criação do Centro de Documentação e Informação Científica “Prof. Casemiro dos Reis filho” (CEDIC) em 1980, ao qual foi conferida uma vocação interdisciplinar desde seu nascimento. O acúmulo resultante destas reflexões teve um impacto social maior quando passou a participar dos debates sobre a atuação de órgãos públicos como o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arquitetônico e Turístico do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT) e do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da cidade de São Paulo (CONPRESP). Conforme situa um dos artigos deste dossiê, citando a museóloga e historiadora da arte Lygia Martins Costa, em texto de 1992, dividiam-se os bens que compunham o patrimônio cultural brasileiro tradicionalmente em duas categorias: os bens imóveis e os bens móveis. Os bens imóveis compreendiam o acervo arquitetônico, urbanístico e natural protegido, que, por sua natureza irremovível, se prendiam ao contexto em que se inseriam. Os bens móveis formavam-lhe o contraponto.
As discussões sobre as novas dimensões reconhecidas como patrimoniais, ensejaram a revisão de posturas que expressavam uma concepção de História que privilegiava as classes dominantes. Desde a criação do SPHAN, em 1937, os órgãos públicos envolvidos com o patrimônio urbano haviam adotado uma política cultural que enfatizava como digna de preservação da memória social apenas as ações dos que considerava como os grandes homens da História do país. Contrário a tal postura, Nestor Garcia Canclini afirma, no interior deste debate:
O Patrimônio cultural serve, assim, como recurso para produzir as diferenças entre os grupos sociais e a hegemonia dos que gozam de um acesso preferencial à produção e distribuição dos bens. Os setores dominantes não só definem quais bens são superiores e merecem ser conservados, mas também dispõem dos meios econômicos e intelectuais, tempo de trabalho e de ócio, para imprimir a estes bens maior qualidade e refinamento.[1]
Ou seja, questiona-se a ideia de uma nação única e hegemônica, contrapondo-se à compreensão de patrimônio cultural como a “expressão do que um conjunto social considera como cultura própria”,
que sustenta sua identidade e o diferencia de outros grupos – não abarca apenas os monumentos históricos, o desenho urbanístico e outros bens físicos; a experiência vivida também se condensa em linguagens, conhecimentos, tradições imateriais, modos de usar os bens e os espaços físicos. Contudo, a quase totalidade dos estudos e das ações destinados a conhecer, preservar e difundir o patrimônio cultural continuam se ocupando apenas dos monumentos (pirâmides, locais históricos, museus).[2]
Privilegiar o conceito de patrimônio atribuído por especialistas, algumas vezes, é afastar a possibilidade das camadas populares acumularem saberes que podem intervir naquilo que parece já estar dado. Quando se pensa em tradições populares, elas aparecem para o poder público como práticas que devem ser destituídas de seus sentidos originais, “folclorizando” experiências que figuram congeladas no tempo e no espaço, não se pensa nas tradições como espaço em movimento, tornando a admiração acrítica, destituída de uma força que potencialmente transforma, “trata-se de se reconhecer que, neste saber fazer, preservar, difundir, aprender e refazer práticas são elementos indissociáveis”.[3]
Sendo assim, é importante que os historiadores que atuam como profissionais em órgãos públicos responsáveis pela preservação do patrimônio histórico e cultural ou nas escolas e universidades reflitam sobre as diferentes práticas que embasam políticas públicas, concepções de ensino, memória e patrimônio, das quais resultam projetos diversos de sociedade. Projetos estes que implicam na reprodução de interesses dominantes ou que, de outro modo, delineiam perspectivas de uma sociedade transformada incluindo experiências de outros sujeitos e suas histórias, respeitando multiplicidades e diferenças, estas também com direito à Memória e à História.
No Departamento de História da FCS / PUC-SP esta disciplina faz parte de nossa reforma curricular desde 2007, enfatizando a importância do tema para os profissionais da História, que permaneceram durante muito tempo com escassa participação na tomada de decisões nesta área.
Muitos acervos documentais que nos ajudam a refletir sobre experiências diversas e evocar a História a contrapelo necessitam de incentivos para sobreviver. Lembramos de alguns que procuram preservar experiências que se ligam aos movimentos sociais como o CEDIC da PUC / SP, o Centro de Documentação e Memória (CEDEM) da UNESP, o Centro de Documentação e Pesquisa Vergueiro (CPV), o Arquivo Edgar Leuenroth, da UNICAMP, apenas para citar alguns em São Paulo. É preciso reconhecer e garantir a existência e autonomia destas instituições, para que elas cumpram sua missão intelectual e política, tornando pública a possibilidade de muitas experiências.
A perspectiva assumida no Brasil sobre o patrimônio como o conjunto de “bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade”, conforme artigo 16 da Constituição Federal, expressa a abrangência inicialmente colocada. Tal perspectiva afirma-se nos liames dos artigos componentes deste número, cujas reflexões permitem, não apenas recuperar a cultura material das mais diversas concretudes sociais, mas também o patrimônio que revelam.
Um dos principais temas do debate contemporâneo sobre a preservação e o restauro dos bens culturais abarca, a “dimensão urbana da tutela”, sobretudo, conforme atesta um dos autores, a partir da década de 1960. “Como toda ação modificadora em um artefato de interesse cultural pressupõe o reconhecimento e entendimento prévio de suas especificidades como premissa para fundamentar qualquer proposta, o reconhecimento de bens cada vez mais complexos tem nos colocado diante de grandes desafios interpretativos e operacionais”.
Também incorpora um novo olhar aos museus, nos quais é possível recuperar como estes “operaram as narrativas de memórias expressas em suas coleções permanentes, e dá pistas sobre a complexidade gerencial que afeta os museus de arte contemporânea na atualidade”. Ou o reconhecimento de que são “lugares de memória” os arquivos audiovisuais. Conforme os autores aqui presentes, “muitas vezes preservadas em cinematecas, outras vezes em arquivos pessoais, essa documentação variada foi geralmente acumulada, ao longo de anos, por personalidades ligadas à cultura de um país”, o que se estende também às instalações industriais, máquinas, ofícios, sítios. Enfim, nos alertam eles, no caso do Brasil, “estes parecem ser os vieses temáticos que se cruzam na questão patrimonial, e predominam atualmente em trabalhos e tese acadêmicas: a história da técnica, a perspectiva socioeconômica e análise arquitetônica”.
Revela-se assim uma tessitura, conforme indica outro autor, citando Françoise Choay, de “expansão ecumênica das práticas patrimoniais” 4 que gera uma “crescente especialização dos conhecimentos e das práticas relativas ao patrimônio cultural, expressos em documentos, cartas e recomendações internacionais, em normativas jurídicas nacionais e em métodos e técnicas de preservação – inventários, planos de gestão e salvaguarda, restaurações, ações de conservação preventiva, acondicionamentos, etc.” Uma preservação que passou a considerar também a relação da atividade humana com o meio ambiente. Adentramos assim à difícil relação entre patrimônio cultural e natural “não por sua realidade e importância intrínseca, mas por seus valores estéticos, na mesma direção que o patrimônio cultural” é enfrentada neste número por mais de um autor, trazendo assim uma grande contribuição aos novos pesquisadores, voltados para o tema. Neste sentido, por exemplo, situa um deles, como a apropriação da água como bem privado desde o período colonial, contribuiu para o “assoreamento de rios, para o processo de extinção de algumas espécies e para o desvio, e até mesmo a completa destruição, de alguns corpos de água”.
A identidade patrimonial inerente à constelação latino-americana se revela nas reflexões da especialista da Colômbia, que demonstra como louças, selos, moedas e objetos de uso cotidiano, nos quais foram cunhadas figuras representativas dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade tornam-se “objetos patrióticos” porque “servirão para educar e incentivar os sentimentos republicanos ou imperiais em todos os níveis sociais”.
Também perpassa o conjunto dos textos, como que em uma transversalidade, a relação entre patrimônio e cultura material, para cuja elucidação se arroga os “herdeiros dos Annales: Daniel Roche e Jean-Marie Pesez. Roche assinala que a cultura material viabiliza-se pela produção e pelo consumo. Para Pesez, é no acontecimento sócio-econômico que podemos encontrar as linhas centrais da cultura material”.5 Desde o reconhecimento da leitura “como um instrumento de decodificação do patrimônio cultural de um grupo, de suas relações de pertencimento, dos seus legados intergeracionais” até “fotografias de automóveis e caminhões pelas ruas de uma cidade, por exemplo; ilustrações valorizando chamadas publicitárias através dos jornais escritos, reproduzindo imagens que se constituíram em objetos do desejo de parcelas da população; matérias veiculadas nesses mesmos jornais dando conta de condutas desviantes de populares em contato com estes objetos; os trabalhos de memorialistas que nos conduzem por espaços da cidade sobre os quais, muitas vezes, não temos outras informações”, revelam a cultura material espectral dos que os produziram. Assim como a revelam registros parlamentares da virada do século XIX para o XX que contribuem para a compreensão da especificidade dos processos de autonomização da esfera jurídica em relação à religião no Brasil, ou em outra perspectiva, “anúncios frequentes e pulverizados nos jornais, testemunhando, na dimensão cotidiana, uma faceta da dinâmica ampla de generalização e diferenciação do consumo no contexto das grandes cidades brasileiras ao longo da segunda metade do século XX”. A perspectiva da cultura material, tomada pelo autor neste último exemplo traz para os leitores o clássico conceito de “infra-economia” de Fernand Braudel.6 A filmografia científica “dedicada principalmente à medicina e dentro desta à cirurgia cardíaca” permite ao autor “pensar a temática da ciência e da tecnologia e sua inserção em nossa sociedade”. A mesma base documental revela, para outro autor o quanto, na America Latina, a “história e a prática da fotografia têm evidenciado questões vitais a respeito das relações entre o poder e as culturas, da representação da cultura e seus significados, e as conexões entre intenção, expectativa e conteúdo”,7 assim como permitem reflexões sobre a categoria sertão, para o que outro historiador insere ainda literatura, música, e fotografia. Referimo-nos particularmente à cultura material recuperada dentre as mais de 60.000 fotografias que Pierre Verger capturou com sua Rolleiflex.
É nesse universo que se insere a presente edição de Projeto História sobre patrimônio e cultura material, que assume um caráter urgente ao contribuir para uma reflexão conceitual e política transformadora, reflexão tão importante para os profissionais de história e para o exercício da cidadania por todos.
Notas
1. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº 23, Rio de Janeiro, DPH / SMC, 1994, pg. 95.
2. Idem, p. 114.
3. BRITES, Olga. Memória, Preservação e Tradições populares, in O Direito à memória – Patrimônio Histórico e cidadania, São Paulo, DPH, Secretaria Municipal de Cultura, 1992, pp.17-20.
4. CHOAY, F. A alegoria do patrimônio, São Paulo, Estação Liberdade, UNESP, 2001, p. 207.
5. Conferir ROCHE, Daniel. História das Coisas Banais – Nascimento do Consumo nas sociedades do século XVII ao XIX. Rio de Janeiro, Rocco, 2000, p. 11; PESEZ, Jean-Marie. A história da Cultura Material. In LE GOFF, Jacques. CHARTIER, Roger. REVEL, Jacques. A Nova História. Tradução Maria Helena Arinto e Rosa Esteves. Coimbra, Portugal, Almedina, s / d., p. 110-143, p. 113.
6. BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVIII, vol. 1, As estruturas do cotidiano: o possível e o impossível. São Paulo, Martins Fontes, 1995.
7. LEVINE, Robert. Image and Memory: Photography from Latin America, 1866-1994, in Hispanic American Historical Review, 79.3, 1999, p. 536-538.
Olga Brites
Mariza Romero
BRITES, Olga; ROMERO, Mariza. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 40, 2010. Acessar publicação original [DR]
Trajetórias do Patrimônio | Anais do Museu Histórico Nacional | 2005
Organizador
Aline Montenegro Magalhães
Referências desta apresentação
MAGALHÃES, Aline Montenegro. Apresentação. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v.37, p.38-40, 2005. Acesso apenas no link original [DR]