Patrimônio e Cultura Material / Projeto História / 2010

A coletânea de textos aqui apresentada tem como meta primordial problematizar as noções de História, Memória, Patrimônio e Cultura Material. Considera-se Patrimônio e Memória, assim como cultura material concebida, segundo Michel de Certeau, artes de fazer, modos de apropriação e utilização de objetos que inventam e reinventam o cotidiano, fazem parte de relações de poder, expressam disputas, conflitos, colaborações e alianças entre os agentes sociais envolvidos com estas questões.

Este campo da historiografia integra as reflexões do Departamento de História da PUC / SP já há algum tempo, consubstanciada, primeiramente, na criação do Centro de Documentação e Informação Científica “Prof. Casemiro dos Reis filho” (CEDIC) em 1980, ao qual foi conferida uma vocação interdisciplinar desde seu nascimento. O acúmulo resultante destas reflexões teve um impacto social maior quando passou a participar dos debates sobre a atuação de órgãos públicos como o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arquitetônico e Turístico do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT) e do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da cidade de São Paulo (CONPRESP). Conforme situa um dos artigos deste dossiê, citando a museóloga e historiadora da arte Lygia Martins Costa, em texto de 1992, dividiam-se os bens que compunham o patrimônio cultural brasileiro tradicionalmente em duas categorias: os bens imóveis e os bens móveis. Os bens imóveis compreendiam o acervo arquitetônico, urbanístico e natural protegido, que, por sua natureza irremovível, se prendiam ao contexto em que se inseriam. Os bens móveis formavam-lhe o contraponto.

As discussões sobre as novas dimensões reconhecidas como patrimoniais, ensejaram a revisão de posturas que expressavam uma concepção de História que privilegiava as classes dominantes. Desde a criação do SPHAN, em 1937, os órgãos públicos envolvidos com o patrimônio urbano haviam adotado uma política cultural que enfatizava como digna de preservação da memória social apenas as ações dos que considerava como os grandes homens da História do país. Contrário a tal postura, Nestor Garcia Canclini afirma, no interior deste debate:

O Patrimônio cultural serve, assim, como recurso para produzir as diferenças entre os grupos sociais e a hegemonia dos que gozam de um acesso preferencial à produção e distribuição dos bens. Os setores dominantes não só definem quais bens são superiores e merecem ser conservados, mas também dispõem dos meios econômicos e intelectuais, tempo de trabalho e de ócio, para imprimir a estes bens maior qualidade e refinamento.[1]

Ou seja, questiona-se a ideia de uma nação única e hegemônica, contrapondo-se à compreensão de patrimônio cultural como a “expressão do que um conjunto social considera como cultura própria”,

que sustenta sua identidade e o diferencia de outros grupos – não abarca apenas os monumentos históricos, o desenho urbanístico e outros bens físicos; a experiência vivida também se condensa em linguagens, conhecimentos, tradições imateriais, modos de usar os bens e os espaços físicos. Contudo, a quase totalidade dos estudos e das ações destinados a conhecer, preservar e difundir o patrimônio cultural continuam se ocupando apenas dos monumentos (pirâmides, locais históricos, museus).[2]

Privilegiar o conceito de patrimônio atribuído por especialistas, algumas vezes, é afastar a possibilidade das camadas populares acumularem saberes que podem intervir naquilo que parece já estar dado. Quando se pensa em tradições populares, elas aparecem para o poder público como práticas que devem ser destituídas de seus sentidos originais, “folclorizando” experiências que figuram congeladas no tempo e no espaço, não se pensa nas tradições como espaço em movimento, tornando a admiração acrítica, destituída de uma força que potencialmente transforma, “trata-se de se reconhecer que, neste saber fazer, preservar, difundir, aprender e refazer práticas são elementos indissociáveis”.[3]

Sendo assim, é importante que os historiadores que atuam como profissionais em órgãos públicos responsáveis pela preservação do patrimônio histórico e cultural ou nas escolas e universidades reflitam sobre as diferentes práticas que embasam políticas públicas, concepções de ensino, memória e patrimônio, das quais resultam projetos diversos de sociedade. Projetos estes que implicam na reprodução de interesses dominantes ou que, de outro modo, delineiam perspectivas de uma sociedade transformada incluindo experiências de outros sujeitos e suas histórias, respeitando multiplicidades e diferenças, estas também com direito à Memória e à História.

No Departamento de História da FCS / PUC-SP esta disciplina faz parte de nossa reforma curricular desde 2007, enfatizando a importância do tema para os profissionais da História, que permaneceram durante muito tempo com escassa participação na tomada de decisões nesta área.

Muitos acervos documentais que nos ajudam a refletir sobre experiências diversas e evocar a História a contrapelo necessitam de incentivos para sobreviver. Lembramos de alguns que procuram preservar experiências que se ligam aos movimentos sociais como o CEDIC da PUC / SP, o Centro de Documentação e Memória (CEDEM) da UNESP, o Centro de Documentação e Pesquisa Vergueiro (CPV), o Arquivo Edgar Leuenroth, da UNICAMP, apenas para citar alguns em São Paulo. É preciso reconhecer e garantir a existência e autonomia destas instituições, para que elas cumpram sua missão intelectual e política, tornando pública a possibilidade de muitas experiências.

A perspectiva assumida no Brasil sobre o patrimônio como o conjunto de “bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade”, conforme artigo 16 da Constituição Federal, expressa a abrangência inicialmente colocada. Tal perspectiva afirma-se nos liames dos artigos componentes deste número, cujas reflexões permitem, não apenas recuperar a cultura material das mais diversas concretudes sociais, mas também o patrimônio que revelam.

Um dos principais temas do debate contemporâneo sobre a preservação e o restauro dos bens culturais abarca, a “dimensão urbana da tutela”, sobretudo, conforme atesta um dos autores, a partir da década de 1960. “Como toda ação modificadora em um artefato de interesse cultural pressupõe o reconhecimento e entendimento prévio de suas especificidades como premissa para fundamentar qualquer proposta, o reconhecimento de bens cada vez mais complexos tem nos colocado diante de grandes desafios interpretativos e operacionais”.

Também incorpora um novo olhar aos museus, nos quais é possível recuperar como estes “operaram as narrativas de memórias expressas em suas coleções permanentes, e dá pistas sobre a complexidade gerencial que afeta os museus de arte contemporânea na atualidade”. Ou o reconhecimento de que são “lugares de memória” os arquivos audiovisuais. Conforme os autores aqui presentes, “muitas vezes preservadas em cinematecas, outras vezes em arquivos pessoais, essa documentação variada foi geralmente acumulada, ao longo de anos, por personalidades ligadas à cultura de um país”, o que se estende também às instalações industriais, máquinas, ofícios, sítios. Enfim, nos alertam eles, no caso do Brasil, “estes parecem ser os vieses temáticos que se cruzam na questão patrimonial, e predominam atualmente em trabalhos e tese acadêmicas: a história da técnica, a perspectiva socioeconômica e análise arquitetônica”.

Revela-se assim uma tessitura, conforme indica outro autor, citando Françoise Choay, de “expansão ecumênica das práticas patrimoniais” 4 que gera uma “crescente especialização dos conhecimentos e das práticas relativas ao patrimônio cultural, expressos em documentos, cartas e recomendações internacionais, em normativas jurídicas nacionais e em métodos e técnicas de preservação – inventários, planos de gestão e salvaguarda, restaurações, ações de conservação preventiva, acondicionamentos, etc.” Uma preservação que passou a considerar também a relação da atividade humana com o meio ambiente. Adentramos assim à difícil relação entre patrimônio cultural e natural “não por sua realidade e importância intrínseca, mas por seus valores estéticos, na mesma direção que o patrimônio cultural” é enfrentada neste número por mais de um autor, trazendo assim uma grande contribuição aos novos pesquisadores, voltados para o tema. Neste sentido, por exemplo, situa um deles, como a apropriação da água como bem privado desde o período colonial, contribuiu para o “assoreamento de rios, para o processo de extinção de algumas espécies e para o desvio, e até mesmo a completa destruição, de alguns corpos de água”.

A identidade patrimonial inerente à constelação latino-americana se revela nas reflexões da especialista da Colômbia, que demonstra como louças, selos, moedas e objetos de uso cotidiano, nos quais foram cunhadas figuras representativas dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade tornam-se “objetos patrióticos” porque “servirão para educar e incentivar os sentimentos republicanos ou imperiais em todos os níveis sociais”.

Também perpassa o conjunto dos textos, como que em uma transversalidade, a relação entre patrimônio e cultura material, para cuja elucidação se arroga os “herdeiros dos Annales: Daniel Roche e Jean-Marie Pesez. Roche assinala que a cultura material viabiliza-se pela produção e pelo consumo. Para Pesez, é no acontecimento sócio-econômico que podemos encontrar as linhas centrais da cultura material”.5 Desde o reconhecimento da leitura “como um instrumento de decodificação do patrimônio cultural de um grupo, de suas relações de pertencimento, dos seus legados intergeracionais” até “fotografias de automóveis e caminhões pelas ruas de uma cidade, por exemplo; ilustrações valorizando chamadas publicitárias através dos jornais escritos, reproduzindo imagens que se constituíram em objetos do desejo de parcelas da população; matérias veiculadas nesses mesmos jornais dando conta de condutas desviantes de populares em contato com estes objetos; os trabalhos de memorialistas que nos conduzem por espaços da cidade sobre os quais, muitas vezes, não temos outras informações”, revelam a cultura material espectral dos que os produziram. Assim como a revelam registros parlamentares da virada do século XIX para o XX que contribuem para a compreensão da especificidade dos processos de autonomização da esfera jurídica em relação à religião no Brasil, ou em outra perspectiva, “anúncios frequentes e pulverizados nos jornais, testemunhando, na dimensão cotidiana, uma faceta da dinâmica ampla de generalização e diferenciação do consumo no contexto das grandes cidades brasileiras ao longo da segunda metade do século XX”. A perspectiva da cultura material, tomada pelo autor neste último exemplo traz para os leitores o clássico conceito de “infra-economia” de Fernand Braudel.6 A filmografia científica “dedicada principalmente à medicina e dentro desta à cirurgia cardíaca” permite ao autor “pensar a temática da ciência e da tecnologia e sua inserção em nossa sociedade”. A mesma base documental revela, para outro autor o quanto, na America Latina, a “história e a prática da fotografia têm evidenciado questões vitais a respeito das relações entre o poder e as culturas, da representação da cultura e seus significados, e as conexões entre intenção, expectativa e conteúdo”,7 assim como permitem reflexões sobre a categoria sertão, para o que outro historiador insere ainda literatura, música, e fotografia. Referimo-nos particularmente à cultura material recuperada dentre as mais de 60.000 fotografias que Pierre Verger capturou com sua Rolleiflex.

É nesse universo que se insere a presente edição de Projeto História sobre patrimônio e cultura material, que assume um caráter urgente ao contribuir para uma reflexão conceitual e política transformadora, reflexão tão importante para os profissionais de história e para o exercício da cidadania por todos.

Notas

1. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº 23, Rio de Janeiro, DPH / SMC, 1994, pg. 95.

2. Idem, p. 114.

3. BRITES, Olga. Memória, Preservação e Tradições populares, in O Direito à memória – Patrimônio Histórico e cidadania, São Paulo, DPH, Secretaria Municipal de Cultura, 1992, pp.17-20.

4. CHOAY, F. A alegoria do patrimônio, São Paulo, Estação Liberdade, UNESP, 2001, p. 207.

5. Conferir ROCHE, Daniel. História das Coisas Banais – Nascimento do Consumo nas sociedades do século XVII ao XIX. Rio de Janeiro, Rocco, 2000, p. 11; PESEZ, Jean-Marie. A história da Cultura Material. In LE GOFF, Jacques. CHARTIER, Roger. REVEL, Jacques. A Nova História. Tradução Maria Helena Arinto e Rosa Esteves. Coimbra, Portugal, Almedina, s / d., p. 110-143, p. 113.

6. BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVIII, vol. 1, As estruturas do cotidiano: o possível e o impossível. São Paulo, Martins Fontes, 1995.

7. LEVINE, Robert. Image and Memory: Photography from Latin America, 1866-1994, in Hispanic American Historical Review, 79.3, 1999, p. 536-538.

Olga Brites

Mariza Romero


BRITES, Olga; ROMERO, Mariza. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 40, 2010. Acessar publicação original [DR]

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