Patrimônio Arqueológico, ambiental e inclusão social no Plano Diretor de São Raimundo Nonato-PI: Síntese dos biomas e das sociedades humanas da região do Parque Nacional Serra da Capivara, volume III – MAIOR (CA)

MAIOR, Paulo Martin Souto. Patrimônio Arqueológico, ambiental e inclusão social no Plano Diretor de São Raimundo Nonato-PI: Síntese dos biomas e das sociedades humanas da região do Parque Nacional Serra da Capivara, volume III, Ed. Fundação Museu do Homem Americano, Fumdham, 2015. 206p. Resenha de: PESSIS, Anne Marie. Clio Arqueológica, Recife, v. 31, n.1, p.136-139, 2016.

Imagem da capa da obra resenhada – página136

O livro é o terceiro volume da coleção Os Biomas e as Sociedades Humanas na Pré-História da Região do Parque Nacional Serra da Capivara, Brasil2. Está divido em duas partes e trata, inicialmente, de uma revisão histórica dos conceitos que subsidiaram e fundamentaram leis como o Estatuto da Cidade e as posturas adotadas em relação à arqueologia em intervenções urbanas. A inserção da arqueologia e do ambiente na dinâmica de uma cidade ou em zonas rurais e seu papel na construção de uma mentalidade preservacionista são os temas centrais do texto.

Conhecidas ou sem registro, à mostra ou não, o fato é que o autor identifica duas posturas básicas em intervenções urbanas e rurais em locais com vestígios arqueológicos: uma, produto de exclusão, e, outra, de inclusão. O primeiro conceito é apresentado através de intervenções urbanas nas quais o elemento arqueológico atua de forma excluída, ou seja, produto da interpretação, contextualização e exposição de vestígios materiais. Segundo o autor, trata-se de uma perspectiva meramente arqueológica. Essa postura denota que em análises territoriais, ao se proporem intervenções, a disciplina arqueológica ainda atua de forma difusa e espacialmente pontual.

Como contraponto a essa postura o autor apresenta casos nos quais a antinomia entre conservação e transformação do espaço urbano aponta para uma tendência que vem sendo incorporada em projetos de intervenção. Assim, a conservação, como essência de transformação do espaço e de sua relação com o entorno e o contexto do território, pode e deve repercutir na qualidade do espaço urbano e, essencialmente, na sua preservação. E a percepção desse aspecto pela população, ou seja, do valor cultural do vestígio arqueológico e histórico, torna-se mais eficaz se integrada aos usos e percursos da cidade; portanto, como espaço morfológico arqueológico. Essas foram as premissas básicas e consideradas na construção do Plano Diretor de São Raimundo Nonato-PI.

Na segunda parte apresenta-se a experiência do município de São Raimundo Nonato, através do diagnóstico e das propostas de quatro temas que nortearam a construção do seu Plano Diretor: Inclusão social, patrimônio histórico, patrimônio arqueológico e ambiente natural. Nesse aspecto o texto apresenta um dos elementos fundamentais da proposta do Plano: considerar as ações exitosas de inclusão social na proteção do patrimônio arqueológico e ambiental do Parque Nacional Serra da Capivara.

Diante desse arcabouço a proposta do Plano baseou-se no conhecimento préhistórico, histórico e geomorfológico do município de São Raimundo Nonato através de seu diagnóstico na época em que se coletaram os dados, entre 2006 e 2007, e que forneceram um alto grau de conhecimento das transformações ocorridas nas formas de ocupação, desde a Pré-história até a atualidade. Por outro lado, as ocupações recentes e desordenadas, tanto na sede do município quanto nas áreas rurais, significaram o maior desafio na busca de soluções e propostas que integrassem a arqueologia com as questões urbanas e rurais típicas de um plano diretor.

Da postura adotada nas propostas a partir da tríade patrimônio cultural, ambiente e inclusão social, resultaram os parâmetros de proteção e do zoneamento, com o intuito de impedir o crescimento desordenado das duas situações: A urbana, referente à sede do município, e a rural, referente ao Parque Nacional Serra da Capivara. Nesse aspecto a proposta do Plano Diretor aborda diretrizes para uma política municipal voltada para a preservação do patrimônio histórico, do arqueológico, do ambiente natural e na inclusão social. Insere, portanto, o elemento arqueológico em igualdade de condições com questões como, por exemplo, a mobilidade, a educação, o uso do solo e o lixo urbano entre outros.

Nesse contexto, embora um plano diretor aborde temas diversos e variados, o foco do texto que se publicou preocupou-se na inter-relação e na especificidade entre quatro temas básicos (inclusão social, patrimônio histórico, arqueologia e ambiente). É o caso, por exemplo, dos sítios arqueológicos e do patrimônio histórico associados ao ambiente, assim como a relação desses três temas com á inclusão social. Da mesma forma, a evolução física da sede do município traduzse no seu traçado de vias, nas edificações – inclusive as de valor histórico – assim como seus usos estão inseridos no perfil histórico e socioeconômico. Todos esses temas, juntamente com os demais temas do Plano, nortearam uma abordagem participativa na qual se aprimorou a consciência preservacionista dos elementos culturais do município.

Nota

2 Na Clio Arqueológica número 2013-V28N1 publicou-se uma resenha sobre o volume I e na número 2015-V30N2 publicou-se uma resenha sobre os volumes II-A e II-B.

Anne Marie Pessis – Docente, Programa de Pós-graduação em Arqueologia e Preservação Patrimonial, UFPE.

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Assessing Heritage Values: Public Archaeology in Brasília – GODOY (RAP)

GODOY, Renata de. Assessing Heritage Values: Public Archaeology in Brasília. Lambert Academic Publishing, 2012. Resenha de: POLONIL, Rita Juliana Soares. Revista de Arqueologia Pública, Campinas, n.9, jul., 2014.

Assessing Heritage Values: Public Archaeology in Brasília, da Antropóloga Renata de Godoy é uma recente publicação que vem acrescentar importantes pontos de discussão à questão da Arqueologia Pública no país.

Dividida em seis capítulos a obra procura investigar as relações de pertença desenvolvidas pela população em relação ao patrimônio arqueológico, sobretudo, no que se refere a populações não nativas.

Para compreender seu objeto de pesquisa a autora se utilizou da chamada “Abordagem de valor público” (Public Value Approach), que se desenrola a partir da investigação de dois sítios arqueológicos paleoindígenas e um histórico (DF-PA-11, DF-PA-15 e Pedra Velha, respectivamente), localizados na Área de Relevante Interesse Ecológico Parque Jucelino Kubitchek (ARIE JK), na região metropolitana de Brasília, entorno de Ceilândia, Samambaia e Taguatinga.

A pesquisa desenvolve-se a partir de abordagens vindas da antropologia urbana e do urbanismo, da gestão do patrimônio cultural e do turismo patrimonial. Utiliza ainda, como metodologia de pesquisa, entrevistas abertas, investigações arquivísticas e digitais, sobretudo, visando periódicos, relatórios e documentos legais e, finalmente, investigações do tipo “Walking Survey”. A autora questiona por que comunidades migrantes, principal constituinte humano da região, se preocupariam com sítios arqueológicos pré-históricos tão distantes da sua trajetória de vida pessoal e para isso chama atenção para os três valores gerados pelo patrimônio: os intrínsecos, os institucionais e os instrumentais.

Os valores intrínsecos podem ser apontados como a experiência intelectual, emocional e espiritual do indivíduo com o patrimônio, enquanto os institucionais representam, por sua vez, o ethos e o comportamento das organizações patrimoniais. Finalmente, os valores instrumentais são os valores econômicos, sociais e paisagísticos assumidos por um determinado contexto patrimonial. Nesse sentido, a hipótese da pesquisa é a de que questões extrínsecas influenciam comunidades não-nativas a se importar com o patrimônio arqueológico mais que questões intrínsecas. Ou seja, essas comunidades se importam mais como o patrimônio arqueológico devido aos seus valores institucionais e instrumentais que aos seus valores emocionais ou identitários.

Enquanto o primeiro capítulo da obra pontua os aspectos gerais anteriormente descritos, o segundo capítulo dedica-se à metodologia e descrição do sítio. Aqui, o campo da antropologia urbana toma lugar de destaque. Pode ser definido como um campo interdisciplinar por excelência e que diz respeito às origens, desenvolvimento e crescimento das cidades, mas também, ao entendimento da vida e da cultura urbana. A idéia de espaço público tem lugar especial nesses estudos e pode ser definida como locais onde é possível interagir de forma variada com outras pessoas e com o entorno, bem como cultivar a solidão e o anonimato. Os parques e as praças são dois importantes exemplos.

Nesse sentido, a principal metodologia empregada na pesquisa baseia-se no “rapid ethnografic assessment procedures (REAP)”. Consiste numa combinação entre entrevistas, observação participante e registro de testemunhas oculares. A autora então esclarece que foram realizadas vinte e nove entrevistas em duas temporadas de trabalhos de campo realizadas em 2008, equivalentes a vinte horas de conversas gravadas. Os entrevistados foram divididos em dois grupos e em quatro subgrupos de no mínimo seis pessoas cada, de acordo com seu local de residência e com a sua ligação a instituições relacionadas com o estudo de caso. Foram também selecionadas dezoito entrevistas de periódicos, publicadas entre 2004 e 2008 em dois dos principais jornais da capital (Correio Brasiliense e Jornal de Brasília), assim como relatórios de campo e de laboratório não publicados, publicações acadêmicas e legislação diretamente relacionados com o estudo de caso. Também foram tiradas novecentas fotografias e realizadas filmagens no local e seu entorno, todas conduzidas em Abril, Maio e Novembro de 2008.

O Terceiro capítulo do livro é dedicado a discutir os valores institucionais relacionados ao objeto de estudo. O papel do IPHAN ganha destaque, em especial no que tange ao desenvolvimento de mecanismos para a proteção ao patrimônio arqueológico nacional.

Quanto à aplicação da metodologia, nesse ponto da pesquisa foram utilizadas entrevistas, análises de periódicos e “walking survey”. O ponto mais abordado nas entrevistas foi o conflito no uso da terra seguido de degradação ambiental e questões de gestão. As questões arqueológicas aparecem em todos os grupos, mas são mais comuns entre os que habitam nas proximidades do parque. Embora assuntos institucionais apareçam em todos os grupos (leis, sua aplicação, licenças, pesquisas e preservação), são mais comuns entre o grupo dos especialistas. Os profissionais da arqueologia, claramente, focam mais em assuntos institucionais que outros entrevistados.

Destacam-se, particularmente, muitos conflitos entre a Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal (CAESB) e moradores locais por causa da instalação de infraestrutura de saneamento básico. Como parte do acordo judicial surgido a partir das demandas de compensação financeira de moradores locais contra a empresa, a CAESB teria pagado a prospecção e escavação arqueológica da área afetada pelo empreendimento e pela elaboração de um DVD educativo de onze minutos. Entretanto, a construção de um museu e a publicação de um livro ainda estariam em suspenso.

Em relação à análise dos periódicos, notou-se que, praticamente, todos os exemplares do Correio Brasiliense analisados traziam a palavra-chave arqueologia e, praticamente, a metade se referia ao parque ARIE JK. No caso do Jornal de Brasília, há três reportagens arqueológicas sobre o parque. A maior parte inclui questões ambientais, sobretudo, com a CAESB. Todos os dois periódicos têm suas agendas particulares, sendo o Correio Brasiliense mais afeto à defesa do governo do Distrito Federal, elogiando, inclusive, os trabalhos de saneamento básico da CAESB realizados no parque. Mas, curiosamente, é também o que mais críticas expõe sobre outros órgãos em relação à preservação arqueológica no parque.

No contexto do “walking survey”, a autora realizou a observação de um dos encontros do MAPE (Movimento Amigos dos Parques Ecológicos), ocorrida em 11 de novembro de 2008. A principal questão abordada pelos participantes era a preservação ambiental de parques ecológicos, incluindo a ARIE JK. Houve, espontaneamente, a proposta de se defender a abertura de um museu arqueológico na região, comprovando uma grande demanda pelo museu e pelo retorno de artefatos arqueológicos enviados a outros estados para o Distrito Federal.

O capítulo quatro aborda os valores instrumentais relacionados ao patrimônio e a sua principal questão é tentar perceber se a possibilidade de implementar turismo patrimonial no parque está por detrás do interesse da opinião pública em questões arqueológicas. Nesse sentido, o turismo patrimonial pode ser definido como um tipo de atividade turística em espaços definidos como sítios patrimoniais. Outro tipo de turismo relacionado com a arqueologia, o ecoturismo, pode ser definido como atividades que visam um equilíbrio entre ambiente e comunidades humanas.

A autora ressalta que os sítios arqueológicos são de grande interesse para a humanidade. Torná-los objeto turístico, se por um lado valoriza o sítio e o torna sustentável, por outro pode representar um risco para a sua própria preservação, na medida em que aumenta a demanda sobre o patrimônio.

Para avaliar os valores instrumentais gerados pelo patrimônio da ARIE JK, pontos de uso recreacional no interior do parque foram contrastados com a opinião pública sobre o tema, coletadas em entrevistas e notícias de periódicos, tendo em vista as palavras chave ARIE JK e arqueologia. Foi também utilizado o “walking Survey”, que demonstrou que, de modo geral, os locais apontados como recreativos no parque estão em condições precárias, abandonados e tomados pelo lixo.

Nas entrevistas, o objetivo principal era entender se e como o público percebe o turismo como um valor instrumental gerado pelos sítios arqueológicos do parque entendendo também, quando possível, como cada pessoa percebe lazer e recreação. De modo geral, percebeu-se que os entrevistados não vêem o parque e tampouco a visita aos seus sítios arqueológicos como opção de lazer. O parque é visto, na realidade, como área vazia de funções, local de preservação ambiental. Parte dessa visão deriva, entretanto, da preferência dos entrevistados por opções de lazer em espaços fechados, tais como shoppings e cinemas. Nesse sentido, o único ponto não questionado e muitas vezes trazido à tona em termos de turismo para a área de estudo é a criação de um museu arqueológico no local.

O quinto capítulo da obra trata dos valores intrínsecos relacionados ao patrimônio arqueológico do parque. O foco do trabalho recai sobre os três sítios arqueológicos anteriormente citados, que sofreram escavações e têm importância científica comprovada. Eles estão relacionados à extração de material e confecção de peças líticas.

Os sítios de jazidas são essenciais para o estudo da pré-história e para o trabalho arqueológico. Ao mesmo tempo, são sítios de complexa compreensão. Devido à dificuldade no estudo do processo de debitagem e na dificuldade em definir estratigrafias ou outros indicadores de datação, esses sítios ainda não são preferencialmente interessantes para os arqueólogos brasileiros. Por outro lado, a revisão da literatura na área indica que para além do processo tecnológico, o estudo de jazidas também permite compreender sistemas de trocas, organização social e economia pré-históricas e atuais.

Quanto à metodologia utilizada na pesquisa, o principal objetivo das entrevistas realizadas seria o de perceber a compreensão de não profissionais sobre os sítios locais, se essas pessoas têm a real compreensão dos valores intrínsecos dos sítios e se esses valores influenciam fundamentalmente o seu comportamento acerca da preocupação com a preservação dos mesmos. Os resultados apontaram que os residentes e aqueles que moram no entorno do parque apresentaram uma compreensão semelhante e se preocupam com a preservação dos sítios, muito embora tenham pouco conhecimento sobre suas características. Especialistas e pessoas ligadas a instituições de preservação variam entre os que se importam com a preservação dos sítios e aqueles que ignoram ou desvalorizam o tema. Entretanto, os arqueólogos concordam com a grande relevância dos sítios pré-históricos.

Também foram analisadas onze notícias do Correio Brasiliense e três do Jornal de Brasília sobre arqueologia. O principal objetivo foi analisar a qualidade do conteúdo relacionado com patrimônio arqueológico e informações científicas apresentadas pelas reportagens. Notou-se que as reportagens do Correio Brasiliense são menos técnicas e mais apelativas, associando, por exemplo, palavras como “tesouro” e “riqueza” aos temas arqueológicos. As do Jornal de Brasília são em menor número, mas em melhor qualidade.

Em resumo, pode-se apontar que a antiguidade do sitio é o aspecto mais destacado e não suas características tipológicas ou geográficas. Há um interesse de instituições e comunidade com o conhecimento e preservação do sitio, embora de forma insipiente.

O último capítulo, que abriga as conclusões do trabalho, destaca que o patrimônio arqueológico do parque é ainda intangível, uma idéia abstrata que tomou diferentes formas para diferentes atores e propósitos e por diferentes razões.

A identificação com sítios naturais ou culturais é socialmente construída e não requer se basear em fatos para tomar forma. Comunidades locais podem se identificar com comunidades de caçadores-recoletores somente por terem habitado um mesmo local em um passado remoto.

Os valores institucionais e instrumentais são as ligações mais importantes entre população não nativa e o patrimônio arqueológico local. Os dois tipos de valor estão intrinsecamente relacionados de forma que é difícil separá-los.

Atualmente, a arqueologia não faz parte da vida quotidiana das pessoas em Brasília. Muito embora os entrevistados estivessem cientes da importância dos sítios estudados e da sua preservação, menos de 30 por cento das pessoas citaram espontaneamente essa questão durante a entrevista.

Acerca das instituições importantes para a pesquisa, duas merecem destaque: a administração local e a mídia. As instituições tendem a proteger, de certa forma, os sítios, colocando-os sob os limites do parque e o fato dos sítios serem de difícil identificação para os leigos também os protege. Por outro lado, tal característica não favorece muito o turismo. A mídia, por seu lado, reproduz muitos erros e preconceitos nas reportagens. Sendo, geralmente, a única forma pela qual a comunidade toma conhecimento dos sitos, isso acaba por ser um ponto bastante negativo no processo.

Finalmente, a atenção prestada por instituições e pela mídia aos sítios é pequena e dura somente enquanto os trabalhos estão sendo realizados. O patrimônio arqueológico não está adaptado para gerar valor econômico e social e a motivação das pessoas para a preservação dos sítios tem a ver muito mais com a sua antiguidade do que com outras características importantes dos mesmos.

Como um todo, pode-se afirmar que a presente obra apresenta-se como um estudo crucial para aqueles pesquisadores que pretendem se aprofundar no campo da arqueologia pública brasileira, apresentando-se como um trabalho de competência e de consistência indiscutíveis, reflexo do próprio aprofundamento do campo no país. Abre espaço para que mais trabalhos possam ser realizados dentro da temática em outros contextos brasileiros, a fim de esclarecer quais são os principais fatores que estimulam a população local, especialistas e membros de grupos de preservação patrimonial e ambiental a se importarem com o patrimônio arqueológico e quais são os diálogos possíveis entre ciência e sociedade no que tange à valorização e conservação dos sítios no país.

Referências

GODOY, Renata de. Assessing Heritage Values: Public Archaeology in Brasília. Lambert Academic Publishing, 2012.

Rita Juliana Soares Polonil – Pós-doutoranda em Arqueologia pelo LAP/NEPAM

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Patrimônio Arqueológico e Cultura Indígena – PINHEIRO et al (RIHGB)

PINHEIRO, Áurea; GONÇALVES, Luís Jorge; CALADO, Manuel. (Org). Patrimônio Arqueológico e Cultura Indígena. Teresina: EDUFPI; Lisboa: Faculdade de Belas-Artes, Universidade de Lisboa, 2011, 260 p. Resenha de: FALCI, Miridan Britto Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 174 (458) p.321-328, jan./mar. 2013.

Este livro, organizado por Áurea Pinheiro, Luís Jorge Gonçalves e Manuel Calado, recebe a chancela da Universidade Federal do Piauí (Brasil) e da Universidade de Lisboa (Portugal); integra as atividades acadêmico-científicas-culturais do Grupo de Pesquisa/CNPq “Memória, Ensino e Patrimônio Cultural”, Programa de Pós-Graduação em História, Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, UFPI, e CIEBA, Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes, Faculdade de Belas -Artes, Universidade de Lisboa.

Os organizadores convidaram pesquisadores brasileiros, portugueses e espanhóis, reuniram contribuições que revelam o caráter multidisciplinar das investigações e das ações no campo do patrimônio e da cultura.

A proposta da obra é apresentar as correlações de estudos e ações de arqueólogos, historiadores, sociólogos e museólogos, apresentar cada estudo e intervenção em lócus especial de um contexto temporal e espacial, selecionado por cada um dos autores.

Dir-se-ia que é um trabalho de formato novo, articulado, interpenetrado, comportando estudos de um tempo longo, médio e curto, fugindo, então, das camisas de força teóricas de um método especificamente histórico. Chega-se à conclusão que, articulado como está, passa-nos as conexões do fazer, do ofício das ciências históricas, sociais, da arte e do patrimônio.

Na primeira parte do livro, “Patrimônio e Arqueologia”, Áurea Pinheiro, Cássia Moura e Fátima Alves, no texto “Museus comunitários, Museus Sans Murs”, refletem sobre um projeto em construção, qual seja: a proposição de estudos para futura criação de um Ecomuseu na Ilha das Canárias, no Delta do Parnaíba (Piauí, Brasil). Partem as autoras da concepção de museus de Hugues de Varine. A proposta explicitada no projeto será a construção de um inventário multidisciplinar de bens culturais das Ilha das Canárias. O projeto comportará uma pesquisa interdisciplinar e multidimensional no campo da antropologia, arqueologia, sociologia, história, artes, arquitetura, geografia, meio ambiente, patrimônio e museologia; conhecimentos e documentação produzidos que subsidiarão proposições de ações de conservação e salvaguarda do patrimônio e paisagem cultural do lugar. As autoras pretendem “[…] apresentar uma revisão de literatura sobre a Museologia Social, e algumas notas do trabalho de pesquisa documental e de campo, no contexto do Projeto “Patrimônio Cultural e Museus no Nordeste brasileiro”. Localizam as suas reflexões no campo de estudos interculturais, das Ciências da Informação, das Artes e do Patrimônio, notadamente da História e do Patrimônio Público e da Museologia Social.

No capítulo, “Patrimonio y Nuevas Tecnologías: El Observatorio del Patrimonio Histórico Español [OPHE]”, Juan Manuel Martín García e José Castillo Ruiz nos apresentam o Observatorio del Patrimonio Histórico Español, que surge como uma iniciativa no contexto do projeto de investigação de excelência, “Estudio comparado de las políticas de protección del Patrimonio Histórico en España. Creación del Observatorio sobre el Patrimonio Histórico Español [OPHE]”, concebido em março de 2006, para um períogo de 2006 a 2009, “[…] por la Consejería de Innovación, Ciencia y Empresa de la Junta de Andalucía [España] a un grupo de profesores de la Universidad de Granada, fundamentalmente del Departamento de Historia del Arte y Música”. O projeto consiste na análise de diferentes políticas de proteção na Espanha, por diferentes administrações estatais e autônomas, bem como por instituições privadas relevantes, com competências em matéria de Patrimonio Histórico, para,

[…] a partir de dicho análisis, evaluar, comparar y difundir dichas políticas desde los referentes científicos que definen la protección del Patrimonio Histórico a nivel internacional. Especial interés ha revestido para el proyecto la defensa de la diversidad cultural española entendida tanto en lo referente a la pluralidad o diferenciación local, regional o nacional como en lo relativo a los valores y bienes de interés para el conjunto de la sociedad española, sin olvidar tampoco la dimensión universal de dicho legado cultural.

Luís Jorge Gonçalves escreve sobre o “Patrimonio Histórico e Arqueológico: exemplos de intervenção em Évora, Sesimbra e Idanha-a -Nova”; discute o conceito de patrimônio e suas transformações históricas, nos instiga a conhecer três experiências de atividades museológicas, destacando exemplares de arte. O autor trabalha com saberes e interpretações diversas, mostra-nos o conhecimento dos valores encontrados em Évora, Sesimbra e em Idanha-a-Nova; regiões portuguesas, únicas, que contribuem com os estudos de preservação e documentação, conexões com propostas brasileiras. Em Idanha-a-Velha, situado no interior de Portugal, limitado a leste pela fronteira com Espanha e ao Sul pelo Tejo, cuja história remonta à época romana e à Idade Média, os templários construíram uma rede de castelos, integrando, hoje, o concelho de Idanha-a-Nova.

Em 2009, se concretizou uma exposição liderada pela Câmara Municipal sobre os Castelos Templários nos seguintes temas: “Origens dos Templários e a sua presença em Portugal”, “Rituais Templários” e “Castelos Templários de Idanha”. Segundo Luis Jorge, a memória histórica é muito curta, abismo que se aprofunda para épocas recuadas, o público quando visita os monumentos e museus tem, na generalidade, uma atitude contemplativa; é por isso que novos processos metodológicos procuram dar enquadramentos contextuais ao patrimônio. São as visitas guiadas, os catálogos, os guias, os áudio-guias (agora com versões mais económicas como os “iPod” e “iPad”), das exposições retrospectivas, etc. Nesse caso, tanto os meios tradicionais como as novas tecnologias são recursos para os enquadramentos históricos do património. Para Luis Jorge, podemos considerar que hoje ultrapassamos os modelos de J.J. Winkelmann, porvalorizarmos o contexto em desfavor das obras-primas, não significando isto que vamos “deitar fora essas obras”. O enquadramento geral sobre o (s) momento (s) histórico (s) sobre o qual incidimos, como era a vida quotidiana, como viviam as pessoas, o que comiam, o que pensavam, qual a sua visão do mundo, o que significava (m) aquele (s) elemento (s) do patrimônio cultural sobre o qual incidimos o nosso discurso para as pessoas que investiram muito do seu esforço quotidiano, sendo ainda necessária uma comparação com outras áreas geográficas, a chamada história comparada.

Os ingredientes principais são um bom suporte científico com as exposições temporárias e permanentes, a musealização dos sítios, ou seja, a criação de suportes informativos, as visitas guiadas, as publicações para os diferentes públicos, a imagem em movimento. Nos projetos desenvolvidos em Évora, Sesimbra e Idanha-a-Nova existe sempre um suporte patrimonial. O autor ainda assinala que os vestígios arqueológicos e patrimoniais são um fator importante para compreendermos a vida hoje e que correspondeu ao resultado da vida de pessoas, que, como nós, dormiam, comiam, trabalhavam, tinham as suas crenças, festas e tradições.

Cabe-nos desenvolver um discurso acessível para aproximar os públicos, de modo a sentirem que o patrimônio faz parte deles; e principalmente descobrir o patrimônio a “partir do nosso interior, das nossas vivências e da nossa Paixão por compreendermos o mundo que vivemos”.

No artigo Pensar local….agir local. O museu de arte Pré-histórica de Mação, memória, intuição e expectativa, Luis Osterbeek, Sara Cura e Rossano Lopes Bastos nos remetem às percepções da proposta do livro.

Os autores indagam e se posicionam sobre a preservação, o papel de arqueólogos e da arqueologia através de uma releitura sobre as propostas do que é ser arqueólogo num mundo em transformação. Mostrando a criação do Museu de arte pré-histórica de Mação e as parcerias de um projeto desenvolvido em vários estados do Brasil, incluindo o Piauí, os autores revelam as preocupações de um grupo que entende o valor e a importância do patrimônio de um povo. Lembram que “[…] a prioridade da acção arqueológica permanece, naturalmente, na investigação [sem a qual não há reconhecimento da natureza arqueológica de certas evidências] e na conservação [sem a qual não ocorre a perenização supra geracional das evidências, que é essencial para a sua assimilação social]”; destacam a importância do território e da população local e regional, operando nessa inserção local uma didática da diferença cultural. Finalizando, dizem os autores: “A arqueologia deve promover a exigência de qualidade acreditada e permanentemente avaliada, deixando-se escrutinar pelo juízo crítico de terceiros, fugindo das torres de marfim, e assumindo dessa forma uma eficiente intervenção social, cujo fito social é o de contribuir para a construção de novo conhecimento e sua sucessiva socialização.” Manuel Calado, no texto Arqueologia Pública em Portugal, evidencia o conceito de Arqueologia Pública, considera “[…] um lugar-comum, na América Latina e, em particular, no Brasil; isto, apesar das vidas paralelas que as diferentes perspectivas lhes podem atribuir e, de fato, atribuem”.

Destaca que “Um dos indicadores mais evidentes do desenvolvimento da Arqueologia Pública brasileira prende-se, desde logo, com a prática corrente, exigida pela tutela, de programas de Educação Patrimonial associados a intervenções arqueológicas de resgate.” Para o autor, essa obrigatoriedade na maioria das vezes não se concretiza “[…] no terreno, em acções consistentes e frutuosas”, o que segundo ele cria “[…] um corpus de experiências que, feito o balanço provisório, muito têm contribuído para a criação de uma nova imagem da investigação arqueológica, junto das comunidades e dos poderes públicos”. Em sua análise, a arqueologia e o patrimônio, em sua gênese, revelam um potencial conservador e elitista “[…] muito enraizado que, em certos aspectos, parece contraditório com um mundo dinâmico, empenhado na criação de sociedades mais justas, mais participativas e, em suma, mais democráticas”; contradição que considera ultrapassada.

Em “Arqueologia dos Desaparecidos: identidades vulneráveis memórias partidas. O Registro arqueológico como instrumento de memória social”, Rossano Lopes Bastos trata do registro arqueológico e de sua delimitação legal em diversas normas. “Nas preocupações da Unesco, nas Recomendações de Nova de Delhi (1954) e mais recentemente na Carta de Laussane (1990). As principais definições são quanto a sua amplitude e proteção”. Destaca que no Brasil, “[…] o registro arqueológico tem sua primeira aparição enquanto bem a ser protegido no Decreto-lei nº 25 de 1937, que organiza a proteção do patrimônio histórico nacional no Brasil. Entretanto, o patrimônio arqueológico, para ser protegido, deveria, a despeito de como é formulado com todos os outros bens, ser objeto do procedimento de Tombamento, conforme apregoa o Decreto-lei nº 25 de 1937. Com a edição da lei federal nº 3.924/61, ‘que dispõe sobre os monumentos arqueológicos e pré-históricos’, que ampliou de forma significativa e definitiva a proteção dos sítios arqueológicos em todo território nacional. Destaca-se que a primeira lei de proteção específica do patrimônio arqueológico foi editada no Estado de São Paulo em 1955”.

Na Segunda Parte da obra, Patrimônio e Cultura Indígena, quatro outros capítulos nos remetem às reflexões sobre o que seria o Patrimônio Humano, Cultural deixado pelos antigos habitantes do Nordeste do Brasil: os indígenas. No texto, “A farsa do extermínio: reflexões para uma nova História dos Índios no Piauí”, João Paulo Peixoto Costa nos faz pensar sobre o problema epistemológico e metodológico que acompanha o estudo dos indígenas no Ceará, revelando as atuais preocupações com a urgência da revisão dos conceitos e da política indígena no Brasil. Qual a significação do conceito de extermínio? Como tem sido usada pelos historiadores? O que nos diz a documentação pesquisada e analisada atualmente? No capítulo “Os Senhores das Dunas e os Adventícios d´além mar: a autonomia indígena e o escambo na costa norte brasileira”, Jóina Freitas Borges destaca os conceitos de extermínio e de história negada, mostrando, com base em extenso levantamento historiográfico, a presença indígena no litoral do Nordeste brasileiro; índios enclausurados nas dunas. Esses “senhores” das dunas, como chama a autora, foram responsáveis por um largo comércio com os franceses, de âmbar gris, pau-violeta e ainda foram seguidamente escravizados e vendidos para as Antilhas. Segundo Jóina, se desenvolveu neles, graças a esses contatos com os franceses, uma autonomia única na História dos indígenas brasileiros. Utiliza o conceito de fronteira, desenvolvido por Boccara. O resultado dessa facção isolada e não dominada por mais de um século foi o processo de etnogênese dos tapuias/tremembés.

No capítulo “Um viés da liberdade: a deserção dos janduís e os conflitos no Maranhão e Piauí”, Juliana Lopes Aragão nos revela histórias desconhecidas da capacidade de certas tribos se organizarem e reelaborarem os conflitos com o grupo colonizador e opressor que chegou no Brasil.

Após uma extensa pesquisa de documentação encontrada no Arquivo Histórico Ultramarino, nos revela como os janduís, com seus contatos com os holandeses do Nordeste desenvolveram uma capacidade que chama de “um viés de liberdade”, se organizando em assembleias e exigindo melhores condições de tratamento. No apresenta a questão dos “terços” dos bandeirantes e o “descimento” dos indígenas para o trabalho doméstico ou nas fazendas.

“Menina Moça: cultura material e simbologia do ritual indígena Guajajara, Maranhão, Brasil”, Síria Borges nos apresenta um conjunto de artefatos ligados à dança, música, gastronomia, adornos corporais e afazeres cotidianos do ritual indígena de passagem conhecido como “Menina Moça ou Festa do Moqueado”, comum a vários grupos indígenas brasileiros. A autora destaca que o ritual fortalece “[…] os saberes tradicionais e justificando as relações sociais e de gênero, o ritual de puberdade feminina do povo Guajajara – Maranhão expõe um conjunto de artefatos e técnicas que dentro do cortejo ritualístico assumem significados específicos dos quais serão analisados neste texto”.

Esta obra é reveladora da importância e da multiplicidade de objetos, temas e abordagens que marcam os estudos e as investigações no campo do patrimônio cultural, notadamente no Brasil, Portugal e Espanha.

Miridan Britto Falci – Professora do Programa de Pós-Graduação em História Comparada do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ e Sócia Titular do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Antrope | CAQ | 2013

Antrope

Antrope (Tomar, 2013-) insere-se na temática geral: GD 7 – Interdisciplinar (Social Sciences – Interdisciplinary, History and Philosophy of Science).

É uma publicação electrónica cuja Série Periódica é semestral.

É editada pelo Centro das Arqueologias (ex-Centro de Pré-História; ex-Centro Transdisciplinar  das Arqueologias), do Instituto Politécnico de Tomar (Portugal).

Tem como objectivo proporcionar um espaço informativo multidisciplinar e transversal entre as Ciências Sociais, Humanas, da Terra e da Vida.

Pretende-se que o conteúdo seja de acesso livre, permitindo aos investigadores obter informação disponível gratuitamente aumentando assim o intercâmbio do Conhecimento.

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Periodicidade semestral

ISSN 2183-1386

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Arqueologias., História., Didática da Arqueologia., Arqueometria., Antropologia Biológica., Zooarqueologia., Traceologia., Proveniência de Matérias-Primas., Património Arqueológico., Multidisciplinar

Património Arquitetónico e arqueológico. Noção e Normas de proteção – LOPES (LH)

LOPES, Flávio. Património Arquitetónico e arqueológico. Noção e Normas de proteção. Lisboa: Caleidoscópio, 2012. Resenha de: VIEIRA, Clara Bracinha. Ler História, n.63, p. 199-203, 2012.

1 A obra consiste numa análise das políticas de salvaguarda do património cultural em Portugal, nos últimos cem anos, através da investigação sobre a legislação aplicável e o conceito de património cultural imóvel.

2 Flávio Lopes é arquiteto e executa, desde há mais de duas décadas, tarefas no âmbito da proteção do património edificado, como técnico no Instituto Português do Património Cultural (IPPC), depois IPPAR e IGESPAR, tendo desempenhado em diversos momentos funções de direção e, assim, acompanhado as mudanças políticas e as consequentes alterações dos conceitos e das prioridades.

3 Na primeira parte da obra, é analisada a evolução histórica do quadro legislativo e dos procedimentos para a conservação dos bens imóveis com valor histórico ou artístico, de 1901 a 2001. Na segunda parte é feito um resumo dos conteúdos da legislação posterior a 2001.

4 Começando pelo Alvará de 20 de agosto de 1721 constata-se a determinação de inventariação e conservação de todos os monumentos antigos que expressam o passado de Portugal.

5 Com a extinção das ordens religiosas em 1834, colocou-se a questão de saber o que fazer com os edifícios notáveis das igrejas e conventos reconhecendo-se a importância da sua conservação. É mencionada a corrente de opinião que levou o Estado a fazer obras de restauro em alguns dos monumentos mais representativos e, em 1880, a constituir a Lista dos Edifícios Monumentais do Reino.

6 Mas é sobretudo sobre o período que decorre de 1901 a 2001 que incide o estudo. Logo em 1901 foi aprovada a orgânica do Conselho dos Monumentos Nacionais a quem competia estudar e propor as medidas de preservação do património monumental, e aprovado o decreto que estabelece os critérios de classificação, assentes em valores históricos, arqueológicos e artísticos. São classificados 454 monumentos nacionais. O mesmo decreto prevê expropriações e o conflito de interesses públicos e privados.

7 Com a República foram mais uma vez extintas ordens religiosas e agudizou-se a urgência de acautelar a preservação do património edificado, sendo nesse contexto criado, em 1911, o Conselho de Arte e Arqueologia que tinha como missão proceder à classificação dos monumentos, bem como propor e apreciar projetos de restauro. É ainda prevista a possibilidade do Estado executar obras nos edifícios classificados de propriedade particular se provada a incapacidade financeira dos seus proprietários para as realizar.

8 A partir de 1919 é ao Ministério da Educação Pública que cabe decidir sobre o património monumental. Em 1924, a Lei n.º 1700 permitiu a intervenção do Estado nos espaços envolventes dos imóveis classificados que deles distassem menos de 50 m, possibilitando o exercício do direito de preferência de compra e a expropriação para a demolição de edifícios, alegando motivos estéticos, de insalubridade ou de enquadramento. A expressão «Imóvel de Interesse Público» passa a ser usada para designar os imóveis com considerável interesse artístico, histórico ou turístico.

9 De 1926 a 1932, três diplomas legais criam a possibilidade de classificação do património arquitetónico e arqueológico em graduações inferiores à de monumento nacional, estabelecem proteção aos bens em vias de classificação e instituem zonas de proteção. Nessas zonas é obrigatório parecer do Conselho Superior de Belas Artes para novas construções ou intervenções no existente.

10 A difusão das teorias de Giovannoni sobre o interesse na proteção
das áreas envolventes dos bens classificados leva à publicação, em 1932, do decreto que aprofunda a noção de proteção da envolvente dos bens classificados e cria a possibilidade de demarcação de áreas vedadas à construção, acautelando o enquadramento urbanístico, artístico e paisagístico.

11 Entretanto, em 1929, depois de uma disputa de poderes entre o ministério que tutelava as obras públicas e o Ministério da Instrução Pública e Belas Artes, é criada a DGEMN, a quem caberá conservar e restaurar o património monumental e elaborar propostas de delimitação de zonas de proteção de monumentos nacionais e de imóveis de interesse público, excluindo os imóveis sob tutela das forças armadas.

12 Em 1936, foi extinto o Conselho Superior de Belas Artes e criada a Junta Nacional de Educação, a quem coube a responsabilidade da proteção de monumentos e na área da arqueologia. A zona de proteção do património arquitetónico era agora entendida como defesa estética. Quanto à proteção dos terrenos envolventes das escavações arqueológicas, foi fundamentada pela necessidade de precaver futuras escavações.

13 Em dezembro de 1940, foi estabelecida uma nova divisão administrativa do país e atribuídas às câmaras municipais competências para as tarefas de preservação, defesa e aproveitamento dos monumentos e da paisagem, e para as apoiar foram criadas as Comissões de Arte e Arqueologia que emitiam pareceres e sugeriam às câmaras municipais o que entendessem conveniente para a preservação dos valores arquitetónicos e valores paisagísticos e para o desenvolvimento turístico.

14 A primeira referência legislativa à classificação de conjuntos classificados foi feita em 1948, com a classificação do aglomerado urbano de Marvão.

15 Em 1949, as câmaras municipais passaram a poder propor a classificação como monumento nacional ou imóvel de interesse público, de elementos ou conjuntos com valor arqueológico, histórico, artístico ou paisagístico que existissem no concelho, promovendo a sua classificação como valor concelhio.

16 Quanto às competências dos responsáveis pelos projetos de novas construções em zonas de proteção de monumentos houve, em 1954, a determinação de serem assinados por arquitetos ou por construtores civis. Mas só em 1988, será atribuída exclusivamente aos arquitetos a responsabilidade de subscrever projetos de arquitetura de obras de recuperação, conservação, adaptação ou alteração dos bens imóveis classificados ou em vias de classificação e das respetivas zonas de proteção.

17 A Junta Nacional de Educação verá as suas atribuições regulamentadas e consolidadas em 1965, em 1970 e em 1971, mas é então criada a Direção-Geral dos Assuntos Culturais, com funções de organização do cadastro dos bens inventariados ou classificados e a defesa e valorização de todos os bens culturais.

18 O conceito de «zona de proteção» vai evoluindo criando-se, para além da que decorre da distância de 50m do monumento, a «zona especial de proteção» que exige reconhecimento de utilidade pública.

19 Entre 1975 e 1980, houve reestruturações orgânicas na área da cultura e o Instituto Português do Património Cultural passou a depender da Secretaria de Estado da Cultura, e a ter como competências planear, promover a pesquisa, proteger e salvaguardar os bens do património cultural e definir diretrizes para a defesa e conservação desse património.

20 Os bens imóveis foram agrupados nas categorias de monumentos, conjuntos e sítios, sob influência da Convenção do Património Mundial Cultural e Natural promovida pela UNESCO em 1972.

21 A Lei n.º13/85, de 6 de julho, foi a primeira Lei de Bases do Património Cultural Português, e traduz as orientações do Conselho da Europa. Os critérios de avaliação são baseados nos valores histórico, arqueológico e artístico, mas são acrescentados os «interesses científico, técnico e social». Surgem ainda critérios complementares como os de integridade, autenticidade e exemplaridade. Há disposições para que se mantenha a relação entre o bem cultural e o local onde foi criado, e de proteção ao enquadramento «orgânico, natural ou construído» dos bens culturais imóveis. É o reconhecimento do valor atribuído ao enquadramento.

22 Por outro lado, os proprietários passaram a poder requerer ao Estado, em defesa dos seus interesses, a expropriação dos seus bens quando se localizassem em zonas de proteção.

23 A noção de «conservação integrada» do património cultural, defendida pela UNESCO que, desde 1975, difundia os conceitos de «salvaguarda dos conjuntos históricos» e de «planos de salvaguarda», bem como a Lei Malraux sobre a salvaguarda de áreas urbanas antigas, vem a traduzir-se numa disposição da Lei n.º 13/85 que determina a elaboração de planos de salvaguarda para as áreas classificadas. Os objetivos e o conteúdo material destes planos não estão ainda definidos nesta lei, ficando dependentes de legislação futura. Teve como consequência a aprovação em 1985 do Programa de Reabilitação Urbana (PRU), alterado em 1988 pelo Programa de Reabilitação de Áreas Degradadas (PRAUD), que financiavam a reabilitação de edifícios em áreas degradadas, e levam à delimitação de áreas de reabilitação urbana e criação de gabinetes técnicos locais (GTL).

24 Na segunda parte da obra, são analisadas as normas e os conceitos desde 2001, ano em que foi publicada uma nova Lei de Bases do Património Cultural, até 2012. Nessa altura, a salvaguarda do património cultural estava sob a responsabilidade do IPPAR e do IPA criado em1997.

25 A Lei n.º 107/2001, ao assentar a proteção do património arquitetónico e arqueológico na classificação e inventariação dos bens, responsabilizou os proprietários e as entidades que os administravam pela sua preservação.

26 Foram ainda redefinidos os critérios de classificação, essencialmente os valores estéticos, os valores religiosos, os valores históricos, os valores da memória coletiva e o interesse científico e é feita a conversão das antigas classificações para as novas designações. Assim, os antigos «valores concelhios» passaram a ser «bens de interesse municipal», as categorias de «conjunto» e «sítio» serão objeto de revisão e as anteriores classificações de bens culturais imóveis e zonas de proteção avaliadas caso a caso. Também os conceitos de «conservação» e «restauro» foram alterados, passando a incorporar a compreensão da obra, o conhecimento da sua história e o seu significado, bem como as ações para garantir a sua preservação, restauro e valorização.

27 Em 2007 com o Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado (PRACE) os dois organismos fundiram-se num único, o Instituto de Gestão do Património Arquitetónico e Arqueológico (IGESPAR). No mesmo ano foram criadas as Direções Regionais de Cultura do Norte, Centro, Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve.

28 Em 2012, o Plano de Redução e Melhoria da Administração Central (PREMAC), a salvaguarda do património arquitetónico e arqueológico ficou a depender da Direção Geral do Património e das Direções Regionais de Cultura do Norte, Centro, Alentejo e Algarve.

29 A alteração dos conceitos levou à alteração dos critérios de classificação, pelo que a lei da Reabilitação Urbana regulamentou as figuras do Plano de Pormenor de Salvaguarda e do Plano de Pormenor de Reabilitação Urbanapermitindo finalmente a sua concretização, de iniciativa municipal, onde ficarão estabelecidas as hierarquias dos valores e regras de gestão urbana dos conjuntos arquitetónicos. Mas mantém-se o parecer vinculativo do IGESPAR, I.P., sobre projetos ou intervenções em imóveis individualmente classificados de interesse nacional mesmo que inseridos em área abrangida por um plano de pormenor de salvaguarda.

30 Estabelece ainda o mecanismo da venda forçada de imóveis, que obriga os proprietários que não realizem as obras a que foram intimados, à alienação dos bens em hasta pública.

31 O último capítulo trata das normas aplicáveis aos bens classificados como Património Mundial, e também dos conceitos e dos critérios de classificação.

32 Da bibliografia constam autores que vão desde os teóricos da preservação de bens culturais até aos juristas que estudaram ou produziram alguma da legislação referida. Nas últimas páginas figura uma utilíssima listagem da legislação referida ao longo do texto, de 1901 a 2012.

33 Da leitura da obra ressaltam como constantes, a disputa pela tutela do património entre a Educação, a Cultura e as Obras Públicas e entre a administração central e a administração local, as tentativas de sobrepor os interesses do Estado aos interesses dos particulares, a influência da UNESCO e do Conselho da Europa na alteração dos conceitos, e o progressivo alargamento do conceito de imóvel classificado, passando do bem individual para a zona envolvente de proteção do monumento e desta para o conjunto arquitetónico e para a área de reabilitação integrada.

34 Não foi mencionada a legislação que regulamenta a proteção das paisagens como, por exemplo, os planos de ordenamento das áreas protegidas que, de outra forma, tiveram também um papel importante na defesa dos valores da paisagem rural portuguesa. Subjacente à sucessiva redação legislativa está a interação dos atores particulares, investidores, técnicos e construtores, com os poderes públicos da administração local e central, espelhada na constante alteração dos conceitos.

35 Falta a avaliação da eficácia deste corpo legislativo na real proteção do património construído e da paisagem em Portugal.

Clara Bracinha Vieira – Doutoranda em História Moderna e Contemporânea no ISCTE-IUL e investigadora do CEHC-ISCTE-IUL. A sua área de investigação são as técnicas de construção em Lisboa. E-mail: claravieira_583@hotmail.com

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Patrimônio Arqueológico de Caxias do Sul | Rafael Corteletti

Qual o destino dos sítios arqueológicos quando uma pesquisa e concluída no Brasil? Poucos entre milhares passaram efetivamente a ser preservados e transformados em tema de amplo (re)conhecimento público e pesquisa continuada. O esquecimento e o abandono foi o destino da maioria. A destruição, total ou parcial, pelos mais diversos meios, também foi o que aconteceu com uma quantidade desconhecida de sítios arqueológicos pais afora. Todavia, existe uma parcela da comunidade de arqueólogos brasileiros – acadêmicos, funcionários do IPHAN e de outros órgãos públicos, de ONGs e do setor privado –, buscando alternativas para solucionar a destruição do Patrimônio arqueológico no Brasil, uma tarefa gigantesca.

O consenso internacional indica que a principal solução e a publicação dos dados de pesquisa e do sítio arqueológico e a programação de ações que ativem a atuação da sociedade civil organizada em programas como a AGENDA 21. E o meio mais próximo da transparência e da ética aliadas com a ciência, como ferramenta de trabalho da gestão do Patrimônio arqueológico. Junto com elas, a construção de relações simétricas em nível local, envolvendo as comunidades, os pesquisadores, o IPHAN, o Ministério Público e os três níveis de Poder Executivo, para tomar decisões sobre o destino dos sítios arqueológicos

O livro de Rafael Corteletti e um exemplo relevante, que merece ser seguido quando se trata de sítios arqueológicos. Especialmente quando apresenta a localização e o estado de conservação, relatando temas científicos com linguagem despida de jargões, cumprindo o objetivo de atrair e informar o público não acadêmico. Sua abordagem mostra o que aconteceu com os sítios ao longo de 40 anos, desde os primeiros trabalhos de Fernando La Salvia e Pedro Inacio Schmitz em 1966, até Corteletti e seus colegas retornarem em 1999, 2000 e 2006. Os sítios são apresentados individualmente, através de um memorial descritivo das evidências arqueológicas, principalmente das estruturas subterrâneas, dos abrigos sob rocha e dos montículos, da sua quantidade e dimensões, do seu estado de conservação e da distancia de outros sítios.

A maioria dos cadastros de 1966 finalmente recebeu sua coordenada geográfica. Todos os dados quantitativos aparecem em diversas tabelas e gráficos. várias fotos mostram aspectos dos sítios e das pesquisas em 1966 e 1999-2000, 2006. Diversos mapas contextualizam a área piloto da pesquisa, muitos deles vem acompanhados de tabelas e gráficos de diversas informações, desde a relação entre sítio e proprietário atual do terreno, até a relação entre índices de preservação e destruição. Croquis dos sítios também ilustram o livro e mostram aspectos espaciais das estruturas. Desenhos em perspectiva e fotos panorâmicas mostram a inserção dos sítios. Algumas fotos mostram o estado atual dos sítios, inclusive de um aproveitado como lixeira (foto 27). Tabelas com as datações informam sobre a cronologia da ocupação regional. Também foram realizadas diversas análises comparadas sobre as estruturas subterrâneas.

Corteletti complementa a descrição da inserção dos sítios com várias informações sobre o contexto ambiental da área piloto. Com o objetivo de relatar os processos de transformação da paisagem e dos seus impactos sobre os sítios, sobretudo o desmatamento, apresenta um capítulo sobre o processo de ocupação europeia da região da pesquisa, a partir do século 18, com a distribuição de sesmarias pelo governo colonial aos “lusitanos” e seus escravos. Depois trata da instalação de imigrantes, principalmente, italianos. E uma parte importante, pois mostra com clareza como as serrarias, lavouras e a implantação da malha urbana e das vias públicas, afetaram os sítios arqueológicos. O autor mostra qual foi a relação dos italianos, dos lusos e descendentes com a preservação/destruição dos sítios, em função dos tipos de exploração econômica. Nas terras dos italianos 19% estão preservados e 35% alterados, enquanto que os lusos preservaram 36% e alteraram 46%, e Corteletti ressalta que seu objetivo não é “condenar ou isentar quem quer que seja”, mas verificar os efeitos dos modelos de colonização sobre a degradação dos sítios arqueológicos.

Com efeito, o balanço geral e alarmante: 39,5% dos sítios foram destruídos e 37,5% estão seriamente ameaçados. O Patrimônio arqueológico registrado da região de Caxias do Sul está por um fio e o livro e um diagnostico que precisa ser debatido, para decidir qual o destino dos sítios restantes.

Outro aspecto que o livro revela, que de certa forma ocorre desde a pesquisa de 1966, e a relação positiva dos pesquisadores com a comunidade. Por todo o livro, especialmente quando os sítios são descritos, a comunidade aparece representada por diversos personagens, a maioria interessada em colaborar com a pesquisa. O autor faz um balanço sobre o problema da destruição e reflete sobre a necessidade de “vestir a camiseta” da preservação e da busca de alternativas.

Por fim, algumas palavras a respeito da interpretação dos dados de Caxias do Sul como tradição arqueológica. Trata-se do calcanhar de Aquiles da arqueologia brasileira, que não è exclusivo de Corteletti, que se posicionou assim nas conclusões sobre os sítios arqueológicos: “O que se sabe, de concreto, e a ligação com o Tronco Je. Daí em diante, surge uma serie de especulações e hipóteses que tentam atrelar os construtores do planalto com as populações Kaingang”. Corteletti sugere de forma acertada, que o estabelecimento de uma relação de continuidade entre os contextos arqueológicos e históricos “deve ser uma obsessão”. Porém, como autor de trabalhos dedicados a revisar as interpretações dos arqueólogos sobre o caso dos Je do sul, publicados antes de 2008, não posso concordar com a afirmação de que o estado da arte esteja apenas em nível de “especulação e hipóteses”. Primeiro, Corteletti ignora solenemente análises dedicadas “obsessivamente” a examinar os problemas de pesquisa das Tradições Taquara e Itararé, especialmente da minha avaliação detalhada sobre todas as interpretações arqueológicas que trataram da continuidade entre essas tradições e os Je do sul. Segundo, ele preferiu seguir a linha do PRONAPA, que não teve por objetivo examinar o tema da continuidade e passou os últimos 40 anos sem refletir sobre os processos da longa duração dos Je do sul, problemática que eu também analisei com cuidado e de modo muito circunstanciado. Terceiro, ao seguir essa linha também deixou de lado uma serie de historiadores, antropólogos e linguistas que publicaram estudos que contextualizam de forma cabal a presença dos Je do sul, especialmente dos Kaingang, em todos os territórios onde são encontradas estruturas subterrâneas. Quarto, quando trata da ocupação do sul do Brasil pelos Je, Corteletti escreveu que “acredita-se numa possível ligação com povos da chamada Tradição Una”. Novamente desconheceu a detalhada análise que publiquei sobre o processo de ocupação do sul do Brasil, comparando estudos de linguistas e arqueólogos. Também não citou a tese de Jose Brochado, autor da mais ampla e detalhada pesquisa sobre as relações entre as cerâmicas da Tradição Una e das Tradições Itararé e Taquara.

Corteletti não é obrigado a citar as minhas publicações ou a tese de Brochado. Todavia, como ele se apresentou a um campo cientifico composto de várias perspectivas e linhas de pesquisa, deveria no mínimo ter justificado uma razão para não concordar ou não considerar nossas abordagens e conclusões. Especialmente a famosa tese de Brochado, um divisor de aguas da arqueologia brasileira. Talvez seja por causa da linha de pesquisa da instituição onde Corteletti fez seu mestrado, origem do livro, o Instituto Anchietano de Pesquisas da UNISINOS, que mantem basicamente a mesma posição desde o final da década de 1960, centrada na catalogação e descrição. A análise e a interpretação movida por problemas da teoria arqueológica e antropológica nãoesta presente, na espinha dorsal dos inúmeros e importantes projetos conduzidos pelo Anchietano. O fato e que a interpretação de dados tão bem coletados perdeu espaço neste relevante livro, cujo maior mérito e oferecer informações uteis e decisivas para a gestao do Patrimônio arqueológico.

Finalmente, o titulo do livro destoa dos debates contemporaneos sobre Patrimônio Finalmente, o titulo do livro destoa dos debates contemporâneos sobre Patrimônio cultural. Tem sido cada vez mais frequente que arqueólogos, no Brasil, intitulem seus livros, pomposamente, como Patrimônio arqueológico de tal ou qual região. Contudo, o que notabiliza o debate contemporâneo internacional e a definição de Patrimônio como categoria de pensamento e ação politica, e não como um dado em si, a depender exclusivamente de um cientista – ou de um arqueólogo e sua equipe – para conceitua-lo e protege-lo. Patrimônio cultural, na acepção contemporânea, e uma categoria que envolve, por um lado, o conjunto de representações culturais dos diversos grupos sociais de um contexto dado, considerando-se, inclusive, os próprios arqueólogos, cujas noções e definições nunca estão isentas de politicas e critérios culturais sobre a paisagem; de outro, instituições variadas, como as comunidades cientificas, ONGs, universidades, comunidades locais e os dispositivos da legislação. Os arqueólogos brasileiros, no geral, passam, lamentavelmente, ao largo dessa definição mais ampla e informada sobre Patrimônio arqueológico. O livro de Corteletti não é exceção. Uma coisa e estudar para delinear politicas de proteção aos sítios arqueológicos, função muito bem realizada por Corteletti; outra, muito distinta, e, de saída, definir o conjunto de sítios de uma região como Patrimônio, desconsiderando- se a riqueza e sofisticação contemporâneas dos debates sobre Patrimônio cultural. Ainda assim, os agentes dos órgãos públicos, os arqueólogos e a sociedade civil organizada, dispõem no livro de Corteletti, de um diagnostico efetivo para definir suas pautas de trabalho em defesa dos sítios arqueológicos da região de Caxias do Sul.

Francisco Silva Noelli – Prof. Aposentado da Universidade Estadual de Maringá, Paraná.

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CORTELETTI, Rafael. Diálogo com Francisco Noelli a respeito da resenha para o livro “Patrimônio Arqueológico de Caxias do Sul”. Revista de Arqueologia, v.23, n.2, p.164-167, 2010.

Não posso negar que Noelli foi bastante crítico em sua resenha. Lembro muito bem do momento em que estava redigindo as passagens que foram comentadas por ele com tanto vigor. Eu estava processava uma grande quantidade de dados numéricos que compõe o capítulo de distribuição e implantação dos sítios e quica posso ter construído uma interpretação arqueológica discutível. Diria que em momentos de grande produção, por vezes, ficamos meio cegos. Enfim, hoje sei que, infelizmente, esqueci muitos autores e não tratei determinadas abordagens. Mas, exatamente por saber disso, atualmente oriento meu trabalho no sentido de contemplar uma serie de questões que deem conta da multiplicidade de estórias-até-agora dos Je Meridionais.

Mas o objetivo principal dessa publicação não foi abordar as origens desse povo, mas sim falar da conservação de sítios arqueológicos. O estudo de caso e Caxias do Sul, mas falo do Brasil e dos desafios da Arqueologia Brasileira. E bom citar que a obra nasceu, ainda em 2006, de uma dissertação de mestrado intitulada “Casas Subterrâneas em Caxias do Sul: Conservação, Distribuição e Implantação”. Em 2007 o texto foi premiado num concurso municipal chamado Fundo pró-cultura. Segundo a comissão de avaliação e seleção ele seria publicado com a condição de que o tom acadêmico fosse esmaecido. Dessa forma adaptei o texto para deixa-lo mais leve e dinâmico e redigi de tal maneira que fosse possível a um leigo a compreensão absoluta da temática arqueológica e, principalmente, da temática conservacionista. Assim, com novo título e remodelado, em 2008, lancei a obra com um objetivo acima de tudo educativo. Com financiamento da Prefeitura Municipal de Caxias do Sul, através do Fundo pró-cultura, foi feito um “convite a arqueologia”.

Portanto, o uso da palavra Patrimônio no título não teve objetivos pomposos, muito pelo contrário, foi pragmatismo puro. Independente do que se debate na esfera internacional eu precisava convencer a opinião pública e o pequeno produtor rural de Caxias do Sul de que os “buracos de bugre” ou as grutas com sepultamento tinham um valor imensurável para toda a sociedade caxiense e, por extensão, a brasileira. Precisava despertá-los para a necessidade de manter a mata no entorno dos sítios em pe, precisava alerta-los de que o melhor lugar para a produção de tomates não era exatamente onde os sítios estavam… Por isso o nome do livro tornou-se “Patrimônio Arqueológico de Caxias do Sul” diferente da dissertação de mestrado que, convenhamos, tem um título que não chama a atenção de mais do que 20 ou 30 arqueólogos, que dirá de uma comunidade que, como Noelli muito bem apontou, criou um cenário alarmante no que se refere a conservação dos sítios. Com esse título eu disse a comunidade que os sítios têm valor e que e ela, em última instancia, que detém a responsabilidade por sua conservação ou não. Em momento algum o trabalho foi direcionado no sentido de policiar as atitudes e elencar boas ou más ações dos indivíduos ou estabelecer o que deve ou não ser valorizado enquanto bem cultural. Orientei o trabalho no sentido de incorporar os sítios arqueológicos a vida das comunidades (rural e/ou urbana) e dessa forma produzir uma reflexão sobre as facetas da história daqueles locais. Desde o tempo-espaço em que os sítios eram habitados pelos Je, passando pela chegada das famílias de colonizadores europeus, pelas memorias das pesquisas e das pessoas dos anos 60 e chegando até hoje quando alguns sítios já estão fisicamente apagados e outros ainda não.

O livro e na verdade um catálogo atualizado das condições em que se encontra a maior parte dos sítios arqueológicos no município – já que após a publicação outros sítios ja foram detectados. Em determinados momentos o tom e de denúncia pelo Patrimônio destruído e o estado em que se encontra o conservacionismo arqueológico no Brasil, em outros o tom e de paixão pelo Patrimônio e a paisagem em que esses assentamentos se inserem. E permeia em todo o texto a ideia de que e o indivíduo que vai preservar ou destruir esse Patrimônio, e por isso, e o indivíduo, em última instancia, que precisa ser informado para que “a marcha destrutiva e silenciosa que ocorre dia-a-dia sobre este Patrimônio cultural e instrumento de trabalho” de inúmeros profissionais deixe de ocorrer. Assim sendo, como contrapartida a publicação da obra, uma série de atividades de educação patrimonial e arqueologia publica foram realizadas. Durante 30 dias a mostra “Fragmentos da História”, com as peças arqueológicas que estavam há mais de 30 anos na reserva técnica do Museu Municipal, recebeu mais de 1.500 visitantes. Antes disso, a exposição permanente começava sua narrativa com a fundação da colônia italiana, mas agora o passado indígena também faz parte do contexto musealizado.

Cada escola do Município (das redes municipal, estadual e privada) recebeu um exemplar (num total de 300 livros doados) e professores assistiram palestras sobre o tema. Junto disso, no primeiro trimestre de 2009, num novo desdobramento provocado pelas vontades locais, foi dada a largada experimental para aquilo que hoje ja e mais uma atividade de desenvolvimento sustentável: o turismo arqueológico.

Imbuído da ideia de que o Patrimônio Arqueológico e integrado tanto por bens materiais como pelas informações que dele podemos aferir como, por exemplo, a implantação geográfica, a ocupação do espaço e as configurações ecológicas escolhidas pelas populações pretéritas, foi selecionado um sitio de beleza cênica impar localizado na comunidade da Criúva. Para la durante os anos de 2009 e 2010 foram levadas mais de 500 pessoas em grupos que variam em número: desde famílias com 4 ou 5 pessoas ate grupos de 30 ou mais em ônibus escolares. Muitos não sabiam da existência de tal Patrimônio e ficaram impressionados com o que viram. Alguns professores das escolas da região relataram total desconhecimento deste Patrimônio. De certa forma, 500 pessoas não parece um grande número, principalmente, se comparado aos visitantes de sítios como a Missão de São Miguel Arcanjo, por exemplo. Mas o fato e que esta atitude e um embrião que explora as potencialidades locais e gera sustentabilidade – apesar de não existir qualquer tipo de infraestrutura criada para visitação ou divulgação em mídia. Enfim, depois de 40 anos de esquecimento, cooptamos multiplicadores do conhecimento dessa riqueza cultural para que a arqueologia e o passado indígena desabrochassem novamente. O resultado e o trabalho de guias de turismo da própria comunidade instruídos arqueologicamente e dispostos a informar que eles são os agentes diretamente responsáveis pela conservação dessa memoria e promoção desse Patrimônio.

Por tudo isso, creio que Noelli se engana ao comentar que o livro não trata o Patrimônio como “uma categoria de pensamento e ação política”. Como Noelli se notabiliza por ser um grande debatedor teórico-conceitual, e compreensível que sua leitura observe o quanto o livro contempla a base epistemológica das agendas internacionais. Entretanto, apesar de Noelli discordar, o livro cumpre sim – mesmo que incipientemente – a função de articular elementos para a compreensão do “conjunto de representações culturais dos diversos grupos sociais de um contexto dado”, na medida em que seu objetivo central e o exercício do dialogo, em primeira instancia, com os grupos sociais da comunidade de Caxias do Sul – e quica da brasileira – para alavancar o despertar de uma pratica conservacionista. E realmente, minhas “noções e definições” não “estão isentas de políticas e critérios culturais sobre a paisagem”, pelo simples fato de que além de ser arqueólogo sou um membro da comunidade. Sou mais um daqueles que tanto entrevistei em Caxias – e continuo entrevistando em outros locais – que lembram com nostalgia das brincadeiras de infância dentro das enormes crateras que ninguém sabia o que eram… No meu caso a nostalgia e maior ainda, já que o sítio que tanto brinquei, anos depois cedeu lugar as ruas de um novo bairro, talvez ao mesmo tempo em que, numa universidade a 300km dali, eu descobria o que as tais crateras significavam. Nesse sentido, a paisagem e um elemento ativo nas ações humanas, ela nutre e e nutrida pelas interações sociais como um conjunto de formas que em dado momento exprimem memorias socialmente construídas – como as minhas.

Em linhas gerais nas Ciências Humanas gostamos muito debater sobre a construção do conhecimento, as vezes falando da sociedade, mas, infelizmente, a parte dela. Alguns arqueólogos, nesse sentido, esquecem que vários sítios arqueológicos, nossa matéria-prima de discussão, estão sendo descartados cotidianamente. Há o descarte inconsciente, por indivíduos que desconhecem totalmente o que e um sitio arqueológico e o destroem por ignorância. Ha, também, o descarte levado a cabo conscientemente por indivíduos que precisam obter renda – como e o caso dos vendedores de terra preta dos cerritos da Praia do Laranjal, entre tantos outros exemplos. E não podemos esquecer, nesses tempos de desenvolvimentismo acelerado, que há o descarte legalizado de sítios através da pratica do “resgate” ou “salvamento”. A coleção arqueológica e salva ou resgatada, mas perde- se o sítio arqueológico, perde-se o lugar e todo o simbolismo que ele poderia expressar se fosse conservado. Não estou demonizando a arquelogia empresarial, não é isso. Afinal, sabemos que a Arqueologia Brasileira vem sendo impulsionada pelas grandes obras de infraestrutura dos últimos anos de tal forma que novas graduações estão ai para suprir a demanda de profissionais. O que questiono, com esse comentário, e a ação de órgãos governamentais e arqueólogos no processo de decisão  daquilo que e relevante e deve ser “salvo” e daquilo que não é relevante e, dessa forma, nem “salvo” precisa ser. Será que nossos profissionais trabalhando em ritmo industrial e, por vezes, com métodos de prospecção pouco sistemáticos realmente conseguem medir a relevância de um bem cultural? Além disso, questiono qual e o nosso papel como produtores e disseminadores de conhecimento? Questiono a validade da produção de conhecimento que não vai além dos debates do próprio grupo que o gerou? Afinal, temos em nossas mãos um objeto de pesquisa que seduz as pessoas, ou uma grande parcela delas. Temos de usar esse objeto a nosso favor e tornar a arqueologia mais popular, mais pública e assim disseminar o conservacionismo do Patrimônio arqueológico e, em última instancia, evitar o descarte dos lugares, o descarte dos sítios arqueológicos para que as pesquisas de hoje e do futuro possam ser desenvolvidas.

Em síntese, concordo com Noelli quando ele diz que devemos buscar arqueologicamente as diferenças que vemos etnologicamente entre os Kaingang e os Xokleng, por mais complicada que essa tarefa seja. E mais, devemos investigar as origens dos Je Meridionais para ilustrar a emergência da complexidade social desses grupos. Mas, não podemos nos furtar de lutar pela conservação dos sítios arqueológicos, já que são eles que nos darão as pistas para elucidar nossas problemáticas.

Rafael Corteletti – Doutorando em Arqueologia no museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), bolsista CNPq. E-mail: rafacorteletti@hotmail.com. Endereço: Avenida Venâncio Aires 70/405, bairro Cidade baixa, Porto Alegre, RS, brasil, CEP 90040-190.


CORTELETTI, Rafael. Patrimônio Arqueológico de Caxias do Sul. Porto Alegre: Nova Prova Editora, 2008. 199p. Resenha de NOELLI, Francisco Silva. Revista de Arqueologia, v.23, n. 2, p.156-159, 2010. Acessar publicação original [IF]