A consciência de um império: Portugal e o seu mundo (sécs. XV-XVII) – MARCOCCI (VH)

MARCOCCI, Giuseppe. A consciência de um império: Portugal e o seu mundo (sécs. XV-XVII). Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012, 533 p. PANEGASSI, Rubens. Varia História. Belo Horizonte, v. 30, no. 52, Jan./ Abr. 2014.

Giuseppe Marcocci é um historiador cujas publicações tem ganhado notoriedade junto aos investigadores dedicados ao estudo da formação do Império ultramarino português. Doutor em História pela Scuola Normale Superiore (2008), atualmente é professor da Università degli Studi della Tuscia e tem dedicado suas investigações ao mundo ibérico, com especial atenção ao caso Português e seus principais temas, tais como Inquisição, escravidão, missões extra-europeias e também a justiça no Antigo Regime. No Brasil, participou recentemente evento, além de ter publicado artigos em periódicos relevantes, tais como a Revista de História da Universidade de São Paulo e a revista Tempo da Universidade Federal Fluminense.

Sem perder de vista as contribuições de grandes nomes da historiografia, tais como Luís Filipe Thomaz, António Manuel Hespanha, Francisco Bethencourt e Laura de Mello e Souza, importa notar que o livro de Marcocci traz efetiva colaboração a um campo de estudos onde o número de pesquisas é relativamente escasso. Desse modo, ao preencher uma notória lacuna a respeito do âmago das conquistas lusas, o livro consolida seu trabalho como referência imprescindível aos intressados no debate a respeito da configuração dos impérios coloniais e suas doutrinas políticas nos primórdios da Época Moderna.

Assim, ainda que o autor nos assegure que a noção de império seja pouco comum nas fontes da época, A consciência de um império compreende Portugal como a primeira monarquia europeia a fundar um império de dimensões globais, bem como um necessário aparato ideológico que solucionasse os problemas de natureza jurídica e moral que se desdobravam da ingerência reclamada como direito frente a diversidade de grupos étnicos e suas variadas manifestações culturais e religiosas. Em vista disso, Giuseppe Marcocci parte das bases jurídicas daquilo que denomina como a “vocação imperial portuguesa”, para alcançar a especificidade da herança das elaborações políticas de um império moderno, mas que deitava suas raízes na escravidão, uma instituição atrelada fudamentalmente à antiguidade. Em síntese, é a figuração de Portugal como um agressivo império marítimo o legado que se definia no próprio momento em que a Europa ganhava os contornos de um mosaico de impérios em concorrência.

Trabalho de fôlego, o livro recupera a densidade e o vigor do expansionismo ao atar os laços existentes entre as esferas da economia e da política, aos esquemas culturais e religiosos que estruturaram a consciência do Império português. Diante disso, traz uma perspectiva inovadora ao se deter sobre os pressupostos conceituais característicos do ideário português nos primórdios da Época Moderna, sem perder de vista sua peculiaridade: o entrelaçamento entre Estado e Igreja.

Os doze capítulos que compõem o livro estão distribuídos ao longo de quatro partes bem definidas. Na primeira, A vocação imperial portuguesa, Marcocci debate a intervenção a posteriori do papado na fundação das premissas jurídicas do futuro Império, com ênfase no papel estruturante que a bula Dum diversas (1452) teve como instrumento legitimador de suas futuras ocupações. Partindo desta proposição, o autor esclarece os vínculos de obediência existentes entre os portugueses e o papado, bem como a reivindicação lusa pela ortodoxia católica. Pautada pela necessidade de justificar o tráfico de escravos negros na costa da Guiné, Roma tutelou o acesso exclusivo dos portugueses aos litorais da África atlântica. Em suma, é da incapacidade de legitimar suas conquistas num paradigma distinto das concessões papais que Portugal traçaria o percurso a ser seguido por outros grandes impérios europeus. Entretanto, no início do século XVI o país ibérico definiria um novo posicionamento em relação a Roma no intuito de garantir maior autonomia na gestão de seu império com a criação da Mesa da Consciência, órgão encarregado de se pronunciar sobre matérias tocantes à consciência do rei e que promoveu uma fusão sem precedentes entre as esferas política e religiosa no vértice do reino.

Em A Etiópia, prisma do império, ganha relevância os diferentes usos políticos do mito do Preste João em Portugal. Se num primeiro momento a figura do lendário soberano tornou-se emblemática referência do sucesso da expansão marítima em concomitância à figuração da Etiópia como aliada para a reunificação da Igreja, em um segundo momento são as implicações subversivas do cristianismo etíope que ganham notoriedade. Ou seja, a construção da legitimidade das conquistas a partir da celebração de cristão julgados como heréticos tornou-se um modelo a ser necessariamente abandonado. Tal mudança foi definida pelas rígidas posições frente ao cristianismo etíope adotadas por um atuante grupo de teólogos no interior da corte portuguesa. Doravante, o mítico aliado desapareceria do horizonte cultural português, e paralelamente, vozes dissonantes do movimento humanista seriam sufocadas. Desse modo, ao lado da Mesa da Consciênca, a Inquisição e a censura literária se tornariam as três principais instituições a concorrerem para a definição de um império católico no qual a Etiópia passaria da condição de reino aliado a terra de missões. Definitivamente, a consciência do Império português atrelava-se de modo cada vez mais significativo às formas de inclusão da diversidade na comunidade de crentes.

A terceira parte, Conquista, comércio, navegação: um senhorio disputado, é a mais extensa e se detém nas controvérsias a respeito do controle das especiarias e da supremacia sobre os mares. Aqui, o autor assinala que foi no calor das polêmicas levantadas pelas monarquias europeias contra as pretensões imperialistas das coroas ibéricas que a consciência de um “império marítimo” ganhou seus primeiros contornos no reino português. Sobretudo em face das críticas pela participação direta da coroa no tráfico comercial, que embora possuissem justificativas, encontravam também seus limites nas tradicionais doutrinas cristãs da Idade Média. Por sua vez, a negligência da veiculação da imagem de um príncipe amado e temido, sugerida por alguns ideólogos do Império também foi pautada por estas tradições, que presumiam um modelo político marcado pelos valores da ética cristã. Ou seja, no âmbito das ideias, a violência estaria diluída na perspectiva da conquista espiritual. Com efeito, todo este dabate não correria separado das primeiras reflexões a respeito do papel que o mar desempenharia no equilíbrio de um complexo sistema de domínio que se constituía para além dos limites da Europa. Objeto controverso na época, Marcocci sugere que os descobrimentos modificariam definitivamente a relação entre a terra e o mar, sendo que este passaria a ser compreendido nos quadros de um novo equilíbrio que se origina do pleno conhecimento da verdadeira forma geográfica, bem como das efetivas distâncias do mundo.

Conversões imperiais: para uma sociedade portuguesa nos trópicos? é a última parte do livro. Nela, Marcocci nos faz notar que a ascensão das ações missionárias deu-se no exato momento em que o Brasil tornava-se o centro do sistema colonial lusitano. Tendo em vista que as sociedades nascidas do Império português são caracterizadas pela presença de escravos em resposta às exigências de um sistema produtivo agrícola, o autor atribui relevância ao sacramento do batismo, uma vez que o domínio sobre homens privados de liberdade em nome da conversão era o fundamento jurídico do Império. Assim, na perspectiva do autor, a formação histórica do Brasil nos quadros do Império português está atrelada a um projeto missionário onde os jesuítas desempenharam papel fundamental, de modo que a relação entre batismo e escravidão logo se entrelaçou aos

debates sobre a humanidade dos índios. De todo modo, ao passo que este sacramento seria o instrumento capaz de mudar a posição jurídica e social dos conversos, o contraste entre a perspectiva libertadora da conversão e a dura realidade dos escravos é apresentado como o mais notório vínculo de todo o mundo português do início da Época Moderna.

Por fim, cabe observar que o livro nos conduz à percepção de que a interpenetração entre o Estado e a Igreja define as linhas gerais de inúmeros aspectos da História do Portugal Imperial. Mesmo a retomada do modelo do Império Romano, tida pelo autor como uma das características mais originais da cultura renascentista portuguesa foi sufocada no que tangia à admiração dos autores lusos pela religião romana, o que nos revela o atuante pressuposto de um enquadramento doutrinal que se mostrava indispensável diante do problema da inclusão civil dos novos súditos da coroa. Elemento imprescindível a uma construção política cujo primado, por sua importância e originalidade, seria amplamente valorizada pela cultura europeia, em uma conjuntura de franca mundialização.

Fundamentado em sólida e diversificada pesquisa documental, Marcocci faz uso tanto de cartas, tratados e crônicas impressas, quanto de processos inquisitoriais e outros códices manuscritos pertencentes a fundos diversos, investigados majoritariamente em arquivos portugueses e italianos. Com efeito, um dos fundos ao qual o autor reserva especial atenção é a Mesa da Consciência e Ordens, parcialmente conservado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa. Com escrita clara, o livro interessa não apenas aos especialistas, mas a todos que entendem a história como um recurso para a compreensão dos debates contemporâneos, cujos ecos do passado encontram reverberação em fenômenos como a globalização da economia, a homogeneização cultural, ou até mesmo o emprego maciço da força militar como garantia da manutenção da ordem mundial.

Rubens Panegassi – Departamento de História Universidade Federal de Viçosa (UFV), Viçosa (MG), Brasil, e-mail: rubenspanegassi@gmail.com.