Assim caminhou a humanidade – NEVES et al (CA)

NEVES, Walter Alves; RANGEL JUNIOR, Miguel José; MURRIETA, Rui Sergio (Orgs.). Assim caminhou a humanidade. São Paulo: Palas Athena, 2015, 318 p. Resenha de: SILVA, Sergio Francisco Serafim Monteira da. Clio Arqueológica, Recife, v.34, n3, p.171-193, 2019.

Conforme os organizadores de Assim Caminhou a Humanidade, o Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo seria o único no Brasil, em 2015, capaz de sanar a carência de publicações em português mais atualizadas sobre o tema da evolução humana. O ensino da Biologia, Antropologia, Arqueologia no nível da graduação e a divulgação científica ao grande público, seriam o foco desta publicação. A partir de um curso de pós-graduação e da disponibilidade de réplicas de hominínios da coleção Thomas Van der Lann, foi proposto o plano deste livro, onde os alunos também protagonizaram seus subtemas.

Entre algumas das publicações internacionais inacessíveis a esse ‘grande público’ brasileiro estariam, por exemplo, o The Human Lineage, de Cartmill e Smith; o The Human Career, de Richard Klein; o Handbook of Human Symbolic Evolution, de Lock e Peters; Human Evolution, Trails from the Past, de Cela- Conde e Ayala; The Human Evolution Source Book, de Ciochon e Fleagle; ou o Handbook of Paleoanthropology, em três volumes, editados por Winfried Henke e Ian Tattersall, por exemplo2. Outras, assemelhadas ao Assim caminhou a humanidade, em português, estão o Como nos tornámos humanos, de Eugénia Cunha e duas traduções, Evolução Humana, de Roger Lewin e O despertar da cultura: a polêmica teoria sobre a origem da criatividade humana, de Richard G.Klein e Blake Edgar3. Este último apresenta alguns rudimentos do The Human Career.

Sobre o mesmo tema, de uso para o ensino e a aprendizagem nas universidades e escolas nos EUA, está o Our Origins (Discovering Physical Anthropology), de Clark Spencer Larsen, do Departamento de Antropologia, da The Ohio State University e as três primeiras partes do Anthropology, de Willian A. Haviland, da University of Vermont. Também, de uso em sala de aula, destaca-se o livro Exploring Physical Anthropology, capítulos 1, 10 a 14, de Suzanne Walker- Pacheco, da Missouri State University4. Esta autora também utiliza réplicas de hominínios fósseis para ilustrar seu texto e as atividades propostas para os alunos. Nas livrarias menos acessíveis ao ‘grande público’, também disponibilizaram no Brasil, a custos módicos, o Evolution, the human story, livro ricamente ilustrado, de autoria de Alice Roberts5.

Retornando ao nosso livro em português sobre evolução humana, Assim caminhou a humanidade, vamos localizar algumas autodescrições, feitas na apresentação e na introdução. Reinaldo José Lopes, repórter e colunista da Folha de S. Paulo, acrescenta que este livro perfaz, provavelmente, o relato mais completo em língua portuguesa sobre o conhecimento que temos dos nossos parentes, também primatas e da nossa própria história como espécie. O livro trata da gênese dos primatas (incluindo aqui, a do homem anatomicamente moderno) e de forma sucinta e clara, foca nos métodos e formulações de hipóteses que caracterizam toda forma de ‘boa ciência’. Os ‘decentemente alfabetizados’ poderão ler e entender este livro. O passado remoto, para ser reconstruído, gera perguntas à ciência, que nem sempre são trivialmente respondidas, como a questão de como nos tornamos bípedes ou o que teria ocasionado a extinção dos neandertais. Reinaldo agradece os organizadores pelo lançamento do livro, com crítica a uma demora pelo seu lançamento e considera a importância do livro para o desenvolvimento e fundamentação mais adequados dos textos jornalísticos sobre evolução humana.

Na Introdução, os organizadores adiantam que o livro é uma forma de divulgar em linguagem acessível, aquilo que há demais importante e atual sobre o estudo da evolução humana, área do conhecimento científico que progride rapidamente e na qual as informações podem se tornar ultrapassadas em questão de meses. Assim, no final de cada capítulo, propõem um tema para discussão em um quadro que denominaram ‘O que há de novo no front’, para minimizar a velocidade e o atraso que caracterizam o estudo da evolução humana. Talvez esse atraso possa ser minimizado pelo poder da ditadura Genômica (comparativa) e os avanços inquestionáveis da Bioinformática (e possivelmente da Proteômica) aplicada à própria Genômica. Observar a morfologia (plausível no contexto da arqueologia, paleoantropologia, em fósseis e fragmentos de ossos e dentes) ou observar o genoma inteiro (plausíveis no contexto da genética médica, em contextos clínicos ou hígidos): compreender o todo da evolução.

Assim, os livros citados nos primeiros parágrafos desta resenha já estariam, de certo modo, ‘atrasados’ em relação ao desenvolvimento líquido da evolução humana (teoria evolutiva moderna). Esse ato retroativo, o voltar ao passado e compreender o avanço do presente e o futuro é absolutamente líquido. As novidades estariam – pois já não estão mais, obviamente – nos artigos científicos publicados entre 2013 e 2014 na área da evolução humana. A atualização é uma prerrogativa do livro e uma forma de presumivelmente mantê-la está na previsibilidade de novas hipóteses a serem verificadas no futuro. Nessa linha, os conceitos sobre espécie, especiação e gênero não são imutáveis e estão sempre em processo de construção. Desse modo, o livro está segmentado em sete capítulos relacionáveis ou sinergeticamente vinculados, sempre contendo um campo para temas novos e sugestões para leitura.

O primeiro capítulo, Nós primatas, apresenta as características físicas gerais dos primatas, sua classificação (anatômica e molecular) e diversidade; o campo especial do estudo da primatologia; o comportamento social dos primatas em sociedades complexas, variáveis e estáveis (sociobiologia dos primatas); a competição e a cooperação entre os primatas, em especial em relação as hierarquias de sexo; elementos de uma ‘cultura’ primata associados à vocalização e uso de ferramentas; os riscos de extinção dos primatas e formas de preservação de suas populações no nível global. O ‘nós’ inclui, obviamente, o Homo sapiens.

A história evolutiva dos primatas é desenvolvida no segundo capítulo. Os aspectos biológicos estão amalgamados aos estratos, à geomorfologia, ao tempo e à mudança. É traçado um panorama do cenário para a origem dos primatas, com registros paleontológicos de cerca de 56 milhões de anos atrás, no Eoceno. Neste capítulo, um texto selecionado trata da cladística para a classificação dos seres vivos e outro sobre anatomia do esqueleto. Na sequência, são discutidas a deriva continental e as mudanças climáticas; a causa do aparecimento dos primatas; os primatas ‘arcaicos’; os euprimatas do Eoceno; o surgimento dos primeiros antropoides; a origem e diversidade das famílias dos antropoides na África, Europa e América; as questões ambientais relacionadas a evolução dos antropoides; questões sobre a origem dos proconsulídeos (o conhecido Proconsul africanus, por exemplo); os hominoides (o Dryopithecus e o Sivapithecus), a origem dos mais antigos tarsiiformes e os paleoambientes dos primeiros dos primeiros hominoides.

Uma descrição sintética das principais pesquisas e descobertas dos fósseis de australopitecíneos, pré-australopitecíneos e os primeiros Homo desenvolve-se em Primeiros Bípedes, o terceiro capítulo. O surgimento da nodopedalia e da bipedia como características dos hominínios; o aparato mastigatório dos hominínios; a diversidade dos pré-australopitecíneos. Neste capítulo são apresentadas as características de três gêneros de pré-australopitecíneos que viveram entre 7 e 4,4 milhões de anos atrás (Sahelanthropous, Orrorin e Ardipithecus). Um texto incluso apresenta as técnicas de datação dos registros fósseis. O capítulo segue apresentando as origens, diversificação e morfologia dos australopitecíneos, incluindo os australopitecíneos gráceis entre 4,5 e 1,78 milhão de anos atrás (Australopithecus anamensis, A. afarensis, A. africanus, A. garhi, Kenyanthropus platyops e A. sediba) e australopitecíneos robustos, entre 2,7 e 1 milhão de anos atrás (Paranthropus aethiopicus, P. boisei e P. robustus). Quanto a diversidade  dos primeiros primatas bípedes, consideram-se 4 espécies de préaustralopitecíneos e 10 de australopitecíneos, aí incluindo o A. bahrelghazali e a coabitação entre eles durante o Mioceno, Plioceno e Pleistoceno, entre 7 e 1 milhão de anos atrás. Hipóteses menos controversas indicam a relação de especiação entre A. afarensis, A. africanus, A. sediba e Homo sp. São apresentadas questões sobre o Orrorin e a sua relação ancestral com humanos e chimpanzés, a evolução da dieta dos australopitecíneos e a bipedia diversificada entre os autralopitecíneos a partir de análise de ossos dos membros inferiores de um A. sediba.

No capítulo IV é introduzida a questão da origem e dispersão do gênero Homo. A nomeação do ‘homem habilidoso’, o Homo habilis é dada por Louis Leakey aos registros fósseis anatomicamente semelhantes aos australopitecíneos e associados a artefatos líticos encontrados em Olduvai, na África, sendo este continente considerado o centro de dispersão do gênero Homo. O H. habilis estaria situado em cerca de 2,4 a 1,4 milhão de anos e produziu artefatos líticos associados a indústria lítica Olduvaiense, representados por talhadores do tipo ‘choppers’ e lascas simples. Entre eles destacam-se no capítulo o fóssil KMN-ER 1813 (H.habilis) e o KMN-ER 1470 (H. rudolfensis ou Kenyanthropus rudolfensis). Sobre o Homo erectus, foi citado o fóssil KMN-ER 3733, de 1,8 milhão de anos, encontrado no Lago Turkana, Quênia, África e o D2700 (variação de H. erectus ou de H. habilis), encontrado a 1,8 milhão de anos em Dmanisi, na República da Geórgia, no Cáucaso fora da África. A questão do H. habilis ou formas transicionais ou erectíneas fora da África, com cérebros menores e industrias líticas reduzidas é consolidada.

No mesmo capítulo, o Homo erectus aparece no registro fóssil na África há 1,6 milhão de anos e se expande até a Indonésia por volta de 27 a 70 mil anos. O fóssil LB1, crânio de Homo floresiensis, espécie com nanismo insular, teria habitado a Ilha de Flores entre 74 e 17 mil anos. Sua indústria lítica moderna contrasta com a pequena capacidade craniana de 385 a 417cm3. Este constituiria mais uma variação do Homo, para além do H. habilis e do H. erectus (ou uma de suas variações). Na China o H. erectus foi datado em 700 mil anos. Possuía estatura inferior a 1,60m. Na Europa, o H. erectus aparece entre 1,2 milhão de anos (Atapuerca, Espanha) a 450 mil anos (Ceprano, Itália).

O capítulo possui uma seção destinada à descrição da morfologia do H. erectus (incluindo o caso do ‘garoto de Turkana’, o WT-15000, COM 1,6 milhão de anos e com idade biológica estimada entre 8 e 12 anos e com estatura de 1,70m). Produziam artefatos Olduvaienses e Acheulenses (Modo 2, retocados dos dois lados). As marcas de cortes em ossos indicam descarnamento de carniças e de carcaças de animais também recém-abatidos pelo H. erectus. Entre 1,5 e 1 milhão de anos, o H. erectus utilizou o fogo. Neste capítulo é feita uma introdução ao estudo do Homo heidelbergensis , cujo holótipo teria sido encontrado nos depósitos fluviais do rio Neckar, a cerca de 10km a sudoeste de Heidelberg, na Alemanha, em 1907 e datado entre cerca de 569 a 609 mil anos. A este novo Homo, seguiram-se os de Petralona e Arago (Europa), Bodo, Ndutu, Kabwe e Elandsfontein (África) e Kocabas, Hathnora , Dali e Maba (Ásia), todos com definição de espécie um tanto complexa. Produziram artefatos líticos de indústrias Acheulenses e Musterienses e abrigos de rochas e galhos por volta de 380 mil anos. No quadro referente ao algo novo no front, os autores do capítulo apresentam evidência favorável a presença do H. erectus em Dmanisi; o H. erectus é associado ao surgimento da indústria lítica Acheulense e ao uso controlado do fogo entre 790 mil (Israel) e 1 milhão de anos atrás (África do Sul).

O capítulo V trata do tema Os Neandertais. Esta espécie de Homo teria se originado, juntamente com os denisovanos, há cerca de 500 mil anos a partir da população de Homo heidelbergensis que habitava a região da Eurásia. Na África, a população de H. heidelbergensis originou há 200 mil anos o Homo sapiens. Esta espécie de homem anatomicamente moderno dispersou-se pela região de Israel há 120 mil anos e para os demais continentes por volta de 50 mil anos. O H. neanderthalensis na Europa foi substituído pelo sapiens em um período de 10 mil anos aproximadamente. Essa dinâmica de extinções e especiação é descrita neste capítulo. O holótipo do H. neanderthalensis é a calota craniana do Neandertal 1, descoberta na caverna de Feldhofer, vale do rio Neander, Alemanha, em 1856. O artigo faz referência a produção de cerca de 250 artigos sobre o Homo piltdownensis (classificado assim por Arthur Keith), um fóssil criado por volta de 1908 (fragmentos de neurocrânio humano, mandíbula de Pongo e dentes de um Pan fóssil) e cuja fraude foi descoberta em 1953. A encefalização nesse caso teria  ocorrido antes da mudança na dieta. A descoberta da fraude, do pseudofóssil, denota, segundo os autores, a autocorreção da ciência. Sobre os neandertais, ocuparam a Europa Ocidental, Oriente Médio, Rússia (Sibéria), sem, contudo, aparecerem no registro fóssil africano ou do sul da Ásia. Habitaram essas regiões entre as eras glacial e interglacial, no Pleistoceno Superior, entre 170 mil e 30 mil anos. Seus crânios são menos neotênicos que os do H. sapiens, com tórus supraorbitário característico, face projetada para a frente, abertura nasal ampla, capacidade craniana e volume craniano elevados, neurocrânio longo e baixo, dentes volumosos (taurodontia) e incisivos em forma de pá, occipital proeminente (occipital bun, ou coque occipital), ausência de queixo e espaço retromolar. Sua morfologia e volume corporal associava-se a adaptação a ambientes frios. Teriam deficiência no balanço corporal, denotada pelas características da cóclea no ouvido interno em corridas e ênfase no sistema visual, pelas dimensões orbitárias; antebraços e pernas mais curtos que os do H. sapiens; estaturas variando de 1,69m a 1,60m; tórax em forma de tonel; pelve larga. Essas características apontam adaptação a ambientes frios. Pesquisas com mtDNA de um H. neanderthalensis de 38 mil anos possibilitaram identificar um ancestral comum com o H. sapiens a cerca de 600 + 140 mil anos. Em pesquisas com DNA nuclear o gene FOXP2, relacionado à fala, está presente no neandertal e no sapiens. Em 2010, segundo pesquisadores do Instituto Max Planck, um novo sequenciamento de DNA de neandertal indicou compartilhamento de 99,84 por cento entre esta espécie e o H.sapiens. A origem do H. neanderthalensis estaria relacionada ao Homo antecessor, espécie derivada do Homo erectus na região mediterrânica. O capítulo salienta, para fins de síntese, considerar os H. neanderthalensis como uma variante do H. heidelbergensis na Europa e o H. sapiens uma variante do H. heidelbergensis na África. A árvore filogenética do gênero Homo torna-se complexa com a introdução dos denisovanos, geneticamente mais próximos do H.heidelbergensis.

Na árvore filogenética proposta no capítulo V indica que possivelmente em diferentes regiões da Eurásia, populações de H. sapiens, H. neanderthalensis, H.floresiensis, H. erectus, denisovanos teriam coexistido por um breve período de tempo, entre 20 mil e 30 mil anos, ou pouco mais. O capítulo trata da tecnologia lítica e domesticação do fogo entre as várias espécies. Estima que os neandertais, em relação ao comportamento, viviam em grupos pequenos, resultando em baixa diversidade genética. Vivendo em regiões de clima glacial, sua expectativa de vida não chegava aos 40 anos, possuíam deficiências nutricionais severas, traumas e injúrias constantes e que eram alvo de cuidados por longos períodos. Análises dos esqueletos e dentes dos neandertais indicaram que possuíam alto nível de atividade física e demandavam elevado consumo de calorias, com dieta onívora.

Deveriam organizar estratégias de subsistência (caça, pesca, coleta, cozimento dos alimentos, consumo, usos e processamento de plantas) e convivência complexas e cooperativas. O capítulo ilustra possibilidades para o desenvolvimento do pensamento simbólico entre os neandertais, pelo uso de pigmentos e conchas perfuradas. Entretanto, os autores do capítulo afirmam que existe dificuldade em aceitar a ideia de que os neandertais realizavam sepultamentos pela ‘ausência de artefatos claramente simbólicos’ no local da inumação. Trata-se de um problema, visto que a deposição mortuária de La Chapelle-aux-Saints possuía ossos de um mamífero em associação. Entretanto, a necessidade da presença de ‘artefatos claramente simbólicos’ para caracterizar deposições funerárias em qualquer população humana não é uma regra.

Ainda neste capítulo, de novo no front há a possibilidade de formas híbridas resultantes de intercruzamentos entre neandertais e sapiens; as expressões diferenciadas de mesmos genes em humanos modernos e neandertais; indicadores de possíveis intercruzamentos entre neandertais e H. sapiens arcaico.

No capítulo VI, Origem e dispersão dos humanos modernos, os autores retomam a história geral dos estudos da origem do ser humano e do pensamento simbólico e representações resultantes. Em formato linear e cronológico, o Histórico neste capítulo cita vários eventos relacionados ao estudo das origens do ser humano: antes do séc. XVIII, com viés religioso, com a criação das espécies por divindade sua explicação e repetição continuada por centenas de anos (e mesmo na história do presente): no séc. XIX, com a divulgação de ‘A Origem das Espécies’, de Charles Darwin, com a formulação da evolução das espécies e o mecanismo da seleção natural; o foco no registro fóssil, desde a primeira metade do séc. XIX, seguindo-se ao achado fortuito da calota do vale do rio Neander em 1856, holótipo do H. neanderthalensis; de remanescentes de H. sapiens (Cro-Magnon 1, 2 e 3) de Les Eyzies, na França, em 1868, de Chancelade, em 1880 e de Combe-Capelle, em 1909, na França; em toda a Europa o homem anatomicamente moderno estava presente por volta de 35 mil anos; em 1897 surge a caverna de Altamira, na Espanha e entre 1871 e 1901 as cavernas de Grimaldi, na Itália são escavadas; os sítios com artefatos líticos e em osso da República Checa, escavados entre 1881 e 1904; em Java foram localizados remanescentes de H.sapiens de 6 mil anos entre 1888 e 1890; em 1912, foram descobertas as cavernas de Les Trois Frères, em Ariège, com registros rupestres e artefatos líticos e em osso; surgem as importantes cavernas de Lascaux e Chauvet, na França, ambas com registros rupestres.

Este capítulo cita e associa o desenvolvimento do método arqueológico no início do século XX a Gordon Childe e Mortimer Wheeler e as novas direções técnicas nas pesquisas que se seguiram. A origem e dispersão do H. sapiens puderam ser estudadas a partir das descobertas de outros sítios que incluíram, entre outros, Singa, Sudão (1924); Skhul V, Israel (1932); Qafzeh 6, Israel (1933); Hofmeyer, na África do Sul (1952); Liujiang, China (1958); Omo I, Etiópia (1967); Kow Swamp, Austrália (1967); Laetoli, Tanzânia (1976); e Oase 2, na Romênia (2003).

São descritas as características anatômicas cranianas e ‘pós-cranianas’ do H.sapiens. A morfologia do nosso crânio e ‘pós-crânio’ pode ser caracterizada pela capacidade cefálica elevada (acima de 1300cc), neurocrânio alto, escama do occipital arredondada e sem tórus, dimorfismo sexual relativo, face ortognata ou mais retraída, presença de fossas caninas, presença de queixo, arco superciliar e  bordas supraorbitárias substituem o tórus supraorbitário, ausência de espaço retromolar, antebraço e pernas mais longos (em relação aos neandertais), abertura nasal anterior mais estreita que nos neandertais, quadril e tronco mais estreitos (em relação aos neandertais e H. erectus), entre outras. Associados a essa análise morfológica comparada, os estudos moleculares têm sido mais intensivos e modificam paradigmas antigos a cada semana. As inferências genéticas caracterizam os fósseis de uma forma que as análises morfológicas diretas dos fósseis (mesmo a morfometria geométrica comparada e a análise epigenética) não possibilitariam alcançar: seus resultados são mais contundentes.

A reconstrução das relações entre populações pré-históricas cada vez mais prescinde das análises de mtDNA e do cromossomo Y, usados para reconstituir longas linhagens de descendência (feminina). Arvores que expressem relações evolutivas entre populações podem ser construídas considerando-se a similaridade observada entre variantes novas existentes entre as populações, fixadas pela deriva genética, ou a mudança aleatória da frequência gênica em populações de diferentes tamanhos. Nesse sentido, o mtDNA e o cromossomo Y (sua contraparte masculina), são adequados para verificar a extensão da relação entre ancestralidade e descendência entre populações humanas que compartilham um único ancestral (‘Eva mitocondrial’). Tanto o mtDNA, quanto o cromossomo Y, indicam que o ser humano teve origem na África e depois se dispersou (pelos haplogrupos M e N e os seus haplogrupos diversificados, A, B, C, D e X, presentes nos grupos humanos americanos). As técnicas de extração do DNA em  ossos antigos consideram a abundância do mtDNA em relação ao DNA nuclear. É evidente que o controle ineficaz de agentes contaminantes por gerenciamentos laboratoriais deficientes prejudica e inviabiliza quaisquer análises biomoleculares.

Ainda, no penúltimo capítulo, as contribuições da arqueologia podem gerar explicações diferentes sobre um certo fenômeno evolutivo e de mudança comportamental. A origem do H. sapiens pode ser explicada mediante as hipóteses da origem multirregional ou trellis model (anos 1970); pela saída da África ou Out of África e pela hibridização. Esses modelos são explicados e consideradas as suas limitações e alcances explanatórios para a nossa origem.

Todos levam em consideração a origem africana do H. erectus, sua dispersão pelo Velho Mundo a partir de 1,8 milhão de anos. As variações nos modelos surgem em relação à forma de evolução da espécie humana moderna: no primeiro caso, do trellis model, os humanos evoluíram em um continuum a partir de um ancestral (H. erectus), ocupando os 4 continentes; no Out of África, os humanos originaram-se de populações africanas de H. heidelbergensis e foram substituindo as outras espécies de hominínios existentes; no terceiro modelo, os humanos originaram-se do H. heidelbergensis, na África, com expansão para os 4 continentes caracterizada por trocas gênicas com as outras espécies de hominínios existentes.

Sobre a antiguidade do H. sapiens, o capítulo cita os achados do sítio Omo, na Etiópia, com remanescentes de 200 mil anos; no sítio Herto, também na Etiópia,   com 154 a 160 mil anos; nos sítios Qafzeh e Skhul, em Israel, com fósseis datados entre 130 mil e 90 mil anos, já em área de transição entre África, Ásia e Europa.

Assim, os humanos saíram da África pelo Oriente Médio, antes de chegar à Europa e Ásia. Outros registros fósseis indicam a presença na Europa de neandertais entre 150 mil e 30 mil anos e de H. sapiens após 40 mil anos. Na Romênia, República Checa e na França (Cro-Magnon), as datações para o H. sapiens alcançam 35 mil, 31 mil e 27 mil anos, respectivamente. Na China, em Zhoukoudien, Tianyuan e Liujiang, as datações indicam 30 mil, 40 mil e 68 mil anos para a presença do H. sapiens moderno. Na Indonésia, em Niah, foram datados entre 39 mil e 45 mil anos. Em Laetoli, Tanzânia, África, o crânio Ngaloba LH 18 foi datado em 120 mil anos. Um fóssil de H. sapiens encontrado em Singa, Sudão, apresentou idade entre 120 mil e 150 mil anos. Na perspectiva genética, com o emprego de métodos moleculares (análise de mtDNA, n DNA e cromossomo Y) o H. sapiens originou-se na África entre 220 mil e 120 mil anos. Então, o H. sapiens teria surgido a cerca de 200 mil anos, no nordeste da África.

As rotas de dispersão do H. sapiens perfazem um dos temas tratados neste capítulo. São sugeridas algumas das rotas de dispersão humana a partir da África, que levam em consideração a presença de registros fósseis humanos nos continentes e as suas relações, ‘movimentos migratórios’, ‘ondas migratórias’, ‘recolonizações’, ‘contatos’, ‘dispersões’, ‘hipóteses de colonização’. São consideradas as datações, morfologia comparada do registro fóssil e dados de modelos genéticos. O continente americano teria sido o último a ser ‘colonizado’ Entre 30 mil e 13 mil anos, o nível do mar possibilitava a passagem de hominínios entre o Alasca e a Sibéria e nesse caso, remanescentes da sua presença foram datados entre 15 mil e 13 mil anos.

Outro aspecto tratado no capítulo VI é a ‘explosão criativa do Paleolítico Superior’, caracterizado pela presença de vestígios representativos das formas de pensamentos simbólicos ou expressões simbólicas do pensamento, sob a forma de objetos de cultura material (e imaterial). Nesse subtema, a questão está na ‘evolução do comportamento simbólico’, uma ‘especificidade humana’ do H.sapiens. Essa ‘revolução’ teria ocorrido no Paleolítico Superior, por volta de 50 mil anos. Para os autores do capítulo, a palavra ‘cultura’ somente poderia ser empregada ‘em todo o seu potencial’ a partir de 50 mil anos. Existiria um ‘antes’ e um ‘depois’ de uma ‘explosão criativa’, que teria gerado inúmeros registros arqueológicos da sua ocorrência e que ‘evolui’ até os dias atuais. A identificação de uma mudança cognitiva há 50 mil anos caracteriza o modelo explicativo (especulativo) de Richard Klein, o modelo neuronal. Existiriam ‘genes’ ligados ao ‘desenvolvimento cerebral’ e a sua ‘evolução abrupta’ teria levado a essa ‘revolução cultural’. Esta perspectiva merece uma refinada revisão que não cabe nesta resenha. A palavra cultura (e não o conceito de cultura) é aclamado, sem aspas e sem restrições. Antes – de 50 mil anos – deve ser usada como ‘cultura’, com ‘restrições’.

Um dos pontos apresentados em defesa de uma ‘verdadeira cultura humana’ está na variabilidade ou substituição da matéria prima (lítica) escolhida para a construção dos artefatos; ferramentas cada vez ‘melhor trabalhadas’; substituição das lascas por lâminas; uso do fogo para queima controlada da argila, outra matéria prima da revolução cultural; construção de ferramentas compostas por mais de uma matéria prima; pontas ósseas elaboradas com propósitos específicos (abater, sangrar, agarrar, transpassar, amortecer); propulsores; uso de recursos marinhos para alimentação e adorno; construção de embarcações e instrumentos próprios para a pesca; uso de pigmentos e elaboração de tintas (a partir do momento no qual os neandertais podem ter feito uso de pigmentos, esta prática não está mais associada ao comportamento simbólico complexo do H. sapiens, exclusivamente); as formas de ‘arte’ expressas pelas representações antropomorfas tridimensionais e pelos registros rupestres de cenas diversificadas da vida cotidiana e dos outros animais e objetos. ‘Arte’ significa a demonstração de algum ‘grau de simbolismo’, com ‘complexidade significativamente maior’. As pinturas rupestres ‘bem acabadas’, esculturas que sugerem ‘xamanismo’ e as ‘pequenas esculturas simbolizando a figura feminina com traços de fertilidade exagerados’ (vênus de Brasseimpouy, de Willendorf I, de Lespugne), as figuras de animais esculpidas ou gravadas em osso e marfim (cabeça de cavalo de Mas de A’ zil, hiena de Madeleine-Dordogne e um mamute de Madeleine-Dordogne) e e os primeiros registros de ‘atividade religiosa’.

Os sepultamentos humanos são um componente social importante da revolução criativa pós 50 mil anos. Mesmo não sendo exclusivos desse período, somente nele é que passaram a ocorrer em grande número e aumentar sua incidência no registro arqueológico. Em Cro-Magnon ocorrem nos sepultamentos, conchas e dentes perfurados, com ocre abundante. Os sepultamentos foram denominados pelos autores de ‘sepultamentos ritualísticos’, numericamente expressivos no Paleolítico Superior. Outra característica da ‘revolução’ (ou ‘mutação’, no sentido genético) estaria no aumento da complexificação da organização social. Recursos ambientais escassos implicavam em grupos sociais pequenos, com menos de 30 pessoas. Recursos abundantes, grupos sociais expandidos a mais de 200 pessoas.

Instituem-se áreas específicas nos assentamentos para a elaboração de certos artefatos e práticas. O capítulo considera a ‘explosão cultural’ do Paleolítico Superior como ‘avassaladora’ em relação as suas evidências no registro arqueológico. Distinguem-se comportamento moderno de comportamento não-moderno, mediante a explicação do modelo neuronal de Klein. Entretanto, objeções à cronologia fixa dos 50 mil anos existem. Na África do Sul, os sítios de Blombos e de Pinnacle Point apresentaram conchas perfuradas, com ocre, artefatos em osso, uso controlado do fogo para a construção de objetos e caça especializada de moluscos entre 76 mil anos e 164 mil anos. Portanto, 50 mil seria pouco para a ‘explosão criativa’. Um modelo não-neural associa a origem da expressão simbólica ao surgimento gradativo e cumulativo dos comportamentos simbólicos  no período de aproximadamente 150 mil anos. Para justificar essa hipótese, considerou-se a presença de oferendas e adornos em sepultamentos e uso de pigmentos encontrados em Qafzeh, Israel, com 100 mil anos, como sinônimos de comportamento simbólico complexo. A acumulação lenta de hábitos complexos pode estar relacionada a concentração de pessoas em grandes assentamentos e sua relação com outros assentamentos, propiciando o comportamento simbólico. O comportamento simbólico complexo depende, então, de uma condição demográfica favorável. Poderia existir sempre, dentro do H. sapiens, entretanto, nem sempre em condições de ser impulsionado. Funciona como uma hélice do DNA ou um cromossomo Y: seria biocultural, sociobiologicamente determinado.

Sim, a ‘evolução da capacidade cultural do ser humano é um dos temas mais intrigantes do estudo da história do H. sapiens’ e pode ser ‘datada’ com instrumentos da arqueologia, paleoantropologia, da genética e da linguística, dentro de um ‘arcabouço filogenético’. Pronto: 170 mil anos. Somente depois a quantidade de ‘cultura’ aumentaria.

Finalmente, no capítulo VII, o Neolítico: domesticação e origem da complexidade social, acredita-se que somente as novas descobertas arqueológicas e paleoantropológicas poderão ser capazes de alimentar o amplo e dinâmico debate sobre a evolução humana. Trata do homem ‘herói’, já morfologicamente moderno e capacitado culturalmente. Os modos diversos e as cronologias sobre a manipulação e domesticação de plantas, animais e a criação de novos materiais a partir do processamento da matéria prima pelo calor interessam. O manejo dos  ciclos reprodutivos de plantas e animais deve satisfazer as necessidades do novo humano moderno. As privações anteriores a 170 mil ou a 50 mil anos são suplantadas pelo aparecimento da ‘complexidade social’. Entre as feições principais do Neolítico estão a domesticação de plantas e animais e o surgimento de vilas e cidades. A emergência da complexidade implica em desdobramentos sociopolíticos, culturais e ecológicos. A narrativa apresentada, segundo os autores deste capítulo, restringe-se a domesticação e a complexidade social.

Domesticação refere-se a mudanças genéticas e fenotípicas, ao manejo humano, a ação humana. Distinguem-se a não-domesticação, a pré-domesticação e a domesticação propriamente dita. Pode ser considerada como processo evolutivo, com contingências biológicas e ambientais seletivas que transformam uma população em um momento da sua história evolutiva. Assim iniciam-se os pressupostos ou aspectos elementares da domesticação neste capítulo. A complexidade social é tratada a partir da possibilidade de reuso condicional do discurso de Elman R. Service (a sequência bando-tribo-chefias-estados), de Gary M. Feinman, com a presença de elites gerenciadoras da sociedade, em estruturas hierárquicas estáveis que funcione como um nexo organizacional e estruturante do coletivo. Nesse sentido, sociedades caçadoras-coletoras, sem clãs, não seriam complexas, mas igualitárias, com tarefas generalistas, sem hierarquização social.

A complexificação (vertical e a horizontal) está associada a compartimentação, especialização, diferenciações funcionais, hierarquização dentro da estrutura social. O capítulo ainda trata da chamada “Revolução Neolítica” no âmbito do  surgimento da agricultura, considerando e descrevendo as características de zonas específicas (Crescente Fértil, Egito, Bacias dos rios Yangtzé e Amarelo, Planalto na Nova Guiné, África Subsaariana, Amazônia, Norte da América do Sul, Mesoamérica e Leste dos Estados Unidos). Os debates apresentados no capítulo referem-se ao porque do aparecimento da Revolução Neolítica, relacionando-o a teoria da sociedade afluente original, do antropólogo Marshall D. Sahlins, da Uinversidade de Chicago.

Nos primórdios da agricultura, a caça e a coleta também deveriam coexistir, antes do processo de aumento crescente da produção de alimentos por muitas sociedades humanas. As primeiras domesticações teriam se originado em ambientes plenos em recursos da natureza e não em ambientes estressantes, bem mais tardios, representados pelo sedentarismo crescente, surgimento de epidemias nos períodos mais recentes, associadas ao convívio com os animais domesticados.

Os autores vislumbram, segundo o arqueólogo Brian D. Hayden, a possibilidade da projeção de informações etnográficas nos contextos pré-históricos para a compreensão das reuniões entre grupos humanos para a realização de banquetes (a partir de 50 mil anos), tocas, distribuições ou mesmo a destruição de alimentos e bens relacionados a posições de prestígio social. Alcançava-se prestígio entre os líderes locais e estímulo à produção e acúmulo de excedentes. Pelo menos, entre 10 mil e 2 mil anos, teria ocorrido um rompimento, justaposição ou sobreposição do modo de vida nômade dos caçadores-coletores ao das populações agricultoras.

A alta concentração demográfica associada a domesticação de plantas e animais  passa a caracterizar a ‘complexidade social’ em várias regiões do planeta. Entre 9.500 anos e 5.000 anos, mudanças climáticas teriam favorecido a domesticação de plantas e de animais. Neste contexto estariam Jericó e ÇatalHoyuk. O livro é, minimamente, imprescindível nas escolas e universidades brasileiras.

Notas

2 CARTMILL, Matt; SMITH, Fred H. (Eds.) The Human Lineage.New Jersey: Wiley-Blackwell, 2009; KLEIN, Richard G. The Human Career. Human Biological and Cultural Origins. Chicago: The University of Chicago, 2009; CELA-CONDE, Camilo J.; AYALA, Francisco J. Human Evolution. Trails from the Past.

Oxford: Oxford University Press, 2010; LOCK, Andrew; PETERS, Charles R. (Eds.) Handbook of Human Symbolic Evolution. Oxford: Blackwell, 1999; HENKE, Winfried; CIOCHON, Russell L.; FLEAGLE, John G. (Eds.) The Human Evolution Source Book. 2ed.New Jersey: Pearson, 2006; TATTERSALL, Ian (Eds.) Handbook of Paleoanthropology. New York: Springer, 2007, 3 vols.

3 CUNHA, Eugénia. Como nos tornámos humanos. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010; LEWIN, Roger. Evolução Humana. Tradução de Danusa Munford. São Paulo: Atheneu, 1999; KLEIN, Richard G.; EDGAR, Blake. O despertar da cultura. A polêmica teoria sobre a origem da criatividade humana. Tradução de Ana Lúcia Vieira de Andrade. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2005.

4 LARSEN, Clark Spencer. Our Origins. Discovering Physical Anthropology. New York: W.W.Norton & Company, 2008; HAVILAND, Willian A. Anthropology. 7 ed. New York: Harcourt Brace Colege Publishers, partes I a III, 1994; WALKER-PACHECO, Suzanne E. Exploring Physical Anthropology. 2 ed. Englewwood: Morton Publishing Company, 2010.

5 ROBERTS, Alice.Evolution. The human story. New York: DK Dorling Kindersley, 2011.

Sergio Francisco Serafim Monteiro da SilvaDepartamento de Arqueologia, UFPE. E-mail: sergioarqueologiaforense@gmail.com

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Pedagogia da convivência – JARES (C)

JARES, Xesús R. Pedagogia da convivência. Trad. de Elisabete de Moraes Santana. São Paulo: Palas Athena, 2008. Resenha de: BRUM, Lisiane Reis. Conjectura, Caxias do Sul, v 14, n. 3, p. 217-222, set/dez, 2009

Merece destaque a obra do professor Xesús R. Jares: Pedagogia da convivência (2008), por apresentar uma importante discussão acerca da convivência e da educação para a convivência, como questões prioritárias para o conjunto da cidadania, tendo em vista que a análise histórica revela que a convivência e a educação dos jovens têm sido tratadas como tema de grande preocupação pela sociedade diante da constatação da perda de valores básicos e também do aumento da violência em múltiplas formas.

A obra agrupa debates inspirados na experiência pessoal de Jares como pai, como professor, e como coordenador de programas de convivência realizados na Espanha. O trabalho apresentado pretende abordar cinco conteúdos essenciais, que originam os cinco capítulos nos quais se estrutura o livro: revelar os marcos e conteúdos da convivência; explicar os dados mais significativos de pesquisas que realizou na Galícia e nas Ilhas Canárias, Espanha, sobre a situação de convivência em centros educativos de Ensino Médio; apresentar propostas para fundamentar e tornar operativa a pedagogia da convivência nas escolas; expor uma experiência concreta do processo de implantação de uma equipe de mediação em uma escola de Ensino Médio; e, por último, refletir sobre o papel das famílias no processo de educar para a convivência.

Na introdução, Jares tece um breve comentário sobre o quanto determinados valores, formas de organização, sistemas de relação, normas, formas linguísticas, expressão de sentimentos, expectativas sociais e educacionais contribuem para determinado modelo de convivência na sociedade. Em determinadas populações e contextos sociais, bem como nos diferentes setores do sistema educacional, o autor constata que o “problema da convivência” é um dos aspectos que mais preocupam a sociedade, posto que o sistema econômico-social, a perda de respeito e dos valores básicos de convivência, a perda da liderança educativa da família e do sistema educacional, além do aumento da ocorrência e da visibilidade da violência, contribuem para a atual situação da convivência que se constata.

No primeiro capítulo, “Sobre a convivência e os conteúdos de uma pedagogia da convivência”, Jares contextualiza os diferentes âmbitos que considera mais importantes e que incidem na convivência. O autor chama a atenção para a importância da família, âmbito inicial de socialização, onde aprendemos os primeiros hábitos de convivência, às vezes, determinantes dos modelos de convivência futuros. O segundo grande âmbito de socialização, ao qual ele se refere, é o sistema educacional, como espaço que deixa vestígios no âmbito da convivência, tendo em vista que professores e professoras estimulam determinados modelos de convivência.

Outro âmbito de importante socialização é o grupo de iguais e que, por conta do tipo de relações sociais que vivemos, não se situa a partir da adolescência como era tradicionalmente, mas em idades mais precoces. Além disso, os meios de comunicação, particularmente a televisão, tem forte incidência nos modelos de convivência ao exercer enorme influência sobre determinados comportamentos, valores e relações sociais.

Os espaços e instrumentos de lazer, dominados por grandes centros comerciais e a consequente cultura do consumo, concomitantemente aos contextos político, econômico e cultural dominantes e que, inexoravelmente, condicionam a convivência social, obviamente não foram negligenciados pelo autor.

Após destacar os principais âmbitos em que ocorrem as diferentes formas de relação e de convivência, o autor destaca, ainda, conteúdos de natureza moral, ética, ideológica, social, política, cultural e educativa, com os quais a convivência tem referência. Ganham especial atenção os direitos humanos como marco regulador da convivência, pois, como lembra Jares (p. 29), os direitos humanos representam o consenso mais abrangente sobre valores, direitos e deveres para viver em comunidade.

Todavia, o cumprimento dos direitos é acompanhado de limitações, pois toda convivência também implica deveres para com os demais, sejam eles em qualquer âmbito: na família, na comunidade educacional, no país,  assim como em relação aos valores de justiça, liberdade, paz, etc. Nessa perspectiva, com muita objetividade e clareza, o autor ainda faz referência a alguns conteúdos de natureza humana, de relação e de cidadania, esses fundamentais para a convivência. Dentre eles, destacam-se o respeito, o diálogo, a solidariedade, a não violência, a felicidade, e a esperança que, ligados ao otimismo, facilitam a convivência positiva e necessária para encarar a função educadora.

Ainda no primeiro capítulo, o autor lembra alguns fatores desagregadores da convivência, quando são listados o ódio, a ideia de inimigo, os fundamentalismos, as mentiras, a corrupção, e a dominação, que traz em seu bojo a detenção de um poder calcado no uso da violência.

Por fim, tendo em vista que, recentemente, na Espanha, foi aprovada a Lei Orgânica de Educação (LOE), a incorporação ao currículo da disciplina Educação para a cidadania e os direitos humanos, o autor apresenta algumas reflexões nesse sentido e aponta que, para que a nova disciplina seja apoiada e tenha valor, precisa ser integrada ao currículo com as maiores garantias e sob o aporte de disciplinas como Filosofia, Sociologia, Direito e História, fundamentalmente.

Com o objetivo de analisar de forma global a relação entre conflituosidade e convivência, o autor apresenta, no segundo capítulo, os principais resultados de pesquisa realizada na Galícia, entre 1998 e 2002, e também na Comunidade Autônoma de Canárias, em 2002 e 2003. A convite do Instituto Canário de Avaliação e Qualidade Educacional (Icec), a pesquisa foi centrada em investigações sobre a percepção que professorado e alunado do Ensino Médio de escolas públicas e particulares conveniadas têm sobre diferentes dimensões da relação conflito/ convivência. As pesquisas apresentaram resultados semelhantes e, pelo fato de a investigação nas Ilhas Canárias ter sido publicada pelo Icec (2004), os resultados apresentados nessa obra são dados inéditos da investigação realizada na Galícia.

A pesquisa foi estruturada em três blocos temáticos, estreitamente inter-relacionados e apresentados de maneira clara pelo autor: Conflito, disciplina e convivência; Percepção de violência e Estratégias para favorecer a convivência.

Os dados foram obtidos através da aplicação de questionários com 22 perguntas e 110 itens para o alunado e 32 perguntas com 208 itens para o professorado. As principais conclusões referidas pelo autor indicam que tanto professores quanto alunos possuem uma percepção negativa do conflito, que se explica pela confusão que se estabelece ao relacionar conflito com violência e indisciplina.

Jares aponta que modificar essa percepção negativa do conflito é um dos desafios prioritários a serem enfrentados para encarar a realidade do conflito como algo natural e tratá-lo, a partir daí, como uma oportunidade para aprender, ou seja, como um fato educativo. Outros dados demonstram que professores e alunos têm uma boa percepção da convivência entre ambos, mas também coincidem no fato de terem uma percepção negativa da indisciplina e da violência dos educandos na escola, resultados que podem estar relacionados a opiniões concentradas em determinados sujeitos, mais do que no conjunto, tanto pelos professores quanto pelos alunos.

Outro ponto relevante do estudo é que ambos reconhecem serem poucos os espaços destinados e muito raramente são utilizadas estratégias didáticas que favoreçam a convivência, confirmando, de forma clara e contundente, a escassa bagagem metodológica e organizativa que desafia os professores a melhorar a convivência nas escolas. Além disso, através da análise das diversas dimensões educacionais formuladas na pesquisa, é possível destacar uma visão pouco otimista dos sujeitos pesquisados sobre o uso de algumas atividades propostas pelo estudo para favorecer uma convivência positiva nas escolas.

Em relação ao medo de ir à escola e ao sentimento de apreço em relação aos seus próprios colegas e ao professorado, o estudo pôde analisar o desenvolvimento social dos alunos e a sua integração à vida escolar. Os dados refletem que a maioria dos estudantes nunca sentiu nenhum tipo de medo dos professores ou medo de ir à escola, mas a percentagem, quanto ao apreço do professorado, apresentou uma tendência negativa e, consequentemente, preocupante.

Após expor os dados da investigação, é no terceiro capítulo, “Âmbitos de intervenção”, que o autor apresenta propostas para centros educacionais a partir de três ideias fundamentais: o planejamento tanto para o espaço da classe quanto da escola, assim como da comunidade educativa (professores, alunos e mães/pais); grande repertório de atividades didáticas; e participação de todos os setores da comunidade educativa, a partir da ideia-chave de corresponsabilidade. Para a exposição desse “Plano de Intenção”, o autor precisou examinar o marco legislativo dessa temática, as propostas de escola e de aula, assim como a formação do corpo docente, tema, aliás, que deve exigir um esforço máximo por parte da administração educacional, das universidades e dos coletivos profissionais.

O quarto capítulo: “A mediação nas escolas”, é interessante por apresentar a experiência realizada em uma escola de Ensino Médio sobre um dos métodos de resolução de conflitos que está sendo utilizado em centros educativos: a mediação. Segundo Jares, a mediação consiste na intervenção de uma parte (alheia ao conflito e imparcial) com o objetivo de facilitar que as partes cheguem por si mesmas a um acordo por meio do diálogo, em que o processo de mediação passa de binária, entre as duas partes, a ternária, com a presença de um(a) mediador(a).

O que confere caráter educativo à mediação é o fato de que o mediador não tem poder para impor uma solução, cujos protagonistas do conflito são os que preservam o controle da situação e tentam chegar a um acordo. O capítulo revela como foi posto em andamento a experiência de mediação, a formação dos mediadores e mediadoras, as situações que intervieram, os obstáculos encontrados, as opiniões dos mediadores, o professorado, etc. Dentre as informações importantes, é possível destacar, nesse capítulo, a dificuldade apontada pelos mediadores em manter a imparcialidade durante os conflitos e a percepção do professorado em ressaltar a diminuição da conflituosidade na escola, desde a implantação do programa.

Ao considerar a família como âmbito fundamental na socialização e o impacto e comoção intelectuais causados no autor, devido às grandes mudanças que vêm ocorrendo na família espanhola, algumas análises são realizadas, no último capítulo: “Educar para a convivência desde as famílias”. Sobre o papel das famílias na educação para a convivência, o capítulo é organizado em três partes. Em um primeiro momento, é feita uma análise sobre as relações família-escola; num segundo momento, é feita uma abordagem dos diferentes erros que todos consideram estar sendo cometidos na educação de filhos e filhas; e, finalmente, algumas estratégias para favorecer a convivência nas famílias e facilitar a resolução pacífica de conflitos.

Diante do valor da educação e com a preocupação em fazer surgir uma rica reflexão acerca da pedagogia da convivência, como uma das alternativas possíveis para uma educação voltada para a paz, Jares encerra sua obra com um tema adequado à realidade atual. Os resultados obtidos em sua investigação demonstram a importância de pensar uma educação voltada para a mediação de conflitos, mas que apresente o enorme desafio, qual seja o de ser aplicada nos principais âmbitos da educação: a família e a escola.

Referências

JARES, Xesús R. Pedagogia da convivência. Trad. de Elisabete de Moraes Santana. São Paulo: Palas Athena, 2008. p. 239.

Lisiane Reis Brum – Licenciada em Educação Física. Coordenadora-Geral da Academia-Escola da Universidade de Caxias do Sul. Mestranda em Educação pela mesma instituição. E-mail: lrbrum@ucs.br

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Educar para a paz em tempos difíceis – JARES (C)

JARES, Xesús R. Educar para a paz em tempos difíceis. Trad. de Elizabete de Moraes Santana. São Paulo: Palas Athena, 2007. Resenha de: BASSO, Nestor. Conjectura, Caxias do Sul, v 14, n. 3, p. 201-207, set/dez, 2009.

Xesús R. Jares, autor de Educar para a paz em tempos difíceis (2007), nasceu em Vigo, Espanha, e faleceu em setembro de 2008. Doutorou-se em Pedagogia pela Universidade de Santiago de Compostela, catedrático de Didáctica e Organización Escolar na Faculdade de Ciências da Educação na Universidad de la Coruña. A cátedra foi obtida com “Modelos de educación para la paz y el desarrollo”. Foi fundador e coordenador do Colectivo Educadores pela Paz, em 1983, na Galícia. Também foi membro do Comitê Executivo da Associação Internacional de Educadores para a Paz (AIEP) e presidente da Associação Galego-Portuguesa de Educação para a Paz (AGAPPAZ). Publicou diversas obras e, dentre os principais títulos, destacam-se Pedagogia da convivência, Aprendendo a conviver e Educação e direitos humanos.

Na obra que dá o título a esta resenha, Jares introduz a educação para a paz (EP) como se fosse uma carta topográfica. Pretende explicar e levantar um mapa global da educação para a paz. Diz: “Se, como sabemos, educar para a paz é sempre um processo complexo e problemático, não há dúvida que compreender essa necessária e atrativa tarefa torna-se ainda mais relevante nos tempos difíceis e incertos em que vivemos.” (p. 11).

Destaca a diversidade de alunos e o choque de valores que permeia a comunidade educacional, no contexto atual, como fatores e dificuldades da área. Lembra que, quando as condições são mais difíceis, deve-se atuar com mais “compreensão e paixão” (p. 11), pois aceitar a situação como ela se apresenta não ajuda a transpor as dificuldades. As condições difíceis devem ser transpostas com inteligência, muito trabalho e com harmonia.

Jares deixa claro, em suas reflexões, que não se pode hesitar e nem transigir diante da violência, em especial, no que diz respeito à educação. Alerta que, à educação deve-se dedicar maior atenção, pois, no longo prazo, dela se pode esperar melhores frutos. E, dentre os diversos aspectos pertinentes à educação, sobre dois deles entende ser fundamental debruçar-se: o conteúdo dos programas educacionais e a formação dos professores.

O conteúdo precisa tratar da cultura da paz e dos direitos humanos; os professores devem ser entendidos como agentes/condutores do processo educacional e para tal preparados. Constrói a obra Educar para a paz em tempos difíceis dividida em quatro capítulos. O Capítulo 1 apresenta as bases teóricas da educação para a paz iniciando pela contextualização histórica. Mostra os elementos teóricos e as implicações educativas do modelo de EP que defende e o denomina “crítico, conflituoso e não violento”. Em primeiro lugar, escreve que a EP, em seu percurso histórico, tem um legado amplo, rico e plural, estruturado em quatro grandes ondas, que passam pelas disposições à Escola Nova, contribuições da Unesco, pesquisa para a paz e subsídio pedagógico da não violência. Em segundo lugar, analisa os conceitos básicos nos quais sua proposta de EP se fundamenta: paz positiva, que se volta à perspectiva criativa do conflito, ou seja, compreensão de que a paz não é o contrário da guerra, mas da violência, e que abarca questões de sustentabilidade, justiça, igualdade, desenvolvimento, direitos humanos, entre outras. Em terceiro lugar, esclarece o significado de educação para a paz, vendo-a como um processo contínuo e permanente “a partir – e para – determinados valores, como a justiça, a cooperação, a solidariedade, o compromisso, a autonomia pessoal e coletiva e o respeito”. (p. 45). Em quarto lugar, trata dos componentes que constituem a EP, provenientes da sua evolução histórica. Por quinto aborda e examina as implicações do modelo no que se refere à prática na escola, no que pertence à estrutura e organização dos conteúdos, ao método didático-pedagógico e aos aspectos da aprendizagem e à avaliação dos resultados.

O Capítulo 2 aborda educação e direitos humanos e analisa a relação entre os dois conceitos. Estrutura o capítulo em três pontos. No primeiro, desenvolve suporte conceitual de direitos humanos, situando-os como questão central e importante. Entende o sentido de dignidade do ser humano como uma condição moral a ele conexa, sem nenhum tipo de distinção, seja da econômica, física, cultural, seja ela racial, sexual, etc. Passa pela ideia da universalidade dos direitos humanos e pelo entendimento de que são fruto de um processo histórico e, portanto, uma “concepção construída historicamente”. (p. 75). No segundo, trata dos princípios didáticos mais importantes a partir dos quais deve ser analisada a opção educacional. Entende que as estratégias didáticas para operacionalizá-la devem estar inspiradas: na vivência dos direitos humanos; na conexão com a prática do dia a dia da escola e o ambiente em ela que se insere; no entendimento de que “a educação para os direitos humanos, como parte da educação para a paz, é uma educação pela ação e para a ação” (p. 82), dentro de uma visão mutável de realidade e suscetível de transformações; no envolvimento do aluno no processo de ensino e aprendizagem estimulado-o a interagir e a dar sua contribuição na escolha do método; na definição dos fins e na própria avaliação dos resultados; no cuidado com as coerência dos enfoques, preferentemente globalizantes e interdisciplinares, mas homogêneos e coerentes com o fim que se busca e, finalmente, na compreensão de que o processo de ensino e aprendizagem não pode estar despido do componente afetivo e experiêncial. “É preciso agregar-lhe os afetos, as percepções, os sentimentos e as sensações das experiências vitais dos educandos.” (p. 86). No terceiro, faz uma análise das diretrizes organizacionais essenciais a partir das quais é recomendado tratar a educação para os direitos humanos. E, na dimensão organizacional, Jares diz que “um projeto curricular de educação para a paz e direitos humanos tem de abordar a relação dos termos organizacionais – estrutura, normas, estilo de direção, participação, comunicação, sistema de relações, tratamento de conflitos, avaliação institucional, etc. – com os valores e objetivos que tal projeto busca”. (p. 87).

Destaca a importância da criação de um clima de confiança, segurança e apoio mútuos no ambiente escolar, e o situa como fator que torna o trabalho mais agradável tanto para os professores como para os alunos. Essas condições fazem emergir uma atmosfera de interatividade positiva para o desenvolvimento das atividades que favorecem, entre educandos e educadores, a comunicação, o respeito, o interesse e o compromisso coletivo voltados à consecução da paz e dos direitos humanos. A escola, assim constituída e democraticamente organizada, torna-se terreno fecundo para a consolidação da educação para a democracia e para os direitos humanos e, complementarmente, facilita o desenvolvimento e a utilização de estratégias para uma solução não violenta dos conflitos que surgem no cotidiano. A resolução de conflitos, nesse contexto, sedimenta a democratização dos centros escolares e a emancipação dos membros envolvidos.

O Capítulo 3 trata da educação para a paz depois dos atentados de 11 de setembro de 2001 e 11 de março de 2004, em Nova York e Madrid, respectivamente. O autor, não obstante o rastro de dor que a violência terrorista causou nos Estados Unidos e em Madrid, lembra que a educação para a paz é uma necessidade anterior a esses eventos (e aos que os sucederem). “A violação dos direitos humanos, a injustiça social, a precarização do trabalho, a pobreza – o chamado genocídio silencioso – não são conseqüência do atentado nos Estados Unidos” (p. 110) refere ele. Na verdade, a gravidade desses fatos mostra, com muita clareza, a necessidade de intensificar e divulgar os princípios e valores da educação para a paz, bem como a reordenação de seus conteúdos e possibilidades de estudo.

Para o autor, a devastadora passagem dos atentados, recém-referidos, provocou consequências como: a retomada da ideologia do bem contra o mal – nós os bons, diante dos outros, os maus –; favorecimento à militarização da sociedade e às intervenções militares; perda de determinadas liberdades e violação de direitos, agudização de comportamentos discriminatórios, transformação dos direitos humanos em uma das principais vítimas (sem direitos humanos não pode haver segurança nem democracia) e imposição de uma visão unilateral de mundo – reforço da hegemonia mundial dos Estados Unidos.

Os meios de comunicação, entende Jares, deram ampla e retumbante divulgação ao atentado que causou a queda das torres gêmeas e que ceifou a vida de mais de três mil pessoas em Nova York. O episódio que acabou se transformando em um marco cruento da história recente da violência, por nenhum motivo pode ser minimizado, e nem seus causadores devem ser aliviados dos rigores da justiça. Observa que há outros atentados que assolam o universo… No mesmo instante em que se dava essa tragédia, muitos milhares de pessoas entregavam sua vida à eternidade, vítimas de outras mazelas (evitáveis) que arruinam o mundo, como, por exemplo, a fome e a miséria. Para Jares, “seja no campo social, seja no educativo, essa realidade deve ter prioridade absoluta, na medida em que a pobreza envergonha a existência da humanidade, por ser causadora do maior número de mortes e sofrimento no planeta”. (p. 116-117).

Dentre as tantas formas que expressam outras situações de violência situam-se: o aumento vertiginoso da dívida externa, o aumento da pobreza, a redução da ajuda ao desenvolvimento que amplia a distância entre ricos e pobres e a flexibilização das condições de trabalho que implicam a precarização do próprio trabalho. Para o autor, não ter trabalho remunerado, digno e estável significa caminhar na direção do progressivo aumento da exclusão social, que desemboca num contexto de precariedade humana “produzindo” a formação de pessoas dóceis, submissas e intimidadas nas suas reivindicações; pessoas em constante ambiente de conflito.

“Os atentados de 11 de setembro reforçaram a ideia de priorizar a educação para o conflito e sua solução não-violenta, a educação para o desenvolvimento e a educação multicultural e anti-racista.” (p. 131). Para levar adiante a implementação dessa proposta educacional, é preciso que se priorizem: o valor da vida humana e a cultura da não violência; a busca da verdade e o ensino da verdade histórica; a busca da verdade que leve, necessariamente, às causas dos problemas tais como: desigualdade, miséria, terrorismo, fundamentalismo de grupos e outros; a valorização da justiça e a rejeição da vingança e do ódio; o combate ao medo que obstaculiza a racionalidade e nega a essência do sentido educativo; a luta contra a ignorância e a manipulação do processo informacional; o direito à educação, à democracia; os direitos humanos e o Estado de Bem-Estar Social; reformas que façam das Nações Unidas uma autêntica organização internacional, mais democrática e operativa; a possibilidade de alternativas a um mundo desigual, injusto e violento que tornem conhecidas as conquistas da população e a educação como esperança e compromisso social, no papel de transformadora de situações injustas e perversas.

O Capítulo 4 aborda a educação para a convivência como processo de alfabetização em conflitos. Diz Jares: “Educar é uma tarefa nobre, complexa e difícil, porém atrativa e necessária, uma constatação que nos parece cada vez mais transparente à medida que avançamos na idade e, talvez em conhecimento.” (p. 157). No campo educacional, os fundamentos e os âmbitos de estudo têm se tornado cada vez mais complexos. O crescente multiculturalismo, a globalização, a violência e os conflitos de toda espécie plasmam sociedades complexas. A convivência em sociedade está mais complexa, tornando-se necessário e urgente construir o aprendizado do convívio. Para o autor, aprender a conviver é um dos pontos em que deve se alicerçar a educação para o século XXI, uma vez que a carência de aprender a conviver se configura em “uma necessidade inadiável de todo projeto educacional, além de uma requisição formal de nossas leis”. (p. 159). O desenvolvimento de um projeto educacional que opere com eficácia num mundo desigual, injusto e violento, precisa ser conduzido por bons educadores. Educadores, que saibam trabalhar com o aprendizado do convívio, da equidade, da justiça social, da liberdade, dos direitos humanos, e que cultivem a educação para a paz, sem exceção.

Precisa-se empreender uma prática docente em que o ensino dos conteúdos não se faça de maneira fria, mecânica e falsamente neutra. Para essa realidade, infelizmente, não se pode esquecer que “ainda é clara e indubitavelmente deficitária a formação de docentes em temas de paz, resolução de conflitos, etc.” (p. 162).

No âmbito e no campo específico da formação de docentes, a capacitação em termos de paz, resolução de conflitos, democracia, direitos humanos, etc. continua sendo assustadoramente deficitária, como atestam as investigações do autor. A educação para a paz perpassou os umbrais da universidade mais tarde do que as demais etapas do sistema educacional, e os estudos a respeito dela ainda enfrentam desconfiança e rejeição acerca da idoneidade ou da cientificidade por parte dos acadêmicos. No estudo da educação para a paz, “aposta-se em alguns valores explícitos, na consideração da educação como uma atividade política e na orientação para a ação, que se chocam com as concepções técnicas e científicas da educação e, consequentemente, seriam descabidos na academia orientada pelo pensamento tecnocrático”. (p. 163). Os professores precisam ser preparados com habilidades e conhecimentos teórico-práticos dos conteúdos-chave que devem fazer parte do processo da formação dos jovens. Devem ter a compreensão positiva de conflitos, isto é, entender que é necessário enfrentá-los como um valor que pode e deve gerar debates que acabam resultando em base para a crítica pedagógica. O conflito não é algo que tenha um jeito único e, portanto, uma resposta generalizada para todo tipo de situação. A intervenção tem de valer-se da combinação de saberes vertidos das diversas disciplinas que se ocupam da matéria.

Ainda, outros aspectos são igualmente importantes e fundamentais na preparação do quadro docente. Para Jares, o professor deve saber distinguir e considerar o que há de diferente entre agressividade e violência.

A agressividade faz parte da conduta humana, entendida como combatividade positiva, como força para a autoafirmação física e psíquica do indivíduo, e não necessariamente deva se transformar em violência.

Ao professor cabe distinguir, separar e intervir de forma adequada. Diante dos conflitos devemos ser duros com os problemas, mas sensíveis com as pessoas. (GANDHI apud JARES, 2008).

Jares considera que é fundamental planejar o trabalho educacional para a convivência. Ensina que “a aprendizagem da convivência não pode ser uma tarefa improvisada”. (p. 177). Tanto o espaço onde se dá o processo de ensino e aprendizagem quanto a estrutura curricular precisam ser planejados e organizados tendo presente o conjunto dos protagonistas e as ações da comunidade educacional.

Quando trata do estímulo a uma cultura da paz, Jares assim se pronuncia: “Consideramos que a educação para a convivência não pretende transmitir unicamente determinadas estratégias e habilidades para resolver conflitos.” (p. 185-186). Para ele há um objetivo mais amplo e ambicioso: “construir uma nova cultura e relações sociais onde a violência não faça sentido”. (p. 186). Uma cultura que respeite a diferença, a diversidade de raças, as culturas e os credos. Uma cultura de solidariedade, de tolerância e implacável na defesa da liberdade, da democracia e dos direitos humanos. É preciso aprender a conviver.

Referências

JARES, XESÚS R. Educar para a paz em tempos difíceis. Trad. de Elizabete de Moraes Santana. São Paulo: Palas Athena, 2007. 193 p.

Nestor Basso – Professor no Centro de Ciências da Administração. Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Caxias do Sul

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