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O lunar de Sepé – Paixão, dilemas e perspectivas na educação – SAVIANI (RBHE)
SAVIANI, Dermeval. O lunar de Sepé – Paixão, dilemas e perspectivas na educação. Campinas: Autores Associados, 2014. 181 p. Resenha de: SILVA, Sarah Maia Machado. Revista Brasileira de História da Educação, Maringá, v. 15, n. 3 (39), p. 321-327, set./dez. 2015.
Com muitas obras significativas publicadas, atualmente Dermeval Saviani é professor emérito da Unicamp e coordenador geral do grupo nacional de estudos e pesquisas ‘História, Sociedade e Educação no Brasil’ (HISTEDBR). É Doutor em Educação pela PUC de São Paulo (1971) e Livre Docente em História da Educação pela Unicamp (1986). Entre 1994 e 1995, realizou estágio sênior na Itália. Condecorado com a medalha de mérito educacional do Ministério da Educação, também recebeu da Unicamp o Prêmio Zeferino Vaz de Produção Científica em 1997. Foi contemplado, por duas vezes, com o Prêmio Jabuti: em 2008, pela publicação do livro História das ideias pedagógicas no Brasil e, em 2014, pela publicação de Aberturas para a História da educação. Em 2012, recebeu pelo GT de História da Educação da Anped a Estatueta Paulo Freire, homenagem dedicada aos pesquisadores indicados pelos grupos de trabalho.
A obra O Lunar de Sepé – Paixão, dilemas e perspectivas na educação está organizada em doze capítulos e faz parte da coleção ‘Educação contemporânea’, da editora Autores Associados. Essa coleção abrange trabalhos que abordam o problema educacional brasileiro de uma perspectiva analítica e crítica. Educação e paixão são dois termos que movimentam os capítulos da obra, visto que são termos que têm uma relação: a educação pode ser considerada apaixonante e a paixão pode significar padecimento. O livro trata dos dois sentidos da palavra paixão.
A obra, que apresenta coletânea de estudos feitos por Saviani, em conferências realizadas em diferentes momentos, aborda o sofrimento dos educadores, colocando em xeque as contradições configuradas nas vicissitudes, nos dilemas e nos paradoxos enfrentados por eles no empenho em assegurar à população o direito à educação. Nesse sentido, a obra apresenta possibilidades para a realização de um trabalho significativo, resultado da dedicação apaixonada à educação.
No prefácio, Saviani destaca a motivação para a realização dessa produção, que, segundo ele, tem uma ligação intelectual e emocional; sua curiosidade intelectual destaca São Sepé, cidade do Rio Grande do Sul com nome de santo, santo este desconhecido da biografia de santos católicos. Então, a partir do poema popular ‘O lunar de Sepé’, o autor infere que a canonização de Sepé se deu não por um processo no Vaticano, mas pelo imaginário popular. O trabalho se intensifica com o VII Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação, momento em que Saviani elaborara um estudo sobre a migração de sete povos das missões, tendo como eixo o poema ‘O Lunar de Sepé’. Ao satisfazer sua curiosidade, o autor também oferece uma homenagem à cidade natal de sua esposa. O prefácio apresenta ainda a estrutura geral da obra, bem como um breve relato sobre cada capítulo.
‘O Lunar de Sepé e a derradeira migração: a educação jesuítica entre as coroas de Espanha e Portugal’ é o título do primeiro capítulo, que apresenta na íntegra ‘O lunar de Sepé’, poema citado por Maria Genórica Alves, mestiça descendente de índios missioneiros. O poema está publicado no livro Contos gauchescos e lendas do Sul (1999) por J. Simões Lopes. Nesse capítulo, o autor retrata o fenômeno das migrações, elucida que as migrações ocorrem pela expansão do comércio, o que conduziu muitos povos do ocidente europeu a se lançar nas grandes navegações, visando à conquista de novas terras. O autor recua no tempo para trazer à tona as missões jesuíticas; assim, destaca que, em 1492, ocorre a descoberta da América por iniciativa espanhola e, em 1500, ocorre a chegada dos portugueses ao Brasil. Saviani fecha o capítulo com a seguinte reflexão: Que modelo educativo poderá dar conta dos conflitos e das contradições que atravessam o fenômeno das migrações neste tumultuado mundo em que vivemos?
O segundo capítulo, ‘Vicissitudes e perspectivas da pedagogia no Brasil’, a palavra ‘vicissitudes’, conforme o autor, retratada no prefácio do livro, sugere as dificuldades, os contratempos, as contrariedades, as crises, as provocações, os incômodos vividos pelos professores. Saviani enfatiza que, para a intencionalidade da realização da prática educativa, a pedagogia surge como uma teoria que deve orientar essa intencionalidade. Para o autor, desde a chegada dos jesuítas ao Brasil, temos a preocupação em desenvolver ação educativa de forma intencional.
De acordo com o autor, o termo ‘pedagogia’ está ausente da problemática pedagógica desde a expulsão dos jesuítas. Assim, no plano educacional de Nobrega, no Ratio Studiorum e nas reformas pombalinas, não aparece o termo ‘pedagogia’.
Saviani expõe, durante o capítulo, as vicissitudes que transcorrem no curso de pedagogia e na sua instauração, e indica que a primeira reformulação do curso de pedagogia aparece com a nossa primeira LDB, lei 4024/61, no parecer 251, de 1962. Nessa reformulação, manteve-se a duplicidade de bacharelado e licenciatura, assim como o núcleo básico do currículo formativo, e houve a dissolução do esquema 3+1. O autor destaca que as vicissitudes pelas quais passava a pedagogia conduziram à organização, na I Conferência Brasileira de Educação realizada em 1980, do Comitê Pró-participação na reformulação dos Cursos de Pedagogia e Licenciatura, transformado, em 1983, na Comissão Nacional pela Reformulação de Cursos de Formação de Educadores (CONARCFE), que, em 1990, se converte na Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (Anfope). Em 2006, a pedagogia aprova as suas Diretrizes curriculares nacionais, aspecto apontado por Saviani como a oitava vicissitude da história da pedagogia no Brasil. O autor também assinala que o espaço apropriado para a realização de estudos e pesquisas educacionais amplos são as faculdades de educação.
No terceiro capítulo, ‘Pedagogia, paixão e crítica’, texto organizado para a aula inaugural de 2011 no curso de pedagogia da Unicamp, o autor se coloca em diálogo com os calouros do referido curso. Destaca a importância e o fascínio deles pelo ofício que chama de apaixonante: a pedagogia, que tem como objetivo a produção da humanidade no homem, e, nesse sentido, ele destaca o sentido dual da palavra paixão. Para abordar essa dualidade, Saviani aponta a paixão de ser professor em cinco estações em seu texto: 1.ª) a estação ‘Educação na Grécia’ elabora a perspectiva rígida e de sofrimento de que se reveste a educação; 2.ª) a estação ‘Educação em Roma’ apresenta a relação de entusiasmo pela educação e também de sofrimento, a relação de menosprezo à exaltação da educação, ambos os polos sintetizados na paixão; 3.ª) a estação ‘Educação na idade média’ assinala a decadência da cultura clássica e o surgimento das universidades e dos mestres livres; 4.ª) a estação ‘Educação moderna ou burguesa’ apresenta a constatação de uma escola institucionalizada e de uma educação miserável e precária; 5.ª) a última estação, ‘Educação no Brasil’, destaca a paixão do educador e seu padecimento, e a contradição de uma política educacional mais preocupada com as estatísticas do que com a qualidade da educação. O autor revela que é desejável estimular, nos estudantes de pedagogia e nos próprios pedagogos, o entusiasmo e a dedicação pela causa da educação, mas devemos atentar a uma postura ingênua que pode trazer o resultado contrário do que se quer de um ofício apaixonante como a pedagogia.
No capítulo seguinte, ‘Ética, educação e cidadania’, o autor aborda a trilogia ética, educação e cidadania, colocando a educação literalmente no centro do debate, remetendo às suas obras para elaborar alguns conceitos, como o de educação. Conforme o autor, a educação não apresenta a ética nem garante a cidadania, mas ela institui a humanidade no homem. O texto apresenta uma descrição sobre o homem, a educação e a ética e seus valores. Saviani coloca a educação escolar como um aspecto necessário para o desenvolvimento da cidadania, que juntamente com a ética, formam a trilogia apontada pelo autor. Tendo em vista essa trilogia, ele considera a sociedade burguesa e a divisão de classes, expondo as determinações sociais e históricas ali expressas, aspecto importante para a compreensão dos impasses recorrentes na sociedade atual capitalista e burguesa. Diante desse contexto, a ética, a educação e a cidadania, para o autor, converter-se-ão na expressão plena do desenvolvimento da existência humana.
No quinto capítulo, ‘Dilemas e perspectivas da formação de professores no Brasil’, o autor apresenta a situação atual da educação e a formação de professores; para tanto, retoma aspectos sobre a educação no século XX. O autor expõe cinco dilemas na formação de professores a partir de pareceres, resoluções e diretrizes nacionais. Os pareceres não denotam elementos que garantam uma formação de professores consistente. Além de apresentar os dilemas, o autor descreve as perspectivas da formação docente no Brasil, que ele coloca como desafios a serem enfrentados na formação de professores, principalmente a fragmentação e a descontinuidade das políticas educacionais. As condições do trabalho docente é outro ponto decisivo na formação, pois assim aparece o valor social da profissão. A garantia de uma formação consistente assegura condições adequadas de trabalho, e para tanto se deve olhar para os recursos financeiros correspondentes.
‘O direito à educação’ é o sexto capítulo, em que se apresenta a educação como direito proclamado, diferenciando os direitos civis, políticos e sociais. Para debater essas diferenças, o autor analisa as medidas tomadas pelo Estado perante o direito à educação.
No sétimo capítulo, o tema é ‘O paradoxo da educação escolar: análise das expectativas contraditórias depositadas na escola’. ‘Que escola queremos?’ é a questão que o autor analisa para elaborar os paradoxos que circulam no âmbito da sociedade no que se refere à educação. Saviani aponta que queremos uma escola que forme para a cidadania, e assim explora o paradoxo da escola cidadã, o paradoxo da escola imparcial, o paradoxo da escola igualitária e o paradoxo da escola equalizadora. O autor enfatiza que o desafio posto pela sociedade capitalista à educação pública poderá ser enfrentado com a superação da sociedade capitalista. Explica que a educação está intrinsecamente relacionada com os meios de produção capitalista e que, contraditoriamente, nela há elementos para a transformação do capital.
No oitavo capítulo, ‘Importância da filosofia para a educação’, o autor recorre à filosofia para compreender a situação atual da educação, marcada pela crise de paradigmas, pois considera a filosofia e a história como produção da própria existência humana no tempo. É a partir da filosofia que se acompanham reflexiva e criticamente as propostas educacionais e seus fundamentos e o homem se coloca como sujeito histórico.
‘Politecnia e a formação humana’ é o debate do nono capítulo, em que a noção de politecnia e de trabalho são o referencial. Saviani entende o conceito de trabalho como princípio educativo, ou seja, toda organização educativa se dá a partir do trabalho e do entendimento da realidade do trabalho. O homem se constitui enquanto homem a partir do trabalho, pois é preciso produzir sua existência. Nesse sentido, o que define a existência humana é a realidade do trabalho, e o autor assevera que a realidade da escola deve ser analisada por esse ângulo. A ciência atinge uma parcela pequena da humanidade nas formas anteriores de sociedade, e é na sociedade moderna que a ciência vai alargar o conjunto da sociedade, pois a potência material é incorporada ao trabalho social produtivo. Isso porque o domínio da ciência corresponde ao conjunto da sociedade; assim, o currículo escolar elementar precisa considerar essencialmente o domínio da linguagem escrita, sendo composto pelo domínio da linguagem, da matemática, das ciências naturais e das ciências sociais. O autor considera que não podemos perder de vista o caráter transformador e revolucionário da educação diante de um momento em que, mais do que nunca, é necessário lutar e resistir para a transformação da sociedade, caminhando na possibilidade de que todos os homens se beneficiem do desenvolvimento das forças produtivas.
O décimo capítulo aborda o futuro da universidade entre o possível e o desejável. Saviani define que a universidade se encontra com dois futuros possíveis. O primeiro é que a universidade se verga às imposições do mercado. Com essa possibilidade, o autor constata que a universidade corresponde à tendência dominante e aponta ser um futuro indesejável. O segundo tem a sua possibilidade condicionada à reversão da primeira, o que implica projetos econômicos em torno da vida social atual. E inversamente ao primeiro, esse futuro não é previsível e sua visibilidade é problemática, mas desejável. A partir dos aspectos históricos da educação, o autor desenha o quadro em que se configura a educação superior no Brasil, afirmando estar ela submissa aos mecanismos e às demandas do mercado, sendo este um aspecto mundial que também se manifesta no Brasil.
‘Pós-graduação em educação, interdisciplinaridade e formação de professores’ é o décimo primeiro capítulo, no qual o autor segue discutindo a educação superior em nível de pós-graduação e resgata o significado e a implantação da pós-graduação no Brasil, abordando sua estrutura organizacional. A organização da pós-graduação no Brasil acontece com o parecer n. 9.77 do Conselho Federal de Educação em 1965. Trata-se de um parecer que trata da conceituação dos estudos pós-graduados, com base em experiências americanas. Para a abordagem crítica sobre a interdisciplinaridade e a abordagem científica da educação, Saviani analisa a estrutura curricular da pós-graduação. O autor problematiza a banalização da questão interdisciplinar recorrente na atualidade e explica o que é ciência da educação a partir das disciplinas psicologia, sociologia e história da educação. As abordagens disciplinares e interdisciplinares correspondem a um movimento analítico, abstrato, necessário para se passar à síncrese, movimento empírico, e ao concreto, a síntese do todo (caótico), conforme descreve o autor baseado na intuição do todo (articulado) apropriado pelo pensamento. Saviani afirma que este é o caminho para constituir uma ciência da educação. O capítulo ainda abre uma discussão sobre a formação docente e a pós-graduação, o resgate da história da educação a partir da colônia, apresenta como se deu a formação de professores.
E o capítulo final, décimo segundo, elenca ‘A importância da educação no projeto de desenvolvimento do País’. A questão do financiamento da educação é abordada pelo autor nesse capítulo final, no qual expõe que a relação entre educação e desenvolvimento pode ser considerada a partir de três distintas concepções: educação pelo desenvolvimento, educação para o desenvolvimento e educação como desenvolvimento. Como conclusão, destaca o Plano Nacional de Educação, como estratégia importante para tornar real a qualidade da educação pública. O autor enfatiza que dois eixos do PNE são necessários para isso: o financiamento e o magistério. A questão docente é primordial, pois dela depende o alcance das metas voltadas para a melhoria da qualidade na educação básica.
O livro é direcionado especificamente aos professores que sofrem com a questão salarial, com constrangimentos morais e materiais; professores sobrecarregados de aulas, que atuam em situações de precarização na escola. Saviani coloca em pauta o debate crítico sobre as questões educacionais e convoca a união das forças representativas dos professores, alunos e pais, na busca de uma educação de qualidade para a transformação da realidade social, política e cultural da sociedade em que vivemos com tantas desigualdades. Trata-se de uma obra de referência, alicerçada em compromissos éticos e políticos sólidos, preocupada com a elevação da cultura científica para todos, no sentido da tranformação da sociedade e do universo educativo. Para tanto, o autor se fundamenta nas matrizes culturais e filosóficas clássicas e no marxismo, reafirmando a necessidade da luta, da resistência, para a construção de uma sociedade coletiva para todos.
Desiré Luciane Dominscheck – Doutoranda em Educação linha de Filosofia e História da Educação pela UNICAMP. Membro do Grupo de estudos e pesquisa: HISTEDBR, Professora do História da Educação- Centro Universitário Internacional-Uninter. E-mail: desiredominschek@hotmail.com
Sarah Maia Machado Silva – Doutora em Educação :Linha Filosofia e História da Educação pela Universidade Estadual de Campinas -Unicamp, membro do grupo de pesquisa Paideia. E-mail:sarahmariamachado@hotmail.com
Breve Tratado – ESPINOZA (AF)
ESPINOSA, B. Breve Tratado. Resenha de: ROCHA, André Menezes. Sobre a primeira tradução do Breve Tratado de Espinosa. Artefilosofia, Ouro Preto, n.14, julho, 2013.
As translucidas mãos do judeu
Lavoram na penumbra os cristais
E a tarde que morre é medo e frio.
(…)
Trabalha em um árduo cristal: o infinito.
Mapa de todas as estrelas.
Espinosa.
Poema de Jorge Luís Borges.
Borges gostava de nos lançar no universo dos livros mágicos. Como um bom bibliotecário, nos conduzia por estantes infindas como quem tem em mãos os fios que atravessam entradas e saídas de um imenso labirinto. Lembro-me deum destes livros, o infinito.
O livro infinito é aquele cuja leitura jamais se esgota, que sempre exprime um novo sentido desde que o leitor abra suas páginas. Este Breve Tratado de Espinosa, inédito em língua portuguesa, consiste no mais novo exemplar destes livros com que os leitores de Borges tanto se encantam. Um livro infinito sobre o amor infinito, em síntese, eis do que se trata. Este Breve Tratado de Espinosa é uma obra juvenil, escrita bem antes da Ética e, para alguns intérpretes, antes mesmo do Tratado da Emenda do Intelecto. Talvez por isso seja a melhor maneira de introduzir-se no pensar com os conceitos de Espinosa. Inicia-se com a intuição da essência absolutamente infinita de Deus e, após passar pelo conhecimento da essência das paixões e ações do s homens, trata dos bons desejos que nascem do uso da razão, do amor intelectual que é imanente à intuição e culmina com a demonstração do que é eterno na essência humana. Mas todas estas demonstrações só fazem sentido, no texto de Espinosa, se não se distingue a inteligência do afeto. Uma leitura tecnocrata dos textos filosóficos e, em especial, do texto de Espinosa, não passaria de um mísero avatar daquela velha vã filosofia de que falava Shakespeare. Como o olho da medusa, o entendimento do tecnocrata petrifica o sentido dos textos. Borges é quem nos diz o que perdeu o aprendiz impaciente do conto A Rosa de Paracelso.
A curiosidade, o prazer da leitura e o amor da inteligência são os guias mais seguros para os leitores e leitor a s que desejam iniciar-se na leitura dos clássicos e na reflexão filosófica. E no caminho da leitura surgirão muitas questões que em vez de barreiras constituir-se-ão como trampolins a elevação da reflexão.
Gostaria aqui de apresentar algumas questões que me ajudaram a prosseguir na leitura do Breve Tratado. Literatura e arte na composição do Breve Tratado. Os dois diálogos da primeira parte do Breve Tratado tratam de temas candentes da ontologia de Espinosa, mas também caros à tradição neoplatônica do Renascimento, seja na vertente de Marsilio Ficino que procurava desvendar o amor intelectual e obter a eternidade pela criação de mágicas obras de arte, seja na vertente de Leão Hebreu que procurava desvendar o amor intelectual e obter a eternidade pela sabedoria ética na conduta cotidiana e nas ações da vida. A questão da diferença entre amor concupiscente e amor intelectual, que é o mote da erotiké no primeiro diálogo, tinha sido intensamente tratada pelos artistas e pensadores do Renascimento. A partir de Panofsky, podemos acompanhar como a questão da diferença entre amor divinus e amor profanus foi tratada sob a forma artística, por exemplo, nas telas de Botticelli e nos diálogos do próprio Marsilio Ficino. Como sabemos, o jovem Espinosa viveu em Amsterdã na casa-escola do tutor Francisco van den Ende, um franciscano que, como Petrarca, abraçou o humanismo. Ele ensinava literatura latina e filosofia através de leituras coletivas encenadas que muitas vezes se transformavam em peças teatrais. Espinosa, que obteve uma bolsa de estudos como ajudante do mestre-escola, interpretou no Teatro Municipal de Amsterdã peças de Terêncio, o dramaturgo comediante que participou do círculo estoico de Cipião com o historiador Políbio no século II a.C em Roma. Na Escola de Van den Ende, Espinosa conheceu seus melhores amigos, entre os quais o próprio Jarig Jelles, a quem dedicou a versão holandesa do Breve Tratado. Seria demais imaginar que Espinosa tenha elaborado os diálogos a partir da experiência artística com o círculo de amigos na trupe de teatro de Amsterdã? No segundo diálogo, por exemplo, Erasmo e Teófilo encetam animada conversa sobre a diferença entre a causalidade eficiente imanente através das relações internas entre todo-partes e causa-efeitos. Conversações agradáveis podem se tornar profundas tanto na vida cotidiana como nas ações dramáticas. Os dois diálogos da primeira parte são redigidos com engenho retórico e arte dialética para significar que os conceitos filosóficos do Breve Tratado não precisam ser pensados no solipsismo, à maneira cartesiana, mas podem ser pensados em agradáveis conversas em que todos nutrem amizade pela inteligência e gosto pelas arte s ? Razão e Intuição. Espinosa escreve, na segunda parte do Breve Tratado [II, 4], que a razão é a crença verdadeira, pois é o modo de conhecimento que nos leva a ver claramente o que convém que a s coisa s seja m fora de nós, porém não o que são verdadeiramente. E, no entanto, o conhecimento racional desperta os bons desejos que nos conduzem à intuição e ao verdadeiro amor. Podemos dizer que o Breve Tratado foi escrito antes da descoberta das noções comuns como conhecimento racional das propriedades comuns necessárias dos modos in finitos e finitos? Ora, após distinguir a Natureza Naturante da Natureza Naturada [I,8], Espinosa deduz os modos infinitos, quais sejam, o movimento-repouso na matéria e o intelecto infinito na coisa pensante [II,9]. Se os modos infinitos são os fundamentos das propriedades comuns na Ética, isto é, se são o todo de que os modos finitos são as partes, não é preciso convir que são demonstrados por sua gênese no Breve Tratado ? Em que sentido se pode dizer que não há teoria das noções comuns do Breve Tratado ? Sabemos, pela nota complementar 5 redigida por Marilena Chauí em A Nervura do Real, que há diferenças entre a concepção de intuição no Breve Tratado e a concepção de ciência intuitiva na Ética. Afinal, que significa a afirmação, no Breve Tratado, de que o conhecimento intuitivo e o amor intelectual de Deus são paixões do intelecto humano? Nesta obra juvenil, Espinosa pensava o amor intelectual como uma revelação religiosa, ou seja, como a palavra silenciosa que a inteligência de Deus pronuncia sob a forma de intuições no intelecto humano? Quais as diferenças entre a concepção do amor intelectual no Breve Tratado e a concepção do amor intelectual na Ética ? A demonstração de que o diabo não existe. Em várias cartas, Espinosa conversa com amigos sobre o tema da superstição, da crença em fantasmas, espectros e, pior que tudo, da crença no capiroto, coisa ruim ou tranqueira que, como diz Guimarães Rosa, para o prascóvio encontra-se no olho esgueirado de bezerro doente, gato preto, sombração ou redemoinho n o meio da rua.
Nas cartas trocadas com o amigo Boxel, podemos perceber como Espinosa achava graça nestes assuntos. E talvez o espírito de graça destas cartas encontre-se neste Breve Tratado com a demonstração matemática da impossibilidade da existência do diabo. A demonstração segue como consequência da prova ontológica da existência de Deus, desde que esta existência seja pensada a partir da essência como realização da onipotência. Vale lembrar que esta demonstração para nós é engraçada, mas para o contexto das guerras de religião era grave.
Espinosa demonstra, por A + B, como quem demonstra que 2+2=4, que o diabo é uma impossibilidade ontológica: dado que a essência de Deus é absolutamente infinita e que é idêntica à sua potência, um diabo, um gênio maligno ou outro ser malfadado qualquer que tivesse poder para contrariar a essência de Deus só pode ser uma ficção literária ou lógica. O que contraria a onipotência de Deus pode até existir, como existem peixes que nadam contra a corrente do rio, mas não pode influenciar em nada a potência absolutamente infinita de Deus, assim como um peixe não pode mudar o curso do rio ainda que nade contra a corrente. O diabo não pode existir na realidade, não pode ser um ente real, só pode existir como ficção, só pode ser um ente de razão ou ente de imaginação. E como Ferreira Gullar que diz saber como 2 e 2 são 4 que a vida vale a pena, Espinosa demonstra, como 2 e 2 são 4, que o amor intelectual de Deus é o sumo da vida humana e que por ele se encontra tanto a virtude para agir nesta vida como a eternidade de que podemos participar desde que experimentemos um verdadeiro amor.
Ode à leitura. Esta novíssima edição do Breve Tratado de Espinosa tem muitos méritos e o menor deles talvez seja o fato de ser a primeira tradução em português. Os méritos encontram-se mais no uso da língua portuguesa que os tradutores e a revisora fizeram para apresentar este inédito de Espinosa.
A tradução de Luís César Oliva e Emanuel Rocha Fragoso é clara e elegante, o que torna o texto muito agradável para os leitores da língua portuguesa. A revisão técnica de Ericka Itokazu, como sabemos todos os que acompanhamos o processo, lapidou o texto com muito carinho, cuidado e generosidade, para assegurar a precisão dos conceitos e dos argumentos que constituem a arquitetônica do Breve Tratado ; deu polimento, como no ofício de fazer lentes, para que permitissem ver a luz com a máxima nitidez. Certa vez uma amiga me disse, diante do Memorial da América Latina, que as curvas do desenho concreto de Niemeyer impressionavam sua imaginação de tal maneira que ela se punha a pensar, com Einstein e Espinosa, se aquela arte arquitetônica não exprimiria à sua maneira as curvas concretas de um universo infinito e densamente invisível que se reflete na luz das estrelas.
Este Breve Tratado, brilhante qual um crista l e denso como um diamante, ergue-se no tempo como o memorial de Niemeyer ergue-se no espaço. Um livro mágico como aqueles que encantavam Borges, mágico como um mapa não de espaços, mas de tempos que se escandem de uma fonte eterna. Que as frases deste exemplar de livro infinito, semelhantes a curvas geométricas, façam o seu glorioso mister e conduzam leitores e leitoras às veredas concretas do infinito.
André Menezes Rocha-Doutor em filosofia pela FFLCH/USP. Leciona da Facamp/Campinas. Atualmente, realiza seu pós-doutorado sobre Espinosa na FFLCH/USP.
E. P. Thompson: Política e Paixão | André Luiz Duarte e Ricardo Gaspar Müller
Ricardo Gaspar Müller e Adriano Luiz Duarte, brindam a comunidade acadêmica em 2012 com a organização de um livro, que já nasce como inegável referência para os estudiosos da obra e pensamento de Thompson no Brasil. O trabalho é resultado de um Seminário realizado em 2003 na Universidade Federal de Santa Catarina, sob o título, Política e Paixão: dez anos sem E. P. Thompson. Evento este que reuniu pesquisadores da História, Ciências Sociais e Educação, estabelecendo debates que reiteram a centralidade dos conceitos de classe e de consciência de classe como categorias históricas fundamentais, contrapondo-se assim a muitas tendências teóricas que negavam e ainda negam seu significado e importância. No interstício entre o Seminário em 2003 e a publicação da obra aqui resenhada (2012), houve a elaboração de um Dossiê, a partir da revisão dos textos apresentados e discutidos no evento, publicado na Revista Esboços (n.12) do PPGH/UFSC, intitulado: Cultura e resistência: dez anos sem E. P. Thompson, que esgotou em meados de 2005. Mediante a procura nacional e internacional ainda hoje do n. 12 da revista citada, é que tal trabalho foi organizado. O livro conta ainda com a tradução do Pós-escrito: 1976, da segunda edição do livro William Morris: Romantic to Revolutionary, onde Thompson tece amplo debate a respeito da produção intelectual dos fins da década de 1950 até o início da década de 1970, acerca do escritor inglês e suas interpretações, por vezes relevantes, por vezes pouco proveitosas, do ponto de vista do autor.
As peculiaridades da recepção de Thompson no Brasil é tema do prefácio do livro, assinado por Marcelo Badaró Mattos que, de algum modo, anuncia a intenção basilar da coletânea: reconciliar ideia e práxis, pesquisa e engajamento político na obra de E. P. Thompson, dimensões por vezes divorciadas nas leituras de historiadores brasileiros. Nessa perspectiva hegemônica, Thompson é frequentemente associado à Nova história, em especial à cultural. Lido pelas lentes do culturalismo, tradição da qual Thompson era um crítico contumaz, resultando assim em uma domesticação das ideias deste autor, que passa a ser tratado como um marxista demasiado heterodoxo ou um historiador acadêmico clássico, esvaziando o significado de sua ação política apaixonada na configuração de seu pensamento e de sua obra. Abordar Thompson em sua integridade como historiador e militante político, eis o mérito, segundo Mattos, da proposta do livro E. P. Thompson: política e paixão.
Em seu Pós-escrito: 1976, presente na segunda edição do livro William Morris: Romantic to Revolutionary, vemos um Thompson preocupado em deslocar sua análise sobre o escritor britânico de estereótipos que foram formulados por vários intelectuais, como se fosse necessário colocar Morris dentro de uma gaveta, para possibilitar a compreensão de sua vida e obra. Incomodado com tais produções, podemos observar Thompson tecendo suas críticas. O autor elege um campo recente (entre o final da década de 1950 até a data em que escreve seu pósescrito) dos estudos relacionados a William Morris, e propõe uma reflexão rigorosa acerca de alguns pontos que foram tratados a respeito do escritor.
O que podemos destacar e oferecer para o leitor, são alguns argumentos de Thompson e seu próprio conhecimento de se perceber como falho na sua interpretação em um dado momento sobre o escritor inglês, bem como o grande respeito que nutre por Raymond Williams. O ano é de 1955 e seu livro é publicado, propõe uma interpretação distinta de Morris, observando-o como um pensador socialista original, cuja obra era complementar ao marxismo. Dessa forma, rompe com um pensamento que insiste na equação Morris = Marx, não se limitando em oferecer um Morris como marxista ortodoxo. Logo, coloca que é preciso resistir à tendência que existia entre os historiadores das ideias de perceber e teorizar conceitos, apenas em sua linhagem de herança e em suas mudanças. Dado que, as ideias existem e existiram em pessoas reais e em contextos reais.
Em O Grupo e os estudos culturais britânicos: E. P. Thompson em contexto, Ciro Flamarion Cardoso põe em discussão a conjuntura de E. P. Thompson e seu conceito de cultura. No primeiro momento, Thompson é posto como sendo o mais jovem e destacado do grupo inglês, mas em seguida ao analisar Folclore, Antropologia e História Social e, Tradição, revolta e consciência de classe, textos clássicos, Cardoso coloca que não encontra-se com precisão o que seja cultura para o historiador inglês. Com isso, passa a buscar onde se encontra as influências dos estudos sobre cultura em Thompson, visitando Raymond Williams, Pierre Bourdieu e Clifford Geertz, sem conseguir detectar com precisão as influências, ou empréstimo de ideias. Por fim, confirma a importância de Thompson e sua reflexão a respeito das lutas de classes, mas deixa notório que seu conceito de cultura é incompleto.
Célia Regina Vendramini, em seu capítulo Experiência e Coletividade em E. P. Thompson, se dedica numa breve reflexão acerca da categoria de experiência formulada por Thompson. Partindo desse princípio analítico, a autora levanta a questão, a saber, em que sentido Thompson nos ajuda a compreender as práticas políticas atuais. Assim, traça a defesa do materialismo histórico e dialético como método de análise da realidade social. Diante disso, coloca uma proposta de utilizar o materialismo histórico para estudar o Movimento dos Sem Terra (MST) em Santa Catarina, e de outros movimentos sociais, argumentando que se pode compreender o seu sentido histórico atual, da mesma forma, compreendendo suas raízes históricas e suas possibilidades para o futuro. Por fim, destaca a importância de ter uma leitura crítica e dinâmica, ao mesmo tempo que se acompanha o processo histórico.
Regina Célia Linhares Hostins, em seu capítulo O modo de fazer pesquisa do historiador E. P. Thompson, propõe em reconstituir o modo pelo qual Thompson desenvolveu seu trabalho de investigação histórica. Em A miséria da teoria, pensa o método de análise dentro de uma lógica histórica, onde a investigação pauta-se em materiais históricos que se modificam constantemente, pois, se o objeto de investigação se modifica, as perguntas também mudam. Em A formação da classe operária inglesa, estabelece um diálogo entre conceito e evidência, o conteúdo das perguntas diante do material empírico e o modo como buscar identificar as propriedades objetivas da evidência. Assim, a autora discute como se realiza a pesquisa histórica atualmente, alertando para o compromisso com as propriedades determinadas da evidência histórica, isto é, estabelecer esse diálogo entre conceitos e evidências, articulando-os para se fazer ver o processo histórico, não como uma verdade absoluta, mas como um conhecimento em desenvolvimento.
Em E. P. Thompson e a micro-história: trocas historiográficas na seara da história social, Henrique Espada Lima demonstra com muita clareza a importância das pesquisas e reflexões feitas por Thompson para a micro-história italiana. Isso fica evidente por duas situações: a rápida tradução para o italiano da obra A formação da classe operária inglesa, em 1969. Como também a publicação de uma antologia de textos em 1981, em um dos volumes inaugurais da coleção Microstorie, espaço que abrigou o trabalho de vários micro-historiadores. Porém, o historiador inglês não passou ileso, sendo criticado por recusar análises por métodos quantitativos acerca da classe trabalhadora inglesa, uma vez que Edoardo Grendi considerava a demografia como base fundadora da História Social. Os seus conceitos de classe e consciências de classe, segundo Lima, foram considerados como esquemáticos e teleológicos, pelo historiador italiano. Lima ainda atenta para a influência de Eric Hobsbawm em historiadores como Edoardo Grendi.
Em O legado de E. P. Thompson ao estudo das multidões e protestos populares, Sidnei José Munhoz traça um panorama geral dos estudos sobre multidões, localizando as contribuições de Thompson para esse debate e chamando atenção para a importância do seu pensamento no presente, em face à crise no centro do capitalismo e a ausência de projetos alternativos consolidados. Munhoz parte por um lado, das abordagens conservadoras que tratavam os protestos sociais como manifestações do primitivismo e da barbárie e, por outro, do marxismo ortodoxo onde as agitações das multidões eram vistas como manifestações de um lumpemproletariado volátil que, por vezes, pendia ao conservadorismo. Para o autor, a virada nos estudos das multidões acontecerá com Georges Lefebvre e seus seguidores, sendo intensificada por nomes como Eric Hobsbawm, George Rudé e E. P. Thompson. Este último teria dado um passo fundamental para os estudos das multidões e protestos populares, ao perceber nessas manifestações o embrião de uma consciência de classe. Termina traçando um diálogo entre Thompson e seus críticos, além de apontar sua influência em historiadores contemporâneos.
Em Exterminismo e Liberdade Política, Ricardo Gaspar Müller retoma o ativismo e o pensamento de Thompson em face à proliferação de armas nucleares por conta da Guerra Fria. Para Thompson, a lógica da Guerra Fria estava na reciprocidade da ameaça entre EUA e URSS. Essa dinâmica se autoalimentava, assim, as potências se armavam cada vez mais, fomentando interesses políticos e econômicos que dependiam da Guerra Fria para sobreviver. Era preciso um movimento de baixo que pressionasse as mudanças em ambos os blocos. É no interior dos movimentos pacifistas e antinucleares que Thompson sofistica o conceito de exterminismo tomado emprestado de Marx, para definir o período em que vivia, o período do desenvolvimento de uma tecnologia do apocalipse que, em sua lógica perversa, prenunciava o extermínio da própria humanidade. Para Thompson, só a resistência popular é que poderia propor outras alternativas à humanidade, e a paz não viria de cima, pois, as elites governamentais estava presas à própria lógica da guerra. Nesse capítulo percebemos com clareza a aplicabilidade política da história dos de baixo.
Em E. P. Thompson e a pesquisa em Ciências Sociais, Ricardo Gaspar Müller e Maria Cecília Marcondes Moraes chamam a atenção para a pertinência do pensamento de Thompson para o debate contemporâneo sobre as pesquisas em Ciências Sociais, especialmente em face às tendências que põem em cheque a própria capacidade de apreensão do real e sua base ontológica. Debruçados sobre os oito pontos da lógica histórica, desenvolvidos por Thompson em The poverty of theory – em especial o quinto ponto onde Thompson reafirma seu solo ontológico ao propor que o compromisso da história deveria ser com a história real – e em seus conceitos de experiência e cultura, entendidos como “conceitos de junção” entre o ser social e a consciência social. Diante disso, os autores indicam o pensamento thompsoniano como um bom contraponto ao ceticismo epistemológico e ao relativismo ontológico, além de um convite para pensar as consequências da teoria.
Qual o essencial de E. P Thompson? Uma resposta possível foi dada à comunidade de historiadores por Dorothy Thompson, esposa e colaboradora do historiador e militante inglês, quando editou o livro The Essential E. P. Thompson em 2000. Coletânea de textos que está dividida em quatro partes: Política e cultura, Leis e costumes, História e teoria e, Lendo e escrevendo história. Adriano Luiz Duarte em Lei e costume: o essencial de E. P. Thompson concentra-se na segunda parte do livro de Dorothy, objetivando entender a compreensão de Thompson acerca da lei e a forma como articula justiça e direito. Com acuidade e clareza, Duarte indica que, para Thompson, parece fundamental observar a relação entre costume e lei em constante instabilidade e mutabilidade, salientando que a lei não poderia ser entendida como mera ideologia, sendo antes instância de conflito do que consenso. Termina por considerar que “[…] o argumento central de Thompson é que, obviamente, não se pode acreditar na imparcialidade abstrata da lei. Onde houver desigualdade de classe, a lei sempre será impostora”. (p. 346).
À luz do exposto acima, consideramos de grande importância a iniciativa dos organizadores da coletânea em refletir sobre Thompson em sua integridade, enquanto historiador e ativista político, ao fazê-lo, com sucesso, seguem os ensinamentos do próprio Thompson, para quem a agency e a experiência, são determinantes na formulação das ideias, no conjunto, os autores contribuem para desdomesticar a obra e o legado de E. P. Thompson, ampliando os horizontes de sua abordagem, prestando merecido tributo a esse importante historiador.
Referência
MÜLLER, Ricardo Gaspar; DUARTE, André Luiz. (Orgs.). E. P. Thompson: Política e Paixão. Chapecó: Argos, 2012.
Jhonatan Uewerton Souza – Graduado em História pela UEM. Mestrando em História pela UFPR.
Thiago Ernesto Possiede da Silva – Graduado em História pela UEPR. Mestrando em História pela UFPR.
Thiago do Nascimento Torres de Paula – Graduado em História pela UFRN. Doutorando em História pela UFPR.
MÜLLER, Ricardo Gaspar; DUARTE, André Luiz. (Orgs.). E. P. Thompson: Política e Paixão. Chapecó: Argos, 2012. Resenha de: SOUZA, Jhonatan Uewerton; SILVA, Thiago Ernesto Possiede da; PAULA, Thiago do Nascimento Torres de. Desdomesticando E. P. Thompson. Vozes, Pretérito & Devir. Piauí, v.1, n.1, p. 235-240, 2013. Acessar publicação original [DR]
MAIA Clarissa Nunes (Org) [et al], História das prisões no Brasil (T), Rocco (E), SANTOS Jéssica Luana Silva (Res), Vozes Pretérito & Devir (VPDr), História das Prisões, América – Brasil, América – Séc. 18-20
O livro História das prisões no Brasil é composto por oito artigos que se debruçam sobre a temática do sistema carcerário no Brasil e na América Latina. O primeiro deles, intitulado “Cárcere e Sociedade na América Latina (1800-1940)”, do autor Carlos Aguirre, nos mostra que no período Colonial as prisões apareciam de forma esporádica e com a finalidade de “depositar” sujeitos suspeitos pela justiça, ou aqueles que estavam esperando sentença. Diante da situação de descaso surgem alguns críticos que acreditavam que as prisões deveriam ser um lugar que tivesse a capacidade de transformar os detentos em cidadãos dignos e laboriosos. No entanto, tais discursos não saíram do papel.
Foi somente no século XIX que a ideia de transformar a cadeia em um local que tivesse a capacidade de converter os detentos em cidadãos dignos e laboriosos foi incorporada ao discurso local, tendo como objetivo muito mais imitar os padrões europeus na busca pela modernidade do que alimentar a preocupação especifica com a atuação sobre os seus detentos. O que atraiu o Estado para esse modelo penitenciário foi também o desejo de reforçar os mecanismos de controle e encerramentos já existentes. Porém, mesmo com a construção de penitenciárias na América Latina é importante frisar que ainda havia uma rede de cárceres pré-modernos que faziam uso de castigos tradicionais a fim de corrigir os sujeitos com condutas desviantes. Em linhas gerais, pode-se dizer que, no final das contas, mesmo com as críticas e sugestões de advogados, criminólogos e médicos, as prisões ficaram à margem da regulamentação do Estado na América Latina.
No século XX, mesmo com a influência da criminologia positivista e penalogia científica, a realidade carcerária permanecia a mesma. Os presídios masculinos eram verdadeiros infernos, onde homens viviam sem as mínimas condições de higiene. Os presídios femininos não fugiam à regra, no entanto a situação era ligeiramente mais amena porque estas ficavam sob a tutela de instituições filantrópicas. O perfil de detentos era diversificado o que muitas vezes fazia com que o espaço carcerário se transformasse em palco de conflitos entre detentos de grupos distintos. Com esses pontos, a conclusão que o autor chega é que os presídios estavam longe de serem modelos na recuperação dos detentos.
O segundo artigo, “Sentimentos e ideias no Brasil: pena de morte e digerido em dois tempos”, Gizlene Neder se encarrega de tecer uma análise sobre o código penal de 1830. Durante o século XIX o Brasil torna-se palco de discussões sobre as políticas de segurança e de justiça criminal. Antes de se reportar ao período analisado, que é o início da República, a autora faz um recuo temporal para melhor entender esses debates.
No período, a pena de morte restringia-se a escravos rebelados, e tal castigo tinha um objetivo inibidor e, portanto, exemplar. Mesmo com as ideias iluministas no começo do século XVIII, que defendiam penas de prisões diferentes segundo natureza e gravidade, estas não alteravam a organização social e política.
Em Portugal, por exemplo, os castigos tradicionais: pena de morte e degredo era pouco aplicado e serviam mais para intimidar. Nesse quadro os reis apareciam como sujeitos misericordiosos, a eles caberia à decisão de dosar o perdão, propagando assim a ideia de que o rei, mais que punir, deveria ignorar e perdoar.
No fim do século XVIII, as ideias iluministas defendiam que esses castigos provocavam distúrbios sociais e que as prisões seriam a melhor forma de punir. Vários países da Europa passaram a observar tais ideias e formularam novos códigos penais. O código penal de 1830 do Brasil era altamente repressivo. Desde o início da República, ia da apologia ao trabalho e disciplina até as práticas mais agressivas. A pena de morte não era clara, ao contrário do degredo, que era destinado àqueles que se envolviam em sedições e revoltas militares. Tais penas desenvolveram inúmeros debates.
O artigo seguinte, “A presiganga Real (1808-1831): trabalho forçado e punição corporal na marinha”, da autoria de Paloma Siqueira Fonseca, trata de um navio português que transportou a família real para o Brasil em 1808 e que passou a ser usado como depósito de sujeitos que cometiam crimes graves, e, como punição, eram submetidos ao trabalho forçado. É importante destacar que esses detentos não eram condenados à presiganga, mas nela depositados para realizar trabalhos pesados ou para receber castigos corporais. Tal navio-presídio podia ser comparado aos navios negreiros, pois as situações ali eram semelhantes. Os sujeitos eram de cor escura, viviam em péssimas condições, acorrentados e amontoados uns sobre os outros, além de serem submetidos a rígidos castigos corporais, alguns chegando mesmo a receber 300 chibatadas.
Como se tratava de um lugar temporário, não havia leis que regulamentassem esse navio-presídio, talvez por conta disso o responsável pelo navio, Marcelino de Souza Mafra usasse de austeridade para com os detentos. Em um episódio violento que aconteceu na presiganga, Mafra foi denunciado por sua tirania. De acordo com os detentos, ele castigava por qualquer ato e abusava de seu poder. No julgamento, Mafra não recebeu nenhuma punição, ao contrario, era elogiado pelo tempo de serviço prestado e por manter o naviopresídio em ordem. Além disso, as autoridades afirmavam que a atitude de Mafra era correta, pois os detentos representavam um fardo tanto para a sociedade como para a Marinha. E assim Mafra continuou no seu cargo e fazendo uso dos mesmos métodos até a desativação do navio-presídio.
O artigo da autoria de Marcos Paulo Pedrosa Costa, intitulado “Fernando e o mundo – o presídio de Fernando de Noronha no século XIX”, traz o relato da ilha de Fernando de Noronha como um lugar permeado por paradoxos. Por um lado, a ilha encantava seus visitantes com sua beleza exuberante, mas por outro representava horror e desumanidade para os que ali se encontravam aprisionados.
Não se sabe ao certo quando a ilha começou a servir como prisão, parece remontar ao século XVIII, o certo é que naquele lugar não havia uma prisão como edifício, somente a prisão de aldeia que era destinada àqueles considerados incorrigíveis. A prisão era a própria ilha e suas paredes o mar. Na ilha viviam paisanos (pessoas que não eram detentos nem militares) detentos, viradeiros e militares. Essas pessoas tinha uma vida normal naquele lugar, alguns chegavam até mesmo a se casar e constituir família, no entanto não se pode imaginar esse lugar como um paraíso, apesar do aparente clima de conformismo dos alguns detentos, não raro havia brigas e discussões entre os moradores do local. Alguns se arriscavam tentando evadir-se daquele lugar, mesmo tendo por certo a morte, outros preferiam tirar suas vidas ali mesmo em Fernando cometendo suicídio.
No artigo subsequente, “O tronco na enxovia: escravos e livres nas prisões paulistas dos oitocentos”, Ricardo Alexandre Ferreira tem por objetivo analisar a equiparação da situação vivenciada por escravos e homens livres que acontecia até o século XIX na esfera da Justiça criminal brasileira. Para tanto, o autor lança mão da interpretação de relatórios da Presidência da Província de São Paulo, ofícios administrativos, autos de crimes e de obras jurídicas produzidas entre 1830 e 1888. São basicamente dois os argumentos que norteiam a construção do texto. No primeiro deles, através da comparação entre as Ordenações Filipinas e o Código Criminal do Império, se desenvolve a noção de que não existia um descompasso das leis imperiais brasileiras em relação aos princípios iluministas que norteavam a legislação europeia.
Entretanto, devido à manutenção da escravidão, existia a perpetuação de uma situação de exceção que se acomodou à sociedade. Por outro lado, e então entramos no segundo argumento, uma condenação judicial, em última instância, era bastante complexa e morosa. Sendo assim, o encarceramento era visto como um período transitório, a prisão era encarada como um local onde os presos deveriam aguardar o seu julgamento, o que poderia durar anos. Enquanto isso, livres, libertos e escravos, acusados das mais diferentes infrações e irregularidades, se encontravam durante um bom tempo, acorrentados ao mesmo tronco. Como conclusão, o autor alega que esta proximidade teve como fruto a aliança entre os que ali estavam, sendo, inclusive, registrada através de fugas planejadas e executadas de maneira compartilhada.
O artigo “Entre dois cativeiros: escravidão urbana e sistema prisional no Rio de Janeiro, 1790-1821” de Eduardo Araújo mostra que no final do século XVII existiam três categorias de prisões no Brasil: a Cadeia Pública, a Cadeia do Tribunal da relação e o Calabouço, esta última destinada à escravos. Tais presídios eram superlotados, caracterizados pela ausência de acomodações e proliferações de doenças devido as péssimas condições de higiene, os detentos pareciam zumbis, mal- alimentados e mal- vestidos. Dentro desse espaço, outra personagem ganhava destaque: os carcereiros, que também sofriam com o descaso, principalmente em relação aos seus pagamentos que frequentemente eram atrasados. A justificativa das autoridades era que estes exerciam outros ofícios e que devido às péssimas condições financeiras não era possível pagá-los.
A situação dessas prisões piorou com a chegada da Corte Real em 1808, visto que várias casas tiveram que ser desocupados para ceder espaço à comitiva Portuguesa, e isso aconteceu também com as prisões. Os presos foram transferidos para o Aljube, antigo espaço pertencente à Igreja, as condições ali eram ínfimas e degradantes. Somada à superlotação, muitos morriam vitimados pela proliferação de doenças. Com tanto horror e caos, a solução encontrada foi o conforto espiritual dos detentos com a realização de missas.
O sétimo artigo “O calabouço e o aljube do Rio de Janeiro no século XIX”, Thomas Holloway retrata o processo do Brasil rumo à formação de um Estado independente e nos termos daquela época, moderno. Nesse contexto foram estabelecidas instituições para controlar o comportamento populacional urbano, como a criação da intendência de polícia, a Guarda Real da Polícia e Corpo Municipal de Permantes. As duas principais prisões eram o Calabouço e o Aljube.
O calabouço era uma prisão destinada aos escravos que deveriam receber castigos à mando de seus donos. Com relação às condições de higiene, eram aterrorizantes, sem ventilação, e com escassez de alimento, além disso, muitos escravos morriam devido ao excesso de chibatadas. Dentro desse quadro de horror, surge uma figura importante Diogo Antônio Feijó que reconhecia a humanidade dos escravos, e ordenou que o chicoteamento de escravos no Calabouço não poderia ultrapassar duzentos acoites, em sessões de cinquenta por dia.
Já o Aljube não era uma prisão, ele passou a desempenhar tal função com a chegada da Família Real em 1808. Tornando-se o destino da maioria dos presos, escravos ou livres que aguardavam julgamento ou a sentença por crimes comuns. Esse espaço de depósito foi muito criticado, não só por conta das péssimas condições, mas também devido a sua arbitrariedade, uma vez que ali ficavam desde o ladrão de frutas até o bandido mais violento. Além do mais, não havia segurança, sendo constantes os conflitos tanto entre detentos, como também de detentos com guardas e carcereiros.
O último artigo, intitulado: “Trabalho e conflitos na casa de correção do Rio de Janeiro”, de autoria de Marilene Antunes S’Antana, mostra a construção da casa de correção como uma ruptura em relação ao que se tinha até a metade do século XIX no Brasil. Essa instituição foi construída com o objetivo de educar e (re) socializar o detento, o que deveria ser feito através da disciplina, trabalho e religião.
Várias eram as oficinas onde os presos tinham a oportunidade de aprender um ofício para depois aplicá-lo ao sair. No entanto, nem tudo saiu como se havia planejado, pois nessas oficinas passaram a sediar inúmeros conflitos e até mesmo a morte de alguns deles. De qualquer forma, outros obtiveram bons resultados e tiveram suas penas reduzidas ou foram perdoados graças ao trabalho. O livro, como um todo, cumpre seu objetivo que é analisar historicamente o sistema carcerário, mostrando como este passou por uma série de mudanças. É uma leitura recomendada não somente aos historiadores de profissão, mas também aos estudantes de direito visto que o livro é ancorado em análises de códigos penais.
Referência
MAIA, Clarissa Nunes [et al] (org.). História das prisões no Brasil. vol 1. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.
Jéssica Luana Silva Santos – Graduanda do curso de Licenciatura Plena em História da Universidade Estadual do Piauí (UESPI), Campus Heróis do Jenipapo.
MAIA, Clarissa Nunes [et al] (Org.). História das prisões no Brasil. vol 1. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. Resenha de: SANTOS, Jéssica Luana Silva. Vozes, Pretérito & Devir. Piauí, v.1, n.1, p. 241 – 245, 2013. Acessar publicação original [DR]
OLIVEIRA Edmar (Aut), A incrível história de Von Meduna e a filha do sol e do equador (T), Oficina da palavra (E), SOUSA Valéria Santana (Res), Vozes Pretérito & Devir (VPDr), Santatório Von Meduna, Clidenor Freitas Santos, História da Psiquiatria, Estado do Piauí, América – Brasil, Séc. 20
Edmar Oliveira médico psiquiatra piauiense nos traz, em sua narrativa, seus percursos ao acompanhar o programa de saúde mental do Piauí. Edmar aborda a história do sanatório Von Meduna junto à trajetória do médico Clidenor Freitas Santos, importante nome da psiquiatria na história do estado. A experiência do trabalho de implantação do programa de saúde mental no Piauí foi transformada em livro e nos possibilita conhecer um pouco do que foi a constituição da psiquiatria na capital. Teresina foi uma das primeiras capitais brasileiras a ter uma “casa de doidos”. Ladislas Joseph Von Meduna, inventor da convulsão provocada pela medicação cardiazol, inspirou o nome do hospital psiquiátrico de Teresina, mais conhecido como sanatório Von Meduna.
Inicialmente o autor apresenta uma pequena introdução fazendo uma incursão histórica local, referenciando à composição étnica do Piauí, citando a presença dos “dois Domingos”: Domingos Jorge Velho e Domingos Afonso Mafrense, tidos pela historiografia tradicional e mais conservadora como heróis locais. Edmar ressalta a necessidade de repensarmos tal afirmação a esses personagens, uma vez que, dentre muitas de suas ações pelas terras dos meio-norte brasileiro, juntaram forças pra exterminar parte dos índios que ocupavam esse território. Dentro desta retomada histórica, também cita o importante papel da miscigenação junto à composição étnica do estado.
A criação do primeiro centro psiquiátrico do Piauí foi um feito do médico Areolino de Abreu, que teve a ideia de fundar uma casa para loucos, batizando esse centro como “asilo de alienados”. Mas, como o próprio texto aponta, a criação desse centro psiquiátrico não aconteceu devido à preocupação com os alienados – pois a alienação mental não parecia ser compreendida como um problema de saúde pública na época – mas sim com intuito de aferir uma condição asséptica à cidade e, concomitantemente, com a ambição de tornar Teresina uma cidade civilizada e “limpa”, servindo também para enaltecer o nome de seu criador, Areolino de Abreu.
Em 1940, o primeiro psiquiatra do Piauí, Clidenor Freitas, assume a direção do asilo e elabora um relatório denunciando as condições em que o mesmo se encontrava, propondo melhorias de acordo com o conhecimento da época. Entre os métodos defendidos pelo novo médico ganha-se destaque a retirada das correntes dos pacientes, substituindo esta prática pela inserção de métodos novos, como a malarioterapia (inoculação do vírus da malária em pacientes com demência paralítica causada pela sífilis) criada pelo cientista J. Wagner Jauregg, a insulinoterapia e a convulsão cardiazólica, de Von meduna.
Clidenor Freitas procurou modernizar o tratamento psiquiátrico no estado desde os métodos utilizados e até mesmo se preocupou em alterar o nome da casa de tratamento na tentativa de redimensionar o conceito que o nome impelia à instituição e sua prática, substituindo o nome “Hospital de Alienados” para “Hospital Psiquiátrico Areolino de Abreu”, já que, segundo ele, nem todo alienado podia ser considerado louco.
Em 1954, Clidenor inaugura o sanatório Von Meduna. Este mesmo foi construído no terreno de sua propriedade bem longe do perímetro urbano da capital. Outro marco na psiquiatria piauiense desta época foi a substituição dos tratamentos de choques insulínico e cardiazólico pelo aparelho de eletrochoque. A criação do Meduna foi considerada um marco, enquanto dispositivo modernizador dentro do movimento sociopolítico que engrenava os processos civilizatórios da cidade.
O sanatório Von Meduna, em Teresina, era a própria “encarnação da loucura”, dizia o autor, mas também trazia consigo os desejos e os projetos de trabalho e vida almejados pelo seu criador. Edmar Oliveira reproduz alguns trechos do discurso de inauguração e retratações pessoais feitos por Clidenor Freitas.
Carta aos meus filhos:
Quando houverdes atingindo a maturidade da vida, saberia compreender, em profundidade, os sentimentos que nessa data dominam o vosso pai. Sabereis que foi constante labor consciente de um homem que decidiu agir para concretizar um plano objetivo, real e tangível, destinado a amparar no conforto e na segurança, aqueles que perderam a razão (…) (FREITAS apud OLIVEIRA, 2010, p.43).
Em outro momento, Clidenor procura justificar os enormes gastos feito para a construção de sua obra maior, com o testemunho de Câmara Cascudo presente na inauguração.
Materialmente seu valor atual e bem elevado com, diria como dizem os medíocres para ‘fazer a independencia’ de um homem (…). O que importa não são os milhões que vale o sanatório, mas o objetivo a que ele se destina, (FREITAS apud OLIVEIRA, 2010, p.45).
Quatro anos após a inauguração do sanatório, Clidenor Freitas se envolve com a vida política e com outros empreendimentos empresariais. Durante esse tempo a direção do sanatório fica nas mãos de seu irmão mais novo. Clidenor Freitas morreu aos 87 anos, e, como o próprio autor diz, é necessário ressaltar sua importância na constituição da psiquiatria piauiense, anunciando novos métodos de tratamentos, defendendo a condição humana, considerando outras tentativas de inovações de cuidados para a época.
Alinhado a essa descrição histórica, Edmar Oliveira também não se exime de promover um propício debate sobre a crise de desumanização que os hospícios estão sujeitos: “por mais que se humanize um hospício ele tende a se desumanizar na sequencia, basta só um recorte de tempo”.
Menos de dez anos depois das reformas implantadas no hospício em Teresina, os pacientes voltaram a ser tratados de acordo com sua posição social. Muitos considerados indigentes, tratados de forma desumana, vivendo em ambientes com péssimas condições, tanto na área estrutural quanto na parte da alimentação, higiene, no isolamento total. Posteriormente com administração de Carlos Alves Araújo essa situação é revertida, melhorando a condição dos “indigentes”.
Em parte intermediária da obra, o autor promove um debate sobre a “competição” comercial que o capitalismo moderno suplantou nas “empresas médicas do estado”. Nesse sentido, Edmar menciona a restrição comercial que a “empresa” Von Meduna sofreu ao não participar das competições mercantis das empresas médicas do sistema de saúde de Teresina. Pois o esse sistema se tornou um ramo empresarial de grande porte à custa da maioria da população do estado, que dependeu na maioria das vezes do atendimento médico da capital. Nesse contexto ele cita como exemplo atual do Sistema Único de Saúde (SUS) que também tem suas inúmeras deficiências, até mesmo por não suportar a demanda de dependentes. Mas, por outro lado, o SUS permitiu que os hospitais Areolino de Abreu e Von Meduna dividissem a clientela de maneira igualitária, longe da concorrência das empresas médicas.
Entre as discussões propostas por Oliveira estão também os apontamentos que permeiam “novas” compreensões acerca do tratamento mental. Alguns pensadores como Foucault, Castel e Basaglia contribuíram pra que houvesse uma reforma no campo psiquiátrico no Brasil, entre os princípios que regem a reforma está a “devolução” ao paciente internado os direitos fundamentais de pessoa humana, devido a situação degradante dos sujeitos que são longamente internados e esquecidos. No Piauí, a luta por melhoria da condição humana dos pacientes, só irá se manifestar no inicio do século XXI, foi apenas em 2003 que pela primeira se comemorou “o dia da luta antimanicomial”.
A partir de 2004, surgiu o “serviço substitutivo” que ficou conhecido como Centro de Atenção Psicossocial Infanto Juvenil (CAPSin), esse serviço tornou-se passivo de determinadas críticas por trazer consigo os mesmos vícios das políticas manicomiais. Em 2005, foi aberto o CAPS Norte e o CAPS Leste, essas instituições tinham serviços contrários ao modelo hospitalar das casas Areolino de Abreu e do Von Meduna.
A diminuição dos leitos implantados pelo ministério da saúde desencadeou na implantação de serviços residenciais de terapia em comunidades. Enquanto isso, os hospitais Areolino de Abreu e Von Meduna continuavam a funcionar sem tomar conhecimento dos novos métodos implantados. Esses novos serviços, segundo o autor, proporcionavam o enfrentamento da doença mental de maneira mais saudável e ampla. A utilidade dos hospitais Von Meduna e o Areolino de Abreu foram questionados por uma nova política de assistência pública.
Nos últimos capítulos, Edmar relata de maneira bem pessoal a sua volta aos sanatórios Areolino de Abreu e Von Meduna como consultor do ministério da saúde, enfatizando o fechamento do Von Meduna. A situação encontrada neste recinto não revelava nem de longe o esmero próximo àquele da época de sua fundação. Para justificar o “triste fim” que o hospital sofreu, Edmar Oliveira fez menção ao discurso escrito de inauguração do Von Meduna, feito por seu criador, Clidenor de Freitas, onde assevera que uso do dinheiro só fazia sentido a uma causa nobre. (OLIVEIRA, 2010, p.111)
Continuando, Edmar registra suas participações nas conferências nacionais de saúde mental, e os debates em relação ao fechamento do Von Meduna, situação que gerou muitas discurções, já que havia uma preocupação por algumas partes em relação ao destino dos “loucos” que lá estavam. Entretanto para Edmar Oliveira o fechamento do hospital Von Meduna significava a libertação do antigo regime manicomial e assim ele conclui com suas palavras:
Não se pode construir o existir quando é seqüestrado o seu lugar no mundo. E hospital não é morado de ninguém. Von Meduna retira-se sem fazer falta a uma cidade que passou, a saber, conviver e a tratar seus loucos na diversidade e na acolhida que os novos tempos anunciam… (OLIVEIRA, 2010, p. 132)
O fechamento do Von Meduna ainda foi alvo de questionamentos, o que ocasionou em dificuldades na consolidação dos novos modelos de tratamento psiquiátrico. Edmar oliveira encerra seu livro falando dos loucos que escaparam das ações psiquiátricas de Teresina, e que fazem parte da memória dos filhos da terra, também relata de maneira bem tocante à história dos loucos que estão na memória de sua infância, citando seus três preferidos: Manelão, Bibelô e Nicinha “eles eram da cidade, das ruas, das aglomerações. Nossos. Sem eles Teresina não tem sentido pra mim”.
A obra de Edmar Oliveira não se caracteriza apenas pela descrição histórica das instituições médicas e o tratamento da doença mental do estado. A obra é também uma abordagem crítica sobre as condições de tratamento dos sujeitos que são atravessados por uma maneira distinta de ver o mundo. O livro, em sua plenitude, é composto por uma visão crítica que compõe um posicionamento antimanicomial. Nele também observamos uma incursão pela história do Piauí, e da cidade capital, Teresina, palco de muitos dos personagens desterritorializados e marginalizados que fizeram parte da vida do autor. É um livro que também tematiza sobre experiência pela cidade e as memórias que retratam esse passado.
Referência
OLIVEIRA, Edmar. A incrível história de Von Meduna e a filha do sol e do equador. Teresina: oficina da palavra, 2010.
Valéria Santana Sousa – Discente do curso de Licenciatura Plena em História da Universidade Estadual do Piauí.
OLIVEIRA, Edmar. A incrível história de Von Meduna e a filha do sol e do equador. Teresina: oficina da palavra, 2010. Resenha de: SOUSA, Valéria Santana. Vozes, Pretérito & Devir. Piauí, v.2, n.1, p. 325-329, 2013. Acessar publicação original [DR]
REVEL Jacques (Aut), História e Historiografia: exercícios críticos (T), Editora UFPR (E), CATARINO Samila Sousa (Res), Vozes Pretérito & Devir (VPDr), Teoria da História, Epistemologia da História, Epistemologia Histórica, Historiografia, Séc. 20, Europa – , Séc. 19-20
A obra “História e Historiografia: exercícios críticos”, do historiador Jacques Revel, é composta por nove artigos que refletem sobre o debate historiográfico no decorrer do século XX, em especial nas últimas décadas. No capítulo inicial, intitulado: “Construção francesa do passado: uma perspectiva historiográfica”, Revel propõe uma discussão sobre a historiografia francesa desde os fins da Segunda Guerra Mundial. Através dessa incursão, o autor analisa a contribuição dos franceses para a produção historiográfica. De acordo com sua concepção reflexiva, o debate historiográfico mediante novas proposições paradigmáticas, adquiriu certa retomada antes da Guerra, com as contribuições de Bloch e Febvre, porém esse não seria o marco inicial para tais discussões, esse debate teria sido proposto bem antes de 1929, ano de ascensão dos Annales.
Em 1870, as Universidades Francesas estavam passando por certa “elaboração da política universitária”. Isso porque a França via-se derrotada face aos conflitos políticos e econômicos protagonizados contra o novo “Reich” da Alemanha, o que alimentou junto aos franceses um sentimento de “revanche”, que, dentre outras coisas, impulsionou um modo de se repensar o ensino universitário no país. A disciplina história teve um papel fundamental nesse processo, pois serviu para reanimar uma nação que tinha sido humilhada pelos Alemães. Diante desses acontecimentos, o saber histórico passou por renovações. Tal proposição foi gestada no fim do século XIX, visava romper com a literatura e ganhar o status de ciência, constituindo-se como um saber “metódico”. Outras ciências como: geografia, psicologia, economia e em especial a sociologia de Durkheim vivam também um processo de renovação.
A mudança de paradigma proposta ao saber histórico subsidiou críticas por parte de outras frentes intelectuais. Os discípulos de Durkheim, por exemplo, criticavam a história mediante seu pleito em busca do lugar de ciência. Um deles, François Simiand, a criticava por argumentar que os acontecimentos factuais – campo de reflexão da história – não ofereceriam subsídios suficientes para arvorar ao status científico. As ponderações feitas por Simiand, e demais rivalidades, contribuíram com a proposta de Bloch e Febvre que absorveram tais críticas e propuseram uma nova forma de se pensar e escrever o conhecimento do passado.
O segundo artigo: “Mentalidades: uma particularidade francesa? História de uma noção e de seus usos”, o autor, a princípio, se volta a discutir a etnologia da palavra mentalidade e a partir dessa projeção promove uma análise em torno de seu significado. Revel assevera que o termo passa a ser difundido nos “vocabulários científicos” das diversas ciências como: antropologia, psicologia, sociologia e história, no decorrer do século. Dentre essas ciências o autor destaca a psicologia como sendo de suma importância para o debate nas áreas humanas. No desenvolvimento da análise são citados vários exemplos de estudiosos que se debruçaram no estudo da psicologia para a compreensão do social, dentre eles podemos citar o historiador Lucien Febvre que procurava compreender sobre a natureza das representações coletivas, se apoiando no conceito de “psicologia histórica”.
Revel volta às discussões associadas ao conceito e à aplicabilidade do termo ligado ao conhecimento social, retomando através de sua análise referências sobre os primeiros historiadores que desenvolveram uma abordagem histórica a partir do conceito “mentalidade”, e elencando os debates travados entre os campos da sociologia, psicologia e história, a respeito de sua apropriação, o que fez com que o conceito adquirisse amplitude em outras esferas intelectuais para além do seu domínio “mátrio” – França – apesar de ser afirmado como um gênero caracteristicamente francês.
O artigo seguinte: “A instituição e o Social”, tem por abordagem os debates e os discursos produzidos pelos historiadores em torno do modelo e conceito de “instituição”. Revel procura demonstrar que quando se pensa na categoria instituição a primeira dificuldade apresentada vem a ser a definição da palavra. Seguindo esse pressuposto, o autor propõe em seu artigo três formas de compreensões conceituais. O primeiro visa caracterizar a instituição como uma dimensão jurídica e política. O segundo traz a instituição num conceito mais amplo que se refere ao funcionamento e organização de determinados domínios, respondendo assim a uma demanda coletiva da sociedade. A última concepção, mas não menos importante, procura compreender a instituição como “toda a forma de organização social”.
A partir dessas conceituações, o autor constrói apontamentos em que relaciona a instituição e campo social. O primeiro conceito alimenta a lógica política quando se pensa nas questões institucionais, ligada à disciplina erudita. Durante muito tempo a historiografia prendeu-se a uma noção na qual considerou as instituições como locais que serviam para os arquivamentos de documentos, tornando assim sua compreensão restrita. Porém, outra compreensão para o termo, arrolando um sentido mais amplo, foi desenvolvida por Durkheim, da tradição sociológica moderna, sendo bastante difundida atualmente. Nesta baliza de pensamento elas seriam “criadoras de identidades” do núcleo social, isso porque os “fatos sociais são compreendidos como instituição”.
Revel relembra que, há muito, a tradição de pensamento sociológica foi desprezada pelos estudiosos, restringindo assim ao estudo político-jurídico, mas com o passar dos anos a abordagem sócio-histórica foi adquirindo vários adeptos. Essa mudança é chamada pelo autor de “evolução historiográfica”, onde os estudiosos passaram a tratar as relações sociais como constructos das instituições. Outro ponto abordado pelo autor vem a ser o estudo da posopografia ou biografia coletiva que seria um método utilizado na história, o qual permite observar os grupos sociais em suas dinâmicas internas e seu relacionamento com outros grupos.
O artigo “Michel de Certeau historiador: a instituição e seu contrário” vai desenvolver uma análise sobre a importância dos estudos de Certeau e o quanto este intelectual continua sendo amplamente estudado na academia por conta de suas pluralidades e perspectivas. Para iniciar essa análise, o Revel traz três momentos diferentes da obra de Certeau. O primeiro exemplo é uma obra em que Certeau tematiza sobre a espiritualidade jesuítica no início do século XVII. Jacques Revel procura dissertá-la demonstrando que a mesma se apresenta como uma não separação das experiências individuais e coletivas das instituições sociais. O segundo exemplo vem a serem os escritos que permeiam “A operação historiográfica”, discussão que ganhou força no terreno dos historiadores na contemporaneidade. De acordo com Revel a marca maior da operação historiográfica diz respeito à assertiva sobre a compreensão do oficio do historiador que ganha legitimidade a partir do lugar social na qual é produzido. O terceiro exemplo seria a imagem do próprio Certeau como um homem que gostava de viver em grupo, um homem plural.
No artigo subsequente “Máquinas, estratégias e condutas: o que entendem os historiadores”, Revel objetiva analisar o pensamento de Michel de Foucault e como esse pensador influenciou os historiadores em suas produções intelectuais, assim como a sua recepção na historiografia. O autor mostra que Foucault preocupou-se em pensar a função do autor, reflexão que os historiadores não tinham atentado em fazer até àquele momento. Para Revel os textos de Foucault são interpretados de diversas formas muitas vezes o deformando por completo. Em um texto de Foucault é como se existissem vários Foucault’s, isso porque os leitores construíram várias imagens muitas vezes deturpadas sobre ele. O “incômodo” de Revel nesse sentido refere-se ao fato que diversos historiadores se encontram satisfeitos com determinadas leituras reducionistas que são feitas ao pensador francês.
Para aprofundar sua análise o autor traz três imagens dele. O primeiro Foucault foi “descoberto” nos anos 60, este se aproxima muito das propostas dos Annales, e, assim como os historiadores de sua geração, Foucault produzia uma história estrutural. O segundo Foucault é aquele que trouxe a tona o conceito de “estratégia”, conceito esse que fez bastante sucesso entre os historiadores durante os anos 70. O terceiro é o Foucault seria aquele preocupado com as “condutas”, onde voltou-se a pensar sobre as relações de poder. A partir dessas três imagens, Revel vai elaborando uma análise de algumas obras consideradas importantes (Historie de La sexualité, L’ Archéologie Du savoir e etc.), trazendo conceitos de fundamental importância para a compreensão da trajetória de Foucault e assim este era visto pelos historiadores.
O artigo “Siegfried Kracauer e o mundo de baixo”, o Jacques Revel procura mostrar algumas reflexões feitas a partir da obra de Kracauer, onde este faz críticas sobre o campo da história. Primeiramente, Revel descreve uma pequena biografia do autor, assinalando inicialmente que este não era historiador e o seu interesse pela história aconteceu tardiamente, mas isso não o impediu de fazer um debate sobre o ofício de estudar o passado. Em sua obra History. The last things before the last. Kracauer traz algumas discussões sobre a cientificidade da história, historiadores, filmes e literatura.
De acordo com Revel, a questão da cientificidade da história é discutida em sua obra maneira enfática. Seguindo esta proposta, Kracauer alimenta a compreensão da história como uma disciplina da ciência social. Ele também promove um debate filosófico sobre as propriedades epistemológicas da história apoiando-se nas ideias de Dilthey, tomando por base os argumentos produzidos desde o fim do século XIX sobre tal discussão. Para ele a história pode reivindicar-se enquanto ciência social, a partir do momento em que ocorrem fenômenos que podem ser analisados e compreendidos em suas relações a partir de determinadas regularidades.
A segunda argumentação vem a ser do ofício dos historiadores, onde este trabalha com as fontes, que para ele são a “incompletude e a heterogeneidade das experiências humanas no tempo”. Revel relembra que Kracauer descrevera o modo como eram vistas as fontes no século XIX, sendo entendidas como detentoras de uma verdade absoluta e incontestável. Dando continuidade às suas reflexões, ele fala sobre literatura e filmes. Para ele, é importante se pensar no conceito de realidade. Segundo Revel, Kracauer faz uma analogia entre o literário e o historiográfico: o primeiro é livre de qualquer distinção realista, pois este vai compor a realidade a qual está inscrito, já o historiador não possui essa liberdade e é preso uma realidade limitada pelos indícios e fragmentos do passado que ganham personificação através das fontes.
O sétimo artigo “Recursos Narrativos e Conhecimento Histórico”, o autor vai abordar algumas contribuições do historiador Lawrence Stone que investiu nos programas de história científica entre os anos de 1930 e 1960. Segundo Revel, era necessário reintroduzir no debate historiográfico as questões da história científica, os dois historiadores que se encarregaram de tal desafio foram Stone e Carlo Ginzburg. Ambos produziram trabalhos no qual pensavam sobre tal problemática, a fim de “resgatar” o problema da narrativa na abordagem historiográfica.
Além desses autores Jacques Revel relembra a contribuição de outros pensadores sobre essa problemática. Podemos destacar a pessoal de Momigliano que se propôs a também pensar sobre as funções e os usos da narrativa, assim como Paul Ricoeur que aferiu um profundo debate sobre tal tema em muitos de seus trabalhos. O autor esclarece o quanto esse debate sobre a narrativa histórica já perdura por algum tempo, e que ainda se revela instável.
Revel também nos mostra a mudança na concepção de história ao longo dos anos. Se antes a compreensão histórica era vista como um “repertório de exemplos e lições a serem seguidas”, ela passou por inúmeras transformações, o que o autor chamou de “virada capital da historiografia”. Para ele, essa mudança ocorreu principalmente por conta de dois fatores. O primeiro fator vem a ser a desqualificação da retórica como instrumento de conhecimento. O segundo é a própria mudança na concepção de história que alimentamos. Com todas essas transformações, alterou-se também o papel do historiador, sua relação com o objeto, e, concomitamente, exercício crítico das fontes históricas.
No penúltimo texto, “A biografia como problema historiográfico”, como o titulo indica, é feita uma análise da utilização da biografia no campo historiográfico. A biografia como gênero amplamente utilizado nas produções historiográficas, possibilita uma variedade de públicos leitores, o que facilita a sua popularidade. Outro aspecto retratado por Revel vem a ser a conjuntura científica em torno da biografia. Nesse foco Revel toca nos debates referentes a duas questões que permeiam o tema: o “problema da biografia histórica” e “a biografia como problema”. Esse debate, para o autor, é “tão velho como a própria historiografia”. Para começar a discussão Revel compara os escritos de Aristóteles entre poesia e história. A poesia ou qualquer outra narrativa de ficção permitem a generalização, a modelagem da experiência humana, já a história está submetida à experiência, e no caso da biografia essa experiência é voltada para o indivíduo.
Com relação a uso da biografia como gênero historiográfico esta se encontra limitada a utilização das fontes. O ponto central do projeto biográfico é a importância de se analisar uma experiência singular e situá-la no contexto social, isso torna tal gênero pautado em complexidade. Para finalizar o autor propõe a utilização de três tipos de biografias: biografia serial (prosopografia), a biografia reconstruída em contexto e biografia reconstruída a partir de um texto (frequentemente utilizado na autobiografia).
O último artigo, intitulado “O fardo da memória”, é dedicado a discutir a experiência histórica e a memória da França. Nele, Revel destaca três tipos de memórias. A primeira é a comemoração. No final do século XX a França teria celebrado muitos fatos importantes do passado francês (datas comemorativas). A segunda forma de memória é a patrimonialização a questão da consciência com o patrimônio, que aconteceu tanto no campo ideológico como nas construções de museus. A terceira forma é a produção da memória, a própria mudança na escrita da história, o que antes era restito aos grandes homens passou estar vinculado às memórias esquecidas, ou seja, historiadores e memorialistas começaram dar visibilidade às narrativas da história “vista de baixo”. Para Revel essas três formas estão interligadas e contribuem para se pensar a memória com relação à história francesa contemporânea
A proposta feita por Jacques Revel à luz de tais perspectivas centra-se em torno de pensar a produção historiográfica na França, do século XX até a contemporaneidade. A partir desse foco, o autor procurar mostrar em sua obra os movimentos e as transformações sofridas no ambiente acadêmico, o hasteamento das disciplinas ao status de ciência, assim como a influência dos Annales na “construção” do conhecimento histórico, através da renovação da pesquisa histórica.
Em sua plenitude, o livro revela um enriquecedor conteúdo, propondo ao leitor apontamentos e compreensão acerca das ciências sociais e suas contribuições no campo historiográfico. O Revel procurou explanar sua proposta, mostrando ao longo dos nove artigos a importância das ciências sociais e sua proximidade com a história.
Referência
REVEL, Jacques. História e Historiografia: exercícios críticos. Curitiba: Ed UFPR, 2010.
Samila Sousa Catarino – Graduanda do Curso de Licenciatura Plena em História da Universidade Estadual do Piauí (UESPI), Campus Clóvis Moura.
REVEL, Jacques. História e Historiografia: exercícios críticos. Curitiba: Editora UFPR, 2010. Resenha de: CATARINO, Samila Sousa. Nos rastros da História: análise da obra “História e Historiografia – Exercícios críticos”, de Jacques Revel. Vozes, Pretérito & Devir. Piauí, v.2, n.1, p. 330- 335, 2013. Acessar publicação original [DR]
SENKO Elaine Cristina (Aut), Reflexões sobre a escrita e o sentido da História na Muqaddimah de Ibn Khaldun (1332-1406) (T), Ixtlan (E), MENDES Ana Luiza (Res), DRABIK Bel (Res), Vozes Pretérito & Devir (VPDr), Historiografia, Sentido da História, Muqaddimah (I. Khaldun), Séc. 12-14
Reflexões sobre a escrita e o sentido da História na Muqaddimah de Ibn Khaldun, publicado em 2012 pela Mestra em História, Elaine Cristina Senko, nos oferece a análise do papel do historiador e o conceito de História na civilização islâmica do século XIV por parte de Ibn Khaldun (1332-1406), historiador islâmico que procurou dar um sentido específico à historiografia árabe medieval. Para tanto, estabeleceu um método rigoroso de estudo quando escreveu sua obra prima, Muqaddimah, composta a partir da crítica aos documentos e às narrativas árabes, de forma a aproximar-se cada vez mais de uma “verdade” objetivando compreender as vicissitudes de sua época.
Tal assunto mostra-se intrigante e pertinente, uma vez que, como a própria autora salienta na Introdução da obra, há poucos estudos atualizados sobre o historiador muçulmano e, além disso, através da investigação da metodologia histórica por ele formulada, é possível adentrar e aprofundar os conhecimentos da sociedade islâmica medieval de forma sistemática, a fim de desconstruir a imagem sensacionalista e errônea que, por muitas vezes, é transmitida sobre o Oriente pelo Ocidente.
Revelar outra percepção para a compreensão do mundo árabe e islâmico medieval é, pois, um dos objetivos do livro que também é orientado através do questionamento sobre o que representava a escrita de uma obra desse mote no contexto de Ibn Khaldun. Para tanto, a obra divide-se em três capítulos, nos quais a autora discorre sobre a tradição historiográfica islâmica; sobre a escrita propriamente dita de Ibn Khaldun e sua concepção historiográfica, finalizando com a relação entre a metodologia do historiador islâmico e a sua prática na sociedade do seu tempo.
O primeiro capítulo, Sobre a tradição historiográfica islâmica, apresenta distinções na forma de escrita da História na civilização islâmica. Na primeira, pertencente à era formativa dessa civilização, predominava a história oral que foi se transmutando em escrita, na era clássica, já no século X, acompanhando a organização dos califados e de uma necessidade propedêutica, ou seja, guardar as palavras do Alcorão. Além disso, nesse período, como a autora aponta, há uma inter-relação de gêneros, sobretudo: a biografia, a genealogia e crônica que, contudo, dividiam espaço com outros saberes como a geografia, as escolas jurídicas, filosóficas e a literatura.
Dessa forma, a autora nos possibilita a averiguação da riqueza cultural da civilização islâmica, confirmada não só pela variedade de conhecimentos, mas também pelo grande número de estudiosos que são enumerados, tais como os historiadores Al-Maqrizi, discípulo de Ibn Khaldun, que compreende a História como a escrita da verdade, e Al-Furat, que busca compreender o comportamento político do seu tempo através do conhecimento do passado.
O segundo capítulo, A escrita e o sentido da História na Muqaddimah de Ibn Khaldun, antes de mais nada, explora as influências que o historiador poderia ter recebido e que teria contribuído para a sua forma de escrita e também para a sua compreensão da História. Tal influência diz respeito ao itinerário do saber entre o mundo clássico e o mundo árabe, de forma que é possível atestar o diálogo, em termos de proximidade, influência e analogia, entre a metodologia histórica clássica e a de Ibn Khaldun. Tal simbiose é fruto, como aponta a autora, da translatio studiorum, movimento erudito que proporcionou o afluxo e recepção dos saberes da Grécia, de Bizâncio, da Pérsia e da Arábia, influenciando tanto a cultura ocidental, quanto a oriental, de modo que, a presença do pensamento clássico nos escritos de Khaldun teria sentido. Assim, a autora passa a investigar na escrita do historiador islâmico quais elementos da historiografia clássica estão presentes, como a concepção da História como a investigação das causas e narrativa do que realmente aconteceu, ideia também defendida por Tucídides e Políbio.
No que diz respeito à relação entre História e verdade, Khaldun, inclusive, faz severas críticas à fabulação e aos fatos com pouca autoridade, isto é, fatos que, se examinados com a devida crítica, não condizem com a verdade. A partir disso, ele critica alguns historiadores islâmicos que não fazem tal distinção e transmitem informações que podem ser consideradas fantasiosas como é o caso das cifras exageradas quando se faz o relato de batalhas ou do número de descendentes de uma dinastia.
O exame minucioso das informações, utilizando-se da crítica, da lógica e do conhecimento da natureza é, portanto, um dos princípios que regem a escrita da História na visão de Khaldun, que também defende que o historiador deveria ter um conhecimento político, geográfico e militar da região estudada para poder se certificar que o que está sendo relatado é verdadeiro.
A autora observa, ainda, que para Khaldun, a História tem um objetivo prático, ligado ao poder: a análise das ações do passado faria com que o historiador ensinasse aos homens de poder a melhor forma de governar. Esse tema é abordado no terceiro capítulo, Uma metodologia da História que se aplique ao estudo e ao entendimento da sociedade, no qual a autora aborda a racionalização do conhecimento do estudo da sociedade no tempo por Khaldun, a partir da qual ele elabora estágios de desenvolvimento da sociabilidade humana e elenca os elementos necessários para tal.
Nesse contexto, temos o pensamento de Khaldun atrelado ao de civilização (umran), o que nos permite perceber que o historiador islâmico parte de uma questão do seu próprio momento em busca de uma compreensão que só se realiza na volta ao passado. Ibn Khaldun vivenciava a desestruturação do poder muçulmano em seus territórios e formulou uma inovadora metodologia historiográfica a partir da necessidade de compreensão da realidade social na qual estava inserido. Por isso sua concepção da História é prática, pois o historiador não pode se eximir do seu tempo. E foi o que Khaldun fez com seu trabalho. Além da formulação de uma teoria da História, também destacou, legitimou e fortaleceu o papel do erudito, a figura do historiador na sociedade, como o responsável por orientar os homens de poder, como ele mesmo realizou.
Assim, o livro de Elaine Cristina Senko, sobre as reflexões na escrita da História deste emérito erudito muçulmano vem com o bom propósito, para o público em geral, de criticar uma noção atual simplista das questões entre Oriente e Ocidente, sobretudo, após os acontecimentos do 11 de setembro de 2001. Critica o medo ao muçulmano e propõe uma visão mais global sobre um tema complexo que envolve força militar, política, religião, cultura e história.
Num segundo momento, para o ofício do historiador, o livro traz a maior contribuição e reflexão, para além da demolição dos preconceitos de hoje. O que parece essencial é a exploração do tema escolhido para demonstrar o outro lado da questão da ocupação da Península Ibérica, do Mediterrâneo, do Magreb (Norte da África) pelos muçulmanos no final do século XIV.
Descobrimos que por meio dos escalonamentos, abordados no terceiro capítulo, que Ibn Khaldun indicava os níveis de desenvolvimento que as sociedades podiam percorrer, um “padrão de movimentos”, até a falência destas que o próprio já havia presenciado. A escolha deste universo demonstra a coerência com a proposta inicial da autora de compreender o “outro” por meio da história da sua civilização, do olhar pela lente de um dos seus mais ávidos estudiosos. E ainda, é importante atentar que explorar um teórico da História que se aproxima tanto da Filosofia clássica herdada dos muçulmanos (desde o século IX, a partir das escolas de tradutores) para elaborar sua historiografia é colocar novamente a questão sobre o que é ser um historiador em nossas mentes. Da mesma forma, renovar a historiografia hoje, envolve ultrapassar limites disciplinares e buscar erudição para que se possa recontar histórias (mas não sem método) como a autora faz ao apresentar a renovação da metodologia que Ibn Khaldun propôs, a partir dos elementos variados, mesclando a Filosofia de Aristóteles, de Tucídides e a história oral e as narrativas islâmicas.
A exemplo disto, a escolha de uma destas narrativas existentes no livro, Harun AlRashid: o esplendor de Bagdá permite uma referência cultural diferenciada do contexto de Ibn Khaldun. Esta foi uma escolha feliz da autora, pois é uma história conhecida no Ocidente, que aproxima o leitor do contexto histórico árido, pouco familiar, mas que permite observar o que “também é uma história” naquele contexto, possibilitando a percepção que a História pode ser vista em sentidos variados.
E, por fim, não podemos deixar de observar que estes escritos levam o leitor da área a perceber a importância de o historiador estar aberto à crítica e evitar ao máximo a influência dos poderosos na escrita da História, não devendo depender do poder político ideológico para escrevê-la. Neste caminho, portanto, entrevemos a necessidade de ver além dos preconceitos – é o que defende Ibn Khaldun -, mas é o que defende também a autora, quando cita os nomes dos autores especialistas sobre o Oriente, como o de Uma História dos Povos Árabes3 , que publicaram seus escritos críticos sobre o modo como o Oriente era visto no século XX, críticos que como Khaldun, esclareceram comportamentos e preconceitos.
Aqui é clara a defesa que a autora propõe da integridade do ofício do historiador pela escolha do objeto e pela forma de abordagem, e pelo respeito com o qual trata o seu objeto de estudo.
Notas
2 Graduada em História pela Universidade Tuiuti do Paraná. E-mail para contato: belkiss.drabik@hotmail.com
3 HOURANI, Albert. Uma História dos Povos Árabes. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
Referências
HOURANI, Albert. Uma História dos Povos Árabes. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
SENKO, Elaine Cristina. Reflexões sobre a escrita e o sentido da História na Muqaddimah de Ibn Khaldun (1332-1406). São Paulo: Ixtlan, 2012.
Ana Luiza Mendes – Doutoranda em História pela Universidade Federal do Paraná. E-mail: ana.luiza@ufpr.br
Bel Drabik – Graduada em História pela Universidade Tuiuti do Paraná. E-mail: belkiss.drabik@hotmail.com
SENKO, Elaine Cristina. Reflexões sobre a escrita e o sentido da História na Muqaddimah de Ibn Khaldun (1332-1406). São Paulo: Ixtlan, 2012. Resenha de: MENDES, Ana Luiza; DRABIK, Bel. Vozes, Pretérito & Devir. Piauí, v.3, n.1, p. 303-306, 2014. Acessar publicação original [DR]
TROJANOWSKI Elodie (Aut), Le “nouveau” Front National: Etude de la nouvelle ligne du parti à travers le discours de Marine Le Pen (T), Editions Universitaires Européennes (E), ANDRADE Guilherme Ignácio Franco de (Res), Vozes Pretérito & Devir (VPDr), Marine Le Pen, Frente Nacional, Partido Político, Europa – França, Séc. 20-21
O livro “A nova Frente Nacional: Estudo da nova linha do partido através dos discursos de Marine Le Pen”, da autora francesa Elodie Trojanowski, nos oferece uma análise sobre as mudanças dos discursos do partido de direita radical francês Frente Nacional, após a sucessão da presidência do partido por Marine Le Pen. Para tanto a autora também analisa a mudança da linha política desenvolvida por Marine Le Pen. A obra é fruto da sua dissertação de mestrado em jornalismo, porém sua pesquisa se enquadra dentro do âmbito das ciências políticas. Seu mestrado foi desenvolvido na Universidade Católica da Lovaina2, localizada no interior da Bélgica. Seu livro, composto de 118 páginas, foi publicado pela Editora Universitária Europeia3 em abril de 2014.
Para tanto, a autora estabeleceu um método rigoroso de estudo quando escreveu sua obra, a partir da crítica aos discursos oficiais do partido, como também a seleção de diversas entrevistas concedidas por Marine Le Pen, de vídeos postados no site da Frente Nacional e discursos de Marine Le Pen durante a as eleições presidenciais francesas em 2012. Elodie Trojanowski buscou em sua pesquisa analisar individualmente cada um dos discursos proferidos por Marine Le Pen e separa-los pelas novas temáticas escolhidas pela líder da FN, procurando traçar um paralelo com a antiga linha discursiva do partido, liderado por seu pai Jean-Marie Le Pen.
Tal investigação mostra-se relevante e pertinente para os estudiosos das ciências políticas, como também de extrema importância para os historiadores especializados na direita radical europeia, uma vez que, como a própria autora salienta na Introdução da obra, por se tratar de um fenômeno recente, em pleno acontecimento – enquadrado por nós historiadores como pertencente a história do tempo presente – ainda há poucos estudos que procuram investigar a mudança ideológica e discursiva da atual direita radical no século XXI.
O recorte de pesquisa escolhido pela autora, se enquadra no período em que a presidente do FN, Marine Le Pen ascendeu a presidência do partido em 2011, quando venceu seu adversário Bruno Gollnisch no Congresso Nacional do partido. Após vencer as eleições Marine Le Pen colocou em prática um projeto de desdiabolização da FN. Esse método consiste em um processo de transformação da imagem do partido, que outrora – durante quatro décadas da existência da agremiação política – esteve intrinsicamente ligado às práticas xenófobas, racistas e antissemitas. Nesse sentido Elodie Trojanowski trabalha para analisar se esse âmbito de mudanças da FN na figura de Marine Le Pen, acontece apenas no nível discursivo, se ele é inventado para definir uma nova identidade ou se existe uma ruptura real com as antigas concepções radicais, se elas são concretas.
A obra nesse percurso de investigação se coloca na posição de estudar comparativamente a ideologia desenvolvida pelo FN. Através de uma análise de discursos políticos da Presidente da Frente Nacional, o estudo é feito de forma detalhada, buscando nos discursos as palavras de ordem, como elas são colocadas, como as novas temáticas adotadas pelo partido são apresentadas e manipuladas para terem efeito positivo e atraírem votos para a FN. E como a partir dessa nova leitura da conjuntura e a nova linha discursiva da Frente Nacional se destaca o abandono de determinados temas e sua substituição por novos bodes expiatórios, como a União Europeia e a imigração muçulmana, por exemplo. A autora relativiza como a Marine Le Pen utiliza o contexto de crise econômica, social e política da França, para aumentar sua base eleitoral e como o partido tem diminuído seu tom agressivo e extremista, se diluindo em uma posição próxima a direita nacionalista. Desta forma a autora se dedica a fazer um levantamento do novo vocabulário desenvolvido por Marine Le Pen e cria um banco de dados contabilizando o uso dessas palavras e o quanto elas aparecem e permeiam grande parte dos seus discursos.
A criação do partido Frente Nacional foi inspirada no sucesso eleitoral do partido neofascista italiano Movimento Sociale Italiano (MSI). O início do partido começou com grupos distintos, incluindo membros do governo de Vichy, opositores do general de Gaulle, membros do movimento Poujadista, neofascistas, militantes da Federação dos Estudantes Nacionalistas, militantes do Jovem Nação e ativistas que não possuíam vinculo partidário mas simpatizavam com a ideia de organizar um partido de extrema direita. O início da FN começou sob liderança de Jean-Marie Le Pen e François Duprat.
No processo de construção do projeto político do FN, podemos perceber também que além da questão militar para reforçar o nacionalismo, o partido procurou construir outros símbolos, principalmente buscar heróis na história da França, personalidades históricas que pudessem reforçar, simbolizar o novo nacionalismo desenvolvido pelo FN. Nesse processo de busca para encontrar heróis, vemos o fortalecimento do catolicismo dentro do partido. Para representar o FN, foi escolhida a figura de Joana D’arc, como símbolo que representasse o nacionalismo do FN, uma heroína francesa, nacionalista, católica, devota à nação, que sacrificou sua vida em prol da liberdade do país, sem ter qualquer ação individualista, a nação acima de qualquer desejo individual. A escolha de Joana D’arc também passa pela questão da busca pela tradição histórica do país, demonstração de orgulho com o passado histórico. A escolha do símbolo do partido é também uma forma de procurar unir todas as células dentro do partido, colocando um novo foco a ser seguido, supondo que essa nova escolha conseguisse superar antigas figuras como Napoleão Bonaparte, Marechal Pétain, General Boulanger, Charles Maurras e Pierre Laval.
No sentido do nacionalismo do FN, o partido procurou se posicionar em defesa dos cidadãos naturais franceses. Podemos aqui pontuar que tal sujeito defendido pelo FN seria: o cidadão francês que provenha de uma longa geração de franceses (podemos indicar aqui que isso seria o francês branco caucasiano), católico, nacionalista, identificado com sua terra, um cidadão orgulhoso de suas raízes e identificado com a História da França, valoriza o desenvolvimento da nação acima da vontade individual4.
Para Jean-Yves Camus a questão da nação é algo central no FN, o nacionalismo para a FN é o principal ponto de referência ideológico, podemos afirmar que a ideia da nação é o ponto vital, é a fonte principal de luta e é fundamental para o discurso do partido5. Dar ênfase à nação é a questão chave para ocupar os espaços deixados pelos outros partidos. A defesa da nação como pauta da agenda política do FN tem dois objetivos: o primeiro é para legitimar a ideia do nacionalismo pertencer à FN, e quando outro partido utiliza dessa tática o FN sai em defesa da sua ideia acusando a oposição de apropriação política. O segundo objetivo é obrigar outros partidos a também fazerem um discurso que saia em defesa da soberania nacional6.
A FN tem como principal ideológica, a defesa da identidade nacional, no qual segundo ela estaria ameaçada pela imigração, internacionalização do comércio, a globalização, enesse sentido defende o retorno do “glorioso” nacionalismo francês. Em seu alegado plano de defender a França, lançavam-se contra seus inimigos internos (anteriormente judeus, maçons e protestantes, agora imigrantes, principalmente árabes e muçulmanos) e os inimigos externos (expeculação internacional e as forças das multinacionais e do corporativismo). A FN defende valores tradicionais e instituições as quais, segundo ela, devem se basear a identidade francesa nos principios de família exército, autoridade e catolicismo.7
O livro de Elodie Trojanowski é dividido em quatro capítulos. No primeiro capítulo a autora faz uma sistematização da história da Frente Nacional, citando os principais sujeitos que constituiu o partido durante sua criação na década de 1970. Talvez uma abordagem com maior capricho no que diz respeito aos mais de 40 anos da história da Frente Nacional pela autora seria necessária, para que o leitor que desconhece a história da Frente Nacional conseguisse visualizar de forma mais abrangente a história institucional do partido. Mesmo o primeiro capítulo necessitando de maior atenção, a autora utiliza a bibliografia correta e obrigatória para qualquer pesquisador que pretende estudar a Frente Nacional, utilizando autores como Nonna Mayer, Pascal Perrineau, Michel Winock e Pierre Taguieff para apresentar as principais características da direita radical francesa e suas raízes históricas.
Ainda no primeiro capítulo Elodie Trojanowski procura apresentar o debate sobre a direita radical na França, abordando as diferentes formas como ela se apresentou no país. Ela aponta os diferentes grupos que existiram, como o movimento monarquista Ação Francesa e também faz menções a Revolução Nacional, durante a ocupação alemã na Segunda Guerra Mundial. Ela também procura descrever o conceito de populismo que é utilizado na Europa para caracterizar alguns partidos de direita radical. E para finalizar ela discute as características de Jean-Marie Le Pen.
No segundo capítulo a autora francesa demonstra seu método de análise dos discursos da Marine Le Pen. A metodologia escolhida pela autora para a análise discursiva da presidente da Frente Nacional se divide em várias etapas. Elodie Trojanowski separa os discursos em duas categorias, os discursos para a mídia e que foram divulgados pela internet, que ao todo são os 12 maiores discursos de Marine Le Pen e o segundo grupo são 4 discursos feitos por Marine Le Pen aos militantes do partido.
A autora trabalhou comparando os discursos e elencou as principais temáticas que aparecem na fala da líder da Frente Nacional e que são amplamente exploradas durante a a campanha presidencial. Os principais temas apresentados pela autora são; Violência Social, Globalização, Economia, Justiça, Nação, Vida em Sociedade, Imigração, Família, Liberdade, História da França, Cultura, Valores, Hierarquia e Democracia. Com essa definição e recorte do que investigar a autora do livro monta uma tabela onde enumera a quantidade de vezes em que cada temática aparece na fala de Marine Le Pen e também avalia a forma como ele é apresentado, se aparece de forma positiva ou se o tom do discurso é negativo, buscando induzir os eleitores a acreditar em suas alegações.
Nesse formato de investigação a autora contribui para os pesquisadores pois apresenta como algumas temáticas são manipuladas de acordo com o público presente, ou seja, de acordo com o setor político ou social em que se encontra o público da Frente Nacional, o discurso de Marine Le Pen pode ser mais apelativo para o lado sentimental ou pode reforçar a temática para reforçar a posição assumida por um setor. Um exemplo dessa distorção do discurso pode ser evidenciado nos discursos da Frente Nacional aos trabalhadores, quando Marine Le Pen defende a ampliação dos direitos trabalhistas e da garantia dos investimentos do Estado em políticas públicas. E quando a presidente da Frente Nacional fala para os empresários e comerciantes ela defende a redução dos tributos e a proteção do Estado para o crescimento da economia.
No terceiro capítulo a autora apresenta individualmente os resultados das análises quantitativas das temáticas recortadas por ela, demonstrando estatisticamente de que forma cada temática aparece, quantas vezes ela foi utilizada ou apareceu com maior ou menor incidência nos discursos políticos de Marine Le Pen. Além disso ao apresentar as temáticas, a autora também demonstra uma interpretação da conjuntura política e coloca como são construídos os discursos e as formas como eles se desenvolvem na medida que Marine Le Pen acerta a forma de abordagem e como ela modifica a estratégia quando não alcança os resultados esperados.
Notas
1 Doutorando em História na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC/RS, na linha de pesquisa Sociedade, Urbanização e Imigração, orientado por Leandro Pereira Gonçalves. Bolsista CNPq. E-mail guilherme_andrade@hotmail.com
2 Université Catholique de Louvain.
3 EUE- Édition Universitaire Européenes.
4 FRONT NATIONAL, Défendre les Français, C’est le programme du Front National. Front National, no. 3, 1973.
5 CAMUS, Jean-Yves. Origine et formation du Front National…op.cit. pg.17
6 Idem, pg.18.
7 HAINSWORTH, Paul. The extreme right in France: The rise and rise of Jean-Marie Le Pen’s Front National. Representation, 40. 2004, p.44.
Referências
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BOURSEILLER, Christophe. Extrême Droite: l’enquête. Paris, Editions François Bourin, 1991.
CAMUS, Jean-Yves. Origine et formation du Front National (1972 – 1981) in MAYER, N;
PERRINEAU, P. Le Front National à découvert. Paris, Presses de la FNSP, 1989.
FRONT NATIONAL, Défendre les Français, C’est le programme du Front National. Front National, no. 3, 1973.
HAINSWORTH, Paul. The extreme right in France: The rise and rise of Jean-Marie Le Pen’s Front National. Representation, 40. 2004.
TROJANOWSKI, Elodie. Le “nouveau” Front National: Etude de la nouvelle ligne du parti à travers le discours de Marine Le Pen. Saarbrucken, Editions Universitaires Européennes, 2014.
Guilherme Ignácio Franco de Andrade – Doutorando em História na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC/RS, na linha de pesquisa Sociedade, Urbanização e Imigração, orientado por Leandro Pereira Gonçalves. Bolsista CNPq. E-mail guilherme_andrade@hotmail.com
TROJANOWSKI, Elodie. Le “nouveau” Front National: Etude de la nouvelle ligne du parti à travers le discours de Marine Le Pen. Saarbrucken: Editions Universitaires Européennes, 2014. Resenha de: ANDRADE, Guilherme Ignácio Franco de. Vozes, Pretérito & Devir. Piauí, v.4, n.1, p. 158- 163, 2015. Acessar publicação original [DR]
FERNANDES Fátima Regina (Aut), Do pacto e seus rompimentos: os Castros Galegos e a condição de traidor na Guerra dos Cem Anos (T), Editora Prismas (E), ZLATIC Carlos Eduardo (Res), Vozes Pretérito & Devir (VPDr), Guerra dos Cem Anos, Europa – Portugal, Castros Galegos
A obra Do pacto e seus rompimentos: os Castros Galegos e a condição de traidor na Guerra dos Cem Anos é fruto do longo trajeto investigativo de Fátima Regina Fernandes, professora de História Medieval da Universidade Federal do Paraná e pesquisadora membro do NEMED – Núcleo de Estudos Mediterrânicos. Enquanto medievalista, lança seu olhar sobre a Idade Média portuguesa, seus atores sociais e relações políticas no âmbito do Ocidente Medieval, com maior relevância para temas que giram em torno da dinâmica entre os poderes régio e nobiliárquico no espaço da Península Ibérica.
Antes de propriamente adentrar na resenha daquela obra, é preciso um esclarecimento. Toda publicação demarca um ponto no trajeto de pesquisa do historiador, seja ele graduando, pós-graduando ou historiador de carreira consolidada. Contudo, Do pacto e seus rompimentos se constitui por excelência como posição de chegada do percurso investigativo de Fátima Regina Fernandes, pois se trata da tese apresentada pela autora para obtenção do grau de professor titular do magistério superior, portanto, voltado à comprovação dos méritos da pesquisadora em ocupar tal posição, demonstrados por via da pesquisa que compõe as páginas do livro em questão. Assim sendo, foi a partir desta peculiaridade intrínseca a pesquisa que originou essa obra de onde partiu a análise contida nas linhas abaixo.
O livro objeto dessa resenha apresenta uma divisão em dois capítulos de desenvolvimento da problemática, aos quais se soma uma terceira sessão composta pelos anexos, que não devem ser menosprezados ou tratados como mero apêndice, tanto por oferecerem esquemas visuais – árvores genealógicas e mapas – facilitadores da compreensão do dinâmico contexto abordado por Fátima Regina Fernandes, quanto por conter a transcrição dos tratados2 utilizados pela autora para construir a argumentação central de sua tese, além de proporcionar o acesso a documentos por vezes difíceis de serem obtidos ao historiador brasileiro.
O primeiro capítulo é dedicado à abordagem contextual da segunda metade do século XIV, período marcado por fluidas relações políticas, rapidamente remodeladas pelo estabelecimento de pactos e tratados entre os monarcas ibéricos, franceses e ingleses; jogo de interesses que não poupou os nobres, dentre eles aqueles que acompanharam Fernando de Castro – os chamados emperegilados – ao reino de Portugal após a morte de Pedro I de Castela, também conhecido como o Cruel, pelas mães de Henrique de Trastâmara, seu meio irmão – pois bastardo –, tomando para si o trono castelhano.
Recebidos em Portugal, os Castros Galegos passaram à condição de vassalos do rei Fernando I, apoiando-o em suas ambições de domínio sobre o reino de Castela. Contudo, os planos dos nobres castelhanos foram malogrados pela aproximação entre o rei português e o aragonês – por meio de acordo que previa a divisão do território castelhano entre ambos –, mas principalmente pelo avanço da Guerra dos Cem Anos, que fez da Península Ibérica um palco de disputas políticas entre Inglaterra e França.
O objetivo de Fátima Regina Fernandes não é fazer uma revisão bibliográfica acerca dos pormenores que marcaram o irromper da Guerra dos Cem Anos e o desenvolvimento desse conflito a partir de uma narrativa centrada nas ações entre França e Inglaterra. Busca, antes, demonstrar como essa contenda se alastrou para além das disputas entre reino insular e o de além-Pirineus fazendo da Península Ibérica um ambiente sobre o qual se estenderam os interesses dos reis franceses e ingleses. Dessa maneira, a medievalista brasileira rompe com a centralidade de abordagens historiográficas focadas tão somente nos embates sustentados por França e Inglaterra ao longo da Guerra dos Cem anos e logra oferecer uma perspectiva de análise que enquadra esse fenômeno histórico enquanto pano de fundo capaz de envolver atores sociais inseridos no âmbito peninsular e os tencionar a tomadas de posição no campo político ibérico.
O ambiente de relações sócio-políticas da segunda metade do século XIV não é novidade nos trabalhos de Fátima Regina Fernandes, intimidade contextual que possibilita à autora o estabelecimento de vinculações de interesses entre o poder régio e o nobiliárquico, exercício facilitado por sua larga experiência no emprego do método prosopográfico – cujo uso se faz patente em sua tese de doutoramento (FERNANDES, 2003) e em tantos outros artigos, com destaque para as abordagens da trajetória de Nuno Alvares Pereira (FERNANDES, 2006; 2009) –, e que se revela, em Do pacto e seus rompimentos, no mapeamento das alterações experimentadas pelas relações políticas entre os Castros Galegos e os reis de Portugal e Castela, mas também entre esses últimos e os monarcas de Aragão, França e Inglaterra.
No que toca o tratamento dispensado por Fátima Regina Fernandes aos Castros Galegos, deve-se considerar que a autora os analisa enquanto grupo, nomeando tão somente a figura de Fernando Peres de Castro, enquanto os demais aparecem sob a sombra deste e escondidos sob o anonimato de seus nomes. A ausência do tratamento acerca da linhagem de Castro deve ser entendida sob a perspectiva de oferecer uma tese vertical, objetivando acima de tudo o debate em torno do estatuto social, político e jurídico experimento pelos emperegilados ao longo das vicissitudes que marcaram os finais da década de sessenta do século XIV e o início do decênio seguinte, compreendendo-os a partir da cultura política nobiliárquica castelhana, sustentada por uma nobreza cindida em dois perfis: a velha e a nova, conforme tipologia defendida por MOXÓ (2000) – importante referencial adotado por Fernandes. A supressão do processo de formação linhagística dos de Castro nessa tese deve sem entendido, para além do imperativo da almejada objetivo, pelo fato de que o tema já foi foco de pesquisas anteriormente publicadas pela medievalista (FERNANDES, 2000; 2008).
A abordagem do labirinto de relações sócio-políticas que marca o primeiro capítulo de Do pacto e seus rompimentos, característica que faz com que a leitura dessa primeira sessão da obra seja uma prática por vezes truncada e exigente de uma profunda acuidade por parte do leitor – a fim de que não se perda entre os nomes e as rápidas mudanças na direção dos pactos políticos –, oferece as referências contextuais necessárias para a devida compreensão do debate concernente ao segundo capítulo da obra, ao longo do qual a autora desenvolve o cerne de sua argumentação: o debate em torno da condição de traidores e, posteriormente, de degredados, imputada sobre o grupo de nobres castelhanos abrigados em Portugal.
Para atingir seu objetivo, Fernandes recupera os pactos e rompimentos políticos abordados no primeiro capítulo da obra para analisá-los a partir dos tratados firmados no desenvolvimento das relações entre França, Inglaterra, Aragão, Castela e Portugal, sendo o Tratado de Santarém, estabelecido entre os monarcas desses dois últimos reinos em 1373, crucial para o entendimento da condição sócio-política e jurídica dos Castros Galegos em território português.
Assim, a medievalista recorre ao exercício de crítica documental, heurística e diplomática para analisar o Tratado de Santarém, por meio do qual se estabeleceu a vassalidade de Fernando I de Portugal a Henrique II de Castela, o Trastâmara, lançando Fernando de Castro e os nobres que o acompanhavam no reino português na condição de traidores. Gozando desse estatuto, foram expulsos pelo rei português, rumando para Aragão e depois para a Inglaterra, onde passaram a viver como degredados sob a proteção do rei inglês.
Dessa maneira, “[…] a condição de traidor seria vista à luz da relação vassálica e identificada com o infiel, o que rompe unilateral e ilegitimamente o laço com o seu senhor” (FERNANDES, 2016, p. 85), rompimento este que deve ser entendido sob a perspectiva da natureza, compreendida enquanto “[…] relação artificial estabelecida voluntariamente entre os homens a fim de manter o bem comum, o consenso universal, a concordia ordinem” (FERNANDES, 2016, p. 97). Sob o imperativo de elucidar esses dois estatutos sociais – traidor e natureza –, Fátima Regina Fernandes recorre a um debate jurídico – traço também característico da autora e já demonstrado desde sua dissertação de mestrado acerca da legislação de Afonso III de Portugal (FERNANDES, 2001) –, problemática transpassada pelo do avanço das concepções do Direito emanadas a partir de Bolonha e do fortalecimento da ideia das fronteiras, fenômenos históricos que exerceram influência determinante no ideário político da Baixa Idade Média.
Ao enveredar pela discussão em torno da natureza e da noção de pertencimento à terra – questões atreladas à definição dos limites fronteiriços dos reinos medievais –, Fernandes toca no debate historiográfico concernente ao tema que pode ser sintetizado pelo título da obra de Joseph Strayer, As origens medievais do Estado Moderno, viés interpretativo que, tomando o Estado como ponto de chegada, relegou a Idade Média o lugar de berço, momento de gestação das instituições que posteriormente chegariam a sua maturidade no período histórico posterior ao da Idade Média.
Rompendo com as explicações teleológicas, característica da escrita de STRAYER (1969), Do pacto e seus rompimentos tem o mérito de inserir a análise acerca das instituições medievais no contexto próprio de sua dinâmica, fazendo perceber que o sentimento de pertencimento ao reino nutrido por aquelas pessoas surgiu a partir da base municipal, assim como instituições cujo funcionamento se pautava em uma relação mais impessoal entre o poder régio e o local; diferentemente da vinculação entre reis e nobres, haja vista que estes, preocupados com a manutenção de seu poder nobiliárquico, negligenciavam os limites fronteiriços, transitando mais livremente entre os reinos ao sabor das possibilidades oferecidas pelos pactos políticos – problemática que a autora já havia apontado ao estudar a trajetória de Gil Fernandes, um homem de fronteira (FERNANDES, 2013).
Os méritos da obra de Fátima Regina Fernandes podem ser estendidos para além da perspectiva de análise das problemáticas medievais supracitadas. Duas guerras mundiais. Conflitos armados no Leste Europeu e Oriente Médio – ainda hoje em chamas. Governos ditatoriais na América Latina. Todos esses embates político-militares impeliram, e seguem obrigando, extensa quantidade de pessoas ao abandono sua terra natal em pronta fuga aos horrores gerados pela violência daqueles embates. A proximidade temporal que envolve o observador contemporâneo a esses fatos pode levá-lo a concluir de maneira apressada que o exílio foi fenômeno nascido no século XX e vivo ainda na segunda década do XXI, entendimento equivocado que também se deve a escassez que a problemática experimenta no espaço dos debates historiográficas dos medievalistas.
Embora a circulação de nobres entre os reinos ibéricos possa ser largamente constatada ao longo da medievalidade ibérica, os medievalistas tendem a se ater ao contexto social e a equação de forças políticas que atuaram para a mobilidade nobiliárquica, muitas vezes dedicando pouca atenção aos conceitos que definem a extraterritorialidade desses atores sociais. A tese de Fátima Regina Fernandes alcança esse espaço de discussão pouco explorado, sem deixar de lado o rigor no trato contextual próprio desse período histórico, contribuindo não apenas para a compreensão da Idade Média, assim como o de nossa contemporaneidade, lembrando-nos que não apenas os indivíduos do século XX e XXI estavam sujeitos à necessidade do exílio, mas também os viventes do medievo.
Expostas essas ponderações, tem-se uma visão geral que torna possível a compreensão geral dessa obra. Enquanto tese de professora titular, a publicação cumpre a função de demonstrar o ponto de chegada das pesquisas desenvolvidas por Fátima Regina Fernandes ao longo de sua carreira de professora e pesquisadora no campo da História Medieval, motivo pelo qual estão presentes nessa obra, problemáticas pertinentes ao percurso dessa medievalista brasileira e que aparecem sintetizadas nas no desenvolvimento de suas interpretações em Do pacto e seus rompimentos.
Este não é, contudo, um trabalho de síntese do fim de um caminho de pesquisa. Ora, ainda há muito a ser feito! É antes um ponto de chegada, de onde partem outras problemáticas a serem elucidadas, como fica demonstrado por Fátima Regina Fernandes ao avançar com o debate acerca da condição de traidor e degredado no âmbito da Baixa Idade Média, cumprindo assim com o objetivo central dessa tese. A pesquisa que gerou a publicação de Do pacto e seus rompimentos ainda confirma o mérito que levou a medievalista a obtenção do grau de titular, elogiosamente reconhecido pelos membros que formaram a banca examinadora e registrado em prefácios preenchem as primeiras páginas de Do pacto e seus rompimentos: os Castros Galegos e a condição de traidor na Guerra dos Cem Anos.
Notas
1 Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná sob a orientação da Profa. Dra. Fátima Regina Fernandes. Membro do NEMED – Núcleo de Estudos Mediterrânicos. Bolsista CAPES. E-mail: carloszlatic@hotmail.com
2 Os documentos contidos no sessão de anexos são: Tratado luso-aragonês (1370), Tratado de Alcoutim (1371), Tratado de Tuy (1372), Tratado de Tagilde (1372) e o Tratado de Santarém (1373).
Referências
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FERNANDES, Fátima Regina. Comentários à legislação medieval portuguesa de Afonso III. Curitiba: Juruá, 2000.
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FERNANDES, Fátima Regina. Os exílios da linhagem dos Pacheco e sua relação com a natureza de suas vinculações aos Castro (segunda metade do século XIV). Cuadernos de Historia de España, Buenos Aires, v. LXXXII, p. 31-54, 2008.
FERNANDES, Fátima Regina. Sociedade portuguesa e poder na Baixa Idade Média Portuguesa. Dos Azevedo aos Vilhena: as famílias da nobreza medieval portuguesa. Curitiba: Editora UFPR, 2003.
MOXÓ, Salvador. De la nobleza vieja a la nobleza nueva. In: MOXÓ, Salvador. Feudalismo, senorío y nobleza en la Castilla medieval. Madrid: Real Academia de la Historia, 2000. p. 311-345.
STRAYER, J.R. As Origens Medievais do Estado Moderno. Lisboa: Gradiva, 1969.
Carlos Eduardo Zlatic – Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná sob a orientação da Profa. Dra. Fátima Regina Fernandes. Membro do NEMED – Núcleo de Estudos Mediterrânicos. Bolsista CAPES. E-mail: carloszlatic@hotmail.com
FERNANDES, Fátima Regina. Do pacto e seus rompimentos: os Castros Galegos e a condição de traidor na Guerra dos Cem Anos. Curitiba: Editora Prismas, 2016. Resenha de: ZLATIC, Carlos Eduardo. Vozes, Pretérito & Devir. Piauí, v.6, n.1, p. 279 – 284, 2016. Acessar publicação original [DR]
PEDREIRA Flávia de Sá (Org), Nordeste do Brasil na II Guerra Mundial (T), LCTE (E), FONTINELES FILHO Pedro Pio (Res), Vozes Pretérito & Devir (VPDr), Nordeste do Brasil, Segunda Guerra Mundial, Séc. 20, América – Brasil
Nordeste do Brasil na II Guerra Mundial, obra organizada pela historiadora Flávia de Sá Pedreira, é escrita por diversos pesquisadores-autores que se organizaram em torno de um eixo de debate, voltado para pensar o Nordeste do Brasil e suas variadas relações com diferentes eventos e acontecimentos oriundos da Segunda Guerra Mundial. A organizadora, na Apresentação da obra, como quem convida para tomar um café na sala de estar ou no escritório, explica um pouco da trajetória da construção do livro, quando decidiu convidar outros historiadores para o debate/reflexão sobre o tema. Em suas palavras, “Um período tão rico da nossa história, que muitas vezes é negligenciado por se pensar que a guerra foi bem longe daqui…Ledo engano, pois se o front ocorreu do outro lado do Oceano, aqui também se fez presente, atingindo as mentes e os corações tupiniquins, especialmente os que habitam esta região do país” (p. 09). Movida por esse desejo de ampliar, unir e socializar pesquisas, foi que a presente coletânea teve sua origem.
O livro Nordeste do Brasil na II Guerra Mundial, além da sincera e pertinente Apresentação assinada pela organizadora, é composto por quatorze capítulos, todos debatendo sobre o conflito mundial e suas vinculações com alguma cidade ou capital do Nordeste. São dois capítulos ambientados em Sergipe, dois em Pernambuco, dois na Bahia, três no Rio Grande do Norte, um no Piauí, um na Paraíba, um no Ceará, um no Maranhão, um em Alagoas. A disposição dos capítulos não segue uma “lógica” específica, nem de recorte temporal e nem de agrupamento dos estados, tendo o tema da Segunda Guerra como único elemento aglutinador. Isso, ao contrário do que se possa pensar inicialmente, atribui mais leveza e fluidez à leitura, pois promove dinâmica na exposição dos objetos selecionados. Ao final, somos apresentados aos autores dos capítulos, com um breve resumo biográfico, com suas titulações e filiações acadêmicas.
Mais que uma coletânea de artigos produzidos eximiamente por estudiosos e especialistas na temática. É um referencial para e na historiografia, sobretudo no que tange ao capricho teórico-metodológico. Não se trata de um esforço de “encaixar” o Nordeste brasileiro em um episódio ou em acontecimentos, ou ainda, de “fazer” o Nordeste parte daquele momento beligerante da História mundial. Os estudos que integram a coletânea transitam, conscientemente, entre os limites e possibilidades das questões plurais de fronteira. São autores estão compromissados em “fazer” História, que, por sua vez, está imersa em temporalidades e espacialidades que ora se cruzam, ora se distanciam. Essa alternância se justifica, em grande medida, em decorrência das escolhas e recortes que os pesquisadores fazem. Isso é inerente ao campo científico da História. A percepção desse contraditório limite/expansão do termo “fronteira” é, também, uma tentativa de desnaturalizar o regional, o nacional ou o global como conceitos essenciais, prontos e imutáveis.
O esmero da obra, de fato, já se apresenta no excelente projeto gráfico da capa, que não faz o papel unicamente de adornar o livro. A capa em si já é o compromisso com o despertar e o refletir sobre o que, de forma direta e concisa, aponta o próprio título da obra. Imagens de espaços, sujeitos, momentos e ações diferentes, agrupadas como recortes que compõem uma colagem, isso tudo leva o leitor a pensar no caráter lacunar da história e na posição indelével do historiador, sobretudo no levantamento, na interpretação e na síntese que faz com e sobre as fontes. Fontes escritas, orais e audiovisuais, somadas a mapas, dados numéricos e gráficos, são exemplos da diversificação de olhares sobre os quais os autores se debruçaram para imprimirem suas análises, na presente obra coletiva. As fontes são lidas, problematizadas e interpretadas cuidadosamente à luz da teoria e da historiografia sobre a História da Guerra, a História nacional e das particularidades locais e regionais. Por essa razão, é que, de certa forma, os capítulos travam diálogos com múltiplas especialidades da História, como a história econômica, a história política, a história urbana, a história do cotidiano, a história cultural. No tocante à História Oral, Luiz Gustavo Costa sintetiza bem o seu uso nesta coletânea, ao afirmar que “não se buscou construir ou reconstruir conceitos historiográficos, mas abordagens que permitissem contornar caminhos alternativos embasados em critérios na busca constante em pesquisar determinadas entrelinhas” (p. 272). Cada capítulo aborda entrelinhas que, até então, ainda eram carentes de pesquisa e de conhecimento de um público mais amplo.
São artigos que transitam por variadas possibilidades de interconexões do fazer historiográfico. Por se tratar de um conjunto de pesquisas sobre uma das mais impactantes desventuras do mundo moderno, a Segunda Guerra Mundial, os textos podem ser lidos e interpretados a partir de alguns vieses de entendimento, como a História Política, no esteio daquilo que René Remónd (1997), e seus colaboradores, propunham pensar o mundo da vida política em seus muitos horizontes. Nesse sentido, os artigos que compõem o Nordeste do Brasil na II Guerra Mundial apontam para como, em diferentes configurações culturais, econômicas, sociais e culturais, as políticas de atuação naquele episódio beligerante eram encaminhadas. Quando se fala de atuação, aqui, fala-se em convocação, participação, resistência, apoio, negação, medo, expectativa, imaginário, representações e demais alcances da Guerra no cenário nordestino.
O espaço e as suas subjetividades, corroborando a ideia de que os limites e fronteiras devem ser percebidos e problematizados em diferentes configurações, são, também, uma perspectiva potencial com a qual o leitor vai se deparar. As inúmeras bifurcações, ou melhor, os múltiplos veios entre o global, o nacional e o regional ganham ainda mais complexidade e viabilidade quando, em meio a tantos artigos, é possível se deparar com estudos que abordam o tema tomando um bairro como recorte espacial e se constitui como objeto.
Os gatilhos para a construção de um objeto de estudo são praticamente ilimitados. O leitor vai se surpreender como os autores aqui reunidos buscaram, em diferentes fontes e matrizes teóricas, a maneira particular de analisar e de apresentar seus olhares sobre a Guerra. O cotidiano, em variadas expressões foi tomado por alguns dos autores, como o fio que os levassem à problematização e construção de suas narrativas.
O desconhecido, o conflito, o medo, a força, a violência, o sonho, a esperança são alguns dos sentimentos que, em boa medida, podem ser percebidos nos textos agrupados. Ataques por mar e terra, espionagem, censura, representações, imprensa, discursos, morte, pobreza e precarização das condições de vida são tópicos e temas analisados ao longo da coletânea, como pode ser notado nos capítulos de autoria de Luana Carvalho, de Juliana Campos Leite, de Armando Siqueira. Episódios sangrentos e violentos, como aqueles do “Pearl Harbor brasileiro”, em Sergipe, discutido por Dilton Cândido Maynard, são revisitados para compreender os alcances simbólicos, imaginários, diplomáticos e políticos e políticos daquele conflito bélico de escala mundial. O mesmo terror é analisado no capítulo assinado em coautoria por Luiz Pinto Cruz e Lina de Aras, ao abordar os ataques empreendidos dos submarinos alemães no litoral sergipano. As relações diretas e indiretas entre os norte-americanos e alguns políticos e lideranças brasileiros são discutidas em diferentes abordagens, como é abordado pelos capítulos de autoria de Anna Cordeiro e de Raquel Silva. Os impactos sociais e urbanos também são analisados nos textos de Osias Santos Filho e de Sérgio Lima Conceição.
Nesse entremeio de textos e análises, é possível historicizar a Segunda Guerra Mundial a partir das críticas e sátiras que blocos de carnaval faziam, após a Guerra, sobre como a sociedade se comportava e representava aquele momento. O carnaval pós-guerra é tomado, então, como um sinalizador para as ranhuras, relações e sociabilidades que o contato, direto ou indireto com a Guerra, causou. Esse é o caso de Fortaleza, com o bloco dos CocaColas. Tal bloco, como discute o historiador Antônio Luiz Macêdo e Silva Filho. Diversão, irreverência e crítica, como têm sido as maiores marcas do carnaval ao longo dos tempos, se encontram para pensar sobre aquele período e sobre a sociedade. O Carnaval é também mencionado por Flávia de Sá Pedreira, em capítulo de sua autoria, quando a autora sobre os discursos acerca da produção artístico-cultural da cidade de Natal, sobretudo a partir do posicionamento de intelectuais, como Luís da Câmara Cascudo. A Segunda Guerra foi uma experiência com proporções quase imensuráveis e, como afirma Antônio Luiz Silva Filho, “as marcas dessa experiência seguem convidando a novas investigações” (p. 60).
A interseção entre cotidiano e guerra é ampliada em artigos como o de Daviana Granjeiro da Silva, que aborda aspectos da identidade para pensar o cotidiano em João Pessoa no período de guerra. Assim como as noções de fronteira devem ser desnaturalizadas, a historiadora apresenta, consciente e sutil, a discussão de que as identidades são importantes para as manifestações, mobilizações, acordos e resistências. Além disso, de que, lembrando aqui das identidades plurais propostas por Stuart Hall (2006), os sentidos ou sentimentos de pertencimento perpassam pelas construções e disputas de identidades. Por esse diapasão, Daviana da Silva conclui que “os desdobramentos de um conflito como foi a Segunda Guerra Mundial trazem efeitos para além dos campos de batalhas e do tempo cronológico de duração oficial do confronto, pois alteram modos de vida e visões de mundo de milhares de pessoas, mesmo em lugares tão distantes do front, o que ratifica a relevância de continuarmos estudando e refletindo sobre este momento peculiar de nossa história” (p. 184).
Da mesma maneira que as identidades, as memórias estão afloradas e debatidas ao longo dos textos da presente coletânea. Em alguns, de forma mais evidente e direta, em outros, de maneira mais diluída em subtemas ou na maneira com o trato com as fontes. Em relação a essas, é indispensável mencionar que todos os capítulos lidam com um leque amplo, desde documentos oficiais ligados à Força Expedicionária Brasileira (FEB), bem como depoimentos escritos de intelectuais e literatos, em sua fricção com depoimentos orais. É assim que, por exemplo, a historiadora Clarice Helena Santiago Lira constrói sua narrativa, promovendo o confronto entre diferentes fontes escritas e orais, para falar sobre o processo de mobilização de guerra na sociedade piauiense, utilizando a noção de front interno como mote de reflexão. A autora concluiu seu texto, afirmando que “a memória social sobre o processo de mobilização de guerra na cidade de Teresina não se faz presente, o que também é constatado por pesquisadores que estudam outras cidades brasileiras nessa configuração” (p. 133).
O repertório e manancial teórico e historiográfico são plurais e utilizados com maestria pelos autores da coletânea. A maioria não fugiu do contato inicial com os ensinamentos de referência de Roney Cytrynowicz (2000) e de Marlene de Fáveri (2002), sobretudo no que se refere ao trabalho de mobilização de guerra no Brasil. Além desses, estudiosos como Gerson Moura (1980; 19930), Silvana Goulart (1990), Vágner Alves (2002), Luiz Muniz Bandeira (2007) e Maria Capelato (2009) foram constantemente revisitados pelos historiadores que colaboraram com a presente coletânea. O diálogo empreendido é fluente, fazendo com que historiografia, teoria e empiria sejam colocadas de forma conexa.
No campo estritamente teórico, os capítulos estão ligados pelos meandros da memória, pois, em certa escala, abordam comunidades de memória ou grupos de memória. Essa concepção de memória, no lastro do que sugere Paul Connerton (1993), em que grupo assume tanto dimensões mais particulares de pequenas sociedades, quanto as dimensões mais complexas e, territorialmente falando, mais extensas. Nesse sentido, os grupos de pessoas de um bairro, de uma cidade, de um agrupamento militar, de lideranças políticas e intelectuais estão imersos nesse deslizamento entre o particular e geral do grupo, constituindo memórias singulares e plurais sobre a Guerra, seus agentes, sobre os espaços e temporalidades. De forma mais abrangente, ainda é viável ler toda a coletânea a partir dos conceitos de sistemas denominados de finalidade e causalidade, como propostos por Jean Baptiste Duroselle (2000), pois desde a movimentação política dos Estados até as reverberações sociais e cotidianas da população, tais sistemas estão manifestados.
Grande parte da riqueza e da importância desta coletânea está no fato de que, conforme a organizadora da obra, a historiadora Flávia de Sá Pedreira, “a indiscutível posição geográfica desta região do país muito contribuiu para o desfecho vitorioso dos países Aliados. A discussão a sobre a necessidade de se construir bases aéreas norte-americanas aqui demorou cerca de três anos, com intensas negociações entre os governos brasileiro e estadunidense. Com a instalação das bases, a partir de dezembro de 1941, o contato entre a população local e os estrangeiros fez-se de forma nem sempre harmoniosa, passando de uma convivência inicialmente cordial à confrontação explícita, principalmente na fase de racionamento em prol do ‘esforço da guerra’” (p. 08). A presente coletânea é um convite ao leitor, para que histórias antes silenciadas ou pouco conhecidas sejam retiradas das trincheiras do esquecimento. É um esforço coletivo em levar para o front da historiografia sujeitos e histórias responsáveis por inúmeras experiências urbanas da Guerra do outro lado do Oceano, do lado brasileiro, do lado nordestino. É importante frisar que, mesmo que cada autor presente nesta obra já tenha publicado inúmeros artigos em periódicos especializados e ter os apresentado em muitos eventos acadêmico-científicos, este livro se materializa como um símbolo e um norte para que novos pesquisadores e estudiosos sintam-se cada vez mais impelidos ao combate, no sentido amplo defendido por Lucien Febvre (1989). Mais que uma obra cujo público seria formado exclusivamente os especialistas e estudiosos das e nas universidades. A obra tem um alcance além, pois as narrativas, mesmo atendendo ao rigor científico e metodológico, não se distanciam da facilidade de compreensão por parte de qualquer público leitor interessado. Movidos pelo dever e pela responsabilidade de (re)escrever a História, em seus múltiplos vieses e horizontes.
Referências
PEDREIRA, Flávia de Sá (Org.). Nordeste do Brasil na II Guerra Mundial. São Paulo: LCTE, 2019, 340p.
CAPELATO, Maria Helena Rolim. Multidões em cena: propaganda política no varguismo e no peronismo. São Paulo: EDUNESP, 2009.
CONNERTON, Paul. Como as sociedades recordam. Portugal: Celta, 1993.
DUROSELLE, Jean Baptiste. Todo império perecerá. Rio de Janeiro: FGV, 2000.
FEBVRE, Lucien. Combates pela História. 2. ed. Lisboa: Editora Presença, 1989.
GOULART, Silvana. Sob a verdade oficial: ideologia, propaganda e censura no Estado Novo. CNPq/Marco Zero, 1990.
HALL, Stuart. O Global, o local e o retorno da etnia. In: HALL, Stuart. A Identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
MOURA, Gerson. Autonomia na dependência: a política externa brasileira de 1935 a 1942. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
______. Neutralidade dependente: o caso do Brasil, 1939-1942. Estudos Históricos, v. 6, n. 12, Rio de Janeiro, 1993.
MUNIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. Presença dos Estados Unidos no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
REMOND, René (Org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Fundação Getúlio Vargas, 1997.
Pedro Pio Fontineles Filho – Doutor em História Social (UFC). Mestre e Especialista em História do Brasil (UFPI). Graduado em História (UESPI). Graduado em Letras-Inglês (UFPI). Professor do Programa de Pós-Graduação em História (UFPI). Professor do Mestrado Profissional – PROFHISTÓRIA (UESPI). Professor do Curso de História (UESPI/CCM). E-mail: ppio26@hotmail.com
PEDREIRA, Flávia de Sá (Org.). Nordeste do Brasil na II Guerra Mundial. São Paulo: LCTE, 2019. Resenha de: FONTINELES FILHO, Pedro Pio. Além das Trincheiras e do Front: escritas sobre o Nordeste brasileiro e a Segunda Guerra Mundial. Vozes, Pretérito & Devir. Piauí, v.10, n.1, p. 269- 275, 2019. Acessar publicação original [DR]
A unidade do corpo e da mente: afetos, ações e paixões em Espinosa – JAQUET (CE)
JAQUET, Chantal. A unidade do corpo e da mente: afetos, ações e paixões em Espinosa. Tradução Marcos Ferreira de Paula e Luís César Guimarães Oliva. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. Resenha de: D ’AMBROS, Bruno. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n 26, 2012.
Lançado na França em 2004, o livro de Chantal Jaquet chega ao Brasil em 2011, publicado pela editora Autêntica. A tese da união entre mente e corpo de Espinosa tem despertado o interesse de neurobiologistas e psicomotricistas pelo filósofo holandês. Porém, como toda popularização implica quase sempre numa simplificação, surge o receio de que possa haver tal simplificação de Espinosa. É neste intuito que surge o livro de Chantal Jaquet, como precaução de eventuais abusos e simplificações extremas da filosofia de Espinosa e também como um estudo aprofundado das relações entre a mente e o corpo “sob o prisma dos afetos.” (JAQUET 1, p.17)
O livro se divide em cinco capítulos, cujos títulos são: “A natureza da união do corpo e da mente”, “A ruptura de Espinosa com Descartes a respeito dos afetos na Ética III”, “A gênese diferencial dos afetos no prefácio do Tratado teológico-político e na Ética”, “A definição do afeto na Ética III”, “As variações do discurso misto.”
“A natureza da união do corpo e da mente”
Há muito tempo, desde Leibniz, os comentaristas de Espinosa sempre falaram na união psicofísica em termos de paralelismo entre o corpo e a mente. No entanto Chantal Jaquet sustenta que a doutrina do paralelismo não é adequada para compreender Espinosa.
A doutrina do paralelismo é nociva à compreensão da unidade psicofísica e não conduz à uma compreensão adequada do monismo de Espinosa porque “conduz a pensar a realidade com o modelo de uma série de linhas similares e concordantes que, por definição, não se encontram.” (JAQUET 1, p.25). A doutrina do paralelismo, ainda, supõe “homologias e correspondências biunívocas entre as ideias e as coisas, a mente e o corpo”; supõe que a natureza está “condenada à uma ecolalia sem fim, a uma perpétua repetição do mesmo em cada atributo”; supõe que a unidade é uniformidade; supõe também “uma tradução sistemática dos estados corporais em estados mentais”; e, assim, que o paralelismo “mascára tanto a unidade quanto a diferença” da união psicofísica. (JAQUET 1, p.29 – 30).
Mais adequado do que a doutrina do paralelismo, para pensar Espinosa, é a doutrina da igualdade. O próprio Espinosa sustenta que há uma igualdade entre potência de pensar e de agir, tanto em Deus como no homem, usando o mesmo adjetivo latino æqualis, tanto para a potência de pensar e agir de Deus como para a do homem. Quando Espinosa diz ordo idearum ordo rerum ele quer dizer que a ideia de um sujeito é a expressão igual de alguma coisa externa, extensa, a este sujeito pensante. Portanto “a teoria da expressão em Espinosa é regida inteiramente pelo princípio da igualdade.” (JAQUET 1, p.32)
“A ruptura de Espinosa com Descartes a respeito dos afetos na Ética III”
Chantal Jaquet sustenta que Espinosa e Descartes não estariam tão distantes no que tange aos afetos, ambos têm alguns pontos de convergências. Podemos resumir as convergências entre Descartes e Espinosa em alguns pontos básicos, principalmente nas obras As paixões da alma e na Ética : em ambos há um esforço para superar o dualismo mente/ corpo, em ambos há uma abordagem física e mental dos afetos, ambos fazem uma abordagem dos afetos por um método físico-geométrico, em ambos há uma naturalização e racionalização dos afetos, para ambos as paixões são inerentes ao ser humano, para ambos há uma ordem causal por detrás da desordem das paixões, para os dois a mente tem poder sobre as ações e ambos fundam uma “ciência” dos afetos.
Mas, quanto às divergências sobre os afetos, elas se resumem a dois pontos: um concerne à causa das paixões; o outro, à “natureza do poder da mente sobre elas” (JAQUET 1, p.57). Descartes sustenta que a causa das paixões são as ações do corpo sobre a alma e da alma sobre o corpo, ou seja, para ele as paixões são movimentos ativos. Espinosa sustenta que a causa das paixões não está de forma alguma nas ações do corpo ou da alma, ou seja, para ele as paixões são movimentos passivos tanto do corpo quanto da alma, já que ambos são igualmente ativos ou passivos, conforme aquele “princípio de igualdade” das potências que nos fala Chantal. A proximidade entre Descartes e Espinosa, segundo Chantal, está em que ambos concebem corpo e mente em termos de relação psicofísica; mas a distância que os separa está em que Descartes, em última análise, atribui a causa das paixões a uma ação corpo (JAQUET 1, p.58), enquanto Espinosa a atribui à relação do corpo e da mente com a exterioridade, na qual as ideias na mente são determinados pelo exterior (ideias inadequadas). Mas, como lembra Chantal, esse diferente entre os dois filósofos acarreta uma outra, que concerne ao poder da alma sobre os afetos (JAQUET 1, p.60): Descartes acreditava num poder absoluto da alma sobre o corpo, já que ela era a detentora de uma vontade livre capaz de controlá-lo; Espinosa fala em moderação dos afetos a partir de seu conhecimento, isto é, a partir da formação de uma “ideia clara e distinta”, ou adequada, sobre o próprio afeto passivo que, então, deixa de ser passivo (JAQUET 1, p.63).
“A gênese diferencial dos afetos no prefácio do Tratado teológico- político e na Ética”
Chantal Jaquet trata de uma diferença significativa em duas obras de Espinosa, uma da juventude, o Breve Tratado (1660), e a Ética (1677) . No primeiro, a percepção do corpo pela mente é um efeito do corpo ainda; assim, há uma “ação recíproca da alma sobre o corpo” e vice- versa que configuraria um parentesco com Descartes. Na última, a percepção do corpo pela mente é um efeito das ideias das afecções do corpo; aqui ele “exclui toda causalidade recíproca e toma a forma de uma equivalência e de uma correspondência entre modos e atributos diferentes” estabelecendo uma ruptura completa com Descartes.
A questão, portanto, para Jaquet, é “saber se as diferenças são o índice de uma simples mudança de pontos de vista compatíveis entre si ou se elas revelam divergências que atestam uma mutação do pensamento de Espinosa.” (JAQUET 1, p.73).
Para compreender esta questão Chantal Jaquet vai para uma obra intermediária de Espinosa, que fica entre o Breve Tratado e a Ética, o Tratado teológico-político (1670), que, por sua localização intermediária entre as duas obras iniciais mostra a evolução do pensamento de Espinosa em direção à Ética.
O Tratado teológico-político tem muitas diferenças em relação à Ética; as principais tangem aos afetos, que são diferentes dos apresentados na Ética. Uma distinção importante é que no Tratado teológico-político não há, ainda, a distinção entre afetos ativos e passivos. Ali os afetos são vistos como passivos sempre. Aquilo que mais tarde a Ética vai chamar de afetos ativos estão agrupados sob a categoria de fortitudo, subdivididos em animositas e generositas.
Outro ponto que é ressaltado por Jaquet é que no Tratado teológico-político o apetite e o desejo são opostos à razão. O Tratado teológico-político não tem a intenção de fazer uma teoria dos afetos, seu objeto é outro, por isso ele não contém explicitamente uma teoria dos afetos e quando cita os afetos, cita-os sempre como paixões, não mencionando que há afetos ativos. Já na Ética há uma virada em Espinosa. Nela o afeto é definido como fruto de uma causalidade adequada ou como fruto de uma causalidade inadequada: no primeiro caso o afeto é ativo, no segundo é passivo; ou seja, os afetos ativos são ações e os afetos passivos são paixões. Os três afetos básicos – desejo, alegria e tristeza – são decorrentes desta definição. A distinção entre afetos ativos e passivos é uma inovação da Ética. Na Ética há uma “razão apetitiva e um apetite racional.” (JAQUET 1, p.93). A Ética oferece assim “uma visão mais unificada do homem, o qual não é dotado senão de uma única natureza apetitiva que se declina seja sob um modo passivo, seja sob um modo ativo.” (JAQUET 1, p.93). Na Ética “a razão torna-se essa potência ativa capaz de engendrar afetos que coíbem as paixões tristes.” (JAQUET 1, p.94).
Portanto, há uma evolução do pensamento de Espinosa, em direção à Ética, que “confirma essa orientação do sistema rumo a uma concepção mais e mais dinâmica do potência de agir.” (JAQUET 1, p.96).
“A definição do afeto na Ética III”
Uma primeira questão que aparece na Ética é referente à palavra affectus. Chantal Jaquet aponta que, dentre as várias palavras latinas à disposição – emotio, passio, commotio – Espinosa utiliza a palavra affectus e que dentre as várias traduções – emoção, paixão ou sentimento – a mais adequada é afeto.
Quanto à definição de afeto, na parte III da Ética há duas definições, uma no início (SPINOZA 2, III, def.3) e outra no final (SPINOZA 2, III, def. geral). Na primeira o afeto é ativo e passivo. Na segunda o afeto é somente passivo. Esta segunda definição é a mais problemática, porque ela é uma definição geral dos afetos e, no entanto, restringe o afeto ao seu aspecto de passividade e mental.
O problema da segunda definição do afeto é que ela é uma definição geral (generalis) e está no final da parte III, o que induz a pensar que ela é uma definição genérica que tenta abranger todos os afetos. Porém ela foca só o aspecto mental e passivo dos afetos, excluindo os ativos. Chantal Jaquet diz que ela é uma definição generalis no sentido de gênero e não de genérico, por isso ela enfatiza o aspecto passivo e mental do afeto porque desta forma, prestando atenção às características genéricas das paixões, pode-se determinar sua força, sua utilidade, sua nocividade e a potência da mente para contrariá-las: “ela é dita geral pois remete todas as paixões a um só gênero, a ideia confusa, e permite em seguida compará-las em função de sua aptidão a aumentar ou diminuir a potência de agir do homem.” (JAQUET 1, p.115)
Espinosa diz que os afetos são afecções corporais que aumentam e ajudam ou diminuem e contrariam a potência de ação deste corpo e também que os afetos são as ideias destas afecções do corpo (SPINOZA 2, III, Def.3, p.98). Nesta definição, o afeto é definido primeiro em relação ao corpo e depois em relação à mente.
A primeira questão que o aspecto corporal do afeto implica é sobre a distinção entre afeto e afecção. Todo afeto é uma afecção corporal mas nem toda afeção corporal é um afeto, portanto, o que distingue afetos de afecções? O critério de diferenciação é a potentia agendi do corpo, ou seja, “uma afecção é um afeto se e somente se tem um impacto sobre a potência de agir do corpo.” (JAQUET 1, p.129). Desta forma os afetos se diferenciam das afecções porque eles tem a capacidade de fazer variar a potentia agendi.
Tudo tem uma potentia agendi porque a potentia agendi é uma vis existendi. Portanto, devemos entender a potência de agir como força de existir e a verdadeira potência de agir é a que tem a ver com as ações, pois repousa sobre um conhecimento adequado, porque aumenta a potência como força de existência. As ações, isto é, aquilo que um sujeito ativo faz, é causa adequada dos efeitos corporais, aumentando a potentia agendi como vis existendi.
Há quatro tipos de afetos que impactam a potentia agendi : os que aumentam ou diminuem e os que ajudam ou coíbem. Chantal Jaquet sustenta que há uma diferença entre os que aumentam/diminuem e os que ajudam/coíbem, dizendo que o segundo grupo não é somente um recurso de insistência, mas que há uma diferença de grau e natureza entre eles. O segundo grupo, que ajuda/coíbe a potência, são afecções que não aumentam nem diminuem a potência de agir do corpo, mas que “só fazem neutralizar as forças contrárias ou favoráveis.” (JAQUET 1, p.142).
Então, Chantal Jaquet elenca cinco tipos de afecções que ajudam ou coíbem a potentia agendi: 1) ajuda ou coíbe o que se opõe à destruição do que se ama ou à conservação do que se execra; 2) ajuda ou coíbe que a imagem da alegria do que se ama seja vista como causada por nós; 3) ajuda ou coíbe sentimentos que mudam de hostis à amigáveis ou de amigáveis a hostis; 4) ajuda ou coíbe alguém que faz o bem ao outro ou não; 5) ajuda ou coíbe a concepção adequada ou inadequada da impotência humana.
O afeto também é definido em relação ao atributo pensamento, à mente. Os afetos são as afecções corporais, mas também são ao mesmo tempo (et simul) as ideias destas afecções corporais, e estas ideias são modos certos e determinados da atividade eterna e infinita do atributo pensamento.
Chantal Jaquet diz que há três maneiras de compreender o advérbio et simul, que se refere à simultaneidade das afecções corporais e mentais. Primeiro, et simul significa que os afetos são psicofísicos. Segundo, et simul significa que os afetos são psíquicos. Terceiro, que eles são físicos. Desta forma há três categorias de afetos, os psíquicos, os físicos e os psicofísicos.
“As variações do discurso misto”
Espinosa faz três divisões concernentes aos afetos: ações e paixões, primitivos e compostos e bons e maus. Desta forma ele não visa uma enumeração exaustiva dos afetos porque os afetos, de um modo geral, se reduzem à três, o desejo, a alegria e a tristeza. Os outros afetos compostos são decorrentes destes afetos primitivos.
Mas Chantal Jaquet estabelece três categorias de afetos, segundo a referência seja mais o corpo, a mente ou ambos, embora todo afeto conserve uma natureza psicofísica. Primeiro há os afetos que se referem ao corpo e à mente, simultaneamente: são os propriamente psicofísicos, que têm “uma realidade psicofísica, sendo objeto de um discurso misto exprimindo a mente e o corpo em paridade.” (JAQUET 1, p.168). Dentro dos psicofísicos, estão os três afetos originários – desejo, tristeza e alegria – e alguns derivados, como o orgulho, a humildade e o amor a Deus. Depois, há os afetos propriamente corporais e Espinosa põe a carícia, a hilaridade, a dor e melancolia como afetos corporais também porque eles “têm um impacto sobre a potência de agir e a fazem variar” (JAQUET 1, p.172). Além destes há também o fastio e o tédio. Por fim, há os afetos mentais. Chantal Jaquet elenca o amor intelectual de Deus, a glória, o arrependimento e a saudade como afetos propriamente mentais.
Diz Espinosa que “Se uma coisa aumenta ou diminui, estimula ou refreia a potência de agir do nosso corpo, a ideia dessa coisa aumenta ou diminui, estimula ou refreia a potência de pensar de nossa mente.” (SPINOZA 2, III, prop.11). Desta forma, todo discurso sobre os afetos, sejam eles mentais ou corporais, é “de essência psicofísica.” (JAQUET 1, p.176). Apesar de a ordem das ideias ser a mesma que a ordem das coisas, nem todo afeto concerne à mente e ao corpo da mesma maneira. Isso remete à tese de Chantal Jaquet de que o monismo espinosano deve ser concebido como igualdade de potência e não paralelismo. “O corpo e a mente são apreendidos ao mesmo tempo sem ter necessariamente o mesmo tempo” (JAQUET 1, p.181, grifo da autora). Por isso o discurso sobre os afetos é sempre misto, nunca é só corporal nem só mental.
Desta forma Espinosa “convida a romper com uma concepção simplista da igualdade entre a potência de pensar e de agir que faria dela a resultante de uma atividade análoga no corpo e na mente ou o reflexo idêntico do que se passa em cada um dos objetos.” (JAQUET 1, p.183). Isto quer dizer, a título de conclusão, que a doutrina da expressão de Espinosa não supõe paralelismo nem causalidade recíprocas, mas, sim, igualdade, que é antes de tudo uma igualdade de potência; e esta é a tese central de Chantal Jaquet. A mente tenta sempre ver paralelismo e causalidade recíproca entre o corpo e a mente, mas, na verdade, eles não existem, a não ser como pensamentos. A igualdade da potência de pensar e de agir não elimina, contudo, as desigualdades de expressão da mente e do corpo, porque eles exprimem atributos que são diferentes (pensamento e extensão, donde a desigualdade expressiva), mas que constituem a essência de uma mesma Substância (donde a igualdade de potência).
“Conclusão”
É importante ressaltar que o livro da filósofa francesa Chantal Jacquet está em diálogo com o livro do neurocientista português António Damásio Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos . Nesta sua obra, o neurocientista resgata o filósofo holandês para justificar a atualidade de seu monismo sobre o dualismo cartesiano dentro da neurociência contemporânea.
No entanto, ao ver de Chantal Jaquet, o neurocientista português “não está sempre à altura de seu modelo e carece às vezes de rigor, porque continua a falar de emergência da mente a partir do corpo, de passagem do neural ao mental.” (JAQUET 1, p.188). Esta crítica da filósofa francesa se confirma no trecho onde o próprio Damásio diz que “é preciso compreender que a mente emerge de um cérebro ou de um cérebro situado no corpo propriamente dito com o qual ela interage; que, devido à mediação do cérebro, a mente tem por fundamento o corpo propriamente dito.” (DAMÁSIO 3, p.91). Para Jaquet, Damásio tende a pensar a mente em termos de emergência a partir do corpo, quer dizer, do cérebro. Para Damásio o cérebro causaria a mente – a alma, a consciência, o pensamento – porque ele pensa a relação psicofísica em termos de paralelismo. António Damásio erra ao apresentar a unidade do corpo e da mente “sob a forma de um paralelismo.” (JAQUET 1, p.189). Do estudo dos afetos em Espinosa, Chantal Jaquet extrai duas lições. A primeira lição é “banir toda busca de interação, de influência ou de causalidade recíproca entre a mente e o corpo para pensar unicamente em termos de correspondência e de correlação.” (JAQUET 1, p.187). A segunda lição é que “o modelo espinosista da união psicofísica não repousa sobre um paralelismo, mas sobre uma igualdade.” (JAQUET 1, p.188). Dessas duas lições sobre o estudo dos afetos conclui-se que há uma identidade entre a ordem e a conexão das ideias e das coisas; mas que tal identidade não “deve mascarar a diferença de expressão própria aos modos de cada atributo.” (JAQUET 1, p.190).
Referências
- JAQUET, Chantal. A unidade do corpo e da mente: afetos, ações e paixões em Espinosa. Tradução Marcos Ferreira de Paula e Luís César Guimarães Oliva. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.
- SPINOZA, Benedictus de. Ética . Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.
- DAMÁSIO, António. Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. São Paulo: Companhia das letras, 2004.
Bruno D ’Ambros – Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Catarina.