Baluartes da Fé e da Disciplina. O enlace entre a Inquisição e os bispos em Portugal (1536-1759) – PAIVA (LH)

PAIVA, José Pedro. Baluartes da Fé e da Disciplina. O enlace entre a Inquisição e os bispos em Portugal (1536-1759). Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011. Resenha de: XAVIER, Ângela Barreto. Ler História, n.61, p.189-194, 2011.

1 O título deste livro propõe uma tese que é, por assim dizer, contraintuitiva: a de que se verificou um enlace – uma aliança? – entre os bispos e a inquisição no processo de controlo da ortodoxia (e, em concreto, de repressão da heresia) e de disciplinamento social que se pode identificar no Portugal da época moderna. Para quem defende a natureza jurisdicional da monarquia portuguesa, na qual cada «corpo» da respublica era demasiado ciente das suas prerrogativas, a ideia de um enlace entre inquisição e bispos não é, de facto, evidente. Partindo do conceito de campo forjado por Pierre Bourdieu, é o próprio José Pedro Paiva a lembrar, aliás, nas páginas introdutórias do livro, e cito, que a Igreja era «uma instituição heterogénea, um corpo pluricelular, formada por diversos grupos e uma multidão de indivíduos. Estes possuíam uma cultura heteróclita, uma formação moral e princípios religiosos com alguma margem de diferenciação» (p. 8). E é o próprio autor a afirmar que o surgimento da Inquisição em Portugal, em 1536, tinha originado uma situação inédita, obrigando a uma reorganização dos equilíbrios de poder no campo religioso.

2 Apesar disso – e é sobre esta situação improvável que o livro incide – a história da relação entre os bispos e a inquisição, dois incontornáveis protagonistas do campo religioso, seria, até 1745, uma história feliz, mais feita «de laços do que de limites» (p. 188). Contrapondo-se aos que têm atribuído quase exclusivamente ao Santo Oficio a missão de velar pela defesa da ortodoxia católica no Portugal da época moderna, José Pedro Paiva apresenta, ao invés, uma paisagem na qual esta missão era executada por esses dois baluartes da fé que eram o episcopado e o Santo Ofício.

3 Mas antes de passar aos conteúdos do livro, creio que, para o melhor podermos apreciar, ele deve ser situado, em primeiro lugar, na produção historiográfica do próprio autor. Os primeiros dois livros de José Pedro Paiva – Práticas e crenças mágicas. O medo e a necessidade dos mágicos na diocese de Coimbra (1650-1740) (Coimbra: Livraria Minerva, 1992), e Bruxaria e superstição num país sem caça às bruxas: 1600-1774 (Lisboa: Editorial Notícias, 1997) – incidiram, como é sabido, sobre temas sobre os quais pouco ou nada se escrevera em Portugal, mas que eram amplamente discutidos no contexto internacional. Dessa forma, José Pedro Paiva deu um contributo muito importante para o entendimento das práticas inquisitoriais a este nível, mas também, para um conhecimento mais aprofundado da sociedade portuguesa da época e, nomeadamente, a sua religiosidade. Com os capítulos de sua autoria publicados no 2º volume da História Religiosa de Portugal, os quais providenciam um excelente mapeamento de muitos aspetos da história institucional da Igreja da época moderna, nomeadamente na sua relação com o poder político, começa a configurar-se, com alguma visibilidade, aquilo que se poderia apelidar de projeto sistemático – para o qual os anteriores livros acabam por concorrer. Com a publicação, em 2006, de Os Bispos de Portugal e do Império – 1495-1777 (Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra), de Os Baluartes da Fé, em 2011, bem como de um outro projeto bibliográfico já na forja, parece tornar-se claro que José Pedro Paiva se constitui como um dos mais importantes renovadores da história portuguesa da época moderna – nomeadamente da sua história religiosa –, recolocando o fenómeno religioso, as instituições e os agentes religiosos, numa história mais geral, e, em concreto, na história política, da qual foram muitas vezes expulsos.

4 Este output historiográfico torna cada vez mais visível, importa dizer, a impossibilidade de se fazer uma boa história política, social, cultural, da época moderna, sem atender ao papel estrutural que a dimensão religiosa nela teve. Note-se, ainda, que este revisionismo historiográfico que em Portugal tem contributos essenciais de outros autores – Francisco Bethencourt, José Adriano Freitas de Carvalho, Maria de Lurdes Correia Fernandes, Federico Palomo, e mais recentemente Giuseppe Marcocci –, dialoga diretamente com o que de melhor se faz, a este nível, internacionalmente.

5 Dito isto, passe-se, então, a uma descrição muito sucinta do livro que se desenvolve em cinco longos capítulos.

6 Os primeiros dois capítulos privilegiam a dimensão institucional do diálogo entre bispos e Inquisição e o modo com ambos colaboraram na repressão da heresia.

7 A fundação da Inquisição, as alterações que necessariamente comportou para o campo religioso, potenciadas pelas estratégias desenvolvidas (com frequente proteção do poder político, nomeadamente do cardeal D. Henrique, e do poder papal) no sentido de aumentar as suas competências sobre matérias de jurisdição da fé, colidindo com áreas tradicionalmente reservadas à esfera episcopal (nomeadamente em matéria de confissão, de repressão das heresias, e até mesmo de censura), constituem as temáticas abordadas no primeiro capítulo.

8 Apesar das áreas de inevitável colisão entre ambos, e apesar da complexidade do processo, o autor mostra que o ajuste do episcopado em relação à nova situação jurisdicional, ocorreu desde muito cedo – a começar pelos bispos diretamente envolvidos no processo de fundação da Inquisição, ou nos que foram inquisidores, e continuando na «estrutura estável disseminada por todo o reino, que o esquadrinhava até ao nível da mais pequena paróquia» que os bispos dispunham, cujos agentes – párocos, vigários, curas –, e dispositivos – as visitas pastorais – reuniam um caudal de informação que desembocava na Inquisição, sugerindo, inclusive, matérias nas quais esta podia e devia intervir. Em suma, esse ajuste de objetivos permitiu que entre bispos e Inquisição houvesse uma relação de «grande harmonia, estreita colaboração e profunda complementaridade» (p. 140), relação que é atestada por um conjunto de documentação que Paiva utiliza de forma convincente.

9 Os dois capítulos seguintes incidem sobre «o enervamento de matriz ideológica» que impregnava a boa relação entre as duas instituições – objeto do terceiro capítulo –, o qual melhor se entende no contexto dos processos de disciplinamento social que caracterizaram os «estados confessionais» da época moderna, analisados no quarto capítulo.

10 Esse enervamento de matriz ideológica tinha no mal-estar em relação aos cristãos-novos o principal pólo unificador, expresso em sermonários, tratadística e catecismos. A sintonia ideológica de que nos fala José Pedro Paiva, fazia tanto mais sentido quanto era estruturante a convicção de que os cristãos-novos eram um perigo para a coesão da respublica, constituindo-se, por isso mesmo, como um obstáculo ao próprio poder político. Daí a relevância da aliança entre a coroa e a igreja – da qual a relação entre bispos e inquisição se constituía como mais uma, e muito importante, declinação.

11 No capítulo seguinte, uma excelente introdução à operatividade do conceito de «disciplinamento social» para analisar os processos políticos e sociais que ocorreram na época moderna, e o papel que bispos e inquisição aí tiveram, Paiva mostra que, e cito, «bispos e inquisição vigiaram espaços diferenciados, concentraram a atuação sobre estratos de populações distintos, puniram crenças religiosas e comportamentos de diferente tipo (…)» – apesar de os bispos terem julgado mais gente e de, no geral, terem uma severidade punitiva bastante menor, marcados pelo seu ethos de pastores, revelado, aliás, na opção por «estratégias mais pedagógicas, educativas e doces» (p. 292), em contraponto com a «severa e pública repressão das heresias» que caracterizava o trabalho dos «vigias», i.e., dos inquisidores.

12 Estes quatro capítulos visam demonstrar a tese central do livro: de que a relação entre estas duas instituições foi feita, nestes dois séculos, mais de laços do que de limites. Contudo, e de modo a complexificar a paisagem, o autor dirige a sua objetiva, no capítulo final, para dois pontos distintos: para o lado, e para o interior.

13 Na primeira parte do capítulo final, compara as experiências antes descritas, com os casos espanhol e italiano, para reiterar a ideia – antes enunciada – que a experiência portuguesa, fazendo jus ao tradicional provérbio dos «brandos costumes», tinha sido muito mais pacífica do que as vizinhas. Isto é, o «corporativismo institucional» – se é legítimo falar assim – seria muito maior naqueles territórios do que em Portugal, onde, no final de contas, as próprias instituições de disciplinamento eram disciplinadas…

14 Na segunda parte deste capítulo mostra que esse disciplinamento de ambas instituições – e repare-se que no livro fala-se, quase sempre de bispos e de Inquisição, e raramente de bispos e inquisidores – não silenciava posições dissonantes. Como em qualquer bom e duradoiro enlace, também no casamento entre o Santo Oficio e os bispos «existiram desconfianças, receios, problemas e até discórdias» (p. 322), e grandes conflitos. Ou seja, a harmonia entre as duas instituições também se construiu tensionalmente, no século XVIII, com a querela que opôs Inácio de Santa Teresa à Inquisição, prolongada na questão do sigilismo, cavar-se-ia um fosso inultrapassável entre Inquisição e bispos, os quais deixariam de se submeter, doravante, à hegemonia entretanto alcançada pela Inquisição. Ao mesmo tempo que se anunciavam os novos ventos da secularização. Ou seja, o enlace que caracterizara dois séculos de relação e que, para muitos, explicava esse Portugal «limpo de scismas e erros» (p.427) perderia agora a vitalidade que o caracterizara, nele passando a medrar, nas palavras do autor, «mais limites do que laços» (p. 418). Intui-se, pela leitura do livro, que no fim desse casamento vislumbrava-se, também, o fim de um sistema, cujos primeiros golpes surgiriam, logo, com a chegada do Marquês de Pombal ao poder.

15 Para além das inúmeras virtualidades que o livro encerra que se podem declinar das observações anteriores, e de outras que, por economia de espaço, não podem aqui ser desenvolvidas, algumas opções de caráter metodológico também devem ser salientadas. Desde logo, a sua amplitude geográfica e o jogo de escalas que permite, pois aí se contam, simultaneamente, uma história macro, uma narrativa maior – e não apenas portuguesa –, e várias histórias micro (e aí se pressente a lição de Ginzburg) que, de uma ou de outra forma, para ela concorrem. Por exemplo, ficamos a conhecer mais sobre a densidade e variabilidade das vidas no interior do reino, em vez de nos ficarmos por alusões ao que se passava nas grandes cidades, i.e., as cidades onde havia Inquisição. Esse pulsar da vida das gentes de Viseu até Évora, e daqui a Goa ou a Lisboa, é, a meu ver, muito enriquecedor. Ou seja, José Pedro Paiva consegue apresentar um elegante equilíbrio para as difíceis articulações entre o macro e o micro, entre estrutura e agency, entre análise e processo, o que, como é sabido, é extremamente difícil de alcançar.

16 Esta verificação convida a uma segunda observação: a dimensão sociológica (e a marca de Pierre Bourdieu é explícita) e antropológica de trabalhos anteriores do José Pedro Paiva, também aqui está bem presente. Não só na identificação de regularidades grupais (a Inquisição como bloco, os bispos), mas também no mapeamento das minudências da vida concreta, e ao modo como estas deram textura ao processo histórico, não se deixando domesticar completamente (não se deixam disciplinar?), pelo olhar, pelos modelos teóricos, pela escrita do historiador.

17 Ainda assim, a autora destas páginas não ficou totalmente convencida com o argumento desenvolvido por José Pedro Paiva. A meu ver, os Baluartes da Fé e da Disciplina permitem uma contraleitura. I.e., uma leitura igualmente densa da narrativa aí contada – assente na mesma documentação e nos muitos casos elencados pelo autor – pode suscitar mais dúvidas em relação à «grande harmonia, estreita colaboração e profunda complementaridade» (p. 140), que, segundo José Pedro Paiva, teria caracterizado a relação entre bispos e Inquisição nos séculos XVI e XVII, e para além das ambiguidades referidas pelo próprio. O exemplo de D. Gaspar de Leão, primeiro arcebispo de Goa, a quem coube estabelecer a Inquisição naqueles lugares é, a esse respeito, sintomático. A carta pastoral com que abre a tradução do tratado de Jerónimo de Santa Fé, publicado em Goa em 1565, expressa uma tendência, presente em vários outros prelados em optar pelas vias doces em vez de escolher as vias repressivas que a Inquisição corporizava na relação entre cristãos e judeus e/ou cristãos-novos. Mas outras situações, também exploradas por José Pedro Paiva, como as dificuldades dos anos iniciais, os conflitos de precedências no âmbito cerimonial, ou as discórdias mais substantivas às quais o autor dedica várias dezenas de páginas, podem também revelar que não foi com bons olhos que os bispos assistiram à implantação da Inquisição, e às suas tentativas desta – e dos seus inquisidores – em ser reconhecida como a principal instituição eclesiástica portuguesa. Mas estas minhas dúvidas são, também elas, ancoradas em posicionamentos historiográficos igualmente explícitos, os quais formatam, inevitavelmente, a interpretação deste livro incontornável para quem quiser compreender os processos políticos, institucionais, sociais e culturais do Portugal da época moderna, pelo que convido o leitor a, por si só, inquirir da natureza da relação entre estes dois baluartes da fé – bispos e inquisidores – e avaliar as suas características.

Ângela Barreto Xavier – ICS – Universidade de Lisboa

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Bruxaria e Superstição num país sem caça às bruxas / José P. Paiva

As práticas mágicas no Brasil foram até agora bem pouco exploradas, o que não acontece com relação à Europa, onde o tema tem sido insistentemente trabalhado. Uma provável razão para isso pode ser encontrada no texto do Professor Pedro Paiva, da Universidade de Coimbra, que parte de uma problemática interessante: ele quer saber o porquê de em Portugal, apesar de encontrarem-se reunidas todas as condições para a deflagração de uma violenta “caça às bruxas”, esta efetivamente não ocorreu. C) problema colocado é ousado e interessante, sobretudo porque inverte expectativas alimentadas por tantos trabalhos historiográficos que enfatizam a violência deste processo em várias partes da Europa.

O estudo parte da constatação de que em Portugal houve “dezenas de milhar” de denúncias de práticas mágicas e supersticiosas consideradas ilícitas; que estas eram muito semelhantes às perseguidas no resto da Europa; que os Tribunais inquisitoriais, episcopais e régios tinham competência e meios para perseguir seus agentes (feiticeiros, bruxos, curandeiros); que os doutos conheciam bem a doutrina do diabolismo que inspirou grande parte da repressão às bruxas em outros contextos e que estes eram considerados os pré-requisitos necessários para que a eclosão da repressão aos agentes mágicos ocorresse, como de fato ocorreu na Europa Central e do Norte entre os inícios do século XVI e final do XVII.

Como o Brasil, à época, era simplesmente a América portuguesa, as respostas encontradas por ele para a brandura da repressão às práticas mágicas servem também para explicar o caso deste, apesar das peculiaridades da situação colonial.

Para ele, a brandura da repressão portuguesa pode ser localizada na confluência de uma série de fatores, dentre eles, a formação intelectual conservadora, de cunho Tomista, predominante ali, que não concedia ao diabo a relevância dada por outras tradições teológicas e que resultava em uma menor difusão e utilização dos tratados de demonologia. Este elemento seria responsável, porém, pela manutenção da forte crença em poderes sobrenaturais por um tempo maior, pois, até meados do século XVIII, não permitiu a penetração do pensamento científico, responsável pela consolidação de uma doutrina totalmente cética em relação à existência de fenômenos como a bruxaria.

Outro fator ao qual Paiva atribui importância seria o poder e solidez da Igreja, pois, em Portugal, esta não teria passado pelas crises vividas em quase toda a Europa durante o Antigo Regime. A tradição antijudaica também seria um fator explicativo, pois a canalização das atenções do principal agente repressor das práticas mágicas para as atividades dos cristãos novos teria reduzido a severidade para com estas. Ele realça ainda o esforço de evangelização, principalmente após Trento, voltado para as culturas populares. A Igreja portuguesa passou a editar com freqüência os catecismos, a colocar em prática as visitas pastorais recomendadas, a realizar missões, a estimular a confissão e a se preocupar mais com as prédicas dos sermões. Tudo isso passou a ser feito em um ritmo cada vez mais acelerado, além de passarem a ler, durante as missas, as normas inscritas nas Constituições diocesanas. Enfim, encetaram uma vasta campanha visando atender às recomendações feitas pelo Concilio de Trento.

O último aspecto considerado por Paiva como importante para explicar a brandura da repressão portuguesa, se localizava não nos inquisidores, mas nos próprios acusados, pois, segundo ele, para os rústicos era inconcebível realizar um pacto com o diabo e renegar o seu Deus, dois dos elementos indispensáveis à condenação à pena capital: a fogueira. Sua explicação para isto é de que a crença em Deus e a aversão ao Diabo estariam profundamente enraizadas na crença popular.

Paiva afirma que apesar de não ter havido caça às bruxas em Portugal, isso não significa que não tenha ocorrido “um controlo dos agentes de práticas mágicas”, resultando num número elevado de condenações. Para ele, a Igreja e a Inquisição, que se ocuparam destas questões, não as colocaram em posição central e as reflexões mais profundas produzidas sobre o tema versam sobre a doutrina do pacto diabólico, que em última instância, definia se a ação era herética ou não. A heresia era o que interessava e que definia a gravidade do fato.

Analisando o relativo ceticismo das elites intelectuais portuguesas ele diz acreditar que este “decorria de uma interpretação das limitações do poder do Diabo face à omnipotência divina” ao que “Juntava-se uma sensação de proteção divina e eclesial, face aos poderes do diabo e de seus aliados”. A conseqüência desta postura foi não ter surgido em meio às elites portuguesas reações de pânico e pavor tão comuns em outros países, o que ele atribui à confiança dos fiéis nos remédios que a Igreja disponibilizava para o combate destes males.

Um diferencial entre o que ocorria na Metrópole e o que se passava na colônia americana é que a cristianização ali já tinha alcançado um patamar de aceitação bastante elevado, apesar da imperfeição da catequese realizada até então.

A inexistência de luta entre duas concepções cristãs — popular e erudita – não exigiu um aprofundamento da pregação contra o demônio, coisa, aliás, colocada em prática de maneira muito freqüente na colônia para atemorizar os negros e índios e induzi-los a buscar remédio para sua salvação na doutrina da Igreja.

Apesar da perseguição aos mágicos não ter sido colocada como prioridade durante os séculos XVI e XVII, não tendo gerado, portanto, uma corrente persecutória muito acirrada em direção a eles, o assunto foi colocado sistematicamente em discussão pelos Editos da Fé. Esta colocação se devia à situação vivida em outros locais onde a insegurança foi maior devido à maior penetração da reforma protestante, gerando uma intolerância e uma severidade sem limites e onde os soberanos encontravam resistências à implantação de seu poder.

A crença na existência e presença de bruxos, feiticeiros, curandeiros e supersticiosos, em Portugal, é comprovada pelo número de denunciados por essas práticas ao Santo Ofício, indicando a incidência da mentalidade ligada ao sobrenatural e às explicações mágicas do mundo vigentes no restante da Europa e territórios freqüentados pelos europeus. O que muda é a relaüva tranqüilidade com que as autoridades reagiam a elas, deixando sem investigação e castigo uma parte considerável das pessoas denunciadas.

Apesar da brandura, lembra Paiva, alguns momentos de pico podem ser observados com relação à repressão às práticas mágicas em Portugal. Observa que a partir de 1620 passa a haver um interesse maior por estes casos, resultando em uma elevação do ritmo de repressão, mas que após a Restauração ele teria sido estancado.

Aponta ainda dois outros momentos de intensificação: um instalado a partir de 1680 e outro a partir de 1710, este mais voltado para a repressão de curas supersticiosas. De acordo com os dados de sua pesquisa (ele trabalhou o período compreendido entre 1600 e 1774), a maior parte dos mágicos processados pelo Santo Ofício era de origem rural e as principais acusações que pesavam sobre eles eram de práticas curativas e, em menor escala, de malefícios. Os de origem urbana, minoritários, eram normalmente acusados de inclinar vontades e adivinhação.

Em decorrência destes dados o autor se lançou à análise microscópica de uma paróquia rural: São Martinho do Bispo, passando pelo levantamento de dados geográficos e econômicos da localidade, por uma tentativa de reconstrução do cotidiano daquela aldeia e fechando com uma tentativa de análise da dinâmica de uma acusação de bruxaria. Apesar de ser um capítulo que se propunha a dar uma idéia do padrão dos locais onde casos de bruxaria poderiam ter eclodido, não se localiza nele o ponto forte do livro. Seu maior mérito é o de encontrar uma explicação plausível para a convivência relativamente pacífica, ocorrida em Port ugal, entre uma legislação altamente repressiva e uma ação relativamente benevolente de todas as instâncias que possuíam foro sobre a questão – inquisitorial, eclesiástica e real — com relação aos agentes de práticas mágicas.

Helen Ulhôa Pimentel – Centro Universitário de Brasília (UniCEUB).


PAIVA, José Pedro. Bruxaria e Superstição num país sem caça às bruxas. 1600- 1774. 2a ed. Lisboa: Notícias, 2002, 397p. Resenha de: PIMENTEL, Helen Ulhôa. Textos de História, Brasília, v.14, n.1/2, 2006. Acessar publicação original. [IF]