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Paisagem e memória entre Celtas e Germanos / Brathair / 2019
Paisagem e Natureza são temas que se tornaram largamente difundidos nas pesquisas em História, Arqueologia, Letras e Arte, sobretudo nos últimos vinte anos. Deixando de ser entendida apenas como um mero cenário ou “pano de fundo” para a existência humana, a paisagem passou ser entendida como construto cultural e arena central da vida social. Hoje, entendemos que paisagem é mais do que a “Natureza” ou “o mundo lá fora” em oposição à cultura e ao nosso ambiente construído. Sabemos que a paisagem é produto da interação entre seres humanos e ambientes, ou seja, é construída pela prática e experiência de comunidades e indivíduos (cf. Ingold 1993, 1996, 1998). Os atuais estudos da paisagem estão aliados ao que costumamos designar como “nova virada espacial” (cf. Bodenhamer 2010), que trazem a reflexão sobre o espaço para o centro de análise, visando compreender os processos não apenas de construção, mas igualmente de alteração da paisagem pelas formas de sociabilidade, práticas cotidianas e pela historicidade da vivência local e regional. São pesquisas que buscam, portanto, entender as articulações entre paisagens imaginadas (suas concepções, imagens e representações) e paisagens vividas (sua morfologia, ambiente construído e formas de monumentalização). É na interação dessas experiências do espaço e da paisagem que temos os usos diferenciados e processos de apropriação, que tanto nos têm interessado.
Nesse dossiê da revista Brathair, trazemos ao público brasileiro algumas dessas discussões atuais sobre os temas de paisagem e natureza aplicadas ao estudo das sociedades celtas e germânicas a partir da cultura material, dos registros históricos, assim como dos mitos e lendas dessas sociedades. Para elas, a relação entre os indivíduos e ambiente destaca-se não só como um modo de vida, uma preocupação e compreensão com a terra e o meio-ambiente em si, como largamente têm mostrado os pesquisadores de correntes ambientalistas, mas também, e sobretudo, na produção e alteração de paisagens mentais e materiais.
Aqui, esses debates estão organizados a partir de três eixos temáticos, a saber: 1) Paisagens e visões literárias; 2) Território, Etnogênese e Mitos de Origem; e 3) Construindo paisagens materiais.
No primeiro eixo, abrimos essa edição com o texto do saudoso docente da Universidade Federal Fluminense (UFF), Ciro Flammarion Cardoso† (1942-2013), que traz uma brilhante contribuição para a percepção da relação entre paisagem e religião. Nesse artigo, o autor analisa aspectos da religião nórdica na Islândia através de livros de assentamentos (Landnamabók) em suas diferentes versões e em algumas sagas, incluindo aquela que se refere a Olaf Tryggvason (contida no Heimskringla de Snorri Sturluson), abordando a relação da paisagem com as divindades locais. Fruto de sua conferência de encerramento no V Simpósio Nacional e IV Internacional de Estudos Celtas e Germânicos, ocorrido no ano de 2012, essa foi uma de suas últimas participações em eventos e agradecemos à sua família a gentileza de nos permitir a publicação desse trabalho.
Também avançando nas reflexões sobre religião e paisagem, Elva Johston, professora do University College de Dublin (UCD), analisa as relações entre paisagem, História e Literatura na obra Navigatio Sancti Brendanni Abbatis (A Viagem de São Brandão). A narrativa é um conto de viagem, abordando um percurso imaginário de uma personagem real, São Brandão, abade de Clonfert no século VI, que, de acordo com a narrativa mítica do século X teria chegado até o Paraíso Terrestre. O santo neste relato vai e volta ao mesmo ponto de partida. A autora analisa a relação da narrativa com diversos tipos de paisagem – reais, monásticas, liminares, entre outras, além de vincular esta viagem com o conceito de peregrinatio.
Seguindo em linha semelhante, mas atentando para paisagens imaginadas, Adriana Zierer, professora da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), analisa os espaços míticos cristãos, relacionados ao Inferno e Paraíso e à paisagem numa obra composta por um monge irlandês chamado Marcus, intitulada Visio Tnugdali, bem como a sua circulação no período medieval. A obra destaca a passagem de um cavaleiro pecador, após a sua morte aparente, inicialmente por lugares infernais, onde sofre por seus pecados e depois por espaços paradisíacos, com o objetivo de levar ao arrependimento e à salvação. Destaca ainda o papel dos monges nas construções de paisagens imaginárias acerca do Além Medieval e a figura de heróis irlandeses míticos, como Fergus e Connal, diabolizados no relato, guardando a imensa mandíbula de um monstro (Boca do Inferno).
Já do ponto de vista da Geografia Humanista Cultural aplicada à literatura contemporânea, Márcia Manir Feitosa, da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), analisa sob o romance Um deus passeando pela brisa da tarde (1994), de Mário Carvalho. Este, considerado uma obra-prima do autor, transporta o leitor da Contemporaneidade para paisagens da Antiguidade Clássica, na Antiga Lusitânia do século II a.C. A narrativa discute os conflitos do protagonista Lúcio com o declínio dos valores da Roma Antiga e a ascensão da cultura cristã. Aqui, a autora analisa a paisagem aliada às concepções do personagem-narrador sob a ótica dos estudos literários.
No segundo eixo, Território, Etnogênese e Mitos de Origem, Vinícius C. D. Araujo, da Universidade Federal de Montes Claros (UNIMONTES), discute o mito de origem (origo gente) dos saxônios no livro 1 da Res gestae Saxonicae escrita pelo monge Widukind de Corvey (967- 74), buscando estabelecer as origens nobres deste grupo e o seu papel na ocupação das terras com o objetivo de legitimar inicialmente os saxônios, bem como, suas conexões com a dinastia Otônida e a legitimação da da monarquia imperial germânica em períodos subsequentes.
Já Elton Medeiros, docente do Centro Universitário Sumaré (SP), analisa a origem dos saxões na obra Historia Ecclesiastica da Gentis Anglorum, de Beda. Esta obra produzida no século VIII foi retomada por Alfredo, o Grande, em fins do século IX, o qual, na sua luta por afirmação contra os escandinavos e fortalecimento do território de Wessex, buscou inspiração espiritual em mitos de origem. Inspirado nas obras de Beda e em outras, defendia que os saxões eram descendentes dos hebreus e os reis do passado germânico estavam associados a uma linhagem sagrada.
Em contraste, João Lupi, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), traz uma abordagem do ponto de vista da Ciência da Religião para o estudo da mística e do misticismo na Renânia medieval. Para o autor, o idealismo germânico não apenas se fundamenta em embates contra a hierarquia eclesiástica, mas também em uma nova concepção da Divindade.
No último eixo, abordando a construção de paisagens a partir da cultura material, Maria Isabel D’Agostino Fleming e Silvana Trombetta, ambas vinculadas ao Laboratório de Arqueologia Romano-Provincial (LARP) do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da Universidade de São Paulo (USP) vêm pensar o caso da Península Ibérica. Enquanto, Fleming (fundadora do LARP) faz um balanço do debate peninsular e de suas implicações para a construção do “céltico”, Trombetta empreende uma análise dos enterramentos entre celtas e celtiberos, analisando a inscrição da memória na paisagem a partir das práticas funerárias.
Para além do dossiê, essa edição conta ainda com dois artigos livres, da autoria de Maria Izabel Oliveira (UFMA) sobre o pensamento do jesuíta Antônio Vieira sobre a escravidão no Brasil e de Carlos Silva (Faculdade de Letras da Universidade do Porto), acerca do substrato celta nas línguas hispânicas. Para auxiliar os pesquisadores iniciantes e experientes a edição conta com duas traduções de documentos textuais, Tiago Quintana, vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), apresenta a tradução de A Vingança de Amlet, registrada por escrito no século XIII, mas fruto da tradição oral dos povos nórdicos, provável ancestral de Hamlet, de Shakespeare, enquanto Cristiano Couto, doutor em História pela UFRGS, apresenta uma parte da tradução de uma importante obra da tradição mitológica irlandesa Táin Bó Cuailnge.
Por fim, essa edição é concluída com a resenha de Elisângela Morais (PPGHIS / UFMA / CAPES) sobre o livro Viagens e Espaços Imaginários na Idade Média, organizado pela docente Vânia Fróes e outros pesquisadores, que de certa forma está associado ao tema “paisagem” na medida em que os viajantes se deslocavam por novos espaços construindo novas memórias e paisagens reais e imaginárias.
Referências
BODENHAMER, D.J. The Potential of Spatial Humanities. In: BODENHAMER, D.J.; CORRIGAN, J.; HARRIS, T.M. (eds.) The Spatial Humanities: GIS and the Future of Humanities Scholarship. Bloomington / Indianápolis: Indiana University Press, 2010, pp. 14-30.
INGOLD, T. The temporality of the landscape. World Archaeology, 25, 1993, pp. 152–74.
INGOLD, T. Culture, nature, environment: steps to an ecology of life. In: CARTLEDGE, B. (Ed.). Mind, Brain and the Environment. The Linacre Lectures 1995-6. Oxford: Oxford University Press, 1998, pp. 158–80.
Adriene Baron Tacla – Docente IH / UFF / NEREIDA. E-mail: adrienebt@yahoo.com.br
Adriana Zierer – Docente PPGHIST-UEMA Docente PPGHIS-UFMA. E-mail: adrianazierer@gmail.com
TACLA, Adriene Baron; ZIERER, Adriana. Editorial. Brathair, São Luís, v.19, n.1, 2019. Acessar publicação original [DR]