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O sabá do sertão: feiticeiras, demônios e jesuítas no Piauí colonial (1750-1758) | Carolina Rocha Silva
A obra, de autoria da historiadora Carolina Rocha Silva, sob o título de “O sabá do sertão: feiticeiras, demônios e jesuítas no Piauí colonial (1750-1758)” tem por eixo central confissões da prática de magia, por duas escravas, no sertão do Piauí entre os anos 1750 e 1758, ou seja, na época em que o Brasil era colônia de Portugal, a América Portuguesa. A obra foi escrita como dissertação de mestrado da autora e, posteriormente, foi transformada em livro. É dividido em quatro capítulos que tratam, principalmente, do relacionamento da religião frente à magia – e da Santa Inquisição, em diferentes âmbitos e períodos, na seguinte ordem de abordagem: mundial/europeu; do reino de Portugal; da América Portuguesa; e do Piauí colonial.
O capítulo I, Religião, magia e demonologia, aborda, em especial a dicotomia existente na Europa do fim da Idade Média e início da Idade Moderna. Período este marcado por doenças, revoltas, guerras religiosas e políticas, em que era preciso encontrar um responsável por tantas mazelas. A Igreja Católica e os governos europeus visualizaram o Diabo, figura antônima e complementar de Deus, como o grande inimigo da sociedade, capaz de alterar a ordem natural e causar danos à população, como a impotência da medicina da época, por meio de seus agentes. Os grupos divergentes da igreja, os não-católicos, seriam esses agentes do Príncipe das Trevas; e os fiéis e eclesiásticos, os representantes de Deus. A Igreja, intérprete oficial dos atos divinos, passou, entre os séculos XIV e XVII, a espalhar a ideia de que as mazelas eram castigos de Deus pelos pecados das pessoas (como as práticas pagãs por católicos batizados) e que, por isso, o Diabo havia ganhado mais força e poder para quase tudo.
A Reforma Protestante (século XVI) atacou toda a magia, tanto popular como eclesiástica (milagres por Santos e beatos, e a utilização de elementos sagrados) e apontou um novo caminho: o da autoajuda com orações a Deus e foco no trabalho humano e na descoberta de novas tecnologias. O mundo moderno se tornou o mundo encantado, onde o sobrenatural era comum, havia magos curandeiros, videntes, adivinhos, feiticeiros.
O Diabo católico inspirou teses de teólogos, juízes, filósofos, advogados e religiosos. A primeira obra de Demonologia, o Malleus Malleficarum, de 1486, abriu espaço para esta “ciência” na Europa, que foi usada como base para legislações e a teologia na caça às bruxas. O livro, que era uma verdadeira enciclopédia de bruxas, depreciou o sexo feminino e apontou-o como mais suscetível ao controle do demônio, como também o fez médicos e juristas, estes embasados em leis do direito romano. O Cristianismo, apesar de não ter originado o medo em relação às mulheres, o alimentou desde sempre – como fez com Eva, imperfeita, irracional e fraca, que introduziu o mal na terra ao comer o fruto, sendo a responsável por todas as desgraças desde então. Foram escritos, inclusive, manuais ensinando os padres a fugirem das tentações femininas.
A bruxaria, um crime inatingível/mental, impossível de ser provada era tida como deslealdade a Deus, já que as almas (propriedades de Deus) eram objeto de pactos diabólicos em troca de poderes, o que deveria ser revertido para que Ele não se vingasse da coletividade.
Os processos da Inquisição visavam a essa reversão. Os processos, seja em tribunais civis ou eclesiásticos (Estado e igreja unidos), eram escritos, secretos e arbitrários, os processados (iletrados e pobres, na maioria dos casos) não sabiam o motivo do julgamento, tampouco quem os havia denunciado. O processo era aberto especialmente quando da confissão, sendo que falta desta podia gerar penas ainda mais severas, caso o juiz considerasse o acusado uma pessoa falsa e dissimulada.
O crescimento numérico das obras de demonologia era proporcional a crença e, subsequente temor do povo, o que os impulsionava a denunciar. O conteúdo dos livros chegava ao público iletrado quando da leitura pública das sentenças condenatórias.
Além dos pactos, o mito do sabá (sabat), assembleia de feiticeiros, reuniões noturnas dos agentes do Diabo para a prática de infanticídio, canibalismo, metamorfose, orgias, blasfemação, voo das bruxas e abjuração dos sacramentos cristãos, tudo na presença de Lúcifer, também foi largamente difundido pela Europa.
Com o tempo, céticos apontaram a falta de provas e o medo da população diminuiu; as leis foram revogadas e a prática mágica deixou de ser delito. Historiadores, na tentativa de explicar o fenômeno da caça às bruxas, acreditam que tudo foi invenção da igreja; ou, como a própria autora, que foi resultado do encontro da cultura folclórica com a cultura erudita dos doutores. Independente disso, admitem que os processos inquisitoriais são importantes fontes para se entender a mentalidade da época.
O capítulo II, A “feitiçaria” em Portugal: prática e repressão, tem um título autoexplicativo. As feiticeiras lusitanas manipulavam atos e desejos, principalmente amorosos, além de executarem curas. Com a expansão ultramarina da Coroa, famílias frequentemente recorriam aos feiticeiros para encontrar parentes desaparecidos. A magia tinha regras, todo um sistema simbólico de tempo, espaço, dos próprios elementos utilizados e de números.
O sincretismo mágico-relogioso dos portugueses impediu uma forte tradição editorial centrada na bruxaria, o que não barrou o embasamento de legislações, tratados de teologia e medicina (existiam obras médicas dedicadas só à cura de doenças causadas por feitiços), manuais de confessores e afins, em literatura alheia.
Em Portugal, os poderes do Diabo eram limitados pela autoridade divina, aquele tinha apenas poderes de enganação e provocações sensoriais, que atingiam somente os pecadores; pensamentos influenciados por São Tomás de Aquino e Santo Agostinho. Havia um certo ceticismo quanto ao sabá europeu, à metamorfose. As confissões e denúncias costumavam seguir um mesmo padrão estrutural, sempre envolvendo um pacto com o Diabo.
Em 1492 os judeus, expulsos da Espanha, escolheram Portugal para viver. O rei, em 1497, emitiu um decreto régio convertendo todos os judeus e mouros e batizando-os involuntária e coletivamente, surgia, então, a figura do cristão-novo. O rei tentou protegê-los por vinte anos, porém o Tribunal do Santo Ofício fez cessar os privilégios: os cristãos-novos deveriam seguir somente a doutrina católica.
O Tribunal do Santo Ofício de Portugal concentrava suas forças nos ditos cristãos-novos (tradição antijudaica), este foi outro motivo pelo qual muitas das denúncias, inclusive as de colônias, por feitiçaria não se tornaram processos. Os processos eram caros e demorados, então os bens dos acusados por prática de magia eram confiscados para que cobrissem duas despesas na prisão.
A partir da segunda metade do século XVIII, com o Novo Regimento da Inquisição (1774) a descriminalização da bruxaria, as bruxas passaram a habitar somente a imaginação de pessoas rudes.
Além do mais, as testemunhas eram avaliadas e juramentadas. Caso fossem inimigas do acusado, a denúncia não era considerada verossímil; os réus podiam se defender, mesmo que minimamente; e a confissão espontânea poderia livrar da pena de morte, uma vez que o objetivo era o resgate das almas, e não assassinatos em série.
O capítulo III, As crenças mágico-religiosas na América Portuguesa: entre práticas e condenações, explana a história do Brasil colônia. Para os colonizadores, o demônio havia sido expulso da Europa para terras distantes, como a América. A igreja precisava enfrentá-lo com missões catequéticas, visando a cristianização e a ordenação das populações segundo padrões culturais e religiosos europeus.
As idolatrias dos índios significavam, pelo pensamento dicotômico europeu, a aliança daqueles com o Diabo, de forma que, para salvar as almas dos ameríndios, seus ídolos precisariam ser expulsos pelos missionários. O mesmo pensamento recaia sobre os escravos africanos. Ao mesmo tempo, entretanto, a natureza das terras americanas era vista como paraíso.
As culturas se adaptaram na América Portuguesa, os feiticeiros degradados do Reino e os demais portugueses, os negros trazidos da África, os ameríndios, todos compartilharam naturalmente seus elementos religiosos e acabaram contribuindo uns com os outros na criação de uma religiosidade híbrida. De sorte que, no Brasil, o Cristianismo tomou contornos ainda mais afetivos com a esfera divina. Um Deus frio e inacessível não seria útil para quem precisava sobreviver à escravidão ou ao trabalho numa terra distante e desconhecida – o mesmo passava com os Santos e a Virgem Maria, que foram amplamente cultuados desde então; existiam poucas igrejas e sacerdotes, o que, somado à interiorização da vida religiosa nas casas e fazendas, tornou a fiscalização pela igreja ainda mais difícil e favoreceu desvios e heterodoxias. A afetividade e familiaridade propiciavam maior devoção e detração dos símbolos de fé. Os feitiços na colônia foram formas sutis de resistir e compensavam a sobrevivência dos escravos, sejam africanos ou índios.
O capítulo IV, O sabá do sertão: contextos e personagens, traz, especialmente, experiências dos missionários jesuítas no sertão. Os índios do litoral, os tupis, foram de mais fácil aldeamento, dada a sua homogeneidade cultural; enquanto os tapuias, índios do sertão, constituíram verdadeiro desafio aos missionários, graças à diversidade.
No século XVII, intensificaram-se as missões desbravatórias pelos sertões em busca de índios para apresar, visto que sua mão de obra era muito requisitada no norte; e para expandir a ocupação e aumentar a produção de gado e açúcar principalmente. Neste cenário, vários jesuítas se posicionaram contra os desbravadores, protegendo os índios, que, inclusive, foram usados no combate a outros nativos no século XVIII. A Coroa não gostou da proteção dada pelos jesuítas ou do poder econômico que haviam conseguido no norte por doações de terras, escravos, engenhos, gado. Em 1760 os jesuítas foram expulsos das terras Portuguesas, presos e remetidos para Lisboa.
Um documento com confissões de duas escravas inspirou a elaboração de um artigo por Luiz Mott. Este artigo orientou o livro de Carolina Rocha Silva. As confissões são de um sabá, característico da Europa, mas com informações do sincretismo luso-afro-brasileiro, no Piauí colonial. Elas confessaram participar de reuniões noturnas com o Diabo, com direito a orgias sexuais e metamorfoses, conforme ensinadas por Mestre Cecília, esposa do anterior senhor/dono de Joana (esta era uma das escravas confitentes). Certamente o documento sofreu alterações e adições pelo padre Manuel da Silva, responsável pela oitiva das escravas e pelo envio das confissões à Inquisição de Portugal. As mulheres se mostraram arrependidas e atribuíram o acontecido à rusticidade e à falta de igrejas e sacerdotes para orientá-las no caminho de Deus. O caso foi arquivado nos cadernos do promotor.
Por fim, a autora admite que sua pretensão era permitir a reflexão acerca das formas híbridas e diversificadas de tratar o “mundo” sobrenatural no Brasil colônia, representante das tensões sociais suportadas na época.
A historiadora consegue prender o leitor até a conclusão da leitura do livro. A obra é uma verdadeira aula de história e apresenta a importância de micro-histórias para se entender o pensamento do povo em geral, pois a história, tal como é maiormente conhecida, foi contada por uma minoria letrada; e aos demais restaram apenas documentos, como as confissões e denúncias, que sequer são somente suas. Isto demonstra, sobretudo, o poder da alfabetização.
O direito evoluiu e consigo trouxe garantias, mas as pessoas, em especial as mais pobres e iletradas, seguem sendo vítimas do Estado, que agora não é ligado [formalmente] à igrejas. O livro traz a reflexão, também, sobre a formação cultural do Brasil e a desigualdade social desde que era colônia, como bem pretendia a autora.
Entre a Alta Idade Média e o início da Idade Moderna, como apontado texto, os Estados ainda eram confessionais, ou seja, declaradamente vinculados à uma religião, qual seja a cristã católica. A Justiça Eclesiástica, isto é, a justiça da igreja atuava por seus Tribunais do Santo Ofício, conhecidos como Inquisição, no combate à heresias, que iam da não crença em Lúcifer à troca da alma por poderes mágicos, passando pela blasfemação, um “delito da palavra”, comum na América Portuguesa.
Com a Reforma Protestante e o início da Idade Moderna a caça às bruxas se intensificou, pois todo e qualquer tipo de magia passou a ser condenado. Milhares de mulheres morreram e até hoje os historiadores não sabem se as tais mágicas de fato aconteceram ou se foram apenas invenções da igreja, que estava com medo de perder fiéis e, consequentemente, força e poder.
O direito à liberdade religiosa se mostrava necessário desde a época colonial, principalmente em países como o Brasil, de proporções continentais e de formação, inclusive na seara da religiosidade, híbrida. Certamente inúmeras perseguições e mortes teriam sido evitadas. Porém, o ideal da separação entre religião e Estado é mais recente. Este Estado é conseguido através da laicidade, método de ruptura entre Estado e Igreja e, mais profundamente, entre política e religião. Tal ruptura torna o Estado autônomo frente à Igreja Católica ou qualquer outra, possibilitando uma liberdade religiosa aos cidadãos, como defendido atualmente.
Carolina Soares Hissa – Doutoranda em Direitos Humanos na Universidade Federal de Goiás- UFG. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (2012). Graduada em Direito pela Universidade de Fortaleza (2002). Professora universitária onde leciona as disciplinas de Direito Constitucional, Administrativo, Internacional Público e privado. Pesquisadora Cnpq no grupo de pesquisa Relações Econômicas, Políticas e Jurídicas na América Latina da Universidade de Fortaleza. E-mail: carolshissaacademico@gmail.com
Veronica Trindade Costa Póvoa – Graduanda em Direito na Escola Superior Associada de Goiânia – ESUP. E-mail: vevepovoa10@gmail.com
SILVA, Carolina Rocha. O sabá do sertão: feiticeiras, demônios e jesuítas no Piauí colonial (1750-1758). Jundiaí – SP: Paco Editora, 2015.Resenha de: HISSA, Carolina Soares; PÓVOA, Veronica Trindade Costa. O sabá do sertão: feiticeiras, demônios e jesuítas no Piauí colonial (1750-1758). Contraponto. Teresina, v.9, n.1, p.810-815, jan./jun. 2020. Acessar publicação original [DR]