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Uma nova história do novo cinema português – CUNHA (LH)
CUNHA, Paulo, Uma nova história do novo cinema português. Lisboa: Outro Modo Cooperativa Cultural, 2018, 254 pp. Resenha de: SAMPAIO, Sofia. Ler História, v.73, p.266-270, 2018.
1 A história do cinema português esteve, durante muitos anos, a cargo de investigadores com ligações próximas ao sector cinematográfico. A “história” que contavam era, frequentemente, parte integrante (e necessariamente selectiva) de uma história pessoal, motivada por interesses conjunturais nem sempre claros ou declarados. Talvez por se reportar a um período relativamente recente cujos principais protagonistas ocupam ainda posições públicas de relevo (no plano simbólico ou mesmo prático), o chamado “novo cinema português” é um capítulo particularmente nebuloso dessa história. O seu estudo tem repercussões que ultrapassam o âmbito de um período (ou “movimento”), fazendo-se sentir nos alicerces desse edifício em construção que é a historiografia do cinema português – ou, se quisermos ser mais rigorosos, a historiografia do cinema feito, visto e vivido em Portugal.
2 É este o importante e lúcido ponto de partida deste livro, uma versão abreviada da tese de doutoramento defendida pelo historiador Paulo Cunha, em 2014,1 que se propõe, como o título anuncia, a contar “uma nova história” desse período e, como a introdução acrescenta, a “desenvolver um novo olhar sobre a história do cinema em Portugal” (p. 11). O que enforma este “novo olhar” é a atenção a novos objectos e a novas problemáticas, tais como: géneros e formatos que têm sido desconsiderados (“o filme turístico, a publicidade, o filme industrial, o filme cultural, o jornal de actualidades, entre outros” – p. 11); relações económicas e sociais (distribuição, exibição, recepção) que o viés fílmico e textual da maior parte dos estudos tem feito ignorar; perspectivas internacionais e transnacionais, que uma preocupação excessiva com questões e temáticas nacionais, aliada a uma espécie de nacionalismo metodológico, tem empurrado para fora dos radares dos investigadores.
3 A história que aqui se conta começa por ser diferente nas balizas cronológicas (invulgarmente dilatadas) que adopta: 1949, data da saída de António Ferro do Secretariado Nacional de Informação, Turismo e Cultura, e 1980, data da remodelação da Cinemateca. A justificá-lo está o enfoque nas políticas públicas que nesses anos foram gizadas para o cinema, um enfoque que vem acompanhado da tese de que o “desinvestimento estatal no fenómeno cinematográfico” abriu caminho para “uma mudança de paradigma na produção e recepção de cinema em Portugal” (p. 13). Adoptando uma perspectiva alargada atenta a “transformações estruturais” (p. 73), o autor vê, no centro desta mudança, a instalação de um novo “modo de produção”, apresentado desde cedo como o conceito-chave (p. 11) deste trabalho.
4 O livro divide-se em três partes: na primeira, “Histórias da história do cinema português”, o autor aborda questões historiográficas e de constituição do objecto de estudo, diagnosticando problemas e sugerindo alternativas; na segunda parte, “O Estado e o cinema em Portugal: Que políticas públicas? (1949-1980)” – a mais longa do livro – mergulhamos numa análise, sustentada em várias fontes, das políticas públicas que moldaram a relação entre o Estado e o cinema no período em causa; na última parte, “O que foi o Novo cinema português?”, que conta com apenas dez páginas, o autor retoma argumentos, para concluir que os cineastas e prosélitos do “Novo cinema português” desempenharam um papel central na definição de “uma ideia de cinema português” que acabou por se traduzir numa “efectiva política cultural do Estado português” (p. 226) que permaneceu dominante até aos nossos dias.
5 Talvez não seja de surpreender que uma parte importante deste estudo se dedique à análise da “construção crítica” (p. 30) do novo cinema português, ocorrida antes, durante e depois dos ‘factos’, à qual se vêm juntar discursos institucionais, jornalísticos e memorialísticos. É-nos mapeado um campo de posições que disputam o significado do “novo cinema” em torno de noções como alteridade, juventude, renovação e oposição (política e/ou estética). Parte da contenda diz respeito à escolha do nome, sobressaindo duas opções: novo cinema português, considerado “mais geral” (p. 49), e cinema novo português, que o procura alinhar com movimentos cinematográficos coevos, como o Cinema Novo brasileiro. A preferência do autor recai sobre a primeira designação, ainda que com uma grafia pouco usual (“Novo cinema português”), que nunca é justificada. A importância desta discussão reside não tanto nos argumentos esgrimidos para cada opção (que caem por terra quando constatamos que, na prática, as duas expressões tendem a confundir-se), como no facto de conseguir dar relevo ao carácter essencialmente construído deste objecto, que nos chega sob a forma de uma “grande narrativa” (p. 73) “oficial” (pp. 12, 38, 50) que as instituições-chave do cinema em Portugal – a Cinemateca, o Instituto Português do Cinema, a Rádio Televisão Portuguesa (RTP) e a Escola Superior de Cinema – lograram tecer e consolidar, tendo como principal objectivo a consagração de um determinado cinema (português) nos meios cinematográficos internacionais mais prestigiados.
6 É neste ponto que nos deparamos com uma contradição fulcral e de difícil resolução. Se, por um lado, o autor se procura afastar de um conceito unitário de “novo cinema português”, nisso convergindo com cineastas que viram nessa etiqueta “uma unidade que nunca existiu” (p. 43), por outro lado, o uso reificado que faz da designação “Novo cinema português” ameaça contaminar a proposta teórico-metodológica que nos está a oferecer. São vários os momentos em que o autor insiste numa definição de “Novo cinema português” mais ampla (de cariz temporal), colando-a a realidades plurais e heterogéneas cujo denominador comum é a “renovação” (ex. pp. 58; 59; 228). No entanto, as dificuldades são manifestas: como escapar, como o autor pretende (p. 58), a um corpus de filmes e a um cânone de autores associados ao “Novo cinema português” se o objecto de análise continua a ter esse nome? Como tratar o novo cinema português simultaneamente como um discurso dominante e uma entidade histórica plural e difusa?
7 Esta contradição é reveladora do curto-circuito que, na prática, se faz ainda sentir – apesar das intenções do autor e dos seus esforços em contrário – entre uma abordagem que se pretende ultrapassar, devedora da história da arte e assente na periodização e identificação de movimentos estéticos, e o tipo de abordagem histórica e materialista que se pretende promover e aprofundar. Trata-se, de certo modo, de uma contradição típica de um estudo de transição, que escolhe enveredar por caminhos novos sem uma rede de apoio de trabalhos teóricos e empíricos consistentes, pela simples razão de que não existem (pelo menos, em Portugal).2 Como o autor reconhece, “a petite histoire do cinema português ainda está por fazer” (p. 61). Esta ausência faz-se sentir ao longo do livro – por exemplo, para corroborar a tese de que a narrativa sobre o “Novo cinema Português” foi “imposta”, uma vez que o autor não deixa de chamar a atenção para as incoerências que marcaram a relação entre os profissionais de cinema e o Estado (pp. 153-159), em parte proporcionadas pelo tipo de “relações pessoais e institucionais” intrincadas que existiam (pp. 158, 232). A ausência da pequena história também se faz sentir a um nível mais geral, já que só ela permite contrariar a apetência pelas grandes narrativas que tem dominado a historiografia do cinema português, e da qual esta obra não parece estar completamente isenta.
8 É certo que o autor faz um trabalho notável de desconstrução da “narrativa-mestra” (p. 12) do novo cinema português, sublinhando a forma como ignorou factos (como a produção de curtas metragens no chamado “ano zero”), produziu dogmas (como a comparação dos anos 50 a uma espécie de “idade das trevas” – p. 87) e subestimou influências (como o neo-realismo italiano – pp. 102-103). No entanto, também o autor acaba por se inserir nessa narrativa, a fim de poder tomar partido sobre questões (sem dúvida importantes) que lhe estão subjacentes. Isto é sobretudo visível na última parte do livro, na qual a questão “do que foi o Novo cinema português” se vê inesperadamente transformada na questão “do que é” (ou continua a ser) o “Novo cinema português”. É como se, depois de relatar os efeitos, na história, da “grande narrativa”, o autor não conseguisse resistir ao seu poder de atracção.
9 Uma das principais características das “grandes narrativas” é a capacidade que possuem de omitir ou neutralizar elementos de difícil incorporação, frequentemente reduzidos ao estatuto de ‘excepções que confirmam a regra’. O objectivo é preservar a linearidade da narrativa, que se apresenta como completa e única. Pelo contrário, algumas das mais recentes abordagens historiográficas e materialistas ao cinema têm explorado alternativas que valorizam as contradições. Mais do que substituir uma narrativa por outra, estas abordagens pretendem rejeitar os princípios de linearidade, causalidade e unicidade que estão na base das grandes narrativas sobre o cinema, de modo a encorajar o aparecimento de histórias paralelas, descontínuas e cruzadas, que preservam (ao invés de mitigarem) o carácter multifacetado e intrinsecamente complexo do objecto ‘cinema’.3
10 Em suma, Uma nova história do novo cinema português é uma obra importante, que deve ser lida e dada a ler a vários públicos, como a escolha da editora faz, de resto, antecipar. Edições futuras poderão beneficiar de uma revisão atenta: foram detectadas gralhas, redundâncias, falhas na referenciação bibliográfica, bem como elipses e incoerências que atrapalham a leitura, provavelmente decorrentes do trabalho de reformulação de uma tese num livro. Há também hesitações entre as grafias pré- e pós-acordo ortográfico que, por serem cada vez mais frequentes na esfera editorial, já quase as tomamos como aceitáveis. São problemas de fácil correcção que não diminuem o valor deste estudo, que merece a atenção de todos os que investigam e leccionam estas matérias. Paulo Cunha é um dos investigadores mais activos nesta área e um dos exemplos mais notáveis daquilo que ele próprio designa por “produção historiográfica independente” (p. 60), que urge desenvolver e impulsionar no nosso país.
11 Na base deste tipo de produção está um conjunto de reorientações teóricas e metodológicas importantes, que incluem: a revisitação de fontes directas conhecidas (escritas e orais); a incorporação de objectos negligenciados; a valorização de arquivos privados e de âmbito local; a compilação e interpretação de indicadores económicos dispersos; o resgate do cinema de domínios puramente discursivos, textuais, estilísticos e estéticos; a abertura a outras disciplinas, no sentido de uma história social do cinema (p. 18); a integração de perspectivas internacionais; a valorização de micro- e meso-análises (mormente, através da pequena história), cuja ausência ou fragilidade compromete a elaboração, também ela importante, de macro-análises. Acrescentaria que, para singrar, este impulso de renovação terá que se fazer acompanhar de um esforço de teorização e reconceptualização, em linha com o que de melhor se tem feito lá fora. Como o estudo aqui recenseado demonstra, as possibilidades de pesquisa nesta área sob estas orientações são inesgotáveis e verdadeiramente estimulantes.
Notas
1 Paulo Cunha, O Novo Cinema Português: Políticas Públicas e Modos de Produção (1949-1980). Coimbra: (…)
2 Os poucos que existem são referidos, tal como o trabalho de José Filipe Costa sobre as políticas de (…)
3 Veja-se, por exemplo, Thomas Elseasser, Film History as Media Archaeology. Amesterdam: Amsterdam Un (…)
Sofia Sampaio – CRIA, ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, Portugal. Email: psrss@iscte-iul.pt.