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História, arte e patrimônio cultural: interlocuções na construção do conhecimento histórico | História em Revista | 2021
Trouxas ensanguentadas, de Artur Barrio | Foto: Bolsa de Arte
Arte, Patrimônio Cultural e História. Diálogos interdisciplinares que são a base do presente dossiê da História em Revista. Diferentes campos da História têm trabalhado em consonância com as mais diversas expressões artísticas, assim como com diferentes abordagens do patrimônio cultural. Nesse sentido, foi de interesse da publicação, pesquisas que se estruturam a partir do patrimônio cultural e das artes, sejam aquelas que compreendem as manifestações dessas áreas enquanto fontes históricas, sejam aquelas que problematizam os processos de criação ou de reconhecimento patrimonial.
O patrimônio cultural, para além de fonte de pesquisa histórica em suas acepções tangíveis e intangíveis, é também um aparelho político e ideológico que engendra relações de poder, conflitos e interesses de grupos sociais e dos Estados. Portanto a análise dos processos de patrimonialização, da criação e aplicação das políticas públicas para o patrimônio e dos embates em torno dos contextos de governança nacional e internacional da cultura também são elementos que interessam à História. Leia Mais
Laços Sociais, Laços Transnacionais – da construção de vínculos na história / Estudos Ibero-Americanos / 2015
Laços sociais, familiares, geracionais, de amizade; laços de grupo, laços políticos, ideológicos, laços legais e laços diplomáticos. A história se movimenta com base em conjuntos e interações, onde mesmo o herói hegeliano, ainda que guiado pelo Espírito do Mundo, encontrará sua sustentação e palco de ação no coletivo – para o próprio Hegel, no Estado (HEGEL, 2001). Nas bases de todo poder está uma coletividade, pois, como nos ensina Hannah Arendt (1970, p. 44), ninguém, nem mesmo o tirano mais absoluto, governa realmente sozinho. Da mesma forma, ideias são formadas e aperfeiçoadas em conversas, sentimentos são desenvolvidos a partir do convívio, para cada aprendizado um professor ou um modelo é necessário. O ser humano não prescinde de seu semelhante, e o estabelecimento de laços surge como um desenvolvimento natural, uma condição inerente a esse animal social.
A escrita da História, os estudos e análises de períodos, fatos e conjunturas as mais distintas apontam para o protagonismo dos laços sociais, ainda que eles sejam por vezes tomados como autoevidentes. Tomemos o caso dos laços entre jovens europeus no século XVI, quando se observa a formação daquilo que se convencionou chamar de adolescência. Essa fase da vida dos jovens adultos passa a ganhar uma nova dimensão diante da reforma dos costumes, do aumento da idade para se contrair matrimônio e da diminuição das liberações. Criam-se assim elos entre os membros dessa faixa etária, acuados que são pela nova realidade. Tais laços resultarão em uma identidade de grupo / geração com consequências sociais de longa duração, dentre as quais a identificação desses jovens com um comportamento errático, rebelde, por vezes violento, “tipicamente adolescente”, em especial entre os jovens “machos” (MUCHEMBLED, 2012). As estruturas de dominação, por sinal, costumam ser gatilhos e reforços privilegiados para a criação e manutenção de laços. É nesse sentido que, no mesmo século XVI, o “ímpeto civilizador” age pela coibição do infanticídio na difusão de um discurso e de um imaginário moralizadores, reforçando a importância dos laços maternos. Isso se mostrou uma estratégia voltada não apenas para a contenção do assassínio das proles, mas também para inculcar uma responsabilidade materna nas mulheres e perpetuar estruturas de dominação masculinas naquela sociedade (LIEBEL, 2013).
A natureza dos laços sociais, assim se verifica, está estreitamente vinculada ao desenvolvimento de sentimentos e de emoções. Não por acaso, é em torno do sentimento de empatia que Lynn Hunt (2009) vai encontrar o sentido propulsor para a redação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, talvez a tentativa mais sólida da história de pensar o laço mais primordial que nos une a todos: a natureza humana. Não se trata, é claro, de localizar no século XVIII as origens da empatia. Como Ute Frevert (2013) argumenta, a própria bíblia, na parábola do bom samaritano, já mostra não ser esse sentimento uma novidade setecentista. Entretanto, é no século XVIII que se humaniza e se discute a positividade da empatia. Não é por acaso que filósofos como Schopenhauer, já na virada do século XIX, podem pensar o humanismo em sentido amplo, com reflexos, por exemplo, nas relações entre humanos e animais1. Tais laços são fundamentados em termos éticos, e Schopenhauer (2006, p. 128 et seq.) acaba por declarar: quem faz mal a um animal não pode ser boa pessoa (könne kein guter Mensch sein).
Não por acaso, tais reflexões fornecerão aos séculos XIX e XX boa parte do combustível para novas teorias, ideologias e revoluções. Ao mesmo tempo em que se “descobrem” novos laços, os mesmos laços são responsáveis pela formatação de identidades cada vez mais fragmentadas. Com exceção dos laços generalizantes (universalismo, cosmopolitismo, humanismo), cada novo elemento que se agrega à identidade (coletiva ou individual) deixa de formar pontes para começar a criar muros cada vez maiores2. Dessa forma, laços nacionais, transnacionais, religiosos, raciais, ideológicos ou de classe assumem lugar central e cada vez maior como motores da história, levando o século XX a ser descrito, como tantas vezes o foi, o século da violência.
O dossiê que o leitor tem em mãos tenta lidar com essa estranha dicotomia existente quando pensamos os laços sociais: suas forças centrífuga e centrípeta, seus princípios agregadores e delimitadores. O mesmo laço que une pode também servir para separar, e a formação de grupos, identidades e imaginários acaba sendo seu produto mais evidente – e fonte de estudo e interpretação dos historiadores. Na composição do presente dossiê, os textos foram separados em duas seções: Laços Políticos e Laços Sociais. Ainda que elementos sociais e políticos tenham a tendência a se mesclar e se confundir, optou-se por essa distinção que privilegia o campo do político, do pensamento e da ação conjunta e institucional, das paixões e ideologias políticas, frente a temas diversos, como os laços familiares, os laços culturais e os laços corporativistas.
Abrindo o primeiro grupo de artigos, a professora Claudia Viscardi traça um importante panorama conceitual envolto às ideias de república e de democracia na primeira década do período republicano brasileiro. Período ainda conturbado, marcado pela insegurança dos próprios republicanos quanto ao sucesso do novo regime, os anos que se seguem a 1889 assistem a uma constante busca por uma nova identidade e formatação da estrutura política. Nesse contexto, a definição conceitual se torna um imperativo, e a construção e remodelação do discurso andam de mãos dadas com a própria construção das novas instituições. É nesse sentido que Viscardi toma a Constituição de 1891 como base de estudo, analisando as estruturas discursivas envoltas em sua promulgação e as subsequentes modificações e (re)interpretações conceituais que vão possibilitar a manutenção do poder das elites – em uma demonstração sutil dos muros que alguns laços podem construir – e resguardá-las de sua “demofobia”. É também a formatação – filosófica, conceitual e ideológica – do movimento fascista espanhol e do Primeiro Franquismo que é objeto de análise de Xosé Manoel Núñez Seixas. Sua abordagem, entretanto, é marcada fortemente por uma perspectiva transnacionalista, buscando vislumbrar os reflexos germânicos que despontam, entre 1930 e 1940, em terras espanholas. Os laços intelectuais, ideológicos e diplomáticos ganham espaço no texto de Seixas. É a influência da Academia alemã, da ideologia nacional-socialista e da estrutura – e propaganda – do Terceiro Reich sobre jornalistas e intelectuais conservadores espanhóis que se converte no tema central do artigo do professor galego da Universidade Ludwig-Maximilians, de Munique.
Seguindo o mote da temática das ditaduras, Augusto Nascimento toma São Tomé e Príncipe, um dos PALOP que sofreram a dominação colonial salazarista, e o jornal “A Voz de S. Tomé” como objetos de seu estudo. Mais especificamente, o autor analisa a configuração do espaço e a dinâmica da opinião pública em um país que, apesar de colonizado, encontrava-se longe, em variados sentidos, da realidade da metrópole. Longe e perto são adjetivos importantes também na leitura do texto de Maria Letícia Mazzuchi Ferreira e Francisca Ferreira Michelon, que escrevem sobre a exposição de fotografias de vítimas de ditaduras sul-americanas em acervos de museus. A distância temporal para os regimes opressivos é encurtada pela imagem, trazendo para o observador o que as autoras bem descrevem no título de sua contribuição como “cicatriz da memória”. A sensibilidade, a empatia e os laços humanos da memória se mostram elementos fundamentais na reflexão que as autoras instigam sobre as relações entre retrato e presentificação, ou, em um sentido warburguiano, sobre as relações fantasmáticas da imagem. Finalizando a primeira seção da revista, o texto de Fábio Chang de Almeida reflete sobre a nova direita política de Portugal, enfatizando seu caráter grupuscular (GRIFFIN). Tal aspecto tem uma dupla consequência em termos de laços políticos: a primeira é o caráter diminuto desses novos agrupamentos políticos extremistas, que não ganham representatividade por seu caráter massivo; a segunda é a sua capacidade extrema de comunicação (com as novas mídias sociais) e de coligação, proporcionando oportunidades para que sua influência e relevância aumentem.
A segunda seção, Laços Sociais, conta ainda com quatro artigos que focam suas análises em questões diversas dos relacionamentos interpessoais e grupais, bem como nas tramas tecidas na organização e ordenamento de diferentes campos e aspectos do tecido social. Rodrigo Ceballos, em sua contribuição, apresenta uma análise dos laços (familiares e comerciais) e das heranças deixadas pelos portugueses na região do Rio da Prata, de onde foram expulsos no século XVII. Dois séculos adiante é situada a baliza temporal fixada por Mateus Fernandes de Oliveira Almeida para analisar os laços corporativistas i.e. associativistas durante o Segundo Reinado brasileiro. O texto de Almeida, situado no grande campo da História do Trabalho, abrange o tema fundamental da identidade dos trabalhadores, a concepção de unidade e reconhecimento dentro de um métier, além da subjetividade inerente a esses laços, como a noção da moralidade e da solidariedade para com seus pares. A identidade e a solidariedade são também temas centrais do texto de Érica Sarmiento e Lená Medeiros de Menezes, que tomam o caso dos imigrantes ibéricos no Brasil da Primeira República para analisar aspectos variados da vivência na capital nacional do período. A complexidade da identidade servia, a um só tempo, para aproximar e afastar lusitanos e galegos, formando redes intrincadas de relações de apoio e de hostilidade. A condição de imigrante favorecia também, em alguns casos, a entrada no mundo dos pequenos delitos, dentre os quais as autoras destacam os jogos de azar (especialmente o jogo do bicho). Tais atividades colocam os imigrantes ibéricos na mira da polícia brasileira, revelando alguns de seus mecanismos e táticas de repressão. Finaliza a seção de artigos o texto de Daniel Melo, que também trata de aspectos identitários ao destacar, enquanto peças basilares das identidades culturais brasileira e portuguesa, as marchas populares de Lisboa e o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro. Em um exercício de História Comparada, aspectos transnacionais de mútua influência são destacados pelo autor, que faz ainda inferências acerca do papel dos regimes ditatoriais na configuração dessas festas.
O dossiê conta ainda com uma resenha, escrita por Rodrigo Santos de Oliveira, da obra La trama autoritária. Derechas y violência en Uruguay (1958-1966). O livro de Magdalena Broquetas é, ele também, um estudo sobre as construções de laços políticos e a atuação das alas conservadoras uruguaias até o momento anterior à implantação da ditadura militar no país. Por fim, o presente dossiê traz o lançamento de uma nova seção na EIA com a publicação de entrevista, conduzida e traduzida por Vinícius Liebel, com o professor Wolfgang Heuer, da Freie Universität Berlin (FU-Berlin). Nela o pesquisador alemão responde a perguntas pertinentes ao dossiê e a discussões historiográficas atuais, falando sobre a ascensão das direitas no mundo, movimentos contestatórios e ações coletivas e individuais no cultivo e preservação de nossa dignidade humana.
Notas
1 Sobre o processo de constituição desses laços entre homens e animais, ver: Thomas, 2010.
2 Lembremos do estudo de Norbert Elias e John Scotson (2000) que analisa, no microcosmo da cidade de Winston Parva, o lugar dos laços sociais na constituição de uma dinâmica opressora e delimitadora. Com bases na tradição e no carisma, configuram-se dois grupos essenciais de cidadãos que os autores denominam estabelecidos e outsiders. É com base nessa caracterização que toda a carga envolvida nos valores de pertencimento e de exclusão servirá ao domínio e à conservação do status quo na comunidade.
Referências
ARENDT, Hannah. On Violence. New York: Harvest, 1970.
ELIAS, Norbert; SCOTSON, John. Os Estabelecidos e os Outsiders. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.
FREVERT, Ute. Vergängliche Gefühle. Göttingen: Wallstein, 2013.
GRIFFIN, Roger. From slime mould to rhizome: introduction to the groupuscular right. Patterns of Prejudice, Londres, Routledge, v. 37, n. 1, 2003.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A Razão na História: uma introdução geral à filosofia da História. São Paulo: Centauro, 2001.
HUNT, Lynn. A Invenção dos Direitos Humanos. São Paulo: Cia. das Letras, 2009.
LIEBEL, Silvia. Les Médées Modernes: la cruauté féminine d’après les canards imprimés (1574-1651). Rennes: P.U. Rennes, 2013.
MUCHEMBLED, Robert. Uma História da Violência – do fim da Idade Média aos nossos dias. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.
SCHOPENHAUER, Arthur. Preisschrift über die Grundlage der Moral. Hamburg: Felix Meiner, 2006.
THOMAS, Keith. O Homem e o Mundo Natural – mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais (1500-1800). São Paulo: Cia. das Letras, 2010.
WARBURG, Aby. Histórias de Fantasmas para Gente Grande. São Paulo: Cia. das Letras, 2015.
Equipe Editorial – Formada por: Leandro Pereira Gonçalves (editor); Charles Monteiro (editor executivo); Vinícius Liebel e Luciana da Costa de Oliveira (gestão editorial); Daniela Garces de Oliveira, Geandra Denardi Munareto e Waldemar Dalenogare Neto (assistentes editoriais).
GONÇALVES, Leandro Pereira; MONTEIRO, Charles; LIEBEL, Vinícius; OLIVEIRA, Luciana da Costa de; OLIVEIRA, Daniela Garces de; MUNARETO, Geandra Denardi; DALENOGARE NETO, Waldemar. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 41, n. 1, jan. / jun., 2015. Acessar publicação original [DR]