Ecos do Atlântico Sul | Omar Ribeiro

Em 1993 participei de uma reunião social na qual estavam presentes: um padre jesuíta do Timor, um professor de história da Universidade de Lisboa (nascido em Moçambique), um professor de literatura luso-americano judeu e eu, socióloga brasileira, carioca. Sentados na sala de uma casa de estilo new-england, em Providence, Rhode Island, conversávamos em português. De repente fui tomada pelo ineditismo daquela situação e pelo sentimento de espanto diante da extensão e da sobrevivência do que fora o império português. Aquilo se chocava com o imaginário do senso comum brasileiro, e meu também, que pensava Portugal como a “terra do avozinho”, bonitinha, atrasadinha, sem importância, uma peça da memória folclórica… Foi então, com esse novo registro, que assisti a algumas apresentações da pesquisa de Omar Ribeiro Thomaz e li, com o maior interesse, o seu livro Ecos do Atlântico Sul.

A área de pesquisa de Omar, seu saber sobre Portugal e África, é maior do que o tamanho desse livro. Penso que deve ter havido um enorme esforço para encaixar na narrativa a história portuguesa, a trajetória da antropologia, as múltiplas preocupações relativas aos Estados nacionais remanescentes do antigo império português e às culturas de seus povos. Ao dizer isso não quero diminuir o valor do livro, e sim aguçar nosso interesse por outros textos que certamente o autor irá publicar. Leia Mais

Antropologia Brasiliana: ciência e educação na obra de Edgard Roquette-Pinto – LIMA (RBH)

LIMA, Nísia Trindade; Sá, Dominichi Miranda de (Org.). Antropologia Brasiliana: ciência e educação na obra de Edgard Roquette-Pinto. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008. 327p. Resenha de: OLIVEIRA, Lucia Lippi. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.29, no.58, DEZ. 2009.

Durante o século XIX ainda existiam dúvidas sobre como deveria ser chamado o nascido no Brasil. Não por acaso o principal jornal do Império denominava-se Correio Brasiliense. Já no início do século XX, ao apresentar um panorama da evolução da ciência no país, Roquette-Pinto se referia à contribuição científica dos ‘brasilianos’ e ao Brasil ‘brasiliano’, aquele depois de Ron-don. Essa mesma designação foi usada por Nísia Trindade Lima e Dominichi Miranda de Sá, organizadoras da coletânea Antropologia Brasiliana.

As quatro partes do livro mapeiam a ciência – a Antropologia – e a área de atuação – a educação – de Edgard Roquette-Pinto. A primeira parte, como diz seu título, trata do “Perfil e trajetória”; a segunda, de “Positivismo e nação”; a terceira, de “Antropologia e população”, e a última, de “Ciência e ação”. Na “Apresentação”, as organizadoras ressaltam que Roquette-Pinto é mais lembrado e reconhecido por suas realizações no rádio e no cinema educativos, ou seja, como divulgador da ciência, e é relativamente esquecido como cientista, estudioso das raças e dos tipos antropológicos brasileiros. Destacam, também, um ponto central presente na maioria dos artigos: Roquette-Pinto, com base em pressupostos da antropologia física e da biologia mendeliana, refutou as teses da inferioridade dos mestiços brasileiros.

Os artigos da coletânea procuram, cada um à sua maneira, situar a trajetória e a obra de Roquette-Pinto no contexto da época e mostrar como as questões-chave dos anos iniciais do século XX envolviam o fortalecimento da República e da nação. A ciência da época – o Positivismo – prometia progresso e civilização, e nesse quadro sobressaía o papel dos engenheiros, dos médicos e dos educadores. As figuras de Oswaldo Cruz, Paulo de Frontin, Aarão Reis, Pereira Passos, Euclides da Cunha e Cândido Rondon, entre outros, podem iluminar os diagnósticos, as expectativas, as atuações, e também os desencantos dos primeiros anos da República no Brasil. Essa era a reação dos desiludidos, que procuravam respostas para a questão: “como explicar o atraso do Brasil?”. Os intelectuais cientistas entraram no debate lançando mão do que tinham à disposição: leis biológicas, eugenia, mestiçagem, ‘branqueamento’, imigração. Tudo isso foi acionado, com diferentes combinações, para explicar a formação do povo, da ‘raça’ brasileira, do ‘tipo’ nacional, e tentar responder ou resolver a questão mencionada.

O “Prefácio”, de Robert Wegner, assim como o artigo “Roquette-Pinto e sua geração na República das Letras e da Ciência”, das organizadoras do livro, oferece um bom guia de leitura. Então, como reapresentar aqui o livro aos leitores? O que selecionar? Como a seleção se faz guiada por motivações derivadas do trabalho do leitor/resenhador, esclareço as questões que guiaram minha leitura.

A construção de um regionalismo no Brasil durante o Estado Novo, reiterada pela atuação do IBGE na redefinição do mapa do país, ao estabelecer em 1941 a divisão regional do Brasil, foi acompanhada pela apresentação e divulgação de desenhos que representavam ‘tipos brasileiros’, como o seringueiro, o vaqueiro, o pescador, a baiana e o gaúcho, entre outros. Percy Lau, desenhista e funcionário do IBGE, foi o autor dos desenhos dessas figuras que frequentaram os livros de Geografia por muitas décadas. Durante a leitura, eu me perguntava: essa história de ‘tipos brasileiros’ teria a ver com sociologia de Oliveira Viana? Lendo Antropologia Brasiliana pude entender melhor a matriz dessa classificação e conhecer o papel dos estudos de Roquette-Pinto no debate sobre a unidade ou pluralidade da ‘raça’ brasileira. Os artigos de Giralda Seyferth, de Jair de Souza Ramos e de Vanderlei Sebastião de Souza, que compõem a terceira parte do livro e analisam a Antropologia do autor, oferecem a chave explicativa do debate em questão.

Giralda Seyferth, no magnífico artigo “Roquette-Pinto e o debate sobre raça e imigração no Brasil”, analisa a obra antropológica do autor confrontando-a com a antropologia da época, em especial com o que já se dizia nos Estados Unidos (sobretudo Franz Boas). Roquette-Pinto produziu uma classificação dos ‘tipos nacionais’, assunto de destaque da antropologia física, que importava até mesmo para assuntos demográficos. Suas categorias se reportavam à cor da pele: leocodermos (brancos), melanodermos (negros), xantodermos (mestiços de branco e índio, indicativo da cor amarela) e faiodermos (mestiços de branco e negro). As classificações foram elaboradas com base em amostragem significativa de homens jovens oriundos de todos os estados brasileiros. Segundo Giralda, Roquette-Pinto, mesmo com uma bibliografia cheia de paradoxos, de classificações ambíguas, foi capaz de mostrar “a falácia da desigualdade racial, a heterogeneidade da população, a normalidade dos mestiços e a impossibilidade de vaticinar a formação de um tipo nacional” (p.161).

O artigo de Vanderlei Sebastião de Sousa, “‘As leis da eugenia’ na Antropologia de Edgard Roquete-Pinto”, também aborda a pesquisa “Notas sobre os tipos antropológicos do Brasil”, cujo texto foi publicado em 1928 no Boletim do Museu Nacional e apresentado em 1929 no Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia. Ali Roquette-Pinto concluía que nenhum dos tipos da população brasiliana apresentava qualquer estigma da degeneração antropológica. Negava assim os supostos efeitos negativos que derivariam da miscigenação social. Reafirmaria em Ensaios de antropologia brasiliana (1933) que não havia mal algum no processo de mestiçagem, na combinação de fatores biológicos que levaram à formação de um tipo híbrido, e que haveria mesmo, nessa formação, uma eugenia saudável. Assim, o homem brasileiro precisava era ser educado, e não substituído.

Jair de Souza Ramos, no artigo “Como classificar os indesejáveis?”, acompanha a participação de Roquette-Pinto no debate da seleção racial suscitado pela política de imigração. Explora os passos dados na identificação e restrição aos imigrantes indesejáveis e reafirma que Roquette-Pinto – convocado a participar nos debates das políticas de imigração por sua condição de antropólogo, autor de Rondônia (1917) e diretor do Museu Nacional (de 1926 a 1936) –, usando os caminhos da antropometria, abordando a questão da mestiçagem sob o ângulo da eugenia, ou seja, como portador de um discurso racialista, foi crítico da superioridade das raças. O uso da categoria ‘racioalismo’ como o autor do artigo esclarece, é feito no sentido explicitado por Todorov:

As doutrinas racialistas têm três pressupostos: 1) os homens se diferenciam em grandes grupos chamados raças, os quais possuem certa unidade física, que lhes confere determinadas características psicológicas e culturais; 2) o predomínio do grupo sobre o indivíduo (isso significa supor que o comportamento do indivíduo é determinado, em grande medida, pelo grupo racial ao qual ele pertence); 3) as ‘raças’ não seriam apenas diferentes, mas também desiguais. (p.206)

Para além dos artigos que tratam da questão das raças e dos ‘tipos nacionais’, gostaria também de ressaltar o artigo de Regina Horta Duarte, “Rumo ao Brasil: Roquette-Pinto viajante”, que enfoca a viagem como uma vitória sobre a rigidez dos costumes, como algo capaz de forjar uma abertura no caráter do indivíduo e de operar uma transformação em cada brasileiro. As via-gens de Euclides, de Rondon, dos médicos sanitaristas, dos modernistas paulistas às cidades mineiras e de Mário de Andrade ao Norte e Nordeste vêm merecendo atenção de inúmeros analistas. No caso de Roquette-Pinto o foco da transformação tem a ver com o impacto produzido pelo encontro com os Nhambikuáras em 1912, quando, acompanhando Rondon, fez sua viagem de descoberta do Brasil. Roquette-Pinto fez anotações e fotografou os índios, seus enfeites, seus apetrechos, suas habitações. Gravou a narração de lendas e cantigas, filmou o preparo da mandioca, os trabalhos de tecelagem e fiação. Observou, desenhou, documentou tudo, como prova e também como fonte de conhecimento a ser utilizado na educação.

Para Roquette-Pinto, a constituição da nação implicava vencer distâncias, e as estradas eram referidas como ‘vasos nutridores’ do Brasil. Se os ‘tipos brasileiros’ precisavam e podiam ser melhorados pela educação, o país enfrentava dificuldades adicionais derivadas da grande extensão territorial. Pode-se então compreender o papel do rádio e do cinema como projetos de divulgação do saber, como meios eficazes de vencer distâncias, de ultrapassar os limites do espaço e do tempo, possibilitando que os homens do povo realizassem suas viagens transformadoras. Daí sua frase: “Para nós o ideal é que o cinema e o rádio fossem, no Brasil, escolas dos que não têm escola”. Tanto suas ações envolvendo o rádio e o cinema quanto sua atuação como editor da Revista Nacional de Educação, fundada em 1932, falam de uma mesma estratégia de partilhar o conhecimento entre os brasileiros espalhados pelo território nacional, nos informa Regina Horta Duarte.

A concepção de nação como domínio sobre os territórios e suas populações, as ideias sobre a importância do saber geográfico na construção da nação, estavam na ordem do dia. A premiação de Rondônia e de A expansão geográfica do Brasil Colonial, de Basílio de Magalhães, em 1917, pelo IHGB, falam dessa tendência. A repercussão de Os sertões já indicava isso. A relação entre ocupação do território e população também está fortemente presente na historiografia de Capistrano de Abreu. Se nação é combinação entre território e população, Roquette-Pinto estudou, escreveu, atuou nos dois campos, e procurou responder ao desafio de vencer dificuldades de ambos: vencer distâncias e demonstrar que o povo mestiço não era inferior. Seu compromisso com a nação, sua missão de construir a nacionalidade guiou sua trajetória e sua obra.

Ao discutir e apresentar a obra de Roquette-Pinto, Antropologia Brasiliana oferece um importante panorama das teses e dos confrontos de posições entre os intelectuais e cientistas que compunham a geração que pensou o Brasil na Primeira República. Mostra também a complexidade e a riqueza do pensamento da época ao fazer uso das categorias ciência, desigualdade, mestiçagem, branqueamento, imigração e democracia. Se alguns dos temas são questões do passado, outros estão presentes nos dias de hoje, quando políticas de ação afirmativa baseadas em critérios raciais vão se tornando correntes nas ações do Estado brasileiro. É importante que historiadores, sociólogos e antropólogos tomem conhecimento das experiências anteriores, quando a raça foi a principal moeda para condenar o mestiço brasileiro e para classificar os imigrantes desejados.

Lucia Lippi Oliveira – Socióloga, pesquisadora e professora do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC/FGV). Praia de Botafogo, 190. 22250-900 Rio de Janeiro – RJ – Brasil. lucia.lippi@fgv.br.