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DOMINGUES, Ivan. Filosofia no Brasil: legados e perspectivas – ensaios metafilosóficos – DOMINGUES (FU)
DOMINGUES, Ivan. Filosofia no Brasil: legados e perspectivas – ensaios metafilosóficos. São Paulo, Editora Unesp, 2017. Resenha de: CANDIOTTO, Cesar; OLIVEIRA, Jelson. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.20, n.3, p.290-292, set./dez., 2019.DOMINGUES, Ivan.
O livro de Ivan Domingues é uma contribuição ímpar para a discussão em torno da formação da “filosofia brasileira”, aquilo que, grosso modo, envolve a existência de autores, de obras e leitores de temas brasileiros ou ligados ao Brasil. Seu horizonte de leitura não é a “narrativa” daquilo que tem acontecido desde o Brasil Colônia até os últimos 50 anos. Antes, ele é apresentado como uma “metafilosofia”, na extensão da natureza reflexiva da filosofia, autorizando-a a tomar a si mesma como objeto e fazer uma reflexão filosófica sobre a filosofia, uma filosofia da filosofia. O background da obra, como já destacou o professor Oswaldo Giacoia Jr., em resenha recente da obra3, é a atuação acadêmica de Ivan na área de Filosofia, algo que não lhe dá apenas legitimidade para escrever o que escreve do jeito como escreve, mas, sobretudo, conhecimento e vigor argumentativo para recontar a história não na perspectiva do passado, mas com os interesses próprios de nosso tempo. Porque conhece de dentro, Ivan pode relatar o pensamento de forma viva e fecunda. Para contar a história, ele suja as mãos, por assim dizer: contamina-se da história, situa-se nela, sai do texto contagiado por ele, tanto quanto nós, seus leitores, empurrados para o pensamento a respeito das perspectivas e para as perguntas sobre o futuro disso que é a tarefa da filosofia em nosso país. Trata-se de uma empreitada que aproxima o epistemólogo do genealogista que se deixa azeitar pela riqueza argumentativa de sua própria trajetória filosófica, cuja pergunta inicial, como é praxe nesses casos, diz respeito à possibilidade e oportunidade de seu objeto: existiria, afinal, uma filosofia no Brasil? E, em caso positivo, qual a sua identidade?
Tal questão ganha renovada importância quando temos em conta a história de outras disciplinas das ciências humanas, como educação, antropologia, ciências sociais e políticas, cuja contribuição para a elaboração de um pensamento no Brasil (que é também, quase sempre, sobre o Brasil) conta com nomes como Paulo Freire, Florestan Fernandes e Sérgio Buarque de Holanda, entre tantos outros. Formular a interrogação, como faz Ivan, sobre a filosofia no Brasil, por isso, é colocar-se diante da história como quem olha para as raízes de uma árvore florescida, adivinhando seus frutos, para depois, como Ferreira Gullar, ver que “cresce no fruto/ A árvore nova”.
O objeto principal da obra é a filosofia brasileira, ou, especialmente, o problema filosófico da existência ou não de uma filosofia no Brasil que justifique a adjetivação brasileira. Trata-se de uma tentativa exitosa de imprimir às reflexões empreendidas a forma do ensaio filosófico. Fazer filosofia como ensaio e não como narrativa envolve fazer uso da argumentação cuidadosa, da provisoriedade dos resultados, do pensamento não objetual e do risco da tentativa, que inclui erros e acertos. Nesse sentido, o livro segue os rastros metodológicos de Montaigne reafirmados na época contemporânea por Michel Foucault, para o qual a filosofia consiste no exercício do pensamento sobre si mesmo, sendo o ensaio a expressão literária maior desse exercício. Fiel à balança do tempo no qual ele mesmo se pesa, Ivan expressa seu pensamento na forma ensaística como quem recusa a conclusividade fácil, embora também recuse o caminho do meio. O resultado é que seu pensamento age por metástase, contagiando o leitor com o espírito da curiosidade e do interesse que Ivan aciona e pratica na sua melhor forma.
Se a filosofia é um exercício do pensamento, então se trata de sair dela mesma, para tratar sua tentativa de totalização do real. Nesse sentido, Ivan descarta a hegemonia de uma única filosofia sem abrir mão de anunciar linhas e tendências argumentativas, cujos fios servem para costurar a história do pensamento em solo nacional. Essa postura, contudo, implica abrir-se a outras maneiras de pensar, a outros domínios, tais como os da história e da sociologia. Todavia, as considerações históricas, assim também como as sociológicas, fazem parte da argumentação não como objeto de pesquisa, mas como meio e fonte. São fundamentais para a argumentação as considerações sobre a natureza da sociedade brasileira, entre seu passado colonial e o Brasil moderno, entre a sociedade agrário-oligárquica e a urbano-industrial. Tais perspectivas e considerações, contudo, cimentam a estratégia e comparecem no contexto geral da obra como para dar corpo ao desenvolvimento de uma problemática de ordem metafilosófica, que reconhece as condicionalidades nacionais como parte integrante de um pensamento enraizado nas experiências geográficas e históricas da racionalidade filosófica que apareceu na pena de pensadores como Paulo Eduardo Arantes, Henrique Cláudio de Lima Vaz, Silvio Romero, Tobias Barreto e tantos outros.
Para cumprir sua tarefa, Ivan Domingues apoia-se na linguística estrutural a partir de dois procedimentos: os métodos in praesentia e in absentia, sendo que o primeiro perscruta “os elementos empíricos e reais (sociológicos, históricos, políticos e culturais) denominados como positividades; e o segundo, os elementos abstratos – especulativos, ideais e virtuais –, voltados para a ordem das ideias ou do pensamento”. Em poucas palavras, trata-se de estabelecer o contraste entre o método histórico da praesentia e o método lógico ou dialético descolado do real empírico, porém considerado mais operativo para desenvolver o argumento. Outro método associado provém da lógica modal, cuja premissa são os chamados “tipos ideais” de Max Weber, a saber, “constructos mentais ou modelos teóricos” que se revelaram essenciais para vencer a opacidade do real empírico e trabalhar os diferentes tipos ou figuras de intelectuais a que o exercício da filosofia se viu ligado em diferentes épocas de sua formação histórica.
Assim, o livro se desenvolve a partir desse eixo metafilosófico e, complementarmente, de uma tentativa de recontar a história intelectual brasileira a partir dos tipos ideais que o autor busca em Max Weber, para caracterizar os cinco intelectuais brasileiros no campo da filosofia, os quais servem muito bem para a compreensão das etapas históricas que orientaram a filosofia brasileira até nossos dias. Tal intuição, revestida de capacidade sintética e, ao mesmo tempo, quase metafórica, oxigena a obra com fecundo e instigante ineditismo interpretativo.
Dessa maneira, a estrutura do livro é delineada a partir de seis passos: [1] o argumento metafilosófico, que acabamos de sumarizar; [2] o passado colonial e seus legados: temos aí o tipo ideal do intelectual orgânico na igreja; [3] Independência, império e república velha: o intelectual estrangeirado; [4] os anos 1930-1960: a instauração do aparato institucional da filosofia: os fundadores (departamento de ultramar), a transplantação do scholar e o humanismo intelectual público; [5] os últimos 50 anos: o sistema de obras filosóficas, os scholars brasileiros e os filósofos intelectuais públicos ligados aos partidos e às questões nacionais; [6] conquistas e perspectivas: os novos mandarins e o intelectual cosmopolita globalizado.
A partir dessa estrutura, o autor situa a atividade filosófica na tensão entre dois aspectos que se complementam entre si: de um lado, essa atividade é uma techné, para não dizer um métier, composto pelo desenvolvimento de certas habilidades e competências, a frequentação e o trabalho dos textos. Pensada desta maneira, a atividade filosófica seria semelhante à do scholar, enfocado na exegese e na história da filosofia, e, nesse sentido, ela não seria diferente de outras áreas, como a da filologia e a da história. De outro lado, a atividade filosófica é um ethos, a saber, uma atividade reflexiva e questionadora da realidade, quando deixa de manter com o real e o empírico a mesma atitude reverencial da ciência. O ethos é o gosto pela discussão, pelo cultivo do espírito crítico, experimental e intuitivo, e, nesse sentido, podemos dizer que a alma desse livro, além de outros elementos importantes, é pensar a questão do ethos do filósofo ou do intelectual brasileiro.
Como se trata de uma tentativa de pensar os legados e perspectivas da filosofia brasileira, o ensaio aposta na estratégia do “paradigma de formação” para identificar o legado e da “pós-formação” para vaticinar as perspectivas. Nesse sentido, Filosofia no Brasil segue os passos dos chamados “pensadores do Brasil” (atente-se que não se trata dos “filósofos do Brasil”), como Gilberto Freyre, Caio Prado Jr., Antonio Cândido, Celso Furtado, Raymundo Faoro, Paulo Arantes (e est a lista poderia continuar), que evocam em seus títulos e subtítulos esse paradigma da formação.
Para quem conhece outros trabalhos de Ivan Domingues, est e livro é a continuidade de O continente e a Ilha, no qual ele elabora um contraste entre a filosofia continental europeia e a filosofia anglo-saxã, uma mais voltada para a história da filosofia, outra mais próxima da filosofia analítica. Essa dupla face europeia tem tido repercussões na filosofia no Brasil, entre, de um lado, os chamados analíticos e, de outro, aqueles mais dedicados à filosofia e sua história. Filosofia no Brasil indica a fragilidade dessas grandes distinções, mostrando que, mesmo na tradição franco-alemã, há dois caminhos: o de Hegel, que privilegia uma perspectiva histórico-sistemática (“fazer história da filosofia”, como já encontramos em Cassirer), e outra de Foucault, para o qual fazer filosofia é apostar no ensaio, no fragmento e em um canteiro de obras.
A tensão proposta e desenvolvida por Domingues, assim, dá bons frutos, porque na medida em que lê o livro, o leitor situa-se no campo das interdisciplinaridades sem tirar um pé das características filosóficas propriamente ditas, compreendendo a intelligentsia brasileira como um produto controverso e tensional, para o qual pouca gente se dirigiu com a coragem de Ivan, dados os desconfortos que mais intimidaram do que promoveram um debate tão necessário como o que, agora, esse livro evoca – destaque-se o “agora” que dá ao livro uma vocação inédita, mas, sobretudo, o situa no tempo que é o nosso, no qual a filosofia no Brasil se encontra com novos dilemas, ameaçada por antigas mordaças ressuscitadas por certa perseguição aos intelectuais e pelo culto à vulgaridade do pensar, corroído pela assimilação tendenciosa dos modernos meios de comunicação, pelas predisposições fanáticas, pela desinformação e pelas desverdades.
Um livro, assim, sobre a filosofia no Brasil não poderia chegar em hora mais apropriada, quando somos todos convidados a prestar nova atenção à realidade que nos cerca, seus recuos históricos, suas discursividades forjadas pela indústria da desinformação, sua hipérbole de emotivismo que forja e brame narrativas em busca de impacto (leia-se, “likes” e coisas do gênero), sua preguiça diante do pensamento crítico em benefício de um nefasto desejo de ordem, educação moral e cívica. Com seu livro, Ivan Domingues torna o problema novamente atual: de onde viemos e para onde vamos, como filósofos no Brasil? Uma pergunta que, assim, bem formulada, torna-se também deliberadamente perigosa, porque retoma o papel da filosofia como uma espécie de protesto contra a indiferença do pensar. É essa provocação visceral que o leitor dessa obra precisa aceitar, as novas gerações em especial.
Notas
1 Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Rua Imaculada Conceição, 1155, 80215-901. Curitiba, PR, Brasil. Email: ccandiotto@gmail.com.
2 Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Rua Imaculada Conceição, 1155, 80215-901. Curitiba, PR, Brasil. Email: jelson.oliveira2012@ gmail.com
3 Kriterion, Belo Horizonte, n.140, ago. 2018, p.631-636.
Cesar Candiotto – Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Curitiba, PR, Brasil. E-mail: ccandiotto@gmail.com
Jelson Oliveira – Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia. Universidade Católica do Paraná. Curitiba, PR, Brasil. E-mail: jelson.oliveira2012@gmail.com
[DR]
La rivoluzione ontologica di Hans Jonas: uno studio sulla genesi e il significato di “Organismo e libertà” – TIBALDEO (RFA)
TIBALDEO, Roberto F. La rivoluzione ontologica di Hans Jonas: uno studio sulla genesi e il significato di “Organismo e libertà”. Milano: Mimesis Edizioni, 2009. Resenha de: OLIVEIRA, Jelson. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.27, n.41, p.629-634, maio/ago., 2015.
A obra The Phenomenon of life: toward a Philosophical Biology, do filósofo alemão Hans Jonas, publicada em 1966, vem despertando cada vez mais o interesse da comunidade filosófica na medida em que projeta novas luzes sobre a filosofia da natureza e a antropologia filosófica, servindo de base para a reflexão ética em torno de questões tão pertinentes quanto polêmicas, entre as quais a crise ambiental, os avanços da biotecnologia e os perigos da técnica. Jonas, bastante conhecido por sua obra de 1979, O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica, oferece, com a obra de 1966 e os vários artigos e conferências que circulam em seu entorno, uma nova interpretação do fenômeno da vida.
Entre os estudos que vêm sendo publicados sobre o tema, merece destaque o livro do professor Roberto Franzini Tibaldeo, da Scuola Internazionale di Alti Studi dela Fondazione Collegio San Carlo di Modena. Com o perspicaz título La Rivoluzione Ontologica di Hans Jonas: uno studio sulla genesi e il significato di “Organismo e libertà”, Tibaldeo recupera a fertilidade da obra de Jonas e demonstra sua importância filosófica e o clima cultural favorável que tem possibilitado uma nova luz sobre a temática enfrentada por Jonas. Além disso, o livro recupera a tese de que o tema da vida representa uma chave de leitura unitária para o pensamento de Jonas, primeiro porque fornece possibilidades de uma interpretação mais rica da questão histórico-filosófica do dualismo, já tratado nos textos iniciais do filósofo; segundo porque testemunha a maturidade filosófica com a qual Jonas se aproxima corajosamente do problema da vida como fundamento de sua proposta ética. A “revolução ontológica” de Jonas, nessa medida, evoca a tentativa de interpretar o fenômeno da vida para além do dualismo reinante na cultura ocidental (e presente, conforme a tese de Jonas, na própria ciência moderna) e como objeto central da responsabilidade, além de fornecer as bases de uma nova antropologia.
O livro de Tibaldeo está dividido em três partes: na primeira delas, apresenta os pressupostos da biologia filosófica jonasiana; na segunda, trata das relações entre a obra Organismo e liberdade (título do escrito originário de Jonas a respeito da temática da vida, cuja primeira versão veio à luz em 1954) e a questão do que é específico do ser humano; e, finalmente, na terceira parte, trata da biologia filosófica de Jonas analisando-a do ponto de vista da revolução ontológica e ética que ela produz. Apoiado em documentos originais e em informações biográficas relevantes (que são relatadas na primeira parte da obra), Tibaldeo faz um trabalho filosófico exemplar, fornecendo um retrato ao mesmo tempo completo e didático, com seriedade filosófica e astúcia interpretativa. O livro, por isso, merece ser lido por especialistas em Jonas, mas também por todos os que se interessam pela filosofia da biologia e pelo terrível dilema (e, não raro, os grandes equívocos) que percorre a nossa cultura quando se trata de estudar a relação entre espírito e matéria no que tange à definição da vida. Tibaldeo mostra que, segundo Jonas, desde o movimento gnóstico que está nas bases do cristianismo primitivo, a vida tem sido interpretada de forma errônea e que a modernidade não conseguiu escapar da redução ontológica na forma de um monismo materialista ou de um monismo idealista.
Ao identificar a revolta de Jonas contra o dualismo como um eixo central de sua filosofia, Tibaldeo também demonstra como esse tema está nas bases da interpretação jonasiana do problema do niilismo: o gnosticismo, nesse caso, como um conjunto variado de seitas e movimentos religiosos que, vindos do Oriente, tiveram forte influência sobre o cristianismo nascente, é o primeiro movimento niilista da história e, como tal, lança as bases de uma visão que desvaloriza a experiência terrena e mundana (incluída aí a corporal), abrindo caminho para o sentimento de estrangeirismo do ser humano no mundo, típico dos movimentos niilistas modernos. Nesse caso, como dualismo, o niilismo atravessa a história ocidental testemunhando o estranhamento do ser humano diante de si mesmo e do ambiente no qual ele está lançado.
Tibaldeo demonstra que tal diagnóstico (próprio, portanto, da primeira parte da obra de Jonas) está intimamente ligado às concepções centrais da ciência moderna. Aparece, assim, o problema da vida como derivação do problema do dualismo, já que o vivente tem sido interpretado segundo a mesma tradição: de um lado a matéria corpórea, de outro a matéria espiritual própria do humano. O extremo prejuízo de tal leitura é, sem dúvida, a má compreensão do fenômeno da vida e sua redução às categorias de uma ontologia que prioriza a matéria morta em detrimento da compreensão da atividade espiritual que, em diferentes graus, é partilhada por todo o reino dos viventes. Tibaldeo destaca que é no espetáculo da guerra, ocasião na qual Jonas experimenta a morte dos seres, tanto do ponto de vista individual quanto coletivo (com o advento da bomba atômica), que tal problemática ganha corpo na obra jonasiana, principalmente por meio de suas Lehrbriefe, as cartas formativas escritas do campo de batalha, entre 1944 e 1945, para a sua esposa Lore. Eis o embrião da obra que nasceria anos mais tarde como uma série de ensaios sobre o fenômeno da vida. A análise atilada de Tibaldeo faz emergir o sentido profundo dessa nova interpretação, por meio de conceitos como a individualidade e a liberdade dos seres viventes, a estrutura e a aventura dessa liberdade ao longo da história evolutiva, até aquelas que podem ser consideradas as características próprias da vida humana, como o desenvolvimento da racionalidade e da atividade metafísica.
Essa relação entre organismo e liberdade é o tema central da segunda parte da obra de Roberto Tibaldeo. Mais uma vez, os dados biográficos fornecem ao leitor a possibilidade de compreender em detalhes a gênese da reflexão jonasiana, conforme era a pretensão do texto, constante já no título do livro. O acesso ao manuscrito inicial da obra, que hoje se encontra nos arquivos da Universidade de Konstanza, e aos demais Nachlass de Jonas, possibilitou a Tibaldeo formular um texto claro e instigante do ponto de vista filosófico e também histórico. A comparação entre o manuscrito inicial, o texto publicado em inglês em 1966 e aquele outro, publicado em alemão no ano de 1973 sob o título de Organismus und Freiheit formam algumas páginas especialmente densas e interessantes no livro de Tibaldeo. Além disso, seu trabalho remonta a questões de cunho metodológico e histórico: por exemplo, ao apresentar como a questão do vivente e do organismo era entendido pelo pensamento alemão da primeira metade do século XIX, envolvendo nomes como Dilthey, Scheler, Eucken, Bergson e mesmo Heidegger, entre vários outros. Jonas, à medida que conhece as teses de tais autores, elabora também sua própria interpretação do fenômeno da vida, dando destaque para o tema do metabolismo: para ele, é pela vida da troca metabólica de um ser com o meio que a vida se torna um enigma a ser desvendado, posto que, nessa perspectiva, a matéria inteira de um corpo é mudada ao longo do tempo e, mesmo assim, algum tipo de identidade permanece como característica desse organismo. A ontologia do organismo de Jonas, como bem mostra Tibaldeo, encontra na fenomenologia um aparato metodológico bastante útil e sua análise se efetiva como uma redefinição da relação entre liberdade e necessidade: a vida, ao se desprender do reino não vivo, realiza um movimento de liberdade precária, visto que continua dependente da matéria inerte e, ao mesmo tempo, ameaçada pela morte. A liberdade, nesse caso, é dialética porque se consolida como uma tentativa de autonomia que é, ao mesmo tempo, necessária: ou isso, ou a vida seria tomada pelo não ser. Todas essas questões levam à relação entre si mesmo e mundo, ou ainda, entre interioridade e exterioridade e ao caráter opositivo e polar da própria vida, algo que, segundo Tibaldeo, passa a caracterizar a essência da vida e, nesse sentido, o mote central da revolução ontológica proposta por Jonas: a materialidade e a espiritualidade da vida caminham juntas, como partes relacionais de um mesmo acontecimento direcionado teleologicamente, cujas bases são reconhecíveis na história evolutiva dos seres, tal como demonstrado pelo próprio darwinismo, do qual Jonas retira consequências filosóficas importantes no reconhecimento do fenômeno da vida.
Ainda que tal proposta tenha parecido inatual ao ambiente anglo-saxão no qual Jonas estava inserido, a tese ganhou aprovação de inúmeros especialistas e pensadores da época. Tibaldeo toma o cuidado de mostrar, entretanto, como Jonas quis distinguir as suas teses de outras que estavam vigorando em sua época, principalmente no que tange à questão da teleologia da vida: a Cybernetics de Norbert Wiener e a General System Theory de Ludwig von Bertalanffy. Além disso, Tibaldeo analisa também as posições de Jonas em relação à ontologia do vivente de seu mestre Martin Heidegger. Outro capítulo especialmente interessante e original da obra de Tibaldeo é aquele no qual ele analisa a relação de Jonas com Aristóteles, Spinosa e Whitehead. Para essa análise, ele se utiliza de vários Nachlass, entre os quais uma série de manuscritos que formam lições proferidas por Jonas na New School for Social Research, entre dezembro de 1962 e janeiro de 1963, reunidos sob o título de O problema da vida e do organismo. A segunda parte do livro termina com um item no qual Tibaldeo realiza uma rica análise do que significa a revolução ontológica em relação à peculiaridade animal e outro item no qual ele analisa o que significa falar em revolução ontológica do ponto de vista da peculiaridade humana.
Na última parte de seu livro, Tibaldeo analisa a biologia filosófica de Jonas sob a perspectiva da ontologia e da ética, nela analisa as repercussões das teses ontológicas sobre as temáticas que ganharão corpo na obra de 1979, O princípio responsabilidade. Nesse último capítulo o autor italiano demonstra como Jonas retira da reflexão sobre a biologia, as premissas de sua ética da responsabilidade, ou seja, demostrando como a responsabilidade, enquanto princípio, está fundada numa ontologia tanto robusta quanto realmente revolucionária no que diz respeito à interpretação da vida. Em outras palavras, é pela revisão ontológica da vida que Jonas chega a um fundamento para sua proposta ética. Para isso, o eixo articulador da reflexão de Tibaldeo é o tema da teleologia.
Tibaldeo, nas 430 páginas de sua obra, oferece uma análise acurada e completa, clara e estimulante, da filosofia da vida proposta por Hans Jonas e, como se isso não bastasse, fornece a chave de leitura de toda a obra jonasiana. Tal perspectiva seria suficiente para tornar o seu livro de leitura obrigatória para quem se interessa por Jonas e/ou pelos temas sobre os quais ele se dedicou ao longo de sua vida. Mas isso não é tudo: Tibaldeo teve a gentileza de acrescentar inúmeras notas de rodapé, absolutamente oportunas, que ajudam a aprofundar a compreensão dos temas tratados. Também pudera: sua pesquisa levou em conta o que de melhor se escreveu sobre e em torno de Jonas nos últimos anos ao redor do mundo, além da totalidade dos textos jonasianos. Prova disso são as cinquenta páginas de referências acrescentadas ao final do livro.
Tibaldeo, com sua obra, possibilita a seus leitores uma rica e verdadeira experiência filosófica, digna daquela que, segundo Jonas, era a parte mais propriamente “filosófica” de sua produção intelectual.
Jelson Oliveira – Doutor em Filosofia. Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curitiba, PR, Brasil. E-mail: jelson.oliveira@pucpr.br
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