Entre servidão e liberdade – SANTIAGO (CE)

SANTIAGO Homero1 Liberdade
Homero Silveira Santiago. 16 set. 2020. https://www.youtube.com/.

SANTIAGO H Entre servidao e liberdade LiberdadeSANTIAGO, H. Entre servidão e liberdade. São Paulo: Politeia, 2019. Resenha de: OLIVA, Luis César. Entre servidão e liberdade de Homero Santiago. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.42, jan./jun., 2020.

O caminho de um jovem professor e pesquisador depois de seu período de formação (supondo abstratamente que a formação termine com a conclusão das teses de mestrado e doutorado, o que é sabida – mente falso) é sempre sinuoso. Depois de anos regido por um projeto de pesquisa e “vigiado” por agências de fomento, ele se vê dividido em múltiplas tarefas didáticas, administrativas e intelectuais (algumas feitas de bom grado, outras nem tanto) que produzem, na sua obra publicada, uma inevitável impressão de dispersão. De certo modo, é esse percurso fragmentado que Homero Santiago nos traz em Entre Servidão e Liberdade (2019).

Depois de seu mestrado e doutorado sobre Espinosa, ambos revelando um historiador da filosofia de boa cepa, capaz de abordar temas circunscritos e pouco explorados pela tradição interpretativa, mesclando coerentemente rigorosas análises de texto com eruditas considerações históricas, eis que o autor agora deve dividir-se em escritos dos mais diferentes formatos: artigos especializados e para o público geral, traduções, prefácios, resenhas, entrevistas, etc. Ao reunir boa parte deles neste livro, Santiago não esconde a multiplicidade de formas nem a variedade de ocasiões que os motivaram. Porém, se a forma talvez denuncie a dispersão do percurso, o conteúdo a nega, atestando a admirável unidade de pensamento de um filósofo que usou as mais variadas vias de expressão para discutir uma única e fundamental questão: a transição (infelizmente nem sempre de mão única) da servidão à liberdade.

Dividido em cinco partes (e uma introdução que mencionaremos mais tarde), o livro se abre com um notável capítulo sobre a superstição em Espinosa, no qual o autor apresenta uma das mais completas e detalhadas análises já feitas sobre o famoso apêndice da parte I da Ética . Mais do que mostrar a renitência do historiador da filosofia meticuloso, este longo capítulo tem a função de revelar o ponto de vista com o qual Santiago pretende abordar os diversos assuntos presentes no livro. É com lentes espinosanas que o fará, e com atenção específica para o aspecto que talvez afaste Espinosa do outro filósofo que mais marcou o percurso de Santiago e é quase onipresente na etapa final do livro: Antonio Negri. Enquanto Negri, também inspirado em Espinosa, deixa-se levar pelo otimismo dos movimentos multitudinários e dá todo o destaque para a liberdade, Santiago ancora-se na análise espinosana da superstição para dar conta da inegável servidão que nos assola. Ao final do livro, quando Santiago explicitar suas críticas (que não impedem a enorme admiração) a Negri, o leitor perceberá plenamente o quanto era significativo ter no apêndice seu ponto de partida.

O mergulho na servidão, porém, não ocorre sem uma visão da praia. Embora as decepções com o sistema de crenças da superstição não apontem, na letra do apêndice, para uma saída, elas abrem ao menos uma possibilidade, que não será explorada neste texto, mas que remete Santiago a outro de Espinosa, o Tratado da Emenda do Intelecto, onde as decepções com os valores da vida comum nos levam à necessidade de começar a filosofar, ou pelo menos, como dirá o segundo capítulo,

já que os valores são necessários, tratemos nós de forjá-los em vista da alegria e do benefício à vida. Poder fazê-lo talvez seja o mais difícil, mas precisamos fazê-lo. Se não o fizermos, se nos restringirmos ao mais fácil, o preconceito, a tristeza, a superstição e os seus lugares-tenentes o farão por nós (SANTIAGO, 2019, pág. 118).

De um lado, esta surpreendente conclusão nos remete à introdução do livro, onde Santiago usa, também surpreendentemente, Pascal para pensar a transição entre servidão e liberdade. É no interior do determinismo da teologia jansenista da graça que Pascal inventa um sentido para a apologia: é preciso crer que estamos entre os eleitos, assim como os homens que nos cercam, por mais ímpios que sejam, enquanto lhes restar um momento de vida. Para Santiago, ao fazê-lo, Pascal está criando um possível no seio do necessário, e aí se encontra a surpreendente afinidade entre os dois pensadores.

De outro lado, o trecho citado nos remete a outro capítulo funda – mental, em que o que é apenas intuído na teologia de Pascal ganhará clareza conceitual para aplicar-se a Espinosa. A partir de uma engenhosa interpretação do papel da ignorância nas definições de contingente e possível, Santiago encontra para este último um lugar fundamental na ética e na política espinosanas:

o ponto de vista do possível ignora a causa, mas a ignora sobre – tudo porque a considera, ou seja, toma a coisa como tendo causa (…). Com efeito, se possível é aquilo cuja causa é indeterminada, possível é igualmente aquilo cuja causa pode ser determinada; sobre a qual, em suma, pode-se agir, pois o indivíduo se enxerga (correta ou incorretamente) como agente possível de um acontecimento (SANTIAGO, 2019, p. 153).

Sem desconsiderar o fato de que, ontologicamente, só há o necessário, Santiago dá ao possível a realidade de uma tarefa cujo cumprimento é imperioso para o uso da vida. Este capítulo, assim, fecha o bloco mais estritamente espinosano do livro, apresentando tanto a realidade da servidão, quanto a possível porta aberta para a liberdade. Como passar por ela? Eis a pergunta que o restante do livro tentará responder das mais variadas maneiras; nenhuma delas, porém, definitiva. Já chegando à terceira parte do livro, é curioso que o primeiro texto explicitamente dedicado ao pensamento de Negri seja antecedido por um capítulo dedicado a outra notória espinosana, Marilena Chaui. A despeito das diferenças interpretativas dos dois filósofos sobre a obra de Espinosa, a contiguidade dos dois capítulos acaba destacando algo de comum entre eles, e que remete à influência marxista que ambos compartilham: a importância dada à luta de classes. Olhar para os conflitos no interior da sociedade, e não só para a história do Estado, como se este fosse um ente transcendente e causa de si próprio, é uma tônica de vários textos de Chaui. Em Negri, é a partir da análise das lutas operárias que se desenvolverá a apropriação particular que o italiano faz do conceito espinosano de multidão, central em sua filosofia (e também na de Santiago, que com ele pensará, dentre outros temas, junho de 2013). Mas a atenção aos conflitos sociais e a recusa Espinosana da transcendência, comuns a ambos, levarão Chaui e Negri a caminhos diversos. Para Chaui, nas palavras de Santiago, “se a tirania persiste é porque se enraíza na vida social, dela emergindo como efeito que decorre de uma causa e envolve, de alguma maneira, todo o corpo social” (SANTIAGO, 2019, pág. 192). Daí surgirão as reflexões de Chaui sobre Brasil como sociedade autoritária. Seria o lado amargo da multidão? Para Negri, a multidão é o sujeito da práxis coletiva que brota do desejo primordial de libertação, subjacente a todas as carências particulares que aparecem nas lutas sociais. Como explica Santiago:

a noção restritiva de classe sai de cena em benefício de uma noção bem mais ampla, que permite pensar a unidade de todos os explorados em sua própria diferença, sem recurso à tradicional subsunção dessas diferenças à identidade do operário industrial, isto é, o operário-massa. Em segundo lugar, a luta de classes passa a ser considerada como possuindo seu motor no desejo. É a articulação dessas duas inovações que, nitidamente, vai nos direcionando para o conceito de multidão, que ao fim e ao cabo se revelará o único capaz de nomear essa nova classe (SANTIAGO, 2019, p. 212).

Aqui decerto não há lado amargo, mas a lente crítica de Santiago não se furtará ao questionamento óbvio (aliás retomando, por outro viés, o problema da passagem da servidão à liberdade): como pode este conceito fazer-se acontecimento?

A filosofia de Negri será retomada mais à frente, em detalhe. Antes disso, porém, a quarta parte do livro dará lugar a três preciosos ensaios sobre temas recorrentes em nossa realidade social: a polícia e seu pendor à violenta obediência abstrata; o Estado e seu escopo; e final – mente o dinheiro e a liberdade. Todos têm por ponto de partida objetos empíricos particulares, como o colaboracionismo da polícia francesa durante a segunda guerra ou as transformações sociais decorrentes do Bolsa-Família, mas a questão teórica de fundo é a mesma: os conceitos de servidão e liberdade. Ademais, depois da passagem por Chaui e Negri, não poderiam ser mais claras as razões de Santiago para voltar-se para os acontecimentos sociais. As conclusões, porém, são sempre teóricas, e tão surpreendentes quanto (para um leitor atento) coerentes com as bases conceituais estabelecidas nos capítulos anteriores.

Sem entrar em mais detalhes, inclusive para não entregar todas as voltas e reviravoltas ao leitor, cabe destacar mais uma vez a importância deste trabalho nos dias que correm. Útil tanto para especialistas (em Espinosa, Negri, Chaui e até mesmo Pascal e Nietzsche) quanto para o público geral, o livro traz reflexões particularmente vivas quando espasmos autoritários nos ameaçam de longe ou de perto. Embora seja o retrato do percurso intelectual singular de Homero Santiago, Entre Servidão e Liberdade alcança, se não a universalidade, pelo menos a comunidade dos bens que podem ser partilhados.

Referências

SANTIAGO, H. Entre servidão e liberdade. São Paulo: Politeia, 2019.

Luis César Oliva – Professor Universidade de São Paulo. E-mail: lcoliva@uol.com.br

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A nervura do real. Imanência e liberdade em Espinosa, volume 2 – CHAUI (CE)

CHAUI, Marilena. A nervura do real. Imanência e liberdade em Espinosa, volume 2. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. Resenha de: OLIVA, Luís César; LACERDA, Tessa Moura. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.36, Jan./Jun. 2017.

O lançamento do segundo volume de A nervura do real: imanência e liberdade em Espinosa, de Marilena Chaui, conclui um processo de análise e exposição sistemática da filosofia de Baruch de Espinosa, em especial de sua obra maior, a Ética, processo que se confunde com a própria trajetória da Marilena Chaui como docente do Departamento de Filosofia da USP e uma das mais importantes intelectuais brasileiras das últimas décadas. Dedicando-se à pesquisa sobre Espinosa desde os anos 60, Chaui defendeu sua livre-docência, em 1977, já com o título de A nervura do real, um calhamaço em dois volumes que representava, naquele momento, o principal trabalho sobre Espinosa feito em língua portuguesa. Chaui, no entanto, não a publicou de imediato, apesar dos insistentes apelos dos colegas e alunos. Para a autora, faltava ao “tijolo” uma reflexão mais detalhada sobre o quadro amplo da história da filosofia diante do qual a revolução espinosana ficaria mais evidente e compreensível, além de uma análise mais detida da parte i da Ética, que contém os fundamentos ontológicos do sistema.

O que para outros intérpretes poderia ser uma curta introdução histórica transformou-se em um novo livro, de quase mil páginas, reconstruindo não só as referências históricas de Espinosa, mas todo o percurso do espinosismo depois da morte de seu autor. Ao final, coroava o livro uma análise linha a linha da parte I da Ética, cuja solidez e densidade não tem paralelo na literatura internacional. Foi o primeiro volume da Nervura do real, dedicado à imanência, e publicado em 1999. O longo intervalo de 22 anos entre a tese de livre-docência e esta publicação foi marcado por inúmeros outros livros, especialmente sobre o Brasil, mas a reflexão espinosana em curso sempre norteou os escritos de Marilena Chaui, em temas tão variados quanto ideologia ou repressão sexual, o combate à ditadura civil-militar ou o ensino de filosofia. Em todas estas obras, o leitor atento pode encontrar A nervura do real em gestação, ou melhor, em operação.

Feito esse imenso trabalho, a própria autora acreditava que o segundo volume previsto sairia mais rapidamente, até por ser uma retomada da tese de livre-docência, dedicada sobretudo à liberdade. Todavia, aos 22 anos de espera pelo primeiro volume, somaram-se outros 17 para o segundo. A conclusão da obra não aproveitou praticamente nada da antiga livre-docência, integralmente reescrita. Nem poderia ser diferente, considerando que 39 anos de reflexão espinosana, vivência em sala de aula e muitas lutas políticas separam a antiga tese deste novo volume que recentemente chegou a nossas mãos. Os leitores não perceberão apenas o avanço interpretativo em relação à tese original, mas também uma expressiva mudança de tom em comparação com o próprio primeiro volume. Enquanto naquele Marilena Chaui antepunha à apresentação de cada noção espinosana uma larga reconstituição histórico-conceitual, em uma empreitada de imensa erudição, no segundo volume a autora permite-se uma análise mais circunscrita ao texto de Espinosa. Parafraseando a própria autora, enquanto o primeiro volume foi uma discussão com toda a história da filosofia, o segundo volume é uma conversa entre ela e Espinosa. Isto dá ao livro uma fluência que o torna acessível a uma ampla gama de leitores, incluindo aqueles que tenham pouco contato prévio com a filosofia espinosana. No fluxo desta conversa, densa mas extremamente agradável, Chaui conduz o leitor pela integralidade das partes II, III, IV e v da Ética, considerando-se que a parte I já fora sufi – cientemente destrinchada no primeiro volume. Os atuais e antigos alunos reencontrarão nesta escrita muito do ritmo cativante – e ao mesmo tempo conceitualmente rigoroso – das aulas de Marilena Chaui dadas na USP e em outras universidades do Brasil e do mundo.

A fluência do texto, porém, não nos deve enganar. Os desafios propostos pelo livro são de monta e implicam discussões conceituais de extrema sofisticação, frequentemente em oposição à quase totalidade da crítica especializada. Talvez o principal destes desafios já se apresente na primeira parte do livro: a imensa tarefa de demonstrar, contra uma longa tradição de interpretação, a existência de seres singulares na filosofia da substância imanente espinosana. Contra essa tradição interpretativa que remonta ao século XVII, e que a autora denominara, no primeiro volume, “a imagem do espinosismo”, cabe a Marilena Chaui desmontar a falsa aporia que diz ser impossível o singular em uma filosofia na qual só há uma substância.

Esse trabalho é um trabalho espinosano: como Espinosa, Marilena desconstrói o discurso cristalizado e, ressignificando as palavras, mostra como a existência de seres singulares é efeito de uma dupla causalidade, a causalidade da substância e a causalidade da Natureza naturada. Como efeitos determinados em uma complexa rede causal, os seres singulares não existem necessariamente por sua própria essência, mas sua existência é necessária pela causa.

Ora, uma vez afirmada essa necessidade da existência do suingular, coloca-se a segunda questão do Nervura II: é preciso demonstrar como necessidade não se opõe a liberdade. Ser livre, para Espinosa, é ser uma causa não passivamente determinada pelo exterior, mas internamente disposta. É tomar parte na atividade do todo. A concepção que relaciona liberdade e livre-arbítrio é uma concepção imaginária da liberdade. Para demonstrar a existência de coisas singulares que podem ser causas livres, Marilena Chaui inicialmente percorre as obras de Espinosa para mostrar a presença do singular em todas elas. No Tratado da emenda do intelecto, Espinosa afirma que, diferente da razão, a imaginação lida com coisas singulares corporais, e o intelecto lida com as essências das coisas singulares. A imaginação organiza essas coisas singulares como ideias obscuras ou universais abstratos. Mas o intelecto é capaz de conhecer a essência particular afirmativa e, por meio dela, a coisa particular .

Essas afirmações do Tratado da emenda operam em outras obras. No Tratado político, Espinosa afirma que os regimes políticos distinguem- se não da maneira clássica pelo número de governantes, mas porque são essências particulares determinadas: sua causa é o direito natural particularizado pelas relações de força e potência da multitudo (agente político). No Tratado teológico-político, Espinosa trata da essência particular do Estado hebraico, um regime político existente na duração, unindo geometria e um método histórico. O Estado hebraico é uma coisa singular . Sua essência é uma singularidade historicamente determinada. E a Bíblia, por sua vez, é uma singularidade que existe como efeito de uma causa singular, a  sociedade hebraica. Essa análise do Tratado político e do Tratado teológico-político permite, a Marilena Chaui, distinguir no interior da obra de Espinosa essência particular e essência de coisa singular : a  essentia particularis é “o momento em que uma ideia apreende a conexão lógica entre uma essência e suas determinações ou propriedades” (Chaui, 2016, p.32) e a essentia rei singularis é “empregada para assinalar a relação interna entre uma essência e sua existência” (Chaui, 2016, p.32). Essa distinção existe também na Ética: na parte i, os modos da substância são coisas particulares ; na parte II a mente, modo do atributo pensamento, é uma coisa singular, o corpo, modo do atributo extensão, é uma coisa singular . A coisa singular é um modo singular .

As partes I e II da Ética, nas palavras de Marilena Chaui, são um díptico. Assim, a parte I demonstra a existência do que é necessário por sua própria essência, a Natureza naturante e a Natureza naturada. A parte I I, como segundo pano do díptico, concentra-se na Natureza naturada para deduzir a existência dos modos finitos, necessário não por sua própria essência, mas pela sua causa. Por isso, na parte I, por meio da causa de si, Espinosa demonstra a identidade entre essência e existência em Deus; na parte I I, por sua vez, é afirmada a inseparabilidade entre essência e existência nos modos finitos. A essência do modo finito humano não envolve existência necessária, mas são necessários pela sua causa, jamais contingentes ou possíveis (cf. Chaui, 2016, cap.2).

O modo finito é definido, na parte I a Ética, como modo que está em outro e é concebido por outro; a parte II da Ética sublinha a singularidade de um modo que exprime a essência do ser absoluto.

O modo finito humano é deduzido na parte II como corpo e mente que se relacionam. Essa relação pode se dar de forma inadequada (por meio da imaginação) ou de forma adequada (por meio da razão e da intuição). A perspectiva determinante na parte II da Ética é, portanto, a perspectiva epistemológica, mas também a dimensão causal da coisa singular é enfatizada e, ganha ainda mais espaço na parte III, quando Espinosa demonstra que a coisa singular pode ser causa adequada ou inadequada, porque finita; dessa finitude trata a parte IV, e a parte v mostra como a mente pode ser causa adequada e chegar à felicidade.

O singular é uma existência determinada e uma atividade causal, é um indivíduo complexo. Marilena Chaui mostra essa construção da singularidade na Ética de Espinosa. O singular é singular porque é uma determinação finita no interior da complexa rede causal da Natureza. E é finito porque não existe como causa de si, mas é também causa.

Ser parte, em Espinosa, é saber-se parte de um todo e, então, tomar parte na atividade do todo. Cabe ao final da Ética, bem como ao final da Nervura II, mostrar como este tomar parte no todo é um tomar parte na eternidade. Este conceito, na primeira parte da Ética, parecia restrito à existência própria da substância, que segue necessariamente de sua essência. Às coisas singulares, como modos finitos, não caberia mais que a duração, numa contraposição insuperável. Uma das principais novidades de Chaui é explicitar como a Ética, no seu desenvolvimento, vai ampliando o sentido de eternidade, de modo que alcance as próprias coisas singulares enquanto são em Deus. Trata-se de uma eternidade dada desde sempre, pela imanência das coisas a Deus e de Deus às coisas, mas simultaneamente de uma eternidade conquistada pela adequação do conhecimento. Não há contradição nisso porque tal conquista não implica passagem nem transformação radical. O tomar parte no todo significa tornar-se aquilo que já se é. Nas palavras de Chaui, “a eternidade da mente não implica uma transformação de seu ser ou de sua essência; o que muda é o objeto do qual ela é ideia: passa das afecções do corpo na duração à ideia da essência do corpo, essência contida e compreendida como singularidade no atributo extensão e cuja ideia, simultaneamente, está contida e compreendida no atributo pensamento” (Chaui, 2016, p. 571). Em suma, a mente não se torna eterna, ela passa a conhecer que é eterna, e não apenas como se conhece a um objeto externo. Mais que isso, como diz a célebre expressão de Espinosa, nós sentimos e experimentamos que somos eternos.

Ao terminar a leitura do livro de Chaui, podemos olhar para trás e ver com toda a clareza o processo de concretização do que havia sido demonstrado nas primeiras páginas. Não só a singularidade não é incompatível com a imanência, mas só se realiza plenamente como liberdade quando percebe esta imanência por meio da participação ativa nela. Esse processo de concretização de si como ser autônomo, livre e feliz não é um processo meramente cognitivo, mas simultaneamente afetivo. Por isso, também com afeto olhamos para a tese de livre-docência, de 77, ou para os primeiros estudos espinosanos de Chaui, nos anos 60. Tudo já estava lá. Como já estava no mestrado Merleau-Pontyano, no debate sobre a democracia nos anos 70, na criação do PT em 80, etc. Mas agora, com a publicação do segundo volume da Nervura do Real, tudo isto ganha um sentido que não podia ser completamente transparente naqueles momentos. Trata-se de uma única Obra, que se confunde com a maneira de viver e de filosofar de Marilena, inseparáveis entre si e in – separáveis do pensamento de Espinosa.

Referências

CHAUI, Marilena (2016). A nervura do real II. Imanência e liberdade em Espinosa . São Paulo: Companhia das Letras.

Luís César Oliva – Professor Universidade de São Paulo. E-mail: lcoliva@uol.com.br

Tessa Moura Lacerda – Professora Universidade de São Paulo. E-mail: tessalacerda@gmail.com

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