Posts com a Tag ‘Ofícios de Clio (OCd)’
Os mundos do trabalho no Brasil independente e as experiências de trabalhadoras e trabalhadores em suas diversas perspectivas: gênero, raça, classe, etnia e cultura/Ofícios de Clio/2022
Em 2022 o Brasil completou 200 anos como país independente tendo como base de sua formação social e da configuração do seu mercado de trabalho o modelo escravista. Buscando refletir sobre os rumos dos mundos do trabalho e das trabalhadoras e trabalhadores no Brasil independente, esse Dossiê buscou pesquisadoras e pesquisadores que quisessem contribuir com artigos que analisassem as pluralidades que atravessam os mundos do trabalho no Brasil, como a classe, a raça, o gênero e a cultura. Leia Mais
Ditaduras e golpes do Cone Sul: diferentes fontes e perspectivas históricas/Ofícios de Clio/2022
Quando falamos em ditaduras e golpes no Cone Sul estamos nos referindo a um conjunto de experiências vivenciadas, e em grande medida compartilhadas, por argentinos, brasileiros, chilenos, paraguaios e uruguaios na segunda metade do século XX. Experiências que transcendem a temporalidade do passado e estão vivas em diferentes formas no presente dessas sociedades. Portanto, falar delas é lidar constantemente com um passado aberto, um passado que influi diariamente no presente, um passado com demandas e disputas no presente. E aos historiadores e historiadoras dedicados a essas experiências cabe o desafio do equilíbrio das temporalidades. Leia Mais
Etnografia Nos Arquivos e a Produção de Conhecimento Sobre Populações Subalternizadas | Ofícios de Clio | 2021
Candangos na construção de Brasília | Imagem: Senado Federal
Quando propusemos um dossiê dedicado a recolher etnografias nos arquivos, tínhamos como principal interesse interligar distintos estudos e objetos, pois entendemos que a escrita histórica alinhada à prática etnográfica é uma junção fundamental na produção de conhecimento científico, servindo como ponto de partida, ou mesmo como retórica, nas pesquisas dos profissionais das ciências humanas. Aqui, a categoria de “subalterno” e os conceitos derivados da ideia de subalternidade, contemporaneamente, ocupam os debates e servem de base aos estudos acadêmicos que se alinham aos trabalhos propostos por Gramsci (2002), Said (2007) e Spivak (2010), entre outros. Arquivos, textos jornalísticos e jurisdicionais, por vezes, denotam como determinados grupos eram – e alguns ainda são – tutelados, ordenados e reagrupados pelas instituições governamentais ou/e eclesiásticas.
Ao analisar os fenômenos históricos, sociopolíticos e culturais, os trabalhos que aqui se encontram reunidos, carregam e apresentam discussões que confrontam visões estabelecidas por instâncias de poder. Os textos, assim, refletem esforços analíticos centrados em alguns conceitos-chave, marcas de perspectivas voltadas à compreensão de processos e dinâmicas que envolvem atores e agências sociais em campos de disputas. Numa clave que abarca a Etnografia nos arquivos, percebemos o resultado de coletas de materiais de diferentes formatos que passam a compor acervos construídos com variadas intenções institucionais. Leia Mais
Corporeidades em Luta: Feminismos e Corpos de Resistências ao Sul Global | Ofícios de Clio | 2021
A proposta deste dossiê nasceu pela recente conquista ao outro lado da fronteira, a da legalização do aborto na Argentina, em dezembro de 2020. Uma luta histórica que marca, não somente o acesso aos direitos sexuais e reprodutivos, mas o reconhecimento do direito à vida das mulheres, dos homens transgêneros e de outros corpos que engravidaram (ou foram engravidados) sem interesse ou condições para gestar. Tendo o corpo como foco, as pesquisas analisadas partem das corporeidades enquanto processo histórico de resistência, de disputa e de opressão, para os diferentes períodos, seja no Brasil ou no restante do sul global – região dos países em desenvolvimento. Para além das ações feministas coletivas e individuais, o dossiê trata de pesquisas atentas aos usos políticos dos corpos; à interferência do Estado, da Medicina, do Judiciário e da Igreja no dizer-fazer-saber dessas corporeidades; à precariedade diferenciada entre as vidas, à performatividade, às generificações e às resistências a essas generificações, às formas repressivas e produtivas de enunciar os corpos. Além disso, os textos protagonizam corpos marcados pela raça, gênero, classe, território, sexualidade e geração, ou seja, que consideram a interseccionalidade. Leia Mais
A Descolonização Africana e suas Ideias Políticas / Ofícios de Clio / 2020
O presente dossiê tem como proposta refletir sobre os processos de descolonização do continente africano, compreendido especialmente entre as décadas de 1950 e 1970, considerando uma perspectiva das ideias políticas. Trata-se de olhar para a pluralidade de experiências descolonizadoras em um período-chave da formação política dos estados africanos, a partir de um olhar inspirado na história intelectual e / ou história dos conceitos.
Pretende-se colocar em pauta, ao público leitor, a descolonização do continente africano em diferentes abordagens. Para tal, o dossiê “A descolonização africana e suas ideias políticas” reúne pesquisas históricas a respeito das produções de intelectuais africanos e afro-diaspóricos, evidenciando suas perspectivas a respeito da descolonização, assim como o confronto e / ou comparação entre diferentes intelectuais que pensaram a descolonização para os contextos africanos e afro-diaspóricos.
O conjunto de textos proporciona uma interessante reflexão para os leitores no que tange a história intelectual e política, e abrange uma diversidade de trabalhos que desconstrói, por si, um olhar muitas vezes unitário que existe sobre o continente africano, trazendo uma multiplicidade de intelectuais e abordagens possíveis.
Entre os trabalhos realizados, destaca-se o foco que três autores deram especificamente ao caso moçambicano. Pedro Oliveira Barbosa, doutorando pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), em “A política externa e o projeto nacional da Frelimo no cinejornal moçambicano Kuxa Kanema (1978-1981)” analisa o momento imediatamente pós-independência no país, quando, observada por meio do cinejornal estatal Kuxa Kanema, a Frelimo – então partido único em Moçambique – promoveu um projeto marxista-leninista, apelando ao apoio dos países do chamado “Bloco Soviético” no contexto da Guerra Fria. No início da década de 1980, entretanto, o partido observou o fracasso em sua busca por alianças, e precisou buscar novas alternativas e diversificar suas políticas do cenário internacional.
É justamente na sequência desse momento que se insere o trabalho do mestre pela PUCRS, João Antônio Batista Bertolotti, “Revista Charrua – relativizações das retóricas de intelectual revolucionário e literatura de combate (1977-1986)”. Nesse artigo, o autor demonstra que a partir do momento de enfraquecimento do projeto marxista em Moçambique, novas alternativas de linguagem literária também surgiram, contestando o papel exercido pelo Estado sobre a mesma até então, e propondo novas alternativas. É em meio a isso que surge o projeto da Revista Charrua, apresentado por ele.
Também com discussões relativas à literatura e política em Moçambique, Andressa da Silva Machado, licenciada em História pela PUC-RS e Especialista em História e Cultura Afro-brasileira pela UNIASSELVI, apresenta o artigo “Desventuras do pós-independência em Moçambique: Nacionalismo, Guerra Civil e Memória Coletiva”. Este se debruça mais especificamente sobre um romance específico, Ventos do Apocalipse, da autora Paulina Chiziane. Por meio dele, pode-se observar não apenas a memória coletiva demonstrada pela autora em relação a Guerra Civil que assolou o país no período pós-independência, como as próprias contradições do projeto nacional estabelecido pela Frelimo no país.
Ainda sobre a região sul do continente africano, Gabrielle Rani Marinho Lima e Izabella de Souza Colino, ambas graduandas em Relações Internacionais pela Universidade do Estado do Pará (UEPA), oferecem o artigo “Uma África do Sul pós independência observada sob a perspectiva pós-colonial: da emancipação ao Apartheid”. Esse artigo aborda um caso bastante particular no continente africano, aquele da África do Sul, que, ao contrário dos demais países citados neste dossiê, tornou-se independente no início do século XX. Apoiando-se nos estudos pós-coloniais, em especial nas contribuições de Albert Memmi e Immanuel Wallerstein, entretanto, as autoras questionam aqui até que ponto essa descolonização pode ser considerada completa, e demonstram os limites do projeto sul-africano do Apartheid.
Nos próximos três artigos, os autores optaram por uma perspectiva comparativa, explorando de que forma diferentes intelectuais refletiram sobre a ideia política da descolonização, tanto em uma perspectiva nacional quanto transnacional. Cada um a seu modo e por diferentes vieses, tendo por eixo condutor a descolonização, demonstram convergências e divergências no pensamento político de africanos e afro-descendentes com diferentes formações e origens, demonstrando, em seu conjunto, a complexidade de elementos a respeito do tema aqui em pauta.
Bruno Ribeiro Oliveira, doutorando pela Universidade de Granada, no texto “Literatura, Linguagem e Descolonização em Ngũgĩ wa Thiong’o (Quênia) e Chinua Achebe (Nigéria)”, realiza uma análise entre as ideias de dois literatos contemporâneos, Chinua Achebe e Ngũgĩ wa Thiong’o, o primeiro queniano e o segundo nigeriano, demonstrando como estes refletiram sobre a produção literária colocando em debate a questão do uso da língua do colonizador no período pós-colonial. Ambos foram combativos em relação aos estados autoritários processados após as independências e utilizaram a literatura como forma de denúncia ante a persistência de problemas coloniais após as descolonizações. O autor realiza uma importante análise sobre o uso da língua e da literatura no que tange às descolonizações africanas, assim como demonstra de que forma estas são instrumentos políticos.
Camille Johann Scholl, doutoranda pela PUC-RS, em seu artigo “Léopold Senghor & Cheikh Anta Diop, rivais: Descolonização e Unidade Africana” olha para as negociações em prol das independências das colônias francesas capitaneadas de dentro do sistema colonial, apontando os diferentes projetos políticos federalistas em pauta, capitaneados por distintos partidos políticos, bem como apresenta as diferentes ideias sobre a descolonização e sobre a unidade africana entre dois conhecidos e renomados intelectuais senegaleses, Léopold Senghor e Cheikh Anta Diop.
Amilcar Alexandre Oliveira da Rosa, mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), no texto “Benjamin e Fanon: experiência e descolonização” realiza uma análise sobre a noção de experiência em Walter Benjamin e Franz Fanon, proporcionando ao leitor um olhar a respeito das relações de opressão e suas formas de combate, abordando as ideias destes dois intelectuais sobre a condição humana. O autor nos proporciona uma relevante reflexão para pensar a questão da modernidade, das trágicas relações suscitadas pelo colonialismo e de aspectos da construção das descolonizações – pelas lentes das obras de Benjamin e Fanon.
Assim, por meio desses sete artigos, é possível observar a existência de múltiplas abordagens possíveis sobre o pensamento político africano e afro-diaspórico no seu período de descolonizações. Para além de uma perspectiva que simplesmente submete essas ideias ao contexto global da chamada Guerra Fria, o que se percebe aqui é a existência de reflexões que passavam pela estética literária, pela construção de identidades nacionais e transnacionais, de modelos de governo e de desenvolvimento, e de contestação do próprio lugar em que o continente estava inserido. Combatendo um olhar único sobre o continente africano, o que esse dossiê apresenta de fato é a complexidade das ideias políticas existentes em diversas regiões do continente africano, que abrem espaço para variadas futuras pesquisas, necessárias para a compreensão do período.
Camille Johann Scholl – Técnica em Assuntos Educacionais da UFRGS e Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) desenvolvendo a tese “Léopold Senghor e a Lusofonia”. Possui Mestrado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e graduação em História (licenciatura e bacharelado) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2013). Lattes: http: / / lattes.cnpq.br / 1239919512431547
Pedro de Oliveira Barbosa – Doutorando no Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) com pesquisa relacionada ao pensamento socialista na descolonização africana. Possui Mestrado em História na mesma instituição, concluído em 2018, e graduação em História (licenciatura) também na PUCRS (2016). Lattes: http: / / lattes.cnpq.br / 8736658275450507
SCHOLL, Camille Johann; BARBOSA, Pedro de Oliveira. Apresentação. Revista Discente Ofícios de Clio, Pelotas -RS, v. 5, n. 9, jul./dez., 2020. Acessar publicação original [DR]
Memórias, Patrimônios e Narrativas / Ofícios de Clio / 2020
Existem três tempos, disse Santo Agostinho no livro XI de suas Confissões, “o presente do passado, o presente do presente e o presente do futuro. (…) O presente do passado é a memória; o presente do presente é a intuição direta; o presente do futuro é a esperança.” Assim também podem ser pensadas as relações entre memória, patrimônio e narrativa, uma vez que são fenômenos que adquirem sentido no presente, e mobilizam a percepção que se tem de passado e de futuro, seja como reconhecimento ou como promessa (RICOEUR, 2007). No mesmo sentido, a dimensão narrativa que envolve as noções de memória e de patrimônio lança luz sobre diferentes zonas de conflito e de reivindicações identitárias, manifestadas em lugares, discursos e celebrações.
Da mesma forma, cabe lembrar que a memória também é construída por meio de narrativas, que constituem discursos e organizam experiências, de modo a dar sentido à relação que uma coletividade estabelece com o seu passado. Essa relação está presente não apenas naquilo que se diz do passado, mas nos lugares, bens, saberes e fazeres reconhecidos como patrimônios.
Ainda que a noção de patrimônio, como herança, remonte a Antiguidade Clássica, é a sua dimensão política e suas interfaces sociais e culturais que interessam a esta discussão. De acordo com Josep Ballart Hernandez, o patrimônio é resultado de um ou mais processos de atribuição de valores socialmente construídos, em suas palavras:
El valor es una cualidad añadida que los individuos atribuyen a ciertos objetos que los hacen merecedores de aprecio. Estamos, pues, ante un concepto relativo que aparece y desaparece en función de un mareo de referencias intelectuales, culturales, históricas y psicológicas, que varia según las personas, los grupos y la épocas. (HERNÁNDEZ et al.1996, p. 215)
Esses valores resultam, por sua vez, do conjunto de memórias compartilhadas por uma coletividade, bem como dos hábitos e costumes consolidados em suas narrativas, rituais e lugares de memória (NORA, 1993). Assim, quando se propõe a discussão em torno das relações estabelecidas entre memória, patrimônio e narrativa, o que se está realmente propondo é um olhar sobre a construção, a difusão e a consolidação desses valores, que, em última análise, refletem a sociedade que os reproduz.
Nessa perspectiva, a memória é percebida não apenas como a capacidade de reconhecer e acumular uma lembrança, mas também como um processo de compartilhamento de representações sociais, as quais se manifestam de diferentes formas, desde o estabelecimento de cultos e práticas religiosas, até a superação de traumas e a reivindicação identitária. Dessa forma, como afirma Joel Candau (2012, p. 19), “Não há busca identitária sem memória e, inversamente, a busca memorial é sempre acompanhada de um sentimento de identidade”.
A importância da narrativa como um elemento de coesão tanto nos processos de patrimonialização, quanto nas buscas memoriais se faz evidente nos artigos que compõem este dossiê, demonstrando que a narrativa não se restringe ao gesto do testemunho, mas está imbricada nas práticas sociais e nos costumes consolidados por elas. Afinal, como afirma Bruner (1997, p. 152) “nuestra experiencia de los asuntos humanos viene a tomar la forma de las narraciones que usamos para contar cosas sobre ellos”.
Os artigos que compõem este dossiê discutem, cada um à sua maneira, as relações entre patrimônio, memória e narrativa. Podendo ser divididos em dois grupos: o primeiro, composto por artigos que discutem essas relações pelo viés da narrativa e dos seus desdobramentos como rituais e tradições; o segundo, composto por artigos que discutem a cultura material, expondo o modo como as coletividades se relacionam com as materialidades do seu passado. A seguir, conheça um pouco sobre cada um deles.
No artigo “Escrita, biografia e sensibilidade: o discurso da memória soviética de Svetlana Aleksiévitch como um problema historiográfico”, João Camilo Grazziotin Portal, mestrando da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) chama a atenção para a necessidade de se pensar o indivíduo como um elemento fundamental na construção da narrativa histórica, e o faz por meio de uma leitura crítica da obra de Svetlana Aleksiévitch. Nessa perspectiva, o autor discute os usos da memória enquanto fonte para o gênero literário testemunhal, abordando as noções de verdade e de testemunho no intricado limite entre a História, a Memória e a Literatura.
Com o mesmo propósito de buscar o indivíduo na construção da narrativa histórica, Vanessa dos Santos Bernardes, mestranda do Programa de Pós-Graduação (PPG) da Universidade Federal de Pelotas, em seu artigo intitulado “De soldado a santo: a história de Maximiano Domingos do Espírito Santo. ‘O homem com a grandeza de um coração bem formado’”, apresenta-nos a trajetória biográfica de um santo popular e seu legado para o imaginário social fronteiriço. Nesse artigo a noção de memória é discutida tanto em relação ao ritual de visitação / adoração ao túmulo de Maximiano, como ao compartilhamento de representações sociais referentes a sua importância para o protagonismo negro na região.
As narrativas religiosas e os rituais que as envolvem, também protagonizam o artigo “Narrativas da religiosidade popular em Bonito -MS: o mito de Sinhozinho, o santo (1940-2018)”, sob a autoria da doutoranda pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Layanna Sthefanny Freitas do Carmo. Com um olhar sensível à religiosidade popular e à dimensão mítica das narrativas sobre Sinhozinho, a autora expõe a persistência da memória pela tradição oral, bem como a importância de se considerar a literatura local como fonte.
Em “A comemoração como lugar de disputa: um estudo das mobilizações do passado pelos povos indígenas nas Comemorações dos ‘500 anos do Brasil’ (2000)”, Pedro Henrique Batistella, mestrando da UFRGS, apresenta uma profícua discussão sobre os usos políticos do passado no contexto de disputa pela memória que caracterizou as comemorações dos “500 anos do Brasil”. Com um olhar voltado às ações do e sobre o movimento indígena, o autor expõe as políticas de comemorações em suas dimensões de classe, raça, gênero e status de cidadania.
As questões metodológicas que envolvem a compreensão contemporânea dos discursos sobre gênero e sexualidade são o mote do artigo “Agripina e o diálogo com o poder: reflexões sobre gênero e sexualidade em / na Roma Antiga”, sob autoria de Caroline Coelho, aluna de graduação em História da UFRJ. Ao discutir a importância de Agripina como mulher politicamente ativa na biografia de Nero, a autora expõe as formas de poder que permeavam as relações de gênero no Império, bem como os silenciamentos e distorções acerca da construção da imagem de Agripina e das narrativas construídas sobre ela.
Os conflitos de memória e os processos de reivindicação memorial relativos a eventos traumáticos da história recente brasileira são as principais temáticas trabalhadas pelo mestrando da UNICENTRO, Bruno César Pereira, em seu artigo intitulado “O Massacre do Carandiru: entre apagamentos e exclusões, uma disputa pela memória”. Com o propósito de compreender as relações de disputa que envolvem as diferentes narrativas sobre o massacre do Carandirú, o autor busca, na produção bibliográfica e audiovisual produzida sobre o evento, expor as contradições existentes entre essas narrativas, bem como demonstrar as relações de poder e os silenciamentos decorrentes da consolidação dessas narrativas.
No artigo “Aproximação entre dois patrimônios: a construção narrativa dos Conventos Franciscanos nas Crônicas da Ordem no Período Colonial”, sob autoria de Rafael Ferreira Costa, também do PPG da UFPEL, a relação entre narrativa e patrimônio se dá no âmbito da escrita, isto é, na relevância do conhecimento preservado nas Crônicas Clássicas da Ordem dos Frades Menores de São Francisco no Brasil, para a compreensão dos processos de patrimonialização de seu espólio construtivo. O autor desenvolve, assim, uma discussão em torno do valor patrimonial das Crônicas e das edificações pertencentes à Ordem, expondo as construções narrativas que as conectam.
A relação entre os imigrantes espanhóis e a cidade de Belém do Pará, construída desde o processo migratório iniciado no século XIX, é o tema tratado por Aline de Kassia Malcher Lima, mestranda da Universidade Federal do Pará (UFPA), no artigo intitulado “Belém dos Imigrantes: espanhóis na capital paraense (1890-1920)”. Dessa forma, a autora propõe uma reflexão sobre a relevância das redes de sociabilidade e solidariedade construídas por esses imigrantes no cenário socioeconômico de Belém.
A relação entre cultura material e memória é o mote do artigo intitulado “Alinhavando as memórias: a apropriação do vestuário como objeto de recordação”, sob autoria de Laiana Pereira da Silveira, mais uma componente do PPG da UFPEL. Nele a autora discute a importância do vestuário como um objeto de recordação, sobre qual são estabelecidos vínculos identitários e de pertencimento. No mesmo sentido, a autora evidencia o papel evocador de memórias exercido pelo vestuário, enquanto objeto cotidiano que acompanha os indivíduos por toda a vida.
O necessário diálogo entre a Arqueologia e a História, para uma melhor compreensão dos processos de ocupação do território e de construção das estruturas sociais sobre as quais a sociedade brasileira está baseada, configura o mote do artigo intitulado “Cumaú ou Santo Antônio? Uma Abordagem Histórica Sobre o Forte no Igarapé da Fortaleza – AP”, sob autoria de Diovani Furtado da Silva, mestre pela Universidade Federal do Amapá (UNIFAP). Nele, o autor expõe a complexidade das narrativas construídas sobre o objeto analisado, isto é, o Forte Português construído sobre os vestígios do Forte Inglês, que por sua vez, foi construído junto a um assentamento indígena.
No artigo intitulado “Museu Imperial: narrar entre as reticências da memória e as exclamações da História”, Priscila Lopes d’Avila Borges, doutoranda da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), discute a relação entre memória, narrativa e patrimônio sob a perspectiva da educação em museus, questionando o uso pedagógico do museu e expondo os silenciamentos que podem decorrer de práticas equivocadas no relacionamento público-museu. O museu, enquanto lugar de memória, é apresentado pela autora como um universo potencial de aprendizagem, quando reconhecido como um campo de disputa e tensão entre memória e esquecimento.
Uma abordagem semelhante, relativa a comunicação entre público e instituições de salvaguarda, ou gestores patrimoniais, pode ser observada no artigo intitulado “A Importância do Inventário Participativo na Preservação do Patrimônio Cultural”, sob autoria da mestranda pela Universidade Federal do Pernambuco, Emanuelly Mylena Velozo Silva. Nele, a autora chama a atenção para a importância do inventário participativo como um instrumento cultural que aproxima sociedade civil e Estado ao longo dos processos de reconhecimento e salvaguardada do Patrimônio Cultural. Da mesma forma, aponta para a contribuição dessa forma de inventário para a valorização de tradições territórios e saberes negligenciados por formas mais convencionais de registro.
Ainda dentro de uma perspectiva crítica em relação à comunicação entre instituições de memória e seus públicos, o artigo “A pedagogia da memória através dos comentários do TripAdvisor: análise do Archivo Provincial de la Memoria, Argentina”, sob autoria de Carolina Gomes Nogueira, mestranda do PPG da UFPEL, propõe uma reflexão acerca da pedagogia da memória enquanto uma estratégia educativa adotada pelo Archivo Provincial de la Memoria, e seus desdobramentos nos discursos difundidos no ciberespaço. Assim, a autora traz para o campo do debate as conexões entre políticas de memória e justiça de transição, bem como sua relevância para a relação estabelecida entre os visitantes e a instituição de salvaguarda.
Por fim, cabe ressaltar que, como afirma Carlo Ginzburg (2007, p.8), “entre os testemunhos, seja os narrativos, seja os não narrativos, e a realidade testemunhada existe uma relação que deve ser repetidamente analisada”, e esta relação se faz ver, direta ou indiretamente, nas muitas formas como os indivíduos e as coletividades se relacionam com o seu passado. Os artigos que compõem este dossiê apresentam uma gama diversa dessas relações e, assim, contribuem para uma melhor compreensão do mundo enquanto espaço comum, neste tempo entre a memória e a esperança.
Referências
AGOSTINHO, Santo, Bispo de Hipona. Confissões. Tradução de Frederico Ozanam Pessoa de Barros. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.
BRUNER, Jerome. La Educación Puerta de la Cultura. Madri: Visor, 1997.
CANDAU, Joel. Memória e Identidade. São Paulo: Contexto, 2012.
GINZBURG, Carlo. O Fio e os Rastros: Verdadeiro, Falso, Fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
HERNÁNDEZ, Josep Ballart et al. El valor del patrimônio histórico. Complutum Extra, 6(11), 1996. P. 215-224. https: / / revistas.ucm.es / index.php / CMPL / article / view / CMPL9696330215A / 29835 Último acesso em 05 / 05 / 2020
MENDOZA GARCÍA, Jorge. «Las formas del recuerdo. La memoria narrativa». Athenea digital, [en línea], 2004, n.º 6, https: / / www.raco.cat / index.php / Athenea / article / view / 34157 [Consulta: 20-09- 2020].
RICOEUR, Paul. A Memória, a História, o Esquecimento. Campinas: Editora Unicamp, 2007.
Cristiéle Santos de Souza – Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural / UFPel.
Isabel Cristina Bernal Vinasco – Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural / UFPel.
SOUZA, Cristiéle Santos de; VINASCO, Isabel Cristina Bernal. Apresentação. Revista Discente Ofícios de Clio, Pelotas -RS, v.5, n. 8, jan./jun., 2020. Acessar publicação original [DR]
Gênero, diversidades, interseccionalidades: perspectivas de análise na pesquisa histórica / Ofícios de Clio / 2019
A ascensão de movimentos e pautas conservadoras ao redor do mundo – e, de modo mais específico, intenso e preocupante, no Brasil –, impõe-nos uma série de novos desafios, tais como o enfrentamento de discursos e práticas que buscam deslegitimar os movimentos feministas. A produção e disseminação deliberadas de equívocos, por parte desses movimentos, em torno de conceitos elaborados e já estabelecidos no âmbito dos espaços acadêmicos, sob o argumento de combate a uma suposta “ideologia de gênero”, vêm causando enorme desserviço ao projeto de construção de uma sociedade mais justa e baseada na equidade de gênero. O uso dessa expressão, aliás, demostra desconhecimento sobre temas que integram uma cultura pautada no sexismo, machismo e lgbtfobia, os quais são, historicamente, objetos de sérios e profundos debates teóricos de feministas de diversos países no campo dos estudos de gênero.
As lutas feministas e a produção de saberes em torno das questões de gênero, fundamentais para a redução das diferenças que separam homens e mulheres, para a promoção de uma sociedade mais inclusiva e menos intolerante, veem-se ameaçadas por práticas sistemáticas de dissolução de políticas públicas de gênero, pela redução de verbas para as universidades, pelos cortes de bolsas de pesquisa – especialmente para a área das ciências humanas –, pelo questionamento acerca da seriedade e validade das pesquisas, dentre outras formas de deslegitimação do conhecimento. Por isso, é salutar recordar que os avanços conquistados pelas minorias, sejam étnico / raciais, de classe ou de gênero, foram resultado de lutas travadas no passado e que, de forma alguma, estão assegurados. A história está repleta de exemplos de como tais avanços são intercalados por tentativas de retrocesso, muitas vezes alcançados parcial ou totalmente.
A reivindicação por direitos sociais está na raiz do feminismo. No campo acadêmico, sua trajetória também é marcada pela constituição de espaço e visibilidade para as pesquisas nas mais diversas áreas de investigação. Na historiografia, essa observação pode ser melhor compreendida por meio dos estudos de Bonnie Smith (2003). A autora, ao questionar sobre a construção do sujeito masculino como universal, tanto na história como no concernente ao prestígio na escrita acadêmica, tece reflexões que “[…] ajudam a explicar como passamos a exaltar o historiador homem e a menosprezar ou até mesmo suprimir a obra histórica das mulheres” (SMITH, 2003, p. 156).
Não nos compete, para esta apresentação, fazer um levantamento bibliográfico sobre os estudos históricos que versam sobre a história das mulheres, o(s) feminismo(s) e / ou o gênero. Mas é importante destacarmos algumas pesquisas que influenciaram profundamente o campo acadêmico e possuem estreitas relações com as reivindicações de pautas de movimentos sociais de sua época. Michelle Perrot, em “Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros”, de 1988, e mais tarde com “As mulheres ou os silêncios da história” (2005), abriu espaço para investigações que buscaram perceber e valorizar as trajetórias de mulheres na história. Além de inovações teóricas, metodológicas, uso de fontes históricas e levantamentos de novos problemas, as inquietações contribuíram para revisitar e questionar pesquisas já consagradas na área.
Ainda na década de 1980, momento de efervescência dos movimentos identitários, e sob influência do pensamento de Michel de Foucault, Joan Scott sistematizou o conceito de gênero como categoria analítica, definindo-o como “[…] um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos e […] uma forma primeira de significar as relações de poder” (SCOTT, 1995, p. 86).
Na década de 1990, com a contribuição dos movimentos LGBT, os estudos de gênero tiveram novas influências. A filósofa Judith Butler apresentou uma série de questionamentos / problemas, que serviram tanto para problematizar o caráter de uma essência feminina na mulher enquanto sexo biológico, como para desenvolver, a partir daí, sua teoria da performatividade, através da qual pode demonstrar a produção generificada dos corpos. Nessa investigação, a autora interrogou se “[…] ser mulher constituiria um ‘fato natural’ ou uma performance cultural, ou seria a ‘naturalidade’ constituída mediante atos performativos discursivamente compelidos, que produzem o corpo no interior das categorias de sexo e por meio delas?” (BUTLER, 2003, p. 8-9). Em outras palavras, a filósofa salientou que a relação sexo / gênero não é direta, tampouco compulsória. Sua contribuição teórica, portanto, abriu espaço para o entendimento das diversas identidades de gênero. Logo, as categorizações homem e mulher foram questionadas por contribuir para a universalização dos sujeitos.
Por outro lado, o gênero como categoria única de análise também foi questionado, sobretudo por feministas afroamericanas, as quais se percebiam excluídas desse monolítico denominado “mulher”, denunciando que este incluía somente mulheres brancas e de classe média. Dessa forma, teóricas com Kimberlé Crenshaw (2004), bell hooks (2019), Audre Lorde (1984), Angela Davis (2016) dentre outras, contribuíram para a formulação da noção de interseccionalidade. Por meio dessa ampliação de ferramentas metodológicas, a análise pautada nos estudos de gênero dispõe de uma observação que busca perceber os cruzamentos junto a outras categorias de análise como raça, etnia, classe, idade, geração, sexualidade, religião, nacionalidade, dentre outras.
No Brasil, os estudos de Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro, por exemplo, já interrogavam sobre esses cruzamentos ao pensarem as relações de gênero desde a perspectiva racial. Para Gonzalez (2016, p. 410), “A maioria dos textos, apesar de tratarem das relações de dominação sexual, social e econômica a que a mulher está submetida […], não atenta para o fato da opressão racial”. Carneiro (2003) também destaca a importância de se pensar o racismo e seus impactos nas relações de gênero como eixo articulador do feminismo negro, sobretudo em sociedades multirraciais, pluriculturais e racistas como são as latino-americanas, por ser esse um elemento determinante na própria hierarquia de gênero.
Parte dessas questões também integram as discussões de pesquisadoras brasileiras. Segundo Rachel Soihet e Joana Maria Pedro (2007), tanto as reinvindicações advindas do movimento feminista como das observações da produção acadêmica, interrogaram sobre a generalização provocada mediante a percepção em torno do gênero como binário. Para essas autoras, outras questões atravessam as relações sociais e influenciam diretamente na construção e relações de gênero.
Mulheres negras, índias, mestiças, pobres, trabalhadoras, muitas delas feministas, reivindicaram uma ‘diferença’–dentro da diferença. Ou seja, a categoria ‘mulher’, que constituía uma identidade diferenciada da de ‘homem’, não era suficiente para explicá-las. Elas não consideravam que as reivindicações as incluíam (SOIHET; PEDRO, 2007, p. 287).
Em pesquisa mais recente, Carla Akotirene (2018, p. 14) observa que a análise interseccional deve “[…] dar instrumentalidade teórico-metodológica à inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado”, os quais influenciam diretamente na constituição das relações sociais. Ou seja, diante das relações sociais excludentes, essas três categorias não devem ser pensadas sozinhas, pois atuam de maneira relacional.1 A autora destaca também a importância de tomar a proposta interseccional com atenção, para que não seja feita uma soma de hierarquias, pois a interseccionalidade visa perceber como as diferentes categorias sociais se cruzam e contribuem para as configurações sociais. Ressalta, ainda, que essa reflexão não deve pautar-se apenas em perceber as exclusões, pois, nesse cruzamento, torna-se possível perceber as inclusões e pertencimentos proporcionados pelos marcadores sociais.
Em vez de somar identidades, analisa-se quais condições estruturais atravessam corpos, quais posicionamentos reorientam significados subjetivos desses corpos, por serem experiências modeladas por e durante a interação das estruturas, repetidas vezes colonialistas, estabilizadas pela matriz de opressão, sob forma de identidade (AKOTIRENE, 2018, p. 39).
Nesse sentido, a Revista Discente Ofícios de Clio junta-se a outros atores sociais no esforço de dar visibilidade a conhecimentos produzidos por discentes de graduação e pós-graduação, através de pesquisas de caráter teórico e prático, em torno de diversos temas relacionados com as questões de gênero e diversidade sexual, com perspectivas variadas. Diante da proposta de trazer novas contribuições para a historiografia e as áreas afins, o dossiê “Gênero, diversidades, interseccionalidades: perspectivas de análise na pesquisa histórica” reuniu artigos que buscam problematizar as questões de gênero nos mais diversos contextos históricos.
No primeiro deles, “A História das Mulheres: Uma Questão Política No Brasil”, Eduarda C. de Castro Alves, Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO, historiciza a inserção dos estudos sobre mulheres no âmbito acadêmico como um processo de disputa política. Para tanto, retoma os conceitos de feminismo e gênero, os quais são resultantes de diversas lutas, reivindicações e embates políticos de mulheres que extrapolaram para o debate acadêmico e pautaram novos campos de investigação histórica e, ao longo das décadas, foram transformando o fazer histórico, tornando-o mais plural e menos centrado na produção do conhecimento dos homens por eles próprios. Alves nos instiga, ainda, a pensar nos impactos dessas produções para além do universo acadêmico, com resultados que podem interferir na vida das mulheres, inclusive das subalternizadas, como é o caso daquelas em situação de prostituição.
Em “‘Reparar o Erro Através do Casamento’: Honra, Moral e Sexualidade em um Trâmite Judicial”, Alécio Gonçalves da Silva, Graduado em História pela Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT, utiliza processos judiciais da década de 1980 como fontes históricas para realizar um estudo de caso da cidade de Cáceres, no estado do Mato Grosso. O autor observa como distintos discursos cruzam-se para controlar os corpos, a sexualidade, disciplinar as práticas cotidianas e os desejos. Nessa construção discursiva sustentada por relações de poder, Silva destaca como o patriarcalismo foi utilizado ao longo do século XX para sustentar discursos morais para a realização de uniões conjugais e serviram como forma de regular a sexualidade.
Caroline Rios Costa, em “A força da mulher argentina: resistência e luta política nas Madres de Plaza de Mayo e no grupo #NiUnaMenos”, apresenta uma significativa reflexão do protagonismo das mulheres em dois contextos diferentes na Argentina. O Madres de Plaza de Mayo ficou conhecido pela busca dos / as filhos / as desaparecidos / as durante a ditadura. As mães reunidas na praça não só questionaram sobre o paradeiro de seus / as filhos / as como promoveram importantes discussões contrárias à ditadura e outras violências sofridas pelas mulheres. Já o grupo #NiUnaMenos desenvolveu-se como forma de insatisfação e protesto contra as violências contra as mulheres, destacando-se ainda busca pela descriminalização do aborto. Com a diferença temporal de quase 40 anos, Costa destaca características de ambos os grupos e suas similaridades na reivindicação por uma sociedade mais justa e democrática.
No artigo “Processos de invisibilização das mulheres na atividade pesqueira nas legislações brasileiras entre 1846-1990”, Beatriz Lourenço Mendes, Mestranda em Direito e Justiça Social pelo Programa de Pós-Graduação em Direito – FURG, Gabriel Ferreira da Silva, Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental – FURG, Felipe Nóbrega Ferreira, Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental – FURG, destacam diversos aspectos da atividade pesqueira, como os saberes tradicionais, as mudanças provocadas pelo desenvolvimento científico, a criação de legislações e órgãos responsáveis pela fiscalização e a regulamentação da mesma. Os / as autores / as identificam o silenciamento acerca da participação das mulheres nas atividades de pesca, sobretudo por parte do Estado, ressaltando que, embora elas tenham enfrentado os problemas decorrentes da invisibilização, tal fato não as impediu de participar ativamente dessa função.
Em “Mulheres do Povo e Espaço Público na Revolução Francesa: Uma Análise Através de Imagens”, Amanda de Queirós Cruz, graduanda em História pela Universidade Federal Fluminense – UFF, sob a perspectiva da história das mulheres, revisita a produção acerca da Revolução Francesa explorando fontes imagéticas produzidas durante o período revolucionário e, através delas, reflete acerca da participação ativa das mulheres durante a revolução. Seja por meio de protestos nas ruas ou organizações, as mulheres foram protagonistas na busca por melhores condições sociais. A autora observa que em protestos de grande público e “atravessando a fronteira para o lado que não lhes era permitido, simplesmente ao realizarem o ato físico de saírem da soleira da porta de seus lares e irem para a rua”, foram responsáveis pela movimentação da revolução.
Jaqueline Silva de Macedo, Mestre em História pela Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP, utiliza a produção literária como fonte histórica para direcionar sua investigação acerca das narrativas construídas sobre a Fortuna, divindade grega e romana, em “A Fortuna no Roman de Fauvel e sua relação com a tradição literária e religiosa da Civitate Dei e da Consolatio philosophiae na Idade Média”. Buscando perceber as aproximações e distanciamentos nas narrativas empregadas, Macedo seleciona as obras Roman de Fauvel, Civitate Dei, de Agostinho e Consoloatio philosiphae de Boécio. Nessa interlocução, a autora observa como essas obras literárias contribuíram para a construção do imaginário cristão e das interpretações sobre Fortuna, e como as características da feminilidade foram reforçadas por meio de discursos pautados sobre a vontade divina.
Por fim, Miller Goulart Ferreira, Graduado em História Licenciatura pela Universidade de Brasília – UNB, através do artigo “História da homossexualidade ligada à transmissão de HIV / AIDS e abordagem na escola pelo filme Filadélfia de Jonathan Demme (1993)” procura problematizar a homofobia, sugerindo a utilização deste filme como suporte pedagógico para fomentar o debate acerca de questões relacionadas aos direitos civis e ao enfrentamento de violências contra homossexuais. Ferreira, além de indicar o uso de recursos audiovisuais na sala de aula, estabelece algumas considerações acerca do movimento gay no Brasil e Estados Unidos e da participação desses na conquista de direitos.
Nosso objetivo, nesse dossiê, foi reunir artigos que dialogassem com a pluralidade de experiências e / ou representações de gênero, feminismos, masculinidades e diversidades – enfocando relações de poder, de violência ou de resistência – em perspectiva histórica ou interdisciplinar, utilizando fontes orais, impressas, literárias, imagéticas ou audiovisuais de modo a contribuir para a promoção do debate qualificado acerca das relações de gênero, com o propósito de garantir avanços duramente conquistados e ampliar as perspectivas das mulheres na luta por uma sociedade mais equânime, menos violenta e com mais respeito às diferenças.
Uma boa leitura a todes!
Nota
1. Para Akotirene, cisheteropatriarcado é a noção conceitual que compreende a relação do patriarcado e as expectativas de gênero construídas em torno de um corpo pautado nas diferenças biológicas binárias, que, junto às imposições, diante da identidade estética de pessoas cisgêneras como desejadas, exclui as pessoas que escapam a esse padrão (AKOTIRENE, 2018).
Referências
AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade? Belo Horizonte (MG): Letramento: Justificando, 2018.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
CARNEIRO, Aparecida Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de. (Org.). Pensamento Feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.
CRENSHAW, Kimberlé. A intersecionalidade na discriminação de raça e gênero. VV. AA. Cruzamento: raça e gênero. Brasília: Unifem, 2004.
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. S. Paulo: Boitempo, 2016.
GONZALEZ, Lélia. A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem políticoeconômica. In: RODRIGUES, Carla; BORGES, Luciana; RAMOS, Tania R. O. (Org.). Problemas de gênero. Rio de Janeiro: Funarte, 2016. p. 399-416.
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LORDE, Audre. Age, Race, Class and Sex: Women Redefining Difference. In: LORDE, Audre. Sister Outsider: Essays and Speeches. Freedom, CA: Crossing Press, 1984.
PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Trad. Viviane Ribeiro. São Paulo: Edusc, 2005.
SCOTT, Joan W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul. / dez. 1995, pp. 71-99.
SMITH, Bonnie G. Gênero e História: homens, mulheres e a prática histórica. Ed. EDUSC: São Paulo, 2003.
SOIHET, Rachel; PEDRO, Joana Maria. A Emergência da Pesquisa da História das Mulheres e das Relações de Gênero. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 27 nº 54, 2007.p. 287.
Joelma Ferreira dos Santos – Doutoranda pelo PPGH / UDESC – Florianópolis-SC. E-mail: fsantos.joelma@gmail.com
Jorge Luiz Zaluski – Doutorando pelo PPGH / UDESC – Florianópolis-SC. E-mail: jorgezaluski@hotmail.com
SANTOS, Joelma Ferreira dos; ZALUSKI, Jorge Luiz. Apresentação. Revista Discente Ofícios de Clio, Pelotas -RS, v. 4, n. 7, jul./dez., 2019. Acessar publicação original [DR]
Intolerâncias, preconceitos e racismos na Era Moderna: entre permanências e rupturas / Ofícios de Clio / 2019
No Brasil atual, o tempo inteiro somos bombardeados com notícias que chocam o nosso dia a dia. Algumas, em particular, embora chamem pouca atenção da população geral, são questões improteláveis no debate civil e apontam um problema crítico, que reflete a permanência da indiferença que os expedientes raciais tiveram na construção da sociedade brasileira na longa duração: os ataques às religiões de matriz africana. De acordo com um levantamento feito pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, as denúncias de violação ao direito de livre profissão dessa fé cresceram quase cinquenta por cento, se comparado ao ano de 2018. As queixas se referem principalmente a depredação dos locais de culto, invasões e incêndios criminosos. Ainda, o debate público, acirrado principalmente nas redes sociais, traz à tona o completo desconhecimento cultural da herança africana, colaborando com a manutenção de preconceitos e com o esvaziamento da luta pela igualdade de crenças. É sabido que nos termos jurídicos vigentes, a liberdade de credo é constitucionalmente assegurada, mas no campo empírico, observa-se uma contínua marginalização da cultura africana, afrontada constantemente pela violência física e simbólica de seus espaços. Com as instituições incapazes de responder na forma da lei para garantir a salvaguarda necessária para que as estatísticas mencionadas acima possam ser modificadas, também nos deparamos com a inaptidão da sociedade civil em aceitar em seu seio a liberdade religiosa e discutir a tolerância em todas as suas formas.
A questão da intolerância em âmbito político, social e cultural não é um problema recente. De fato, a intolerância em âmbito religioso é um forte marcador cultural da sociedade ocidental. Durante a Idade Média, as cruzadas buscavam combater o “infiel” muçulmano e retomar Jerusalém. Na Era Moderna, a intolerância – e também importantes contrapontos de tolerância – foram parte importante da conformação do imaginário e das ações políticas e práticas europeias. A retomada de Castela pelos reis católicos em 1482, e a consequente expulsão de mouros e judeus do território, marcou a guinada da fé como definidor dos expedientes das sociabilidades ibéricas, debutando bulas inquisitoriais para a uniformização religiosa das populações e repreendendo com grande ímpeto o “infiel”, pois o inimigo da fé era também inimigo do Estado. Ainda, a Igreja Católica respondia em Trento por outra parte da sua disputa de narrativa no palco europeu: para estancar a sangria da Reforma iniciada por Lutero, a Igreja decidiu acirrar a vigilância e deliberou ações pautadas na repressão, inclinada ao reforço da autoridade papal e anuindo o funcionamento dos tribunais de consciência em diversos territórios. No íntimo destas querelas, estavam judeus, muçulmanos e, mais tarde, cristãos-novos, grupos que cresceram em constante diáspora e eram colocados sob suspeição tanto em reinos católicos como protestantes. A prática de qualquer fé que não se enquadrasse nos termos de grande parte da cristandade europeia, poderia ser aditada como crime na esfera civil e religiosa.
Essa lógica permeada de intolerância, inclusive, foi a principal justificativa em âmbito moral para a expansão europeia, por vias atlânticas, à África. Nos escritos de Gomes Eanes de Zurara3 , “Crônica do Descobrimento e Conquista da Guiné”, datados de 1453, o autor elencou os cinco principais motivos que levaram o Infante D. Henrique a ir além do Bojador e alcançar a Guiné. Nos interessa, no âmbito deste texto, o terceiro, quarto e quinto motivo:
A terceira razão foi, porque se dizia, que o poderio dos Mouros daquela terra d’África, era muito maior do que se comumente pensava, e que não havia entre eles cristãos, nem outra alguma geração. E porque todo sisudo, por natural prudência, é constrangido a querer saber o poder de seu inimigo, trabalhou-se o dito senhor de o mandar saber, para determinadamente conhecer até onde chegava o poder daqueles infiéis. A quarta razão, porque, de 30 anos que havia que guerreava com os mouros, nunca achou rei cristão, nem senhor de fora desta terra, que por amor do nosso senhor Jesus Cristo o quisesse na dita guerra ajudar. Queria saber se achariam em aquelas partes alguns príncipes cristãos, em que a caridade e amor de Cristo fosse tão esforçada, que o quisessem ajudar contra aqueles inimigos da fé. A quinta razão, foi o grande desejo que havia de acrescentar a santa fé de nosso senhor Jesus Cristo, e trazer a ela todas as almas que se quisessem salvar, conhecendo que todo o mistério da encarnação, morte e paixão de nosso senhor Jesus Cristo, foi obrado a esta fim, por salvação das almas perdidas, as quais o dito senhor queria, por seus trabalhos e despesas, trazer ao verdadeiro caminho. (ZURARA, 1453, p. 45- 47)
Como se percebe, a injunção moral que a Coroa Portuguesa possuía para expandir até a África era o combate ao Islã. Além disso, o acréscimo a “santa fé de nosso Senhor Jesus Cristo” para a “salvação das almas pedidas” não se interessava exatamente pela liberdade dessas pessoas a serem salvas. A redução à escravidão tanto dos “infiéis” quanto “das almas que se quisessem salvar” não era um problema para os europeus.
O aspecto somático também advinha, no imaginário europeu, de um aspecto religioso. Como explícito em inúmeros relatos e crônicas de viagem, pensavam que as pessoas ao sul do Saara eram negras por serem amaldiçoadas, filhas de Cam. Ao longo dos séculos que se seguiram aos primeiros contatos no século XV, esse aspecto somático foi se tornando uma pseudociência, que justificava a inferioridade das pessoas negras perante as pessoas brancas. Baseado em preceitos de eugenia e de darwinismo social, no século XIX o Ocidente tencionou criar uma base “científica” de diferenças de raças humanas. Na humanidade, a raça não existe biologicamente, sendo algo criado socialmente. Essa criação social deu origem a intolerância racista.
A formação histórica brasileira tem relação intrínseca com o quadro apresentado. Para além de uma perseguição religiosa, devemos nos debruçar no significado da constituição social e política da nossa história, cravada em marcadores étnicos categóricos para a definição de sua estrutura, sensível – e inflexível – ao componente africano, relegado primeiramente às condições desumanas da escravidão moderna para depois amuralhar o espaço do afrodescendente, destituído das mais básicas concepções de cidadania e ainda segregado das definições de igualdade jurídica implantadas ao longo dos 120 anos após a abolição. Esses reflexos não podem ser deslindados apenas dentro do âmbito político, mas também social e econômico, que abdicaram do debate sobre o racismo e ignoraram os problemas estruturais em nome de uma percepção positiva da chamada democracia racial, pautada, a exemplo, nos escritos de Gilberto Freyre, e em uma narrativa romantizada das relações na escravidão brasileira. A omissão em amparar os setores que se tornaram vulneráveis postergaram a inserção social do negro na sociedade brasileira.
No campo teórico ocidental das ciências humanas, com implicações diretas na produção historiográfica, essa lógica intolerante e racista prevaleceu no início da Era Contemporânea. No final do século XIX e durante o século XX, existiram correntes que buscavam desnaturalizar essa lógica. Com mais força agora no século XXI, correntes que visam descolonizar o pensamento, como a História Decolonial e a História Pós-colonial buscam construir um pensamento pós-abissal (SANTOS, 2009), em um entendimento epistemológico não apenas a partir da contribuição ocidental ou europeia, mas também em uma perspectiva do chamado sul global.
Os artigos recebidos para esse dossiê retratam estes séculos de história de intolerância religiosa e racial até a construção das contranarrativas em direção a descolonização do pensamento.
O primeiro artigo, “A Tolerantia no século XIII: uma breve revisão bibliográfica sobre as Minorias na Península Ibérica”, de Léo Araújo Lacerda, procurou fazer uma extensa discussão bibliográfica sobre certa tolerância que é atribuída ao reinado de Alfonso X em Castela e Leão (1252-1284). O autor buscou fazer o debate com a historiografia em sua complexidade, pensando os aspectos que poderiam fazer pesar noções de tolerância e de intolerância religiosa entre católicos, sefarditas e mudéjares, concluindo que este momento já era de um relacionamento desigual, que remonta o cristianismo primitivo, mas que desembocou na conversão forçada ou expulsão de mudéjares e sefarditas em 1502.
O segundo artigo chama-se “Robert Johnson e o racismo em Mississipi nas décadas de 1910-1930 no documentário ‘O Diabo na Encruzilhada’”, de Letícia Ferreira Aguiar. O texto inicia com uma importante introdução em que a autora busca explicar os preceitos metodológicos em que procederá sua análise, como a forma de se analisar o documentário como fonte histórica e a noção de racismo. Partindo à análise, a autora discute a biografia de Robert Johnson, homem negro que cresceu em meio a violência da Ku Klux Klan em Mississipi entre 1910 e 1930. Procurou desmitificar Johnson, a partir do contexto sociopolítico da época e considerando que seu legado foi, de certa forma, deturpado pela mentalidade racista da época e entendendo, a partir do exemplo do bluesman, a contribuição da população negra a cultura estadunidense.
O terceiro artigo intitula-se “A representação dos negros na História do Brasil: narrativas de manuais didáticos na construção nacional e identitária brasileira”, de Cristina Ferreira de Assis. Neste trabalho a autora discute a representação dos negros nos manuais didáticos, partindo principalmente da análise dos manuais de autoria de João Ribeiro e Rocha Pombo. A autora faz interessantes considerações metodológicas sobre o uso de livros didáticos como fontes para a pesquisa histórica, percebendo como, no período em análise (1914-1925), as pressões sociais e conflitos políticos em questão tinham por intenção extirpar a presença dos negros na sociedade brasileira. Embora houvessem algumas diferenças nos manuais de João Ribeiro e Rocha Pombo, ambos negligenciam as heranças linguísticas e culturais do continente africano no Brasil.
Por fim, o quarto artigo é “Sobre a história que a história não conta: por contranarrativas epistemológicas”, de Carll Souza e Elisabeth Maria Oliveira dos Santos. Neste trabalho, os autores buscam entender como a subjetividade de mulheres negras são atravessadas por diversas formas de opressão, como o racismo e o sexismo. Para isso, analisam, em um trabalho fartamente referenciado, estudar o caso de três mulheres negras: a historiadora Beatriz Nascimento, a mãe Luísa Oliveira e a estudante Cláudia Maria. Discutem o apagamento histórico da negra na sociedade brasileira e o conceito de epistemícidio para entenderem os impactos da produção intelectual das três mulheres negras inseridas em espaços de produção e promoção de poder.
Neste momento político em que a intolerância religiosa, racial e de gênero alcançou o mais alto nível de representatividade no Governo Federal, a presidência da república, é imperativo aprofundar o debate sobre o seu perigo. Não param de crescer os números sobre a agressão psicológica e física contra as mulheres, sobre o genocídio do povo negro e periférico e, como dito, sobre a intransigência religiosa baseada no fundamentalismo, sobretudo, neopentecostal. Para combater ditas violências é necessário compreendê-las, destrinchar os seus motivos e os seus fundamentos ideológicos, entender os seus mecanismos discursivos e conhecer as suas formas de transmissão e disseminação. Apenas a partir da construção do conhecimento conseguiremos elaborar meios para fazer frente ao obscurantismo e aos discursos de ódio.
Nota
3. Português que foi, entre 1454 e 1475, o Guarda-mor da Torre do Tombo.
Referências
SANTOS, Boaventura Sousa. Para Além do Pensamento Abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes. IN: SANTOS, Boaventura Sousa; MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul Coimbra: Edições Almedina, 2009.
ZURARA, Gomes Eanes. Chronica do Descobrimento e Conquista da Guiné escrita por Mandado de El-Rei D. Affonso V. Paris: J. P. Aillaud, [1453] 1841.
Natália Ribeiro Martins – Doutoranda em história social da cultura pela UFMG.
Felipe Silveira de Oliveira Malacco – Doutorando em história social da cultura pela UFMG.
MARTINS, Natália Ribeiro; MALACCO, Felipe Silveira de Oliveira. Apresentação. Revista Discente Ofícios de Clio, Pelotas -RS, v.4, n. 6, jan./jun., 2019. Acessar publicação original [DR]
Fontes Históricas: Desafios e Possibilidades Metodológicas / Ofícios de Clio / 2018
Nas últimas décadas, a historiografia vem passando por uma expansão das fontes. Influenciados pela terceira geração dos Annales, historiadores tem buscado não apenas a diversificação de documentos como novas possibilidades metodológicas para suas pesquisas. Além disso, a interdisciplinaridade é cada vez mais comum e necessária à operação histórica.
O dossiê aqui proposto tem como finalidade demonstrar essa variedade de pesquisas, fontes e aportes teórico-metodológicos, existentes nas diversas instituições de ensino de História pelo país. A profissão de historiador, embora ainda não regulamentada por lei, tem passado por várias modificações, entre as quais, sua crescente participação no espaço público. Cada vez mais as pesquisas transpõem os muros da academia e ganham visibilidade em meio ao grande público.
Os dez artigos expostos nessa edição mostram as múltiplas facetas de pesquisas e possibilidades de atuação de historiadores, com diferentes níveis de titulação, temáticas e instituições. O número cinco da revista Faces de Clio demostra de maneira diversificada e completa as temáticas variadas, mostrando parte dessa ampliação de fontes e novas metodologias no campo das pesquisas históricas nas últimas décadas.
O primeiro artigo intitulado Estilhaços do Espelho: crise dos paradigmas na teoria da história e historiografia de 1970 ao século XXI, da doutoranda em História Global da Universidade Federal de Santa Catarina, Ana Paula Jardim Martins Afonso, faz uma discussão teórico-metodológica do campo da história em 1970, com destaque para a emergência da História Cultural. Apresenta também o campo da Micro História como promissor para o debate de uma História Cultural atualizada, além de discutir a emergência dos estudos em História Global. A autora tem como ponto de partida os Annales e mobiliza ideias de autores como Fernand Braudel, Roger Chartier, Carlo Ginzburg e Sandra Pesavento. Finaliza o texto com a frase de Jaques Le Goff (2001): “o historiador não pode ser um burocrata da história, deve ser um andarilho fiel a seu dever de exploração e aventura”. Assim, reafirma o espirito do historiador como inquieto e em constante movimento.
Darlan de Farias Rodrigues, mestrando de História da Universidade Federal de Pelotas, em História e Historiografia: uma breve discussão teórico-metodológica sobre a História Social, mostra de que maneira esse debate permeia sua pesquisa sobre o patronato rural rio-grandense e o processo de intercâmbio de seus grupos com as estruturas de dominação.
Clarice Garcia Barbosa, mestranda em História Econômica na Universidade de São Paulo, em Fontes Históricas: cotidiano e história por meio de periódicos, narra a trajetória dos jornais enquanto fontes de pesquisa dos historiadores, remontando a ampliação das fontes com a Escola dos Annales e citando pesquisas de Gilberto Freyre, Fredrich Engels e Karl Marx como autores que utilizaram periódicos em seus trabalhos. A autora pontua diferentes formas de se trabalhar com esse tipo de fonte, além de destacar aspectos que geraram controvérsias sobre a utilização da fonte em seus momentos iniciais, e de que maneira driblaram esse descredito.
Em Política e Sociabilidade no século XIX: as correspondências recebidas pelo Visconde de Pelotas, o mestrando em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Guilherme de Mattos Gründling explicita a importância e possibilidades de se trabalhar com as correspondências enquanto fontes históricas. Para isso, ele toma como referência as cartas recebidas por José Antônio Corrêa da Câmara (Visconde de Pelotas), e analisa as redes de sociabilidade do militar rio-grandense, estratégias para ascensão. O autor mostra como esse tipo de fonte nos ajuda a remontar aspectos da história que estão fora das fontes ditas oficiais.
O próximo artigo tem como fonte central os Postais Franceses difundidos no contexto da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), escrito pela graduada em História pela Universidade do Estado de Ponta Grossa, Kimberly Natalie Diehl. No artigo Representações e concepções relativas à mulher em postais franceses da Grande Guerra (1914-1918), a autora evidência que a guerra promove um rearranjo social, uma vez que parte dos homens vai para o campo de batalha, e a necessidade de fabricação de armas faz com que as mulheres tenham de sair da posição de donas de casa e passem a fazer parte do mundo do trabalho das fábricas, sindicatos e outros espaços antes não ocupados. A autora também aborda a imagem enquanto fonte e as respectivas metodologias. Também discute o gênero enquanto categoria de análise histórica. Por fim, Kimberly demonstra que mesmo havendo essa mudança na vida das mulheres, essa imagem não é retratada nos postais aos quais teve acesso. A mulher nesses postais era retratada de forma doce, muitas vezes com a família, pensando no companheiro que estava na guerra ou como enfermeira, nesse caso fazendo parte da retaguarda do homem e não como figura central.
Caroline da Silva e Djiovan Vinicius Carvalho trazem a importância de trabalhar com arquivos pessoais. No texto intitulado “Espelho verdadeiro da vida de seus autores?”: memória e esquecimento em acervos pessoais, os dois mestrandos em História da Universidade de Passo Fundo nos ajudam a pensar não apenas na importância que os acervos pessoais ganharam nas últimas décadas, fazendo parte de arquivos de grandes instituições como o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), mas também permitem repensar a forma como os arquivos são construídos, por quem, quem é o doador do arquivo, que imagem querem passar, e na seleção realizada, uma vez que dentre os documentos produzidos durante a vida apenas uma parte é guardada.
Mostrando que o trabalho do historiador com a fonte audiovisual é possível e que cada vez ganha mais adeptos, Gabbiana Clamer Fonseca Falavigna dos Reis, com doutorado em história em andamento na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, tem como fonte central filmes. No artigo Cinema e oficio do historiador: As possibilidades multifacetadas de pesquisa a partir do estudo de caso do longa-metragem A Dama da Lotação (1978), a autora trabalha com a película nominada no título, fazendo analise de cenas do filme e com a recepção do filme por críticos de três jornais. Além disso, Gabbiana faz um pequeno guia de possibilidade para historiadores que querem trabalhar com esse tipo de fonte.
Da fonte Audiovisual para a fonográfica, Stênio Ronald Mattos Rodrigues, doutorando em História pela Universidade Federal de Santa Catarina, intitula seu trabalho Uma análise sobre os discos promocionais como elementos estimuladores para a projeção de Raimundo Fagner na ambiente profissional da MPB(1973-1982). O autor parte do mercado do disco para explicar de que forma é possível trabalhar com suas fontes, além de explicitar as outras maneiras de se trabalhar com a história da música. Para além dos fonogramas, cita dados de vendagem e notícias em jornais e revistas, que ajudam a remontar trajetórias artísticas. Stênio usa como fontes principais dois compactos promocionais lançados nos anos de 1973 e 1982 e discute a forma como eles influenciam e compõem a história de Raimundo Fagner, cantor cearense que inicia sua carreira na década de 1970 e atinge grande sucesso de público, crítica e vendas.
O nono artigo é fruto de parte da dissertação de Elisiane Medeiros Chaves, que conferiu a autora o título de mestre pela Universidade Federal de Pelotas. Um estudo sobre a violência contra a mulher a partir de narrativas de réus julgados no juizado da Violência Doméstica da comarca de Pelotas-RS (2011-2018), trabalha com fontes orais e Tempo Presente. A autora entrevista 18 réus de casos de agressão contra suas companheiras, usa como fonte os processos no qual esses homens eram julgados. Demonstrando os lapsos, escolhas e ênfases da memória, a autora constrói o artigo de maneira que conseguimos observar como os entrevistados vão tecendo suas narrativas. Também apresenta possibilidades de trabalho histórico com a memória e com um período de tempo menos recuado. Elsiane nos ajuda a vislumbrar a potencialidade das pesquisas sobre história e Tempo Presente, além de nos mostrar que é possível trabalhar com temáticas sensíveis e ainda sim manter o rigor metodológico e vinculação com a historiografia.
Finalizando o dossiê temos a importante contribuição do graduando em História da Universidade Federal de Pelotas João Gomes Braatz. O Bhagavad Gita como fonte de estudo de filosofia guerreira indiana evidência a escassez de produção acadêmica no Brasil a respeito da antiguidade na Índia. Ainda destaca que frequentemente assumimos o olhar do pesquisador europeu ao consideramos o Oriente como um elemento homogêneo, apesar dessa região envolver diferentes países que devem ser analisados através das suas singularidades. Como fonte central ele mobiliza o texto indiano Bhagavad Gita, pertencente à obra Mahabharata. João Gomes demonstra a importância de trabalhar não apenas com uma fonte pouco analisada no país, mas também a riqueza de detalhes na fonte trabalhada.
Ao todo, são dez artigos que nos ajudam a pensar a pesquisa histórica como um caleidoscópio, uma vez que temos inúmeras possibilidades de abordagens, fontes e metodologias. O dossiê cumpre sua finalidade suscitando diferentes indagações e questionamentos. Além disso é de grande importância para o historiador em início de carreira, pois possibilita o olhar para caminhos diferentes, possíveis de serem seguidos.
Boa leitura!
Daniel Lopes Saraiva – Doutorando em História / UDESC
SARAIVA, Daniel Lopes. Apresentação. Revista Discente Ofícios de Clio, Pelotas -RS, v. 3, n. 5, jul./dez., 2018. Acessar publicação original [DR]
Diálogos: Interdisciplinaridade e Transdisciplinaridade no Campo Historiográfico / Ofícios de Clio / 2018
Atualmente, a pesquisa historiográfica abrange o trabalho com uma diversidade de objetos e temas – tais como as Artes Visuais, a Literatura, os Estudos de Gênero – que também são, antes de tudo, campos autônomos do conhecimento. Além disso, o historiador recorre frequentemente a áreas como a Antropologia, a Teoria Literária ou as Ciências Sociais, com os quais dialoga constantemente.
Longe de ser apenas uma tendência recente, a questão da interdisciplinaridade parecenos uma questão fundamental para a historiografia, já que o diálogo com outras áreas do saber tem sempre acompanhado o fazer historiográfico. Seja através das chamadas “ciências auxiliares”, que acompanharam o desenvolvimento da historiografia tradicional do século XIX – como a arqueologia, numismática ou heráldica – ou por meio das propostas de diálogo estabelecidas pelos Annales, com a economia ou a antropologia; o historiador constantemente se vê em um diálogo com outras áreas do seu conhecimento. Com as expansões e renovações pelas quais passaram o campo historiográfico ao longo do século XX só vieram ampliar tais perspectivas interdisciplinares, colocando a História em discussão com os Estudos Culturais, as diversas Linguagens, ou mesmo com as relações entre homem e natureza.
Mais recentemente, apresenta-se ainda o debate em torno da transdisciplinaridade, ou seja, a constituição e produção de conhecimento que ultrapassa as fronteiras tradicionais entre as disciplinas, constituindo campos tais como as Teorias de Gênero, com os quais a historiografia contribui significativamente, mas também se enriquece.
Partindo disso, apresentamos o dossiê Diálogos: Interdisciplinaridade e Transdisciplinaridade no Campo Historiográfico que reúne trabalhos dedicados a pensar as possibilidades e os desafios motivados pela interdisciplinaridade e transdisciplinaridade entre a História e suas áreas afins.
Iniciamos esses diálogos por meio do trabalho de Valeska Oliveira Ferreira, graduada em História pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro, intitulado A ficção e a narrativa como desafios ao uso da literatura como fonte histórica: contribuições da teoria da história para o debate, que busca tecer suas reflexões em torno das relações entre História, Literatura e Narrativa. O texto retoma autores como Hayden White e Paul Veyne, cujos trabalhos estiveram no centro do debate em torno da ficcionalidade e da validade da narrativa histórica, desenvolvido, principalmente, nas décadas de 1970 e 1980. Além disso, nos instiga ao diálogo com Roger Chartier, Michel Certeau e Jörn Rüsen a fim de pensar a questão da Literatura e da ficionalidade na historiografia. A autora busca pensar, especialmente, sobre as especificidades da questão da narrativa nos âmbitos ficcional e historiográfico, pretendendo abordar algumas das contribuições da teoria da história para este debate.
A questão da escrita da história e da ficção e também é o foco do texto Diálogos entre Teoria e Literatura: a escrita de Freud, da autoria de Larissa de Assis Pimenta Rodrigues, mestranda pela Universidade Federal de Outro Preto. Neste trabalho, busca-se investigar as possibilidades suscitadas por uma escrita da história calcada em uma abordagem interdisciplinar, pensada, neste caso, a partir das reflexões de Sigmund Freud. Valendo-se das reflexões de Michel de Certeau e da noção de ficção teórica desenvolvida por Freud – recurso literário utilizado no relato de casos clínicos através da composição de contos que articulam ficção e teoria psicanalítica – o trabalho investiga as possibilidades de se interpretar e depreender traços culturais ou aspectos subjetivos de uma época a partir de tais escritos. Para a autora, a ficção teórica permite que nos aproximemos dos valores e da produção de sentido de uma época ou sociedade.
Já o trabalho intitulado Entre a História, a Literatura e a Bibliografia: a Interdisciplinaridade da História do Livro, nos propõe pensar sobre as relações interdisciplinares existentes no campo da História do Livro, que se constituiu a partir de reflexões das áreas da História, da Bibliografia e da Literatura. Nesse trabalho, as autoras Bruna Braga Fontes, mestranda em História / USP, e Verônica Calsoni Lima, doutoranda em História / USP, buscam construir um panorama sobre as perspectivas e metodologias envolvidas no trabalho de pesquisa que abordam o livro enquanto objeto, pensando a sua materialidade. Para isso, recorrem especialmente às correntes historiográficas anglo-saxãs e francesas como o centro do foco de análise. As autoras ainda destacam as contribuições de outras disciplinas para a construção desse campo de estudo.
Por fim, em Possibilidades e Perigos da Etno-história, a partir da contribuição de Maíra de Mello Silva, graduanda em Antropologia da Universidade Federal de Pelotas, nos aproximamos de uma perspectiva antropológica da História, A pesquisadora buscou pensar a Etno-história a partir das teorias descoloniais, elaborando uma revisão crítica da bibliografia relativa a Etno-história. Além disso, a prática da alteridade é proposta aqui como mediadora das perspectivas teóricas e metodológicas trabalhadas.
É com grande satisfação que apresentamos essas reflexões na Revista Discente Ofícios de Clio, buscando contribuir com os diálogos sempre tão ricos e necessários entre a historiografia e as demais áreas do conhecimento.
Boa leitura!
Thiago Destro Rosa Ferreira – Doutorando em História / Universidade Federal de Uberlândia.
FERREIRA, Thiago Destro Rosa. Apresentação. Revista Discente Ofícios de Clio, Pelotas -RS, v. 3, n. 4, jan./jun., 2018. Acessar publicação original [DR]
Movimentos Sociais e Identitários / Ofícios de Clio / 2017
Braços erguidos, punhos cerrados. Essa imagem marca importantes momentos históricos em diferentes tempos e espaços. Os movimentos sociais e identitários são parte fundamental na engrenagem que move a História, mesmo quando repreendidos e / ou criminalizados. A Revista Ofícios de Clio oportuniza nesse número um espaço de divulgação de pesquisas e de debates entre historiadores que abordam esses movimentos. Objeto de estudo tradicional, normalmente filiado ao campo da História Social, compreendendo as perspectivas do trabalho, da política sindical e da etnicidade; recentemente, tem dialogado com outros campos e categorias de análise, por exemplo, cultura, gênero, queer e raça. Dessa forma, são contemplados por esse campo de estudo os movimentos de trabalhadores e de estudantes, os que lutam pelo acesso à terra e à moradia e os coletivos que defendem populações tradicionais. Também os movimentos LGBT+, feministas, raciais, entre outros. A agência desses sujeitos coletivos ou individuais são compreendidos a partir de suas formas de (re) organização, de expressão, de luta e o engajamento político e / ou intelectual de militantes e ativistas. A produção de conhecimento histórico sobre os movimentos sociais e identitários está em constante movimento, os pesquisadores tem ampliado os possíveis caminhos teórico-analíticos e metodológicos constantemente.
Esses movimentos são a origem de inovações e de produção de saberes articulados aos processos políticos, sociais e culturais nos quais estão inseridos. A própria produção intelectual formal está em transformação devido o engajamento de grupos sociais e identitários; principalmente a partir do tensionamento dos debates sobre racismo na sociedade brasileira e da implementação das ações afirmativas. Os ativistas passam a reescrever a sua própria História, desde o seu lugar de fala. O diálogo entre a História Social e o Tempo Presente também tem proporcionado discussões sobre a importância da perspectiva dos historiadores para a compreensão de ações coletivas contemporâneas, como as Jornadas de 2013 e o Golpe de 2016.
Os doutorandos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, José dos Santos Costa Júnior e Roger Camacho Barrero Júnior, ao escreverem o artigo “Jovens como esperança na transformação: a campanha Juventude Participa! em Campina Grande (PB 2009-2011)”, aproximam-se desse debate, ao buscar na perspectiva de análise do Tempo Presente elementos para compreender os jovens como “sujeitos historicamente situados que participam de processos de transformação social e / ou manutenção e atualização de determinados modelos de comportamento e formas de ação social”. Suas fontes foram imagens, relatórios institucionais e boletins informativos, pelas quais analisaram o discurso sobre a participação política de jovens e os significados atribuídos aos conceitos de juventude, participação e cidadania. Ressalta-se que foi considerada a pluralidade do grupo e as discussões apontadas pela Política Nacional de Juventude (PNJ).
A Paraíba também é o local onde está situado o objeto de estudos de Iany Elizabeth da Costa, doutoranda em Geografia pela Universidade Federal Fluminense. No artigo “Movimento Quilombola na Paraíba: algumas considerações sobre a organização social pelo direito à terra”, privilegia o estudo sobre a Coordenação Estadual de Comunidades Negras e Quilombolas da Paraíba (CECNEQ), mas também estabelece relações com a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ). No transcorrer do artigo pode-se acompanhar um levantamento teórico sobre a relação do Movimento Negro e do Movimento Quilombola na luta por direitos sociais desde a Constituição de 1988. Iany buscou “compreender os avanços e limites no estudo dessas organizações sociais, a fim, de perceber como as antigas comunidades negras rurais adquirem espaço na luta dos movimentos sociais brasileiros” e como articulam-se para “ocupar espaços nas pautas reivindicatórias por direitos sociais” na atualidade.
A luta por direitos sociais é o principal elemento articulador dos movimentos sociais, entre esses está o direito à terra. O Movimento Sem Terra surgiu nos anos 1980, e hoje é um dos maiores movimentos sociais do Brasil. Da mesma forma que ocorre no movimento negro, no quilombola, no direito à moradia, as mulheres ocupam papel central na luta. Leonardo Dantas D’Icarahy, mestrando da Universidade Federal da Bahia, debruçou-se sobre essa questão ao escrever “Mulheres sem terra no surgimento do MST na Bahia (1987-89)”. Com o aporte da história oral, ouviu a história de vida de cinco mulheres do MST que participaram do período de surgimento e estabelecimento desse movimento social na Bahia. Analisou o papel delas na decisão familiar de ocupar terras e as estratégias utilizadas para sobreviver no acampamento. O autor, sem deixar de considerar as “hierarquias de poder das relações de gênero dentro deste movimento social”, percebeu a participação política de suas entrevistadas em diferentes aspectos do cotidiano, ressaltando “o protagonismo dessas mulheres nesta fase inicial do MST no estado baiano”.
Os movimentos citados até o momento tiveram seu auge no processo de redemocratização do Brasil, mas suas “bandeiras” têm origem em períodos anteriores. Durante a Ditadura Civil-Militar no Brasil, diferentes organizações coletivas foram perseguidas, dificultando a sua manutenção e ação. Assim como no Brasil, Portugal também viveu uma Ditadura, recorte cronológico contemplado pelo artigo “Contra o Estado Novo: manifestações e organizações em Portugal no período marcelista (1968-1974)” de Pamela Peres Cabreira, doutoranda da Universidade Nova de Lisboa. O estudo apresenta algumas organizações civis que agiram contra o Estado Novo português (1926-1974). Pamela parte do pressuposto de que o país não estava “adormecido” frente a situação nacional no período, marcado por retrocessos socioeconômicos e políticos. Através de fontes documentais, como o periódico Avante! Clandestino e discussão bibliográfica, analisou as ações do Partido Comunista Português, os levantes nos quartéis, os movimentos dos estudantes e dos trabalhadores “enquanto frentes mobilizadoras e legitimadoras de uma luta contra o sistema retrógrado do Estado Novo em Portugal”, criando “um espaço revolucionário” com o fim do período ditatorial.
Por fim, a pós-graduanda do Instituto Federal Fluminense, Mariana Mendes Christo, amplia o debate ao compartilhar um texto que analisou o século XVIII. Nessa análise, parte dos conceitos aliados a concepção de Antigo Regime nos Trópicos, para compreender as relações de poder no interior das capitanias do Rio de Janeiro e das Minas Gerais. Como pode-se apreender pelo título “Manoel Henriques e as relações de poder nos Sertões de Macacu (1765 – 1787)”, toma como objetivo central a ação do bando liderado por Manoel Henriques, no interior dos Sertões de Macacu, analisando suas ações e o papel executado por esse sujeito naquele contexto social. A hipótese que pretende comprovar durante o desenvolvimento do artigo, é de que no interior da colônia existiam diversas redes de poder que fugiam ao controle da Coroa.
Compartilho com a Revista Discente Ofícios de Clio a alegria de poder trazer aos nossos leitores artigos que demonstram a vitalidade e a importância das pesquisas que tomam como objeto os movimentos sociais e identitários.
Boa leitura!
Micaele Irene Scheer – Doutoranda UFRGS / CAPES
SCHEER, Micaele Irene. Apresentação. Revista Discente Ofícios de Clio, Pelotas -RS, v. 2, n. 3, ago./dez., 2017. Acessar publicação original [DR]
História e Imagem / Ofícios de Clio / 2017
Em virtude do alargamento do campo documental e a partir da compreensão de que os vestígios históricos são representações do passado, as imagens, em suas variadas configurações, se consolidaram, nos últimos decênios, como uma fonte de pesquisa e objeto de análise dos pesquisadores. Historicamente, elas faziam parte do cotidiano dos indivíduos e das sociedades desde os tempos mais remotos – arte rupestre, pintura, escultura, ilustrações, fotografias, cinema, charges, gravuras, televisão, grafite, caricaturas, histórias em quadrinhos, entre outras – contudo, os historiadores negligenciaram o seu uso por muito tempo, uma vez que acreditava-se apenas no conhecimento obtido a partir do documento escrito – uma herança positivista e da escola metódica. Nesse contexto, as imagens eram utilizadas como meras ilustrações do texto, ou seja, o seu potencial não era explorado pelos estudiosos.
No entanto, a partir da Nova História, essa perspectiva foi gradativamente alterada e, com isso, o corpus documental dos historiadores foi expandido abarcando uma infinidade de fontes. Como afirmou Marc Bloch em seu livro Apologia da História, a diversidade dos testemunhos históricos é praticamente imensurável, na medida em que tudo que o indivíduo diz, escreve ou fabrica pode e, principalmente, deve informar sobre ele. Constatou-se que tudo tem uma história, logo o passado pode ser (re)escrito por intermédio de novos olhares e vestígios. Diante disso, o segundo número da Revista Discente Ofícios de Clio – ligado ao Programa de Pós-graduação em História e ao Laboratório de Ensino de História da Universidade Federal de Pelotas – propõe o Dossiê “História e Imagem” com o objetivo de reunir estudos que dialogam sobre a relação entre iconografia e a escrita da história. Dessa forma, os artigos reunidos nesse dossiê apresentam uma variedade de fontes imagéticas: cinema, fotografia, charge e história em quadrinho.
O doutorando do Programa de Pós-graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro Carlos Cesar de Lima Veras propõe em seu texto uma análise do filme “O Gabinete do Dr. Caligari”, lançado mundialmente em 1920, a fim de compreender a consolidação da República de Weimar na Alemanha pré-nazista e a sua relação com o expressionismo cinematográfico. O autor se debruça nas tensões existentes na política alemã a partir da “imagem-objeto” representada pelo filme. Além disso, o pesquisador apresenta uma discussão importante sobre a utilização do cinema como fonte histórica.
Em certa medida, o texto de Veras corrobora com o artigo de Thiago Soares Arcanjo que versa sobre a Alemanha, porém focaliza no período após a consolidação de Hitler no poder e os seus desdobramentos durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Para isso, o mestrando do Programa de Pós-graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos utiliza como fonte a história em quadrinhos “Maus, a história de um sobrevivente”, publicada em 1986, por Art Spiegelman. O autor propõe uma análise mais aprofundada sobre a obra, além de problematizar – a partir dos conceitos de Tática e Estratégias extraídos de Michel de Certeau – o extermínio de indivíduos durante o regime totalitário.
O artigo de Mariana Couto Gonçalves propõe um debate acerca do uso da fotografia na história por intermédio da análise de uma série imagética extraída do Álbum de Pelotas (1922). A doutoranda do Programa de Pós-graduação em História da História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos examina a particularidade da obra, além de discutir sobre o discurso de modernidade que permeia o referido vestígio. Por fim, fechando o dossiê, Fábio Donato Ferreira realiza uma abordagem a respeito das charges políticas impressas na Folha de São Paulo durante o mês de maio de 1978. A proposta do autor, mestre em história pelo Programa de Pós-graduação da Universidade Federal de Pelotas, pauta-se em traçar a posição do periódico com relação a organização do movimento grevista do ABC e sobre a ditadura civilmilitar que ainda estava vigente no território nacional.
É com extrema satisfação que a Revista Ofícios de Clio apresenta o Dossiê História e Imagem, que visa oferecer ao leitor um debate acerca da multiplicidade de fontes imagéticas, ampliando a possibilidade de diálogo e a compreensão acerca do passado.
Boa Leitura!
Mariana Couto Gonçalves – Doutoranda UNISINOS
GONÇALVES, Mariana Couto. Apresentação. Revista Discente Ofícios de Clio, Pelotas -RS, v. 2, n. 2, jan./jul., 2017. Acessar publicação original [DR]
Ofícios de Clio | UFPEL | 2017
A Revista Discente Ofícios de Clio (Pelotas, 2017-) é um projeto ligado ao Laboratório de Ensino de História (LEH), e ao Programa de Pós-Graduação em História (PPGH), ambos da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
A Revista objetiva proporcionar aos nossos graduandos e pós graduandos, bem como aos alunos de áreas afins e/ou de outras Instituições, um espaço qualificado de debate e de incentivo ao incremento da pesquisa.
Como se sabe, um grande número de revistas acadêmicas não aceitam artigos de alunos não formados e, em alguns casos, apenas de portadores de título de Mestrado. A Ofícios de Clio almeja oportunizar aos discentes o incremento de seus currículos, visando seu futuro desenvolvimento acadêmico e profissional.
Periodicidade semestral.
Acesso livre.
ISSN 2527-0524
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