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Oceanos como espaços de conhecimento | Varia Historia | 2021
Oceanos | Foto: Tempo.Com
Oceanos são lugares de diversidade e ações inesperadas.
Oceanos e mares servem a uma multitude de objetivos – da pesca e de atividades recreacionais à guerra e pirataria; de repositório de oferendas a sítios de pesquisa científica; do naufrágio de imigrantes a projetos de preservação da biodiversidade. Espaços in between (REIDY; ROZWADOWSKI, 2014), os oceanos e mares, além de alimento, possibilitam a produção de inúmeras imagens e coleções, personagens humanos e não humanos, histórias fantásticas e maravilhosas, assim como sugerem novas interpretações.
Neste dossiê, os oceanos foram pensados em algumas dessas inúmeras possibilidades, entre áreas de conhecimento, comércio, instituições científicas, coleções, rotas de navegação, através de histórias inusitadas, autores pouco conhecidos, personagens anônimos. De uma multitude de documentos de ampla circulação entre baleeiros, capitães de navios, naturalistas e arquivos de instituições públicas, surgem neste dossiê diferentes perspectivas de abordagens sobre os oceanos.
Os textos deste dossiê se intercruzam em diferentes tempos: notícias de baleeiros que se transformavam em fatos; experimentos infraestruturais que tornaram visíveis investigações sobre os oceanos do século XIX em Portugal e até mais recentemente no Brasil. Todos esses atores circularam através de engrenagens de sistemas de comunicação, navegação e comércio, em que armadores e amadores, mulheres e marinheiros, burocratas e cientistas trocavam informações seja nos salões dos cafés, nos barcos, nos portos, nas praias, nas empresas marítimas ou nas instituições científicas.
Esses entrelaçamentos construíram complexas redes de diferentes interesses, forjaram ferramentas epistêmicas para estudar os oceanos em escala global, como afirma o texto sobre Los Balleneros y el conocimiento de los mares del sur en la primera parte del siglo XIX. E ainda forjaram as ciências dos oceanos claramente integradas nas redes internacionais de circulação de diferentes interesses, conhecimentos e complexidades de relações pessoais, institucionais e governamentais, como também no caso do Brasil e Portugal.
Nos últimos anos as questões ambientais, as mudanças climáticas e a queda da pesca em diversos países do mundo têm sido objeto de publicações acadêmicas (BOLSTER, 2012), assim como a história da Oceanografia, da Biologia ou da Geologia Marinhas, da Geofísica, da Matemática, das Ciências Ambientais, da Geografia e das Ciências dos animais marinhos. No entanto, os oceanos têm recebido, relativamente a outras temáticas, pouca atenção por parte da maioria dos historiadores, embora já conte com vasta tradição que muitos atribuem ao Mediterrâneo de Braudel (2002). Os oceanos continuam não surgindo fortemente na produção da maioria dos historiadores da ciência, particularmente em países como no Brasil (HEIZER; LOPES; GARCIA, 2014), nem tampouco incentivando abordagens como as que este dossiê sugere.
Da indústria baleeira “movida a oceanos e papéis” – como sugere o artigo Los Balleneros y el conocimiento de los mares del sur – à organização das estações experimentais de biologia marinha pela lógica reformadora portuguesa – como destaca o texto sobre O estudo científico do mar. Entre Ciência e Política, Laboratórios e Cientistas (1910-1926) – à exploração dos nódulos polimetálicos – como ressalta o texto Sobre culturas científicas sobre os oceanos no Brasil -, essas iniciativas tornaram-se novas estruturas de culturas que tanto criavam e criam novas representações dos oceanos como contribuíram e contribuem para a validação das aspirações sociopolíticas dos construtores de tais imagens, objetos, coleções e textos.
Em todos os processos de observação e ou navegação dos oceanos, foi recolhida uma multiplicidade de informações, novos animais, plantas, minerais, instrumentos, dados de centenas de sondagens em mar profundo, observações em série de temperaturas da água, milhares de amostras de água. A concepção, circulação e armazenamento de coleções, instrumentos e dados também continua a criar ou recriar novas propostas para apresentações e representações materiais e virtuais há séculos (HÖHLER, 2003).
A legitimidade dessas representações foi transformada em argumentos poderosos, em “epistemologias materializadas tornadas possíveis por novas ‘máquinas epistémicas’”, como Peter Galison (1997) já sugeriu, referindo-se aos papéis dos instrumentos e aparelhos em outras culturas científicas, mesmo que esses não se tornassem tão sofisticados, por longos anos, no caso dos oceanos.
Essas representações permitiram aos estudiosos estabilizar objetos científicos para diferentes comunidades desde baleeiros a comerciantes, investigadores, curadores de museus, arquivistas, estrategistas e o público interessado (DASTON, 2008). Práticas a bordo de navios, comércio, tecnologias e teorias foram unidas para assegurar a fiabilidade das novas representações que estavam a ser construídas (HÖHLER, 2003).
As culturas da caça de baleias, as coleções de objetos intercambiados, milhares de documentos e publicações científicas proporcionam nos artigos deste dossiê chaves para conhecimentos históricos, antropológicos, etnográficos e sociais das mais diversas ordens, seja para ampliar conhecimentos científicos, seja para publicizar culturas desconhecidas dos mares longínquos para os europeus, ou ainda para traçar investigações oceanográficas, ou fomentar indústrias e comércios que contribuíram para construir os oceanos enquanto espaços de produção de conhecimentos.
As viagens pelos oceanos deste dossiê também transcorreram por coleções e pelos arquivos como Marie-Noëlle Bourguet assinalou sobre as viagens de Humboldt (PODGORNY, 2012). De todos os textos emergem discussões fascinantes sobre histórias (inter)disciplinares, contextos locais, coleções, personagens e instituições de interesse não só para quem navega por profundidades oceânicas.
Em Portugal, desde as primeiras décadas do século XX, a consolidação das estações experimentais de biologia marinha e formalização de disciplinas científicas nas universidades foram bem sucedidas graças a ações de políticas individuais e associações, enquanto no Brasil esses processos foram mais tardios, exatamente por continuidade e efetividade de articulações como essas.
As ciências dos oceanos reúnem tradições que provêm das mais diferentes áreas disciplinares, desde a Hidrografia do século XIX, a História Natural, a pesca, a Oceanografia matemática e dinâmica pós Segunda Guerra Mundial e suas relações com as ciências ambientais contemporâneas, para além da História e das políticas. E por que não da História das Ciências, da Arquivística ou da Museologia?
Porque os processos de especialização perpassam as culturas científicas. Estabilizadas ou não, essas podem e devem ser problematizadas. Como Gregory Good (2000) sugeriu para estudos do magnetismo terrestre, também consideramos que os estudos dos oceanos são um tema densamente atrativo para estudos históricos, exatamente porque não permitem pressupostos fáceis sobre disciplinas, subáreas de conhecimento e as especializações envolvidas, mas que requerem o surgimento de quadros mais complexos que tenham em conta as variadas ligações entre instituições de investigação, indústria e governos, bem como personalidades únicas e cultura local, atores e práticas, desde especialistas a técnicos invisíveis (LOPES, 2015), tais como baleeiros que constroem instrumentos e aparelhos, comerciantes e ou naturalistas coletores, além dos próprios navios. A procura de tais quadros enquadra-se nas perspectivas das histórias das culturas científicas das últimas décadas, como James Secord (2004) o fez, recuperando os significados das práticas comunitárias das ciências, menos segregadas em quaisquer disciplinas, e mais amplamente consideradas através da circulação de conhecimentos, informações aparentemente desconexas, objetos e redes que articulam precisamente as práticas dos especialistas com uma série de outros atores sociais.
Coleções construídas por rotas de navegação, arquivos mal ou bem organizados, ou fragmentos deles, pessoais, de empresas baleeiras, companhias de navegação e instituições científicas se apresentam como fontes inigualáveis para história dos oceanos. Ricos em inúmeros e preciosos detalhes em meio a panoramas mais amplos sobre as temáticas a que se referem, oferecendo abordagens metodológicas e bibliografias vastíssimas, que praticamente não se repetem, os artigos deste dossiê sugerem novas rotas de reflexões, avançando nas perspectivas de maior abrangência das culturas científicas sobre os oceanos.
Este dossiê não teria sido organizado sem a contribuição fundamental de Irina Podgorny a quem agradecemos a generosidade em partilhar suas ideias.
Referências
BOLSTER, Jeffrey W. The Mortal Sea. Cambridge; London: Harvard University Press, 2012.
BRAUDEL, Fernand. El Mediterráneo y el mundo mediterráneo em la época de Felipe II. México: Fondo de Cultura Económica, 2002.
DASTON, Lorraine. On Scientific Observation. ISIS, v. 99, n. 1, p. 97-110, 2008.
GALISON, Peter. Image and Logic: A Material Culture of Microphysics. Chicago: University of Chicago Press, 1997.
GOOD, Gregory A. The Assembly of Geophysics: Scientific Disciplines as Frameworks of Consensus. Studies in the History and Philosophy of Modern Physics, v. 31, p. 259-292, 2000.
HEIZER, Alda L.; LOPES, Maria M.; GARCIA, Susana. Carta das editoras convidadas. Histórias, ciências e políticas de oceanos e mares. Revista História, Ciência, Saúde – Manguinhos, v. 21, n. 3, p. 803-804, 2014.
HÖHLER, Sabine. A Sound Survey: The Technological Perception of the Ocean Depth, 1850-1930. In: HARD, Mikael; LÖSCH, Andreas; VERDICCHIO, Dirk (eds.). Transforming Spaces: The Topological Turn in Technology Studies. Disponível em: < www.sabinehoehler.de/download. php?id=1 >. Acesso em: 13 jun. 2021.
» www.sabinehoehler.de/download. php?id=1
LOPES, Maria Margaret. Investigar oceanos, explorar terrenos historiográficos. Revista Maracanan, v. 13, p. 11-22, 2015.
PODGORNY, Irina. Los Archivos. Entre el síndrome de Barba Azul y los sueños de Napoléon. In: KELLY, Tatiana; PODGORNY, Irina (Dir.). Los Secretos de Barba Azul. Fantasías y realidades de los archivos del Museo de La Plata. Rosario: Prohistoria Ediciones, 2012. p. 21-39.
SECORD, James A. Knowledge in Transit. Isis, v. 95, p. 654-672, 2004.
REIDY, Michael; ROZWADOWSKI, Helen. The Spaces In Between: Science, Ocean, Empire. Isis, v. 105, p. 338-51, 2014.
Organizadora
Marıa Margaret Lopes – Universidade de São Paulo, Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE-PPGMUS). E-mail: mariamargaretlopes@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-9803-8378
Referências desta apresentação
LOPES Marıa Margaret. Apresentação. Oceanos como espaços de produção de conhecimento. Varia Historia. Belo Horizonte, v. 37, n. 75, set./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]