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Feminismos como objeto de pesquisa e matriz epistêmica: pensando a história do tempo presente / Tempo e Argumento / 2020
O presente dossiê reúne artigos de pesquisadoras que estudam os feminismos e movimentos de mulheres contemporâneos e suas principais agendas, abarcando discussões sobre identidades, ciências, demandas por políticas públicas e acesso à justiça. As reivindicações e práticas políticas de mulheres negras, indígenas, trans, encarceradas, trabalhadoras, dentre outros marcadores sociais, organizadas em coletivos ou instituições, protagonizam as análises apresentadas, complexificando as importantes e clássicas reivindicações de superação do universalismo masculino encampadas pela História das Mulheres. Os artigos nos apresentam diferentes aspectos desses grupos sociais marcados pela invisibilidade e pela negação de direitos, mas que, na contemporaneidade, atravessam profundas transformações em seu reconhecimento, nos espaços que ocupam, em suas lutas.
A (re)emergência dos debates feministas, tão evidente na História do Tempo Presente, em um contexto de avanços neoliberais e da chamada “onda conservadora”, é um fenômeno carregado de historicidade. Os artigos aqui reunidos nos contam histórias das mulheres e dos feminismos contemporâneos, de suas diferentes formas de articulação, conexão, agrupamento, comunicação e práticas políticas, que demonstram a multiplicidade e heterogeneidade dos feminismos como movimentos e como matriz epistêmica. Reafirma-se a importância do plural quando falamos em feminismos, ao mesmo tempo em que bases teóricas produzidas por esses próprios sujeitos são mobilizadas.
A questão das interseccionalidades e da decolonialidade dialogam com os feminismos na reunião de estudos – selecionados neste dossiê – que abordam demandas sociais de mulheres brasileiras e estrangeiras, do Sul e do Centro-Oeste do Brasil, em privação de liberdade, urbanas, indígenas, negras, trans e cisgêneras. Trabalhos com histórias de vida, observação de campo, análise de periódicos e debates epistêmicos criticamente preocupados com problemas sociais. Em síntese, esta seleção de artigos é atravessada pela crítica a uma perspectiva universalista de ciências, perspectiva esta que localiza no Norte Global, dentre homens brancos detentores de determinado status, o modelo de ciência que serviria para todo o mundo.
Iniciando a apresentação dos artigos, “Uma virada epistêmica feminista (negra): Conceitos e debates”, da professora Ana Maria Veiga, atravessa referenciais teóricos identitários, com centralidade étnico-racial, em diálogo com os movimentos sociais e os avanços dos estudos acadêmicos. Seu artigo perpassa o debate estadunidense sobre a articulação entre opressões sociais para um debate nacional e latino-americano dentro do que acabou se caracterizando como o campo interseccional. O texto apresenta desafios para a manutenção de uma proposta politicamente engajada diretamente ligada com sua gênese: as mulheres negras. Decolonialidade e interseccionalidade tornamse o foco do artigo que encontra nas mulheres sertanejas um exemplo possível de uma análise comprometida com os dois conceitos.
O segundo trabalho, “Epistemologia insubmissa feminista negra decolonial”, de Ângela Figueiredo, nos traz um debate entre demandas sociais e saber acadêmico estruturado na união entre estas partes, historicizando os conceitos e mostrando a produção e a visibilidade recente da produção das autoras negras. A articulação dos diversos conceitos presentes no título do artigo estabelece uma mirada crítica à produção do conhecimento e faz um convite a outras formas de olhar para esse processo em diálogo com a sociedade. A perspectiva afrocentrada, consciente da posicionalidade dos sujeitos produtores de saber, desloca o centro dos debates teóricos historicamente hegemônicos. Nesse sentido, engajamento em torno da solução de problemas vivenciados na comunidade, e em uma ciência comprometida, estaria no cerne do modelo epistêmico proposto no trabalho.
Rosangela Celia Faustino, Maria Simone Jacomini Novak e Isabel Cristina Rodrigues, em “O acesso de mulheres indígenas à universidade: trajetórias de lutas, estudos e conquistas”, apresentam o resultado de uma coleta de entrevistas semidirigidas e observações de campo realizadas entre os anos de 2013 e 2015 com mulheres indígenas que ingressaram em cursos de graduação no estado do Paraná a partir dos programas de inclusão institucionais. Diferentes territórios e etnias compuseram esse levantamento que analisou elementos como a relação com a comunidade, a assistência estudantil e o sentido político desse processo educacional. Essas mulheres, que representam quatro quintos das pessoas indígenas formadas (2002-2019), passam a assumir espaços profissionais na comunidade antes ocupados por não indígenas, ampliando sua atuação política.
“Ler, escrever e libertar: Experiências que promovem a diminuição de pena para mulheres privadas de liberdade em Mato Grosso”, da professora Ana Maria Marques, traz os resultados de um projeto voltado a esse público, considerando o acesso ao letramento. As experiências voltadas à remição da pena de mulheres em situação de privação de liberdade da Escola Nova Chance e dos projetos em parceria com a Universidade de Mato Grosso (UNEMAT- Cácares) e Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT- Cuiabá e Rondonópolis) são analisadas. Leituras e resenhas fazem parte da estrutura metodológica da iniciativa que atende mulheres de diferentes níveis de escolaridade. As possibilidades diante da realização de ações dessa natureza, bem como os desafios materiais e institucionais, nos mostram os atravessamentos de gênero os quais constroem, como experiência feminina, um cenário de abandono.
No artigo “‘A gente é pessoa!’: Narrativas de mulheres trans sobre direitos humanos”, Marta Gouveia de Oliveira Rovai procura discutir a temática com base em quatro histórias de vida de mulheres do sul de Minas Gerais. Com um olhar orientado pelas preocupações em torno do sensível e das emoções, bem como um alinhamento com a História do Tempo Presente, o debate se situa na conjuntura brasileira contemporânea de ataque às pautas LGBT e posse de um governo federal contrário às mesmas. Em suas experiências particulares, Wall, Ana Luíza, Luana e Luciele buscam o reconhecimento identitário atravessado pela reivindicação quanto à integridade de seus corpos e do que identificam como liberdade. As transfobias vivenciadas e as imposições de modelos sociais baseados na cisgeneridade e na heteronorma produzem discursos de reconhecimento da existência cotidiana como ato político. Assim, temos no trabalho uma reflexão sobre as percepções de sujeitos históricos em meio à mudança, ou ainda ruptura, entre Estado e movimento LGBT.
Marlise Regina Meyer e Ronaldo Pires Canabarro integram os trabalhos com uma discussão, dentro dos estudos de análise de conteúdo, sobre o periódico Lampião da Esquina, referencial da imprensa alternativa não heterossexual em circulação no eixo sudeste do Brasil na segunda metade do século XX. Intitulado “Travesti: textos-vestígios na construção de uma identidade – Jornal Lampião da Esquina (1978-1981)”, o artigo foca na abordagem de uma identidade: a identidade travesti aparece como a “mariposa”, os “veados”, a “boneca” e as “bichas-biônicas”, montando um quebra-cabeça de significados que a constroem num espaço histórico específico. Os caminhos percorridos para a análise do Lampião exploram o sentido político do reconhecimento identitário fazendo ponte com as questões no presente.
A professora Géssica Guimarães, em “Teoria de gênero e ideologia de gênero: Cenário de uma disputa nos 25 anos da IV Conferência Mundial das Mulheres” faz um estudo histórico de dois termos que ocuparam o debate público nacional brasileiro na última década. Explorando a genealogia acadêmica dos estudos das mulheres e de gênero, e compreendendo sua relação com eventos históricos tanto ligados aos movimentos feministas como ao campo religioso, o trabalho direciona seu olhar para a conjuntura brasileira de ataques e o impacto para o ensino de história. Nesse sentido, os desafios passam pela ruptura diante do pânico moral criado em torno do termo gênero, em uma percepção inclusiva e democrática; mas também pelo reconhecimento e disputa interna ao saber historiográfico, que possui sua trajetória sediada nas narrativas e sujeitos masculinos.
O último artigo a compor este dossiê é “Triple presencia femenina en torno de los trabajos: mujeres de sectores populares, participación política y sostenibilidad de la vida”, de Juliana Díaz Lozano. O estudo sobre a situação laboral das mulheres argentinas organizadas a partir de bairros populares nos traz elementos para identificar as preocupações por parte do Estado, as articulações políticas e a própria noção de trabalho. A proposta, aqui apresentada, é resultado de uma pesquisa de campo realizada entre os anos de 2012 e 2017 que se aprofundou na entrevista de 20 mulheres e na observação das mesmas diante da participação de três assembleias de bairro. Acumulando funções, essas mulheres adentram o espaço público da militância rompendo as expectativas de gênero e borrando as fronteiras entre público e privado.
Os textos aqui reunidos abordam, portanto, uma pluralidade de temáticas espaciais, de sujeitos e de metodologias que lançam olhar para os saberes historiográficos e para o campo do ensino de história. Longe de esgotar o recorte adotado para a construção do dossiê, tais questões contribuem, cada uma a seu modo, para enriquecer o campo da História do Tempo Presente.
É preciso destacar que esta é uma série de debates preocupada com os estudos identitários, mas que se calça principalmente no engajamento com a transformação social. A crítica à posicionalidade hegemônica perpetuada nos campos científicos nos dá suporte para pensar outras Histórias que, ao reconhecer a existência de múltiplos pontos de vista, desestabiliza ou desloca os centros.
A pandemia do coronavírus, que transformou indubitavelmente o mundo nos últimos meses, tem afetado de forma mais acentuada os grupos aqui analisados, aprofundando desigualdades seculares. Buscar entender melhor esses grupos, a fim de construir propostas de futuro menos desiguais, fica como crucial contribuição das autoras aqui reunidas.
Cláudia Regina Nichnig – Doutora em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora visitante do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Grande Dourados (PPGH / UFGD). Dourados, MS. lattes.cnpq.br / 7664408692666022. E-mail: claudianichnig@gmail.com orcid.org / 0000-0002-9689-8112
Maise Caroline Zucco– Doutora em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Salvador, BA. lattes.cnpq.br / 7069192545517678. E-mail: maisecz@gmail.com
Soraia Carolina de Mello – Doutora em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Florianópolis, SC. lattes.cnpq.br / 7470003514048395. E-mail: soraia.carolina@ufsc.br orcid.org / 0000-0002-3647-2136
Organizadoras
NICHNIG, Cláudia Regina; ZUCCO, Maise Caroline; MELLO, Soraia Carolina de. Apresentação. Tempo e Argumento, Florianópolis, v.12, n.29, 2020. Acessar publicação original [DR]