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O passado que não passa: a sombra das ditaduras na Europa do Sul e na América Latina – COSTA PINTO, A.; MARTINHO (Topoi)
COSTA PINTO, António; MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes. O passado que não passa: a sombra das ditaduras na Europa do Sul e na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. 336p. Resenha de: GUIMARÃES, Gabriel Fernandes Rocha. A democracia na penumbra. Topoi v.17 n.32 Rio de Janeiro Jan./June 2016.
Recentemente muito se tem falado nos círculos intelectuais e na grande mídia acerca do golpe militar de 1964 e de que forma ele moldou a política brasileira durante o regime implementado, e mesmo depois, já no período da chamada redemocratização, que tipo de herança política ele deixou, seja de caráter institucional ou ligado à cultura política nacional. Muito se tem especulado acerca deste período. Alguns afirmando que se tratou de um dos maiores, se não o maior, trauma político da história nacional, outros dizendo que foi o solapamento de uma jovem e incipiente democracia brasileira. Há ainda aqueles que falam do golpe como uma resposta a um crescente ganho de força dos grupos de ideologia comunista no Brasil, seja através de guerrilhas rurais, seja através da criação de quadros marxistas dentro das forças armadas, sobretudo no médio e baixo oficialatos.
Embora essas correntes analíticas estejam em debate desde a década de oitenta do século passado, foi nos últimos anos que a discussão se tornou mais acirrada. Então fica a pergunta: por que apenas em governos ou períodos específicos a busca pela “verdade” e pelo passado ganha maiores impulsos? Por que o passado é visto como alvo de uma averiguação mais profunda em certos contextos e em outros não? Por que em certos contextos se defende um maior silêncio em relação a passados ditatoriais sob o argumento de que não é bom para uma democracia nascente abrir velhas “feridas”, e em outros se argumenta que as “feridas” devem ser reabertas justamente em benefício da democracia? Por que em alguns casos os “regimes de transição” parecem remediar bastante os traumas políticos gerados por regimes autoritários (como na Grécia) e em outros se dá lugar a um silêncio que só será contestado muitos anos depois (como na Espanha)? É sobre esta problemática que O passado que não passa, livro organizado por Antônio Costa Pinto e Francisco Carlos Palomanes Martinho vai tratar analisando países sul-americanos com ênfase no Brasil e países da Europa do sul, colocando em foco Portugal, Espanha, Itália e Grécia.
Os diversos autores que escrevem no livro organizado por Costa Pinto e Martinho tentam mostrar como e por que surgem as “políticas do passado”, quais os grupos que as defendem, se elas vêm à tona durante a redemocratização, através dos “regimes de transição”, ou anos, ou mesmo décadas depois de fim dos regimes autoritários. Os países da Europa do sul, como Itália, Portugal, Espanha e Grécia trataram de formas bastante diferentes o seu passado, uma vez que o modo como lidaram com as principais lideranças dos regimes autoritários imediatamente à queda destes mesmos regimes foi muito diverso.
O regime fascista italiano teria caído no contexto de uma sangrenta guerra civil entre fascistas e partisans comunistas no norte italiano, além de uma invasão de forças norte-americanas e inglesas que avançou a partir do sul. Os saneamentos ligados a cargos políticos e burocráticos, protagonizados pela esquerda radical, fizeram com que 309 dos 420 senadores fossem afastados de seus cargos, assim como todos aqueles que ocupavam cargos nos níveis mais altos da administração pública. Os saneamentos selvagens que foram administrados pelos partisans junto ao desmantelamento do paraestado fascista foram uma das primeiras medidas tomadas pela esquerda radical enquanto o regime desmoronava. Estimou-se que entre doze e quinze mil supostos agentes do fascismo tenham sido fuzilados através de processos de justiça sumária. O Comitê de Liberação Nacional (CLN), durante a libertação e depois dela limitou-se e comprometeu-se a cumprir as ordens das autoridades aliadas, sendo que a defesa dos saneamentos selvagens e da condenação daqueles que deram suporte aos fascistas, após o término da segunda guerra, ficou a cargo, sobretudo da esquerda radical, o PCI (Partido Comunista Italiano), e na região mais ao norte, seu líder Palmiro Togliatti defendeu a necessidade do “sagrado ódio do povo” se manifestar contra seus antigos opressores. No sul, por outro lado, adotava-se uma posição mais conservadora, preferindo-se “esquecer” o passado fascista tendo em vista a necessidade de pôr fim aos conflitos fratricidas que desde o período da guerra assolavam a sociedade italiana. Os partidos de direita foram revitalizados após a guerra e o movimento Uomo Qualunque, (homem comum) que tanto havia se oposto aos saneamentos, assim como à CLN, conseguiu assegurar a reabilitação de muitos que haviam sido saneados.
O legado do regime fascista italiano persiste até os dias de hoje, de acordo com o artigo, através das disputas entre partidos de direita e de esquerda. Os primeiros defendendo a ideia de que os partidos de direita do pós-guerra impediram que o comunismo, uma força supostamente mais violenta que o fascismo, tomasse o poder na Itália, e os segundos colocando os partisans comunistas como os responsáveis pela derrocada do regime mais tirânico que seu país conheceu. Muitas vezes a esquerda italiana associa a direita de Berlusconi a uma retomada do fascismo na Itália, sendo que a memória do passado está bastante viva no presente político italiano.
Os portugueses, por sua vez, não desmantelaram estruturas paraestatais como os italianos, nem promoveram saneamentos selvagens tão violentos após o fim do regime autoritário em 1974 (estes ficaram restritos a algumas áreas do norte português). Os acertos de contas com o passado dirigiram-se, sobretudo, à PIDE, a polícia secreta do regime salazarista, que atuava tanto em Portugal quanto nas colônias africanas. Assim como na Itália, a demanda por justiça em relação a todos que, de alguma forma, colaboraram com o regime foi encabeçada pelos partidos colocados mais à esquerda do PS (Partido Socialista) no espectro político, no caso o PCP (Partido Comunista Português) e a UDP (União Democrática Popular), de inspiração maoista. A UDP, inclusive, defendia execuções sumárias, nos moldes dos partigiani italianos definidas por tribunais revolucionários populares, para quem tivesse apoiado o regime. No entanto, assim como o PCP, obtiveram pouco apoio popular.
Os saneamentos feitos no sistema burocrático e administrativo encontraram os mesmos problemas que na Itália, uma vez que provar definitivamente quem apoiava integralmente o regime ou não era muito difícil, e julgar todos os suspeitos gerava o risco de paralisia de toda a estrutura burocrática nacional. Apesar do forte apelo feito pelo PCP e pela UDP, dos saneamentos feitos dentro da PIDE e do caráter revolucionário da fratura política, o regime de transição português se caracterizou por uma posição relativamente moderada (pelo menos se compararmos com o caso italiano), no sentido de que as demandas comunistas-maoístas foram amenizadas por uma espécie de apatia de boa parte da sociedade portuguesa em relação a tais propostas.1 A maioria da sociedade lusitana se contentou com a prisão dos membros da PIDE como forma de acertar as contas com o antigo regime de Salazar e Marcello Caetano. A memória popular ligada ao regime do Estado Novo ficou muito vinculada à imagem de Marcello Caetano que, segundo os autores, teve a sua principal faceta, a de um grande intelectual, apagada da memória popular em função de momentos esporádicos de sua carreira, como a repressão à Capela do Rato ou as restrições às listas eleitorais de 1969 e 1973. Dois anos após a queda do regime, o que se viu foi um quase desaparecimento das políticas do passado. A vitória do PS em 1976 deu continuidade a este processo de esquecimento e de reconciliação frente a processos de caráter mais punitivo.
Já o caso espanhol aparece como um dos mais curiosos, uma vez que, mesmo com a violência e grande duração (36 anos) do regime de Franco, as políticas do passado e a busca pela verdade só vieram à tona já adentrado o novo século, tendo havido uma espécie de esquecimento que durou décadas até ser ativado pelo governo de Zapatero. Ao contrário do caso italiano, em que o regime de Mussolini caiu frente a uma violenta guerra civil, ou do caso português, que viu o regime ruir frente a um movimento revolucionário que se desenvolveu dentro das Forças Armadas em um contexto de guerra colonial, o regime franquista espanhol nasceu, se desenvolveu e morreu com Franco. O ditador faleceu de velho em sua cama em 1975, em uma conjuntura de pouco conflito político-militar, com a monarquia logo tomando as rédeas do processo de democratização.
De certa forma, as elites que conduziram a redemocratização insistiram em um argumento utilizado pelo próprio Franco de que os espanhóis seriam inaptos para viver em democracia sem recorrer à violência. Embora essas elites conduzissem o sistema rumo a uma democracia, este argumento foi utilizado no sentido de estabelecer rapidamente um discurso de reconciliação e evitar novos confrontos que pudessem vir à tona junto com a busca pelas raízes do governo franquistas. Isto se traduziu numa procura obsessiva pelo consenso, e um princípio indispensável durante o governo de transição. Desta maneira, o argumento de Franco foi utilizado de forma ex negativo como forma de superação do regime do próprio Franco.
A transição para a democracia foi, em alguma medida, baseada num desejo quase explícito de esquecer, ou mesmo silenciar as dimensões do passado. A Lei de Anistia de 1977 para crimes políticos, votada no Parlamento por todos os partidos, menos a ala de direita dos ex-franquistas, satisfez, sobretudo bascos e catalães, que haviam sofrido repressão direta do regime. Entretanto, essa lei protegia de ações judiciais também os perpetradores da ditadura. O referendo para Lei para a Reforma Política de 1976, que estabelecia a lei como princípio político e a soberania do povo através do sufrágio geral teve amplo apoio popular (77% votou pelo sim) e a maioria dos partidos políticos espanhóis optou pela moderação.
Os primeiros sinais da necessidade de pensar o passado vieram com as pensões destinadas a viúvas de militares republicanos mortos na guerra civil, e a reabertura de valas comuns em certos municípios, onde estariam enterrados membros da oposição assassinados pelo regime. A reabertura das valas foi uma iniciativa popular situada, sobretudo, em pequenos municípios, canalizadas por parlamentares recém-eleitos das câmaras municipais, mas as iniciativas de “desenterro” do próprio passado ficaram reduzidas a isso. Mesmo com o PSOE vencendo as eleições espanholas de 1982 e 1986, pouco se propôs para uma maior averiguação do passado ditatorial. Apenas com o PP (Partido Popular), um partido de direita chegando ao poder em 1996, começou-se realmente a tentar desvelar o passado franquista. A política do passado se fez incisivamente relevante no presente, assumindo um ponto central no discurso da esquerda a partir de 2000. O PSOE passou a associar a direita espanhola de forma geral com a ditadura franquista, de maneira a enquadrá-la como a revitalização de um passado sombrio, cabendo à esquerda a tarefa de barrar esta suposta ameaça. Desta forma, a averiguação do passado ditatorial está intrinsecamente ligada a um discurso partidário de plataformas eleitorais de esquerda como PSOE, IU (Izquierda Unida), ERC (Esquerra Republicana de Catalunya) e vivo no presente político espanhol, como no caso da ARMH (Associação para a Recuperação da Memória Histórica) fundada no ano 2000. De qualquer forma, os próprios autores concordam que a necessidade de recuperar a “verdade” acerca do passado autoritário na Espanha ter ocorrido apenas nestas datas específicas permanece uma questão a ser estudada mais minuciosamente.
No caso grego, curiosamente parece ter ocorrido justamente o contrário. O “governo dos coronéis” caiu em 1974, sendo que suas mais proeminentes lideranças foram presas e condenadas quase que imediatamente ao fim do regime. Isto parece ter, em alguma medida, saciado a necessidade de acerto de contas com o passado, visto que o tema da ditadura militar parece ter sido “apagada” da memória coletiva dos gregos. À queda do regime sucedeu o retorno do conservador Konstantinos Karamanlis ao poder, o mesmo que havia sido deposto em 1967 pelos militares. Quando da queda dos militares o partido mais à esquerda, o Partido Comunista da Grécia (EKK), curiosamente não foi quem colocou demandas mais radicais em relação ao que fazer com os administradores da ditadura. Quem assumiu esta posição foi o Partido Socialista Grego (PASOK). Isto se deve, segundo o autor, ao fato de muitos membros do EKK terem vivenciado a semidemocracia de antes da ditadura, onde partidos socialistas e comunistas eram proibidos de competir em eleições. Para os membros do EKK, o direito às eleições após o fim da ditadura já era um grande ganho e tinham receios do que poderia ocorrer caso colocassem demandas demasiadamente radicais, tendo em vista as perseguições que sofreram durante os governos conservadores de antes do regime dos coronéis. Os mais jovens membros do PASOK, não tendo tão fresca a memória acerca dos regimes conservadores, não hesitavam em exigir penas duríssimas para os responsáveis pela ditadura. Por causa desta questão geracional, os gregos inverteram a regra portuguesa, onde os comunistas haviam assumido um maior radicalismo e os socialistas uma maior moderação. Com a condenação à prisão perpétua de três dos principais membros dos círculos governantes, a necessidade de desenterrar o passado ficou no próprio passado, no caso grego.
Voltando nosso olhar para a América do Sul, o Brasil foi o maior alvo da atenção dos autores. De acordo com Palomanes Martinho, os silêncios acerca da ditadura no Brasil foram vários, incluídos aqueles em torno das iniciativas políticas institucionais e extrainstitucionais da esquerda antes do golpe e aquele em torno dos torturadores, que parece ocupar um lugar central nos atuais debates acerca do tema. A averiguação dos crimes cometidos pelo regime militar, no caso brasileiro, também teve, no início, iniciativas bastante tímidas. Elas se limitaram às buscas do frade franciscano Paulo Evaristo Arns e do pastor presbiteriano Jaime Wright, ainda durante o regime (entre 1979 e 1985) por meio de documentos confidenciais acerca do julgamento de 707 “subversivos” julgados pelo Superior Tribunal Militar (STM). No governo Collor, muito pouco se fez para aprofundar um anseio que já se desenvolvia em alguns setores da sociedade civil desde a década de 1980: acesso aos arquivos em busca da verdade acerca dos mortos e desaparecidos.
Foi no governo FHC que começaram medidas mais significativas em relação ao passado ditatorial. Em 1995 a Comissão de Familiares dos Mortos e Desaparecidos por Razões Políticas (CFMDRP) publicou o “Dossiê das mortes e desaparecimentos políticos a partir de 1964” e o governo respondeu apresentando um projeto de lei para reconhecer a morte dos 136 presos políticos e compensar as famílias dos mortos e dos torturados. O governo também assinalou o décimo sexto aniversário da Lei de Anistia, que liberou presos políticos e torturadores de qualquer forma de processo por parte do Estado. Ainda em 1995, a Lei das Vítimas de Assassinato e Desparecimento Político tornou-se o eixo da “justiça de transição” do governo FHC. Ela reconhecia a responsabilidade do Estado pela morte de 136 militantes políticos e estabelecia a criação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos com o objetivo de analisar esses e outros casos pendentes, além de comprometer o governo com o pagamento de indenizações às famílias das vítimas.
O governo Lula deu continuidade a essas propostas, aprofundando-as através de uma nova Comissão de Anistia e do estabelecimento de uma Comissão Nacional da Verdade promovendo um conjunto de “políticas da memória”. O governo Lula representou o primeiro esforço oficial para contar a verdade desde os esforços de Arns nos anos 1980. Entretanto, deparou-se com as mesmas dificuldades encontradas durante o governo FHC, em particular com a resistência dos militares em abrir os arquivos e com a forte resistência contra a violação dos limites impostos pela Lei de Anistia. No governo Dilma Rousseff este processo se aprofundou realmente. A política do passado ganhou tonalidades mais gritantes. Ao passar a Lei da Comissão da Verdade, a presidente Dilma também sancionou a Lei de Acesso à Informação, que permitiria aos cidadãos entrar em contato com os documentos governamentais. Esta lei entrou em vigor em 2012 e garantiu acesso a documentos públicos de órgãos federais. Porém, a existência dos tribunais separados para a polícia militar continua gerando certo clima de impunidade e de continuidade de certos traços do regime ditatorial, permanecendo como um dos principais temas de conexão entre as políticas do passado e do presente.
Encontrar um eixo comum que caracterize todos os casos estudados se mostra bastante difícil, no que se refere ao momentum em que essas reivindicações são de fato postas em prática. A busca pela verdade e pelo acerto de contas pode vir ainda durante o regime, mas ganhar contornos mais incisivos apenas anos depois, como no Brasil. Pode também vir à tona apenas décadas depois como no caso espanhol. Segundo os autores, o passado pode sobreviver e influenciar na luta partidária do presente como na Itália, ou permanecer no passado como na Grécia e, em certa medida, Portugal.
Os gregos, inclusive, foram o caso mais claro de esquecimento do passado autoritário, talvez porque os principais responsáveis tenham imediatamente recebido penas duríssimas, satisfazendo assim o desejo de retaliação de certos setores sociais. O que podemos ver em todos os casos analisados é que são basicamente os setores de esquerda que reivindicam a luta pela memória. Tanto nos regimes de transição, onde a esquerda radical defende muitas vezes julgamentos populares para os suspeitos, quanto já no período democrático, onde a esquerda clama para si o papel de antagonista daqueles que supostamente ainda perpetuam certos traços das ditadura, ela em todos os casos analisados assume o papel de grande adversário do espírito autoritário que dominou seus países, mesmo em situações onde grande parte da população não esteja tão interessada na questão, como em Portugal. Isto se deve, muito provavelmente, ao fato de todos os regimes estudados no livro terem sido ditaduras de direita. Mas fica a pergunta: a esquerda, e sobretudo, a esquerda radical, entra em cena nesses momentos para lutar por um regime poliárquico no sentido de Robert Dahl, ou para alavancar um processo revolucionário extra, ou intraparlamentar? Seria interessante um aprofundamento deste estudo comparando os casos analisados com os países do leste europeu, seus regimes de transição, quais atores afrontaram os regimes autoritários e como o fizeram, e de que maneira o passado influencia na política do presente.
1Não se quer dizer que na Itália não houve de for ma alguma um desinteresse popular pela extrema esquerda. Queremos dizer apenas que a esquerda radical italiana conseguiu capitalizar o processo de saneamento do regime fascista por mais tempo e de forma mais contundente.
Gabriel Fernandes Rocha Guimarães – Doutorando em Sociologia pelo Iesp-Universidade do Estado do Rio de janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: gabrielfrg@bol.com.br.
O Passado que não passa: a sombra das ditaduras na Europa do Sul e na América Latina – PINTO; MARTINHO (RBH)
PINTO, António Costa; MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes (Org.). O Passado que não passa: a sombra das ditaduras na Europa do Sul e na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. 336p. Resenha de: WASSERMAN, Claudia. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.34, n.67, jan./jun. 2014.
O passado ressurgirá mesmo quando existe um acordo inicial de esquecê-lo.
Alexandra Baharona de Brito e Mario Snajder
A historiografia sul-americana tem se dedicado ao tema das ditaduras de segurança nacional desde a sua implantação, em meados dos anos 1960, e o tema continua tendo desdobramentos importantes. A caracterização dos regimes – fascistas, burocrático-autoritários, civil-militares, ditatoriais, totalitários etc. –, a diferenciação com as ditaduras pregressas, o papel dos militares na política, os atores, o contexto nacional e internacional, a influência e participação dos Estados Unidos, o papel desempenhado pela Doutrina de Segurança Nacional (DSN), o esgotamento de um modelo de acumulação capitalista, o papel dos empresários nos golpes, o estudo sobre a resistência aos golpes, a guerrilha, as organizações de esquerda e as memórias de militantes foram objeto de pesquisa dos historiadores e mereceram atenção em livros e coletâneas. Nos primeiros anos do século XXI, o tema das ditaduras latino-americanas entrou definitivamente em outro campo referente ao debate sobre as políticas de memória instituídas ou não pelos governos pós-ditatoriais. Em 2014 o golpe de 1964 no Brasil completa 50 anos, data “redonda” consagrada para discussão e reflexão a respeito do legado autoritário, ou do quanto “restou” de resíduos na nossa sociedade brasileira do regime implantado a partir do golpe.
O livro organizado por Francisco Carlos Palomanes Martinho e António Costa Pinto, O passado que não passa: a sombra das ditaduras na Europa do Sul e na América Latina, está dedicado justamente a essa temática. Composto de dez capítulos que discutem temas fundamentais do legado autoritário em vários países na Europa e da América do Sul, o livro trata do ressurgimento e interpretação do passado autoritário durante as transições democráticas na Itália, Espanha, Portugal, Grécia e Brasil. Os casos são debatidos em um duplo sentido: as formas através das quais as elites políticas se apropriaram do acontecido e com ele lidaram, e a presença do passado no seio da sociedade.
O eixo que organiza a obra é a atitude perante o passado autoritário, notadamente as questões relacionadas à justiça de transição. Os capítulos estão embasados em forte teorização a respeito da transição democrática e de suas condicionalidades. O livro procura debater a hipótese de que a qualidade das democracias contemporâneas está fortemente influenciada pelo modo como as sociedades em transição lidaram com o seu passado autoritário. Punição das elites autoritárias, dissolução das instituições correspondentes, responsabilização dos indivíduos e do Estado pela violação dos direitos humanos são aspectos possíveis no cenário da justiça de transição ou do estabelecimento de uma “política do passado”.
Segundo a introdução de Costa Pinto, o volume está estruturado sobre três eixos, a saber: legados autoritários, justiça de transição e políticas do passado (p.19). No texto, um dos dois organizadores do volume procura esclarecer e estabelecer limites entre as definições de conceitos associados uns aos outros.
Por legado autoritário entendem-se “todos os padrões comportamentais, regras, relações, situações sociais e políticas, normas, procedimentos e instituições, quer introduzidos quer claramente reforçados pelo regime autoritário imediatamente anterior, que sobrevivem a mudança de regime…” (p.20). Os capítulos referem-se particularmente a dois legados: a permanência das elites políticas que apoiaram os regimes autoritários e a conservação de instituições repressivas.
Por justiça de transição entende-se toda “uma série de medidas tomadas durante o processo de democratização, as quais vão além da mera criminalização da elite autoritária e dos seus colaboradores e agentes repressivos e implicam igualmente uma grande diversidade de esforços extrajudiciais para erradicar o legado do anterior poder repressivo, tais como investigações históricas oficiais sobre a repressão dos regimes autoritários, saneamentos, reparações, dissolução de instituições, comissões da verdade e outras medidas que se tomam durante um processo de transição democrática” (apud Cesarini, p.22), ou “a justiça de transição é componente de um processo de mudança de regime, cujas diferentes facetas são uma parte integrante desse processo incerto e excepcional que tem lugar entre a dissolução do autoritarismo e a institucionalização da democracia” (p.23). Significa dizer que as decisões tomadas no âmbito da justiça de transição não são necessariamente punitivas. Podem ensejar a reconciliação ou combinar ambas as coisas. Ressaltam, pois, a forma como ocorrem as transições e a qualidade da democracia que está sendo proposta e instaurada.
Finalmente, por política do passado entende-se “um processo em desenvolvimento, no âmbito do qual as elites e a sociedade reveem, negociam e por vezes se desentendem em relação ao significado do passado autoritário e das injustiças passadas, em termos daquilo que esperam alcançar na qualidade presente e futura das suas democracias” (p.24). A política do passado envolve a forma como o passado é trazido à tona nos novos regimes democráticos, e a qualidade da democracia vai depender dessas atitudes, condenatórias ou sutilmente críticas. Ao longo dos capítulos do livro percebe-se que com respeito à política do passado, a ruptura foi menos frequente do que a convivência com os resíduos do autoritarismo, e que o tempo transcorrido entre a redemocratização e o estabelecimento de uma política do passado também deve ser considerado para comparar os diversos casos. A existência de múltiplos passados confrontados em sociedades recém-democratizadas conduz a uma diversidade de formas de lidar com o passado autoritário que vão desde a conciliação (transição pactuada ou negociada), com o estabelecimento de medidas de reconciliação em relação aos crimes cometidos pelo Estado, até a instauração de uma justiça de saneamento (transição por ruptura) com medidas punitivas.
Ao longo dos capítulos instauraram-se, portanto, as seguintes questões: nos casos estudados tratou-se de “esquecer ou reavivar o passado?”, “ocultar ou trazer à tona a memória do autoritarismo e/ou da resistência?”, “enfrentar ou não o passado autoritário?” e, finalmente, “é possível optar entre confrontar o passado ou esquecê-lo?”. Costa Pinto observa que mesmo diante da consolidação da democracia “as velhas clivagens da transição não desaparecem como por milagre: podem reemergir em conjunturas específicas” (p.29), e é isso que nos leva a compreender a frase que serviu de epígrafe à resenha: “O passado ressurgirá mesmo quando existe um acordo inicial de esquecê-lo” (p.300), aplicada aqui à realidade espanhola.
A instauração de uma política do passado depende de circunstâncias relacionadas com a força dos partidos políticos; os agentes que conduzem a transição; os traços singulares de cada ditadura (relativos à memória coletiva e ao terror instaurado no seio da sociedade); ao tempo de duração de cada ditadura; à qualidade da democracia anterior (cultura política); à autocrítica dos atores (políticos e intelectuais); o rompimento súbito ou prolongado com o regime autoritário; a capacidade dos atores políticos, intelectuais e midiáticos em incluir ou retirar os temas “política de memória, justiça de transição e avaliação do legado autoritário” da agenda a ser debatida pela sociedade como um todo, entre outros fatores mencionados ao longo dos capítulos.
No capítulo introdutório, Costa Pinto compara os casos de Itália, Espanha, Portugal e Grécia, sendo os três primeiros exemplos de ditaduras duradouras, com lideranças personalizadas e alto grau de inovação institucional, enquanto a Grécia assemelhou-se a um regime de exceção. As definições conceituais e a tentativa de comparação entre as quatro transições que aparecem no capítulo compensam a ausência de profundidade de cada um dos casos.
Marco Tarchi se debruça sobre “O passado fascista e a democracia na Itália”. Trata da queda do regime autoritário, do regresso da classe dirigente anterior ao fascismo, das diferenças entre o Sul e o Norte do país, dos matizes ideológicos de cada partido antifascista (dos mais moderados aos mais radicais) e, por consequência, das diferentes visões sobre a justiça de transição ou dos métodos para “desfascistizar o país” (p.51). Ainda se refere aos detalhes que envolveram o “ajuste de contas” – os ataques aos símbolos do regime, a dissolução das instituições do regime – e à política de saneamentos que vigorou na administração pública. No caso italiano, também se observa a pressão exercida pelos Aliados no sentido de garantir o julgamento dos que haviam colaborado com os alemães. A condenação pública do regime de Mussolini e atos de extrema violência verificados no processo transicional podem ser explicados também com base nessas pressões.
O capítulo sobre a justiça de transição em Portugal, escrito por Filipa Raimundo, trata da criminalização dos antigos membros da polícia política do Estado Novo. Aborda especialmente o papel dos partidos políticos no processo procurando elucidar como se constituiu o sistema partidário, quando a questão da justiça de transição entrou na agenda dos políticos e como os partidos se posicionaram a respeito das medidas punitivas. Através de quadros sintéticos, a autora verifica avanços e retrocessos nas medidas punitivas e, simultaneamente, aborda os reflexos na legislação que regulou o processo. Apresenta uma análise da imprensa diária e semanal, dos programas eleitorais e da imprensa partidária para avaliar a importância do tema.
Francisco Carlos Palomanes Martinho aborda “As elites políticas do Estado Novo e o 25 de abril”, através da memória construída em torno do último presidente do Conselho dos Ministros do Estado Novo, Marcello Caetano, em dois períodos: 1980, o ano de sua morte, e 2006, no ano do centenário de nascimento. Os dois períodos são contextualizados e ajudam a explicar a “batalha de memórias” (apud Pollak, p.128). O texto está apoiado em ampla bibliografia a respeito do político e verifica a ambivalência de sua trajetória, bem como questiona sobre o possível “encapsulamento” da memória no final do seu governo, o que reduziria, segundo Martinho, injustamente o papel dessa personagem. O capítulo não reabilita Caetano ou o Estado Novo, mas contribui para entender os objetivos do regime e as “artimanhas da memória” (p.155).
O caso da Espanha é abordado pelo capítulo de Carsten Humlebaek como um caso de transição negociada, em que a forte polarização da sociedade no período da ditadura resultou na necessidade de reconciliação na época da queda do franquismo. Segundo o autor: “A combinação da necessidade de reconciliar a nação com o medo de conflito traduziu-se numa procura obsessiva de consenso como um princípio indispensável para a mudança política depois de Franco, mas também fez os principais atores absterem-se de qualquer tipo de mudança abrupta que pudesse ser interpretada como revolucionária” (p.161). Humlebaek contextualiza o reaparecimento do tema na virada do século XXI, sobretudo na esfera pública, e descreve as organizações que surgiram em torno do tema.
Dimitri Sotiropoulos trata do caso grego e compara-o às transições na Espanha e em Portugal. O capítulo aborda o regime dos coronéis, a sua derrocada e a aplicação muito severa da justiça de transição que promoveu saneamento das instituições, inclusive das Forças Armadas. Revela igualmente, mediante pesquisa de opinião pública, que a sociedade grega não tem uma memória precisa de rejeição ao regime ditatorial. Segundo sua visão, o modelo grego de justiça de transição teve caráter “rápido e comedido” (p.212), o que ajuda a explicar o apagamento ou atenuação da memória a respeito do regime.
O capítulo dedicado ao Brasil, escrito por Daniel Aarão Reis Filho, debate a lei da anistia, aprovada no país em 1979, no que se refere aos “silêncios” que a legislação ajudou a produzir (p.217), quais sejam, dos torturados e torturadores, das propostas revolucionárias de esquerda e do apoio da sociedade à ditadura. Em seguida, o autor considera a possibilidade de revisão da Lei da Anistia e observa que a chegada de antigos militantes de esquerda ao poder impulsionou “questionamento aos silêncios pactados em 1979” (p.224). Finalmente, Reis Filho se pergunta se é positivo ou não para a sociedade brasileira discutir esses silêncios. Segundo sua visão, debater o passado é a “melhor forma de pensar o presente e preparar o futuro” (p.225).
Alexandra Barahona de Brito também aborda o caso brasileiro, considerando-o como uma das transições mais longas da América Latina, onde supostamente “a duração e o ritmo da transição se deram mais pela ação dos militares do que pela pressão da sociedade civil” (p.236). Ao descrever a forma como os militares tutelaram o processo e menosprezar a resistência e a pressão da sociedade no final dos anos 1970, Brito contribui para mais um silêncio, dos tantos referidos por Reis Filho. O capítulo, ao contrário dos demais, expressou opiniões sem a devida comprovação, bem como procedeu à caracterização de processos com utilização de adjetivos não muito esclarecedores, como aquele que qualifica a política de Lula e Fernando Henrique Cardoso em relação ao passado de “esquizofrênica” (p.244 e 246). Ainda assim, o capítulo mostra os avanços na direção do estabelecimento de uma política de memória. Finalmente, as explicações sobre os motivos que tornaram tão lento, no Brasil, o ritmo da “justiça de transição”, enunciadas na página 253, parecem mais uma vez fruto de opinião e não de um estudo de fontes históricas e da cultura política do país.
O capítulo 9, de Leonardo Morlino, propõe uma análise comparada dos “Legados autoritários, das políticas do passado e da qualidade da democracia na Europa do Sul”. Retoma conceitos e teorias formulados e apresentados ao longo de todo o volume e sugere uma relação entre “inovação dos regimes, duração e tipo de transição” (p.271). Seu texto apresenta dados de pesquisas de opinião pública nos países da Europa do Sul a respeito das atitudes da sociedade em relação ao passado autoritário e reflete sobre a qualidade da democracia em cada país.
Finalmente, no último capítulo Alexandra Baharona de Brito e Mario Sznajder refletem sobre a “Política do passado na América Latina e Europa do Sul em perspectiva comparada”. Completam assim um volume que pretendeu a cada passo comparar os casos e tirar experiências comuns e singulares para explicar as transições democráticas no final do século XX. Grécia, Portugal e Espanha, além de Argentina, Uruguai e Chile, são examinados no capítulo. A abordagem central é a respeito da transição e da instauração de mecanismos de acionamento do passado. Reflete igualmente sobre os legados da ditadura em cada país e como esse legado interfere na implementação da justiça de transição.
Diante de um “passado que não passa” e de resíduos autoritários que permanecem latentes em todas as sociedades estudadas, a leitura do livro nos faz pensar muito sobre as políticas de passado instauradas pelos Estados democráticos e sobre o papel do historiador de ofício nesse processo. Visto que as políticas de memória instauradas pelos Estados vão se modificando com o tempo porque respondem às preocupações do presente e são emolduradas pelo contexto histórico-social concreto, o livro nos induz a refletir sobre o ofício e a responsabilidade do historiador diante dessas políticas de memória instauradas pelos Estados e acerca dos processos traumáticos vividos pelas sociedades. As dimensões problemáticas do passado são a matéria-prima do historiador. Por isso, consolidada a democracia, cada nova geração de historiadores vai debruçar-se sobre o tema do autoritarismo e da ditadura e procurar incrementar o acervo de informações sobre o período. Com base nesse acervo de informações, caberá aos historiadores refletir a respeito das políticas de memória e estabelecer com a maior precisão possível a diferença entre o passado que emana dos interesses rememorativos dos Estados e os prováveis esquecimentos, omissões e artimanhas da memória que possam se contrapor às informações levantadas pelo historiador a partir das fontes e da pesquisa científica.
Claudia Wasserman – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pesquisadora do CNPq. E-mail: claudia.wasserman@ufrgs.br.
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