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O nascimento do Brasil e outros ensaios – OLIVEIRA (Tempo)
OLIVEIRA, João Pacheco de. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: Contracapa, 2016. Resenha de GARCIA, Elisa Frühauf. O nascimento do Brasil e outros ensaios. Tempo, v.24, n.1, Niterói jan./abr. 2018.
Em O nascimento do Brasil e outros ensaios, João Pacheco de Oliveira reúne nove textos elaborados nos últimos anos, originalmente publicados como artigos em coletâneas e periódicos ou apresentados em congressos e afins. Organizados em formato de livro, discutem temas relacionados aos povos indígenas que, em alguma medida, representam a trajetória do autor e suas opções epistemológicas. Professor titular de antropologia do Museu Nacional (UFRJ) desde 1997 e um dos mais influentes antropólogos de sua geração, João Pacheco começou seu percurso profissional realizando pesquisa de campo entre os Ticuna na tríplice fronteira (Brasil, Colômbia e Peru). Dedicou-se também ao estudo de políticas públicas e, desde meados da década de 1990, vem desenvolvendo pesquisas sobre os povos indígenas do Nordeste. Lançado em 2016, o livro recebeu da ANPOCS em 2017 o prêmio de Melhor Obra Científica.
Os capítulos refletem as preocupações que o autor demonstrou já no início de sua trajetória com o estudo da condição indígena a partir do colonialismo e das interações entre os diferentes segmentos sociais. O colonialismo, neste caso, não se restringe ao sentido mais utilizado pelos historiadores, referindo-se ao período no qual o Brasil foi parte do império português. Trata-se de uma discussão mais ampla sobre a relação do Estado com os povos indígenas, marcada por diferentes recursos jurídicos e administrativos que limitavam a capacidade civil dos nativos. Tais dispositivos vigoraram oficialmente até a extinção da tutela pela Constituição de 1988. A implementação da mudança, contudo, encontrou uma série de entraves. Como demonstrado no capítulo 8, “Sem a tutela, uma nova moldura de nação”, os marcos legais não substituem facilmente culturas institucionais arraigadas. Alguns órgãos administrativos, sobretudo a Funai, mantiveram na prática a vigência de categorias e percepções tributárias da tutela.
A análise da atuação dos órgãos relacionados à questão indígena, considerando a legislação vigente, as culturas administrativas e as ações de funcionários orientadas pelo senso comum, nos conduz a uma questão central, a definição de quem é índio. O tema é complexo: a condição indígena no país está marcada não apenas por diferenças culturais dos povos entre si e destes em relação à sociedade envolvente, mas por aspectos históricos. Se o tema perpassa toda a trajetória de João Pacheco, foi com o trabalho sobre os povos indígenas do Nordeste que suas reflexões nesta linha adquiriram maior centralidade e densidade conceitual. O capítulo 5, “Uma etnologia dos ‘índios misturados’? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais”, é uma referência imprescindível nos estudos de antropólogos e historiadores sobre a temática indígena. Fruto de uma conferência originalmente apresentada no concurso para professor titular no Museu Nacional e já publicado em outras ocasiões, contribuiu para a construção de um campo de pesquisa que vem se desenvolvendo com bastante vivacidade desde então (Oliveira, 1999 e 2011).
Ao abordar os povos indígenas do Nordeste, João Pacheco enfrentou o desafio teórico-metodológico de trabalhar com uma população cujo contato com a sociedade envolvente remete aos primórdios da construção do Brasil colonial no século XVI. Suas interações com grupos de diversas origens, tanto europeias quanto africanas, foram constantes desde então e eles não se enquadram na definição de índio caracterizada por uma alteridade cultural radical. Com frequência, pesquisadores e agentes estatais alegavam sua condição de “misturados” como desqualificadora de reivindicações políticas e de sua legitimidade como um objeto de pesquisa etnológica. Diante disso, o autor optou por problematizar a trajetória dessas populações. Apresentou os diferentes “momentos de mistura” gerados pelas políticas administrativas implementadas em um primeiro momento pelo Estado colonial português e, já no século XIX, pelo Império do Brasil. Evitou, assim, a condição indígena entendida como uma essência e forneceu os elementos conceituais para que ela fosse percebida em sua historicidade, relacionada a situações específicas.
O autor elenca três momentos fundamentais de “mistura”: os aldeamentos promovidos pelo Estado português a partir de meados do século XVI; a aplicação da legislação pombalina iniciada na década de 1750 e a dissolução das aldeias no século XIX. No primeiro momento, os índios foram sujeitos a uma política administrativa que lhes adjudicou um determinado território onde deveriam passar a viver após a inserção na sociedade colonial: as aldeias missionárias. João Pacheco não interpreta tais espaços apenas como ambientes que ameaçavam, ou mesmo extinguiam, a condição indígena a partir da “aculturação”, como então se pensava nos estudos históricos desenvolvidos no país. As aldeias são apresentadas como propulsoras da formação de novas identidades, explicadas a partir da noção de “territorialização”. Conceito-chave para os estudos nessa linha, remete ao processo pelo qual os índios, objeto de uma política colonial que os circunscreve a determinado espaço, se apropriam daquele ambiente, reformulando suas políticas identitárias em uma situação específica. O conceito fez parte das reflexões que possibilitaram uma mudança fundamental na perspectiva sobre as aldeias missionárias no Brasil colonial, cujo trabalho mais influente no âmbito historiográfico foi o de Maria Regina Celestino de Almeida (2003).
Suas reflexões a partir de uma antropologia histórica o levaram também a enfocar a questão indígena em uma perspectiva de longa duração. Para tanto, articula a análise das diversas imagens que hoje manejamos sobre o tema, em geral desencontradas e idealizadas, com seus usos e construções em momentos específicos. Os dois primeiros capítulos, “O nascimento do Brasil: revisão de um paradigma historiográfico” e “As mortes do indígena no Império do Brasil: o indianismo, a formação da nacionalidade e seus esquecimentos”, abordam visões estabelecidas sobre o lugar das populações nativas em nossa história. Retomando os diferentes momentos das relações dos índios com os europeus no século XVI e analisando os processos artísticos do indianismo do século XIX, a ideia é entender e questionar a consolidação de uma percepção da história do Brasil que deliberadamente desconsiderou os povos nativos. Como demonstra o autor, a mudança recente de paradigma, com sua inclusão como agentes importantes, decisivos em vários contextos, é fundamental para explicarmos que foi a apropriação violenta de seus recursos (sua força de trabalho, suas terras e seus conhecimentos) que possibilitou a construção do Brasil. Esse processo, por sua vez, não desencadeou a extinção física e cultural dos índios, mas sua incorporação à sociedade envolvente em uma condição subordinada. Tal lógica não está restrita aos primeiros contatos, ela se reproduziu ao longo do tempo em diferentes situações à medida que se avançava “sertão adentro”.
A expansão da sociedade envolvente sobre os territórios indígenas articula-se a uma noção fundamental para a história do Brasil: a fronteira. Nos capítulos três e quatro, “A conquista do vale amazônico: fronteira, mercado internacional e modalidades de trabalho compulsório” e “Narrativas e imagens sobre povos indígenas e Amazônia: uma perspectiva processual de fronteira”, o autor analisa tal expansão vinculada à extração da borracha. Para tanto, evita a ideia de uma fronteira naturalizada, que refletiria uma determinada realidade. Ao contrário, utiliza o termo como uma categoria analítica para pensar a subordinação daquela região específica a interesses econômicos externos, com grande peso internacional. Enfatiza como as análises anteriores desconsideraram a presença e a perspectiva dos povos indígenas que habitavam aqueles espaços, especialmente sua atuação em determinados tipos de seringais. A proposta é interpretar a história da região partindo das relações concretas que lá existiam, considerando sobretudo os impactos do “apogeu” da extração da borracha nas dinâmicas locais.
A ausência dos índios nas narrativas históricas, apresentados como meros “remanescentes” que seriam inexoravelmente “extintos” pela expansão da sociedade envolvente, ou seja, não teriam um futuro como um grupo diferenciado dentro da “nação” brasileira, foi questionada pelos resultados dos últimos censos. Verificou-se, especialmente a partir do realizado no ano 2000, um crescimento do número de índios muito superior aos demais segmentos da população (IBGE, 2005). Porém, como demonstrado no capítulo seis, “Mensurando alteridades, estabelecendo direitos: práticas e saberes governamentais na criação das fronteiras étnicas”, os resultados dos últimos recenseamentos devem ser interpretados em perspectiva histórica. Longe de serem um mero reflexo da composição demográfica do Brasil, refletem paradigmas e configurações de poder específicos. A mudança nas últimas contagens espelha, entre outros aspectos, as disputas no campo indigenista e as iniciativas desenvolvidas pelos próprios índios. Em grande parte, foram seus vínculos identitários e suas ações políticas que questionaram os prognósticos sobre seu “desaparecimento” iminente. Relacionam-se, também, à disputa por direitos, pois os dados oficiais são documentos fundamentais na elaboração de políticas públicas e na distribuição de recursos.
O livro termina com a abordagem de uma categoria muito empregada em diferentes contextos na relação do Estado com as populações indígenas: a “pacificação”. A reflexão foi ocasionada pelas políticas de segurança pública desenvolvidas no Rio de Janeiro a partir de 2008. Na ocasião, uma operação militar na comunidade Santa Marta era apresentada como o início de uma “nova” presença do Estado nestes espaços, com promessas de combate ao tráfico e do estabelecimento de uma série de serviços de atendimento à população. O autor parte de um desconforto compartilhado por todos aqueles que conhecem minimamente a longa e controversa história da categoria “pacificação”, utilizada em diferentes contextos, desde o período colonial, para lidar com a alteridade indígena de maneira subalterna. A opção por sua recuperação na contemporaneidade em um contexto urbano revela a permanência de um paradigma estigmatizador das populações que habitam as comunidades na construção das políticas públicas de segurança. Denota ainda a presença de antigas práticas como referencial para iniciativas apresentadas como “novas” e nos leva a suspeitar em que medida elas representam de fato uma ruptura com um passado desairoso.
Os capítulos, produzidos em diferentes ocasiões, como já mencionado, foram articulados por um prefácio esclarecedor, no qual o autor retoma suas principais preocupações e contextualiza a leitura. Trata-se de uma publicação que deve ser lida por todos aqueles interessados na história no Brasil. Os temas tratados e a metodologia utilizada nos recordam que a história não é linear desde nenhuma perspectiva. Os povos indígenas do Brasil não têm uma trajetória única, e o que eles são hoje se vincula à maneira como se relacionaram, e foram afetados, pelas políticas estatais e pelas ações de diferentes agentes sociais. Vincula-se, ainda, às suas expectativas de futuro e às possibilidades apresentadas pelo tratamento que o Estado e a sociedade civil dão ao tema. Afinal, como João Pacheco enfatiza ao longo do livro, a questão indígena está intrinsecamente relacionada às discussões sobre a formação da “nação brasileira” e de suas hierarquias sociais. Ao não nos questionarmos sobre as origens das interpretações e das categorias que utilizamos, corremos o risco de naturalizarmos os projetos e sentidos daqueles que, baseados em seus próprios interesses e convicções, desenharam uma história do Brasil ancorada no eurocentrismo.
Referências
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. [ Links ]
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Tendências demográficas: uma análise dos indígenas com base nos resultados da amostra dos Censos Demográficos 1991 e 2000. Rio de Janeiro, 2005. [ Links ]
OLIVEIRA, João Pacheco (Org.). A viagem da volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena. Rio de Janeiro: Contracapa, 1999. [ Links ]
OLIVEIRA, João Pacheco (Org.). A presença indígena no Nordeste: processos de territorialização, modos de reconhecimento e regimes de memória. Rio de Janeiro: Contracapa , 2011. [ Links ]
Elisa Frühauf Garcia – Instituto de História, Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói (RJ) – Brasil. E-mail: elisa.fruhauf.garcia@gmail.br.