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O mundo prodigioso que tenho na cabeça – Franz Kafka: um ensaio biográfico | L. Begley
Se existe um ‘significado inteligente’ a ser encontrado em ‘O veredicto’, Na colônia penal, A metamorfose, Amerika, O processo ou O castelo é a reação que essas obras provocam no leitor (BEGLEY, 2010, p. 240).
De que modo um romancista traduz sua ‘experiência de vida’ para a ‘criação literária’? Como compreender o movimento entre realidade, imaginação e romance? Por que ao reconstruir imaginativamente a realidade o romancista proporciona a possibilidade de refazer a própria experiência do vivido no leitor? Se essas perguntas são enigmáticas e instigantes para a grande maioria dos intérpretes dos romancistas modernos, para o caso de Franz Kafka (1883-1924) elas parecem ainda mais pertinentes, na medida em que seus livros se tornaram uma das chaves interpretativas dos ‘regimes totalitários’, das engrenagens dos sistemas burocráticos, e da própria Modernidade. Contudo, quando a questão é entender sua obra, seu pensamento e quem a produziu não existe nenhum tipo de consenso (ANDERS, 2007). Pelo contrário, ora se atribui a autor e obra uma mera reprodução dos sistemas, numa extensão global, de modo a fazer com que todos estejam encobertos por uma rede interconectada de ideologias, e que imporiam um efeito alienante constante (KOKIS, 1967), ora um delírio enigmático, formado por labirintos que em nada se aproximam da ‘realidade’, ou se o fazem é sempre de forma indireta (COSTA, 1983), ora manifestando a experiência traumática do autor, refeita em seus personagens (CALASSO, 2006), ora demonstrando a ‘visão de mundo’ teológica, produto do judaísmo de sua época (MANDELBAUM, 2003), ora criando a figura de um ‘anti-herói’, prisioneiro das organizações estatais e da burocracia, para as quais este não teria saída, muito menos o que poder fazer (NUNES, 1974), ou ainda, produtor de um projeto inconformista, ao mesmo tempo crítico da modernidade e de suas instituições, e insubmisso a elas (LOWY, 2005).
Não sendo indiferente a essas observações, Louis Begley tentou circunstanciar de que modo Kafka elaborou em suas narrativas ‘o mundo prodigioso que tinha na cabeça’. Para isso, o autor reviu a trajetória problemática do romancista com o pai; quais as relações que teria mantido com os judeus e interpretado suas histórias; de que modo viveu seus relacionamentos amorosos; como essa experiência é refeita na obra, produzindo uma nova experiência artística; e por que seus romances fincaram raízes profundas no Ocidente, por justamente conseguir pormenorizar as conseqüências da burocracia, das instituições e dos regimes totalitários, antes mesmo que estes alcançassem seu auge nos anos de 1930 e 1940. Em suas palavras:
O processo, com sua célebre primeira sentença – ‘Alguém certamente havia caluniado Josef K., pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum’ – e os trâmites movidos contra K. por um sistema judicial secreto, parecem prefigurar tão claramente a vida sob os regimes totalitários no século XX, com suas leis secretas e seu terror de Estado policial, que inevitavelmente os leitores se admiraram do descortino que Kafka teve da história e da política. Poderia esse romance, publicado em 1925 mas escrito entre o outono de 1914 e janeiro de 1915, portanto antes dos eventos seminais dos regimes bolchevique, fascista e nazista, ter sido uma profecia velada? Esse autor apolítico e reservado teria antevisto a chegada de uma catástrofe que ainda era invisível para grandes estadistas? Nada nos diários de Kafka, em sua correspondência ou nas recordações de seus amigos sugere isso. A resposta há de ser que a visão de Kafka, que consistia tão somente nas coisas tais como elas eram, revelou-se misteriosamente congruente com a realidade do futuro próximo. O amplo material que a formou incluiu: a experiência de Kafka como um súdito Habsburgo e, como estagiário no Tribunal de Praga, com a esclerosada mas ainda toda-poderosa burocracia do império e seus procedimentos labirínticos, ‘kafkianos’; o íntimo conhecimento da burocracia e da arcana regulamentação do Instituto de Seguro; o trato com vítimas de acidente de trabalho cujas reivindicações chegavam às suas mãos, e contra às quais ele às vezes era obrigado a litigar; o virulento e onipresente antissemitismo tcheco, que lhe ensinou lições inesquecíveis sobre o significado de ser rejeitado e desprezado por seus vizinhos; e, obviamente, tudo aquilo que ele censurava em seu pai: brutalidade, veleidade e injustiça (p. 213-14).
Para alcançar esses objetivos, Begley toma como base as correspondências, os diários e os textos produzidos pelo autor. Com o intento de analisar como essa documentação foi produzida, como foi sendo articula, que relações estabeleceu com a obra, como exemplifica em:
Depois de mais uma sessão intensa de estudos no ano acadêmico de 1905-6, Kafka passou raspando nos exames de qualificação e em 16 de junho de 1906 recebeu o grau de doutor em direito. Já fizera um estágio não remunerado de dois meses no escritório de um advogado em Praga, e foi então estagiar durante o ano acadêmico de 1906-7 no tribunal de Praga, primeiro na área civil, em seguida na criminal. Esse treinamento era pré-requisito apenas para o ingresso no funcionalismo público da Áustria, e portanto desnecessário no caso de Kafka. No entanto, revelou-se uma dádiva, pois deu-lhe acesso a material que ele aproveitou quando escreveu sobre o tribunal em O processo. Ele adquiriria mais material valioso – a experiência pessoal no funcionamento da burocracia estatal – trabalhando para a empresa que o empregaria por toda a vida, uma seguradora semiestatal, de meados de 1908 até meados de 1922, e o usaria em O castelo e O processo (2010, p. 36).
E:
É bem comum que filhos incompreendidos de pais filisteus deixem a casa paterna, especialmente depois de, como Kafka, obterem um emprego que lhes permita um grau razoável de independência financeira. Escritores pobres demitiram-se de empregos seguros para atender ao chamado da Musa, enfrentando com bravura a penúria e coisas piores. Kafka não era desse feitio. Ele não abriu mão do Instituto de Seguro antes de seu médico declará-lo incapaz para o trabalho. Quando deixou Praga em setembro de 1923 e foi para Berlim, era um homem desesperadamente doente, e mesmo então manteve a ficção de que era apenas uma mudança temporária e de que logo retornaria (p. 51).
A mesma sensibilidade foi dedicada ao examinar como Kafka interpretou as práticas religiosas judaicas, e como elas serviram para que este pudesse pensar seu mundo. Para ele, “Kafka era um mestre da dialética e raramente se punha apenas de um lado em uma argumentação” (p. 80). Mas, o “purismo do alto alemão da prosa de Kafka, a austeridade de sua linguagem e as ocasionais singularidades de sua grafia e uso da língua também são produtos de sua educação praguense” (p. 78).
De igual modo se aplicou a investigar como foram seus relacionamentos e que experiências absorveu deles. Em suas palavras:
Com exceção dos momentos de triunfo nos quais ele escreveu suas melhores obras e, a partir de 1917, dos momentos que marcaram o avanço de sua doença, os eventos que se destacam na vida de Kafka são suas peripécias atrás de mulheres seguidas por frenéticas tentativas de escapar delas. Duas de suas amadas, Felice Bauer e Milena Jensenská, foram imortalizadas em cartas que ele lhes escreveu e quis que fossem destruídas. Outras foram importantes: Dora Diamant, a moça judia polonesa que se amasiou com Kafka no fim do verão de 1923; a pequena Julie Wohryzek, sua noiva durante um breve período que se seguiu ao término definitivo do relacionamento com Felice e se encerrou com a entrada em cena de Milena, em 1920; a jovem cristã por quem ele esteve brevemente enamorado durante uma temporada de duas semanas em um sanatório de Riva no outono de 1913; Hedwig Weiler, jovem estudante de Viena, que ele conheceu em Triesch no verão de 1907; e uma misteriosa e nunca identificada mulher madura que foi paciente no mesmo sanatório em que ele esteve internado em 1905 em Zuckmantel (p. 88).
Ainda demonstra a importância que as correspondências tinham para o autor, principalmente, quando não obtinha resposta de suas cartas, e transparecer uma reação histérica e compulsiva ao escrever outras cartas procurando saber por que as anteriores não haviam sido respondidas. Preocupa-se em deixar claro quais as aproximações e os distanciamentos entre seus relacionamentos amorosos e a sua produção literária, em especial, no momento em que compôs partes de O processo, entre 1914 e 1915. Para ele:
A vida de Kafka comanda tão imperativamente o nosso interesse porque seus textos curtos e novelas estão entre as mais originais e magistrais obras da literatura do século XX. Sem eles, pouco restaria para que nos lembrássemos dele: esse homem reservadíssimo e introvertido teria sido apenas mais um judeu germanófono entre os 146 098 cristãos e judeus falantes do tcheco e do alemão que morreram na Tchecoslováquia em 1924, no mesmo ano que ele (p. 159).
Mas, ao se voltar mais diretamente para a obra, o autor indica: primeiro, de que modo Kafka a pensou e a articulou, em seguida, quais suas principais características e objetivos. No primeiro caso, detêm-se sobre ‘O foguista’, A metamorfose e ‘O veredicto’, indicando que um tema em comum entre esses textos diz respeito a maneira como os filhos, de uma forma ou de outra, além de estarem dependentes dos pais, sendo submissos a suas vontades, também seriam impotentes ao tentarem se rebelar ou procurar mudar o exercício dessas relações de dominação; as quais o autor pensou em até publicá-las em conjunto sob o título de Os filhos. Para o segundo ponto, vale indicar alguns pequenos exemplos. Para ele:
A família Samsa de A metamorfose fica horrorizada e em choque ao ver que Gregor transformou-se num gigantesco inseto, mas nem o pai nem a irmã evidenciam algo parecido com espanto. Na história de Na colônia penal, o explorador acha repugnante o sistema judiciário, mas nunca lhe ocorre indagar se poderia estar no meio de um pesadelo. Em O processo, a truculência de Josef K. segue o ritmo de sua crescente compreensão do bizarro funcionamento dos trâmites jurídicos, mas ele não contesta sua realidade. Em vez disso, diz ao Inspetor que não está ‘de modo algum muito surpreso’ com as estranhas circunstâncias de sua prisão. No mundo de Kafka, a história é o que é: a realidade é como é retratada (p. 178).
O universo argumentativo de Kafka se moveria formando diversos labirintos, em que, quase sempre, ninguém “houve e ninguém responde”, por que os “circundantes, se houver algum, se mostrarão tão indiferentes quanto o explorador de Na colônia penal, e igualmente pouco propensos a ajudar” (p. 202). E:
Semelhante nesse aspecto a ‘O veredicto’, O processo é um romance com um pé na tradição realista do século XIX. Lendo pela primeira vez o primeiro capítulo, poderíamos pensar que estamos entrando em um mundo ficcional aparentado com os de Gogol, Dostoievski e Flaubert. Essa impressão dissipa-se com o prosseguimento da leitura: percebemos que por trás dos cenários e eventos minuciosamente descritos opera uma força que os distorce e cria uma contrarrealidade. No centro da contrarrealidade estão os tribunais especiais, desconhecidos por K., e a constituição e a lei vigentes em seu país. Entretanto, praticamente todos os demais parecem estar a par do segredo: a sra. Grubach e a srta. Bürstner, os três funcionários que trabalham no banco de K., o tio de K. e o industrial, cliente do banco de K., que o encaminha ao pintor Titorelli. Isso sem contar os que são empregados periféricos dos tribunais, como a lavadeira e seu marido, e os que estão envolvidos nos trâmites da justiça: o advogado Huld e sua enfermeira e criada, Leni, e o comerciante Block, que também tem um caso pendente no tribunal. A ingenuidade e ignorância de K. são verdadeiramente espantosas (p. 218-19).
Assim, “cada pessoa está completamente só”, e é “possível que Josef K. descubra essa verdade em seu último instante de consciência, e que o mesmo se dê com outras grandes vítimas da ficção de Kafka”; esse talvez “seja o segredo por trás da anomia do explorador” (p. 241). Em todo caso, para ele:
O castelo é um romance mais rico do que O processo na amplitude da narrativa, no desenvolvimento de personagens secundários cativantes e inesquecíveis (Frieda, Olga, Amália, as duas albergueiras da aldeia, Pepi e Bürgel, entre outros) e nas descrições da aldeia sem nome coberta de neve e dos interiores de estalagens e cabanas de camponeses que fazem lembrar as pinturas de Peter Bruegel. […] No centro do romance há uma busca incansável e inquietante: a de K., um andarilho, um estranho, cuja identidade limitase a uma inicial. Ele deixou uma terra distante de nome não mencionado, à qual talvez não lhe seja possível retornar. Ostensivamente, K. procura assumir o cargo de agrimensor da aldeia, para o qual as autoridades do castelo podem ou não tê-lo contratado. O castelo domina sobranceiro a aldeia aonde K. chegou, e abriga a toda-poderosa administração a serviço de seu senhor, o conde Westwest. Se K. realmente foi contratado pelo castelo, pode ter sido por engano. Entretanto, há uma versão diferente para a busca de K., que ele revela quando o romance está a meio caminho: K. gostaria de ter chegado à aldeia sem ser notado, sem alarde, para poder encontrar um bom trabalho estável como agricultor. Essa questão nunca é esclarecida, e as intenções de K. não se tornam claras. Mesmo o desejo mais modesto, porém, muito provavelmente teria sido negado (p. 229).
Ainda que esta seja a obra de Kafka que menos desafie “a credulidade do leitor”:
Há muitas ligações temáticas entre O processo e O castelo, o complexo, atravancado e comovente belo último romance de Kafka. Os dois protagonistas – Josef K. no primeiro, K. no segundo – lutam em um labirinto que às vezes parece ter sido concebido de propósito para frustrá-los e derrotá-los. Mais frequentemente, o oposto parece valer: não há um propósito; o labirinto simplesmente existe. Josef K. busca justiça, absolvição de um crime que ele desconhece e do qual o acusam. O objetivo de K. é menos certo (p. 228-29).
Portanto, movendo-se pela vida e a obra de Kafka, e pelas circunstâncias que a deram origem, o autor, embora refaça seus caminhos e estabeleça nexos de identificação plausíveis com outras leituras, como a de Hanna Arendt e de Walter Benjamin, não há como negar que, para ele, autor e obra estariam imersos num circulo de submissões ao sistema institucional e burocrático, cerceado por labirintos e efeitos alienadores. Kafka seria apolítico, o que talvez pareça ingênuo, dadas as suas ligações estreitas com o anarquismo, mesmo que não diretamente partidárias (LOWY, 2005). Ainda assim, seus méritos são evidentes. De leitura agradável e envolvente, este livro permite que o leitor sobrevoe e reencontre o ‘mundo prodigioso que’ Kafka tinha ‘na cabeça’.
Referências
ANDERS, G. Kafka: pró & contra. Tradução, posfácio e notas de Modesto Carone. São Paulo: Cosac Naify, 2007 (1ª ed. 1951, e a nacional de 1969).
CALASSO, R. K. Tradução de Samuel Titan Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
COSTA, F. M. Franz Kafka – o profeta do espanto. São Paulo: Brasiliense, 1983.
KOKIS, S. Franz Kafka e a expressão da realidade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967.
LOWY, M. Franz Kafka: sonhador insubmisso. São Paulo: Azougue Editorial, 2005 (1ª ed. 2003).
MANDELBAUM, E. Franz Kafka: um judaísmo na ponte do impossível. São Paulo: Perspectiva, 2003.
NUNES, D. Franz Kafka: vida heróica de um anti-herói. Rio de Janeiro: Bloch, 1974.
Diogo da Silva Roriz – Doutorando em História pela UFPR, bolsista do CNPq. Mestre em História pelo programa de pós-graduação da UNESP, Campus de Franca. Professor do departamento de História da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Campus de Amambai, em afastamento integral para estudos. E-mail: diogosr@yahoo.com.br
BEGLEY, L. O mundo prodigioso que tenho na cabeça – Franz Kafka: um ensaio biográfico. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Resenha de: RORIZ, Diogo da Silva. O enigmático mundo de Franz Kafka (1883-1924). Caminhos da História. Montes Claros, v. 15, n. 2, p.143-148, 2010. Acessar publicação original [DR]