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O fim da ciência: uma discussão sobre os limites do conhecimento científico | John Horgan
Temos atribuído principalmente a Comte, nas terras tropicais, a idéia de que a ciência pode ser fechada e finita. Há autores brasileiros, como Antônio Paim, que visualizaram o começo de nossa ciência na rejeição da idéia comtiana que, até a visita de Einstein ao Brasil, ainda seria dominante em nossa Academia (Lovisolo, 1991, pp. 55-65). John Horgan retoma o tema dos limites com outros argumentos, pois física, biologia ou cosmologia não são as mesmas da época da elaboração positivista. Estaríamos diante de indicadores de fechamento e finitude? Diante de limites físicos, sociais, políticos e intelectuais para o desenvolvimento da ciência pura? Os limites seriam produto da própria eficácia do passado da produção científica? Poder-se-ia temer uma queda da produção científica significativa, daquela que surpreende, emociona e faz sentido? A produção significativa no campo da ciência pura teria alcançado fronteiras ou barreiras de difícil, senão impossível, superação? Ao longo de mais de trezentas páginas, Horgan procura responder questões desse tipo sobre as quais começou a pensar a partir de entrevista com Roger Penrose, no verão de 1989.
Um currículo significativo de divulgação científica, a realização de um número importante de entrevistas com cientistas de ponta, alguns dos quais estiveram às voltas com os limites do conhecimento, e o cargo de editor da Scientific American ocupado pelo autor parecem estímulos mais que suficientes para uma leitura atenta de seu livro.1
Horgan não pretende apenas apresentar os argumentos contrapostos de reconhecidos filósofos, poucos, e de cientistas norte-americanos e europeus que trabalham dominantemente nos Estados Unidos, sobre os limites da ciência. Não pretende fazer um inquérito ‘objetivo’, situando-se como um observador fora do campo que contrapõe opiniões alheias guiado pelo valor da equanimidade. Ele entra no ringue, manifesta sentimentos, opiniões e desejos, estabelece um compromisso pessoal com suas questões. Desafia para a luta. Procura, no entanto, não confundir seu próprio wishful thinking com a realidade.
Por vezes bate pesado. Sobretudo, quando as “verrugas” físicas, psicológicas e morais dos cientistas são expostas. Os ‘perfis’ que deles traça são econômicos e vivos. Persegue as contradições de pensamento. Mas talvez, goste mesmo de fotografar as que existem entre crenças — talvez fosse melhor dizer declarações — e atos. Assim, por exemplo, Feyerabend, crítico implacável da medicina, quando doente, depositou toda sua confiança nos médicos que o atendiam. Popper, defensor da liberdade, é apresentado como um autoritário de vanguarda que teria escrito A sociedade aberta por um de seus inimigos. Tudo demasiadamente humano. Contudo, essas inconfidências que podem tornar o livro mais atraente para aqueles que gostam de se divertir com fofocas, uma especialidade de homens e mulheres, não são centrais para a lógica da argumentação. Podem, decerto, soar como inconvenientes e até agressivas para o leitor que confunde dinâmica científica com ideal de relacionamento e o produtor de conhecimentos com o herói moral. É bem possível que os entrevistados de Horgan, adulados para dedicar tempo a suas perguntas, tenham se sentido chicoteados pela irreverência de suas afirmações, nem sempre registradas no gravador por serem impressões visuais ou psicológicas do entrevistador. Por vezes, Horgan brande o chicote sobre si mesmo, embora de modo bem mais suave. Talvez porque partilhe da velha fraqueza, também demasiadamente humana, de revelar mais autocompaixão do que compaixão pelos outros. Contudo, a “verrugografia” de Horgan não é razão suficiente para jogar seus argumentos fora, sobretudo se levamos em consideração alguns de seus contrapesos:
Descobri que os cientistas raramente são tão humanos como quando se confrontam com os limites do conhecimento. … Também acreditam, como eu, que a busca do conhecimento é, sem dúvida, a mais nobre e significativa de todas as atividades humanas. Os cientistas que nutrem essa crença são freqüentemente acusados de arrogância. Alguns são arrogantes, em alto grau. Mas descobri que muitos outros são menos arrogantes que ansiosos (p. 16).
Horgan não cai nos arquiconhecidos discursos contra a ciência nem contra a intelectualidade. Manifesta imensa estima pelo conhecimento científico já gerado e pelo seu modo, empírico, de produzi-lo. Acredita que grande parte dele é verdadeiro, que os relatos construídos na física, na biologia e na cosmologia não terão variações significativas no futuro. Acredita na ciência e valoriza a finalidade de descobrirmos por que estamos no mundo, o conhecer pelo conhecer. Defende a visão clássica da ciência pura, empírica e preditiva, no teste, como um modo de conhecimento especial e hierarquicamente superior. Está preocupado com a ciência pura, não com a ciência aplicada, que parece andar muito bem graças ao interesse do público. Assim, o cientista otimista ou o amigo da ciência, que pensa que não há limites para seu progresso, não deverá jogar o livro fora como mais uma manifestação do retrógrado espírito anticiência. E, mais ainda, se é um cientista que desconfia da ciência meramente especulativa, desligada da prova empírica, e das modas do anti-reducionismo, do holismo e, especialmente, da “caocomplexidade”, à qual Horgan dedica porções consideráveis de sua voracidade crítica.
Não acredito que a constatação de haver existido, em outros momentos históricos, sentimentos semelhantes sobre os limites seja razão suficiente para jogar fora os argumentos de Horgan como mera reiteração do passado. Horgan procura demonstrar que, nos casos mais citados na literatura, tais afirmações sobre os limites não se teriam comprovado. Tenho reservas sobre seus argumentos. Santiago Ramón y Cajal, por exemplo, dizia, antes de se encerrar o século passado, que há momentos da ciência nos quais é dominante o sentimento de que tudo o que é importante já foi feito. Acrescentava, no entanto, que novas técnicas possibilitam que especulações sejam testadas, abrindo-se então um novo período de entusiasmo científico que gera boa ciência, ciência verdadeira, e acaba contribuindo poderosamente para a solução de problemas práticos (Lovisolo, 1994). Estamos diante de uma hipótese sobre a história da ciência e, portanto, o que não ocorreu no passado pode ocorrer no presente e a ocorrência do passado deixar de ser ocorrência presente. O argumento histórico não parece ser fundamental.
Formado em inglês, embora com estudos de ciências ou matemática em todos os semestres — os currículos norte-americanos não sofrem do fechamento dos nossos, que promovem uma especialização prematura de duvidosa qualidade —, Horgan confessa que se desencantou com a crítica literária e tomou a direção da ciência, do jornalismo científico. Segundo o ponto de vista adotado, pode-se considerar que está dentro ou fora da ciência. Na melhor das hipóteses, podemos crer que a trajetória específica de Horgan o habilita a entrar e sair, a pertencer e se distanciar da ciência com maior facilidade.
Retomou Horgan, no entanto, as elaborações do crítico literário Harold Bloom (1992) sobre a ansiedade de influência e as utilizou como instrumentos para uma tipologia dos cientistas.2 Bloom vê os poetas sempre constrangidos pela ansiedade provocada pela impossibilidade de igualar, e menos ainda de superar, os poetas do passado, em especial Shakespeare. Os cientistas, para Horgan, seriam figuras igualmente retardatárias e trágicas, que devem carregar o peso, ainda maior, de belas e verdadeiras teorias associadas aos nomes de Newton, Darwin e Einstein.
Diante da ansiedade do peso do passado produzir-se-iam três tipos de reação. A maior parte dos cientistas admite sua incapacidade de superar uma tradição “rica para precisar de algo mais” e dedica-se a solucionar “charadas”, fortalecendo os paradigmas vigentes, refinando conceitos e medições. Outros tornam-se rebeldes que “denigrem” as teorias dominantes da ciência, considerando-as fabricações ou invenções sociais inconsistentes, e não descrições rigorosamente testadas da natureza. Por último, os “poetas fortes” ou “cientistas fortes” aceitam a perfeição dos antecessores e lutam para transcendê-los, embora para isso devam se valer de recursos de interpretação errônea das teorias herdadas.
“Roger Penrose é um cientista forte. Em geral, ele e os outros de sua espécie só têm uma opção: explorar a ciência de modo especulativo e pós-empírico, o que eu chamo de ciência irônica. Essa ciência irônica se assemelha à crítica literária por oferecer pontos de vista, opiniões que são, na melhor das hipóteses, interessantes, provocando outros comentários. Mas elas não convergem para a verdade. Não pode realizar surpresas empiricamente verificáveis que forcem os cientistas a fazer revisões substanciais na sua descrição básica da realidade” (p. 18).
Horgan tenta ao longo de seus capítulos, que tomam por objeto um campo científico, mostrar a ciência irônica em funcionamento, seu modo especulativo e pós-empírico de operar. Se a ciência de fato está operando dessa forma, ironicamente, em diversos campos de conhecimento, seria esse modus resultado ou reação dos limites? A questão não pode ser ignorada, dizendo-se apenas que ela é perigosa. Que leva água para o moinho dos que pretendem cortar os recursos destinados à ciência pura ou vento para o ventilador dos reacionários que reiteram seus conhecidos argumentos contra a ciência. Apontar as conseqüências negativas e imaginadas do argumento de Horgan é meramente uma atitude defensiva e, talvez, uma renúncia especulativa, irônica, ao valor da verdade. Acredito que seria mais adequado, dentro da tradição científica empírica, que os cientistas de cada campo de conhecimento analisado por Horgan discutissem conceitual e empiricamente seus argumentos. E estou esperando que nossos físicos, biólogos ou cientistas sociais apresentem seus argumentos contrários ou em apoio de Horgan, sobretudo os que ainda apostam em ser “fortes”. Horgan jogou a luva, quantos aceitarão o desafio? Assim, a teoria das “supercordas” ou a “caocomplexidade” é ciência irônica ou não? A unificação da física seria tão surpreendente como as teorias da relatividade e a quântica? A simulação computacional é ciência irônica ou não? A descrição das diferenças, biológicas e culturais, apenas completa o mapa ou gera conhecimentos surpreendentes, significativos, que aumentam nossa compreensão do universo e de nós mesmos?
Caso o argumento de Horgan seja válido, emergem outras interrogações importantes. Estaríamos diante de uma reunificação das duas culturas, a científica e a humanista, que Charles Snow tinha considerado em termos de suas conseqüências para a unidade da cultura? Estaríamos presenciando nas ciências da natureza, e talvez nas ciências sociais, um processo semelhante ao que ocorreu na arte de vanguarda e que levaria na direção de uma produção que apenas pode ser degustada por um pequeno grupo de produtores que são ao mesmo tempo seus degustadores? É comum escutarmos de um colega cientista que não considera como arte uma obra que não faz sentido para ele. Mas os outros — políticos, artistas e leitores — deveriam continuar a considerar como ciência um conhecimento que não faça sentido para eles? A avaliação deverá ser produto apenas da perspectiva dos de dentro? Somente físicos deverão julgar a física, pintores a pintura, cientista sociais a ciência social, médicos a medicina e assim por diante? Isso não seria como moldar a dinâmica social no modelo dos comitês avaliadores da Coordenação de Aperfeiçoamento do Ensino Superior (Capes) ou do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e impor ao social uma solução gerada para o encaminhamento de problemas internos? Devo reconhecer que um mundo de arquipélagos absolutamente autônomos não me parece uma boa perspectiva de vida.
Horgan está dizendo: a ciência irônica pode ser um bom divertimento para os cientistas irônicos, porém seus esforços não convergem, cada um atribui sentidos diferenciados, e o jogo apenas faz sentido para os de dentro. Por que deveriam os de fora financiar um jogo que apenas faz sentido para os de dentro? A falta de convergência e a multiplicidade dos sentidos atribuídos às teorizações irônicas pode se tornar um limite social e político para a ciência. (E não apenas entre os neoliberais. Lula, recentemente, declarou que as universidades gastam muito.)
Horgan elabora algumas hipóteses mais manejáveis a partir das posições de Gunther Stent: a ciência poderia estar no fim porque funcionava muito bem — este é o núcleo do argumento de Stent, que atribuía sua prioridade ao historiador Henry Adams. A lei de aceleração do progresso científico, que estaria se movendo a velocidade sem precedentes, teria como corolário a possibilidade de a ciência defrontar-se com barreiras para seu progresso (uma hipótese paradoxal e, por isso, estética): a própria limitação de certos campos de conhecimento (anatomia humana, geografia e química, como exemplos) ou as questões reduzidas que faltaria responder na biologia; a limitação social que resultaria da queda dos resultados práticos da nova pesquisa pura e, portanto, do interesse em seu financiamento; ou mesmo a disponibilidade de conhecimentos de ciência pura suficiente para se realizar pesquisa aplicada durante muito tempo, respondendo às demandas sociais de modo satisfatório, poderia justificar uma diminuição de investimentos na investigação científica. Uma sociedade mais rica e satisfeita, aponta Stent, poderia levar os jovens a escolher caminhos mais leves que aqueles em que se torna cada vez mais difícil transitar, como o das ciências e o das artes. Assim, o domínio sobre a natureza levar-nos-ia a uma perda de vontade de poder. Para Stent, as ciências físicas parecem ser abertas. Porém, sempre que os físicos pretendam colher dados de sistemas mais remotos, enfrentarão limites físicos, econômicos e até cognitivos.
As considerações de Stent levam Horgan à conclusão de que “a ciência pura, a busca de conhecimento sobre o que somos e de onde viemos, já entrou numa era de resultados decrescentes. A maior barreira para o progresso futuro é, sem dúvida, o seu sucesso passado” (p. 29). Esta afirmação de Horgan é empírica ou irônica? O acompanhamento numérico da ciência em termos de cientistas, publicações e patentes, ao longo do século, indica seu crescimento acelerado. Porém, em termos mais qualitativos, pode-se dizer que estamos obtendo resultados que superem em significado os da teoria da relatividade, da teoria quântica ou da genética? Ou são essas teorias marcos que podem ser aperfeiçoados, mas não superados? Encontrar partículas cada vez ‘menores’, e talvez menos previsíveis, causaria surpresa semelhante ou maior aos que foram gerados pelos resultados hoje clássicos? Parece que uma avaliação qualitativa se faz necessária, uma vez que nem políticos nem público em geral, nem os possíveis candidatos à ciência deixar-se-iam afetar pelos resultados meramente quantitativos. O público, pelo menos, parece estar concentrado nos resultados aplicados e, em especial, nos que se referem a saúde e longevidade.
Horgan dedica um de seus capítulos — o sexto, ‘O fim da ciência social’— às ciências sociais, focalizando as contribuições de Wilson, Chomsky e Geertz. É consensual que a tradição das ciências sociais formou-se na tensão entre um modelo literário e um modelo científico e entre redução universalista e defesa da singularidade. A oposição entre elaborações empíricas e irônicas esteve presente em sua história, tanto como a coexistência de teorizações de difícil, ou mesmo impossível, convergência. Kuhn consagrou as ciências sociais como pré-paradigmáticas. Assim, para o cientista social é mais fácil assimilar os argumentos de Horgan. A seleção dos três autores parece orientar-se na direção de representar essas tensões e também diferenças políticas entre os entrevistados.
Edward Wilson luta pela conservação da diversidade na Terra. Uma formiga deixa Wilson deslumbrado diante do universo. Este deslumbramento apresenta-nos apenas um dos Wilson, o poeta dos insetos sociais e o defensor apaixonado da biodiversidade. O outro, o lado escuro, seria, para Horgan, o do homem ambicioso e competitivo em luta com o sentimento de ser um retardatário num campo de estudos que estaria mais ou menos completo. Wilson, em confronto com a ansiedade de influência, em vez de reagir ao darwinismo, argumentando sobre suas limitações, optou por fazer a teoria explicar bem mais do que os outros haviam sonhado. A sociobiologia foi o resultado: normas de acasalamento e a divisão do trabalho podiam ser explicadas como respostas adaptativas à pressão evolutiva. Wilson procurou as regras de condutas que regeriam todos os animais sociais. Os que conhecem o debate sabem que as críticas foram duras e, por vezes, além das palavras. Horgan afirma que Wilson teria reconhecido as críticas e também que uma teoria da natureza humana, aquela que vai resolver todas as perguntas sobre nós mesmos, é impossível. Há, portanto, limites cognitivos. Sobre a própria biologia, Wilson manifesta a opinião de que, no campo da teoria da biologia, não existirão mudanças revolucionárias. Assim, os êxitos do passado tornam-se limites no presente, e a tarefa que resta é a de ajustar as constantes para o próximo ponto decimal.
Noam Chomsky foi um crítico intransigente da sócio-biologia e continua sendo radical em suas críticas à sociedade norte-americana e aos sistemas autoritários. A crítica social e política é um dever moral para Chomsky. Desempenha, na argumentação de Horgan, o lugar do superlativo do contestatário. Ninguém, em seu juízo, poderá argumentar que as opiniões de Chomsky sobre a ciência derivam de ser um reacionário. Chomsky, por outro lado, não comunga com as explicações darwinianas do comportamento humano e, portanto, com uma visão da ciência como resultado adaptativo a pressões evolutivas. Entretanto, ele acredita que a estrutura inata de nossa mente impõe limites ao nosso entendimento. Haveria problemas solucionáveis, e também mistérios, e os físicos apenas poderiam criar teorias do que eles sabem como formular. Há campos, para Chomsky, nos quais é quase impossível afirmar que há progresso. O sucesso da ciência dependeria de uma convergência casual entre a verdade sobre o mundo e a estrutura de nosso espaço cognitivo. Porém, diante da pergunta direta de Horgan sobre os limites, retrocede e acusa o establishment de roubar a curiosidade e criatividade das crianças. Horgan apresenta-nos um Chomsky que leva água à idéia geral de que existem limites cognitivos e sociais. Contudo, não consegue extrair dele argumentos fortes no sentido de que os limites já estariam em ação de modo particular no presente, embora fique no ar a interrogação sobre a possibilidade de o cérebro explicar o cérebro.
Clifford Geertz seria o exemplo do cientista irônico sofisticado, que não espera estar descobrindo verdades sobre a natureza. Sua obra, que se tornou modelo de antropologia interpretativa, teria contribuído para a profecia de Stent, no sentido de levar a disciplina das ciências sociais para o terreno do impressionismo e da ambigüidade, da ironia. Os textos de Geertz teceriam um longo comentário sobre si mesmos, e a antropologia interpretativa que desenvolve encontraria seu ‘progresso’ mais no refinamento do debate do que na obtenção do consenso. Assim, Geertz, de pronto, afirma a não convergência. Geertz aceita a atração do modelo da literatura e, também, que resulta difícil traçar a distinção com a antropologia interpretativa. A opção de Geertz pelo modelo da arte estaria sendo determinada pelas dificuldades de uma ciência social empírica? Ou antes, pelos limites para o conhecimento científico do social e do cultural no modelo da ciência empírica? Horgan exalta o talento literário de Geertz e seu refinamento conceitual, especialmente quando se situa na leitura de seus textos que considera marcados por um estilo intermitente, com afirmações arrojadas, pontuadas por inúmeras ressalvas e impregnadas de uma autoconsciência hipertrófica. Contudo, na entrevista, Horgan mostra um Geertz disposto a corrigir a impressão de ser um cético universal. Geertz teria declarado que alguns campos, sobretudo a física, têm capacidade de alcançar a verdade. Teria também enfatizado que a antropologia não seria uma simples forma de arte, vazia de conteúdo empírico: sua teorização responderia à evidência empírica e poderia conseguir um certo tipo de progresso. Nada, porém, em antropologia teria o status dos ramos rigorosos das ciências duras. Na verdade, as coisas estar-se-iam tornando mais complicadas, as receitas perderam seu valor, não haveria convergência. Assim, o progresso de Geertz seria uma espécie de antiprogresso, onde as crenças firmes perdem força e as dúvidas se multiplicam.
A antropologia não é o único campo em luta com suas limitações, e a autoconfiança na ciência não parece a Geertz tão difundida como no passado. Contudo, a ciência social irônica pode continuar a produzir interpretações do mundo que já caminhou adiante, inescrutável como sempre. Ela não levará a lugar nenhum, diz Horgan, interpretando Geertz, mas pelo menos dará o que fazer, se quisermos, para sempre.
A ciência legitimou-se pela afirmação do valor do progresso na esfera da verdade e da utilidade. A ciência pura, enquanto boa, produziria aplicações úteis para os seres humanos enfrentarem as dores da vida, superarem a pobreza, a humilhação, a crueldade e a servidão. Enfim, a aplicação das ciências ajuda os humanos a progredir em suas condições de vida. O argumento utilitário foi o núcleo poderoso da linguagem política em favor da ciência. A construção da prova empírica, em suas relações com a especulação, foi o mecanismo central para assegurar a convergência ou consenso intersubjetivo. O esquema funcionou eficientemente durante quase cinco séculos, talvez com alguns percalços. A ciência aplicada continua ainda potente em seu papel de produzir utilidades a partir de verdades já enunciadas, mesmo que o faça, em muitos casos, com base no conhecimento de uma relação empírica que se funda no desconhecimento da verdade dos mecanismos. Todavia, ela pode continuar funcionando bastante bem a partir do já sabido. Assim, não está em questão o horizonte da aplicabilidade, da utilidade.
As questões situam-se em relação aos valores do conhecer e a seus mecanismos. Se o esquema, o mecanismo central e a esperança estão sendo abandonados em graus significativos, se estamos diante da substituição da ciência empírica por uma ‘ciência irônica’, se não acreditamos em mudanças profundas em termos das verdades já conhecidas, se pensamos que há campos que não oferecem problemas significativos e outros que são apenas mistérios, se algumas destas razões estão em nossas mentes, isoladas ou em conjunto, é mais ou menos natural que se coloque a questão dos limites da ciência. Podemos discordar de Horgan quanto ao encaminhamento de algumas de suas questões específicas, quanto ao modo de tratar os limites em campos particulares de conhecimento e quanto à metodologia de construção de seus argumentos. Contudo, não se pode deixar de observar que sua pedra caiu sobre o telhado, que há valor em suas questões. Fechar os olhos não é uma solução, e talvez, se o telhado não pode ser fortalecido, seja melhor caminhar na direção aberta e clara de uma ‘autoconsciência sofisticada’, e pagando o preço da especulação ironista.
Notas
1Nos‘ Agradecimentos’, pp. 327-8, Horgan indica as datas de publicação da entrevista.
2Tradutora de Horgan, Rosaura Eichember preferiu “angústia e a ansiedade” na tradução da expressão “anxiety of influence”. Marcos Santarrita, tradutor da obra de Bloom, O cânone ocidental (Rio de Janeiro, Objetiva, 1995), optou por ‘ansiedade’. Não tendo em mãos o original inglês de Horgan, inclino-me, a partir de Bloom, a acompanhar a opção de Santarrita.
Referências
LOVISOLO, H. Einstein 1994 ‘A legitimação da ciência na fronteira’. Dados, vol. 37, no 2, pp. 161-78.
LOVISOLO, H. Einstein 1991 ‘Uma viagem, duas visitas’. Estudos Históricos, no 7.
BLOOM, Harold 1992 The anxiety of influence: a theory of poetry. Nova York, Oxford University Press
Resenhista
Hugo Lovisolo – Doutor em antropologia social, professor da universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: lovisolo@momentus.com.br
Referências desta Resenha
HORGAN, John. O fim da ciência: uma discussão sobre os limites do conhecimento científicoSão Paulo: Companhia das Letras, 1998. Resenha de: LOVISOLO, Hugo. Da empiria à ironia. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.6, n.1, mar./jun. 1999. Acessar publicação original [DR]