Marx e o fetiche da mercadoria: contribuição à crítica da metafísica – ANTUNES (EL)

ANTUNES, Jadir. Marx e o fetiche da mercadoria: contribuição à crítica da metafísica. Jundiaí: Paco Editorial, 2018. Resenha de: PRADO, Carlos. Eleuthería, Campo Grande, v. 3, n. 5, p. 115 – 118, dez. 2018/mai., 2019.

O Capital de Karl Marx é ainda hoje uma obra atual e necessária para interpretação e crítica da sociedade capitalista. Não obstante, trata-se de um texto longo e denso. A obra é composta por três livros divididos em cinco volumes. Vale lembrar ainda que apenas o Primeiro Livro foi publicado por Marx, em 1867, os demais foram editados por Engels e publicados em 1885 e 1894, respectivamente.

Esta é reconhecidamente a obra fundamental de Marx, a qual ele dedicou a maior parte de sua vida para elaboração e a que melhor representa o seu pensamento maduro. Porém, é preciso destacar que não se trata de uma leitura rápida e simples. Sua interpretação exige dedicação e esforço que podem se arrastar por meses, anos e décadas. Por conseguinte, não são muitos os pesquisadores que se arriscam nessa difícil empreitada.

Uma das grandes dificuldades, reconhecida por diversos interpretes e pelo próprio Marx, reside na exposição abstrata da Primeira Seção, intitulada “Mercadoria e dinheiro”, e que compreende os três primeiros capítulos. Esta é considerada a parte mais difícil. Prova disto é que Marx a reelaborou sucessivas vezes. A exposição sobre o problema da interpretação teórica do dinheiro aparece em Contribuição à crítica da Economia Política de 1859, nos Grundrisse, e em O Capital. Na 2ª edição desta última, de 1872, edição revisada, Marx apresentou um posfácio, no qual demonstrou seu descontentamento com o texto original de 1867 e o modificou, suprimiu passagens, sempre buscando aprimorar a exposição, tornando-a mais acessível e compreensível. Todavia, as dificuldades persistiram.

É justamente sobre essa difícil e espinhosa Primeira Seção que o livro de Jadir Antunes se debruça. O autor vem estudando O Capital de Marx desde a sua graduação em Economia, concluída em 1999, passando por mestrado (2002) e doutorado (2005) em Filosofia. O livro Marx e o fetiche da mercadoria: contribuição à crítica da Metafísica é resultado destes 20 anos de estudos e pesquisas dedicados ao pensamento econômico e filosófico.

A proposta do livro de Antunes é desvendar o problema em torno da mercadoria dinheiro e, nessa empreitada, apresenta uma interpretação filosófica d´O Capital, demonstrando que a crítica de Marx não é apenas à Economia Política, mas, fundamentalmente, uma crítica à Metafísica. Como salienta o autor: “A crítica de Marx à Economia Política deve ser interpretada de maneira mais crítica, mais radical, mais ampla e filosófica como crítica da Metafísica Moderna, da Metafísica agora encarnada no mercado, na mercadoria e no dinheiro”. (2018, p. 17).

Ao longo de cinco capítulos, a interpretação de Antunes evidencia que a crítica que Marx apresenta em O Capital é uma crítica à Metafísica, ou melhor, aos poderes metafísicos que as relações capitalistas adquirem e se revelam desde a análise da mercadoria. A concepção de que o mundo industrial, racional e científico teria fechado as portas para as especulações metafísicas é rejeitada por Marx. No mundo em que a riqueza aparece na forma de mercadorias e dinheiro, a Metafísica não foi liquidada. Pelo contrário, a Metafísica apenas abandonou o terreno da religião e do pensamento para, sob o domínio da sociedade capitalista, reaparecer pela ação humana sob novas formas. Dessa forma, Antunes nos apresenta uma interpretação original e audaciosa.

Já no início da exposição, ao se discutir o duplo caráter da mercadoria, revela-se a realidade metafisicamente duplicada, invertida e cindida da mercadoria. Para além dos seus aspectos econômicos, materiais, sensíveis e concretos, a investigação sobre a Teoria do valor, apresenta as “tramoias Metafísicas” da mercadoria que arranca o pensamento do mundo visível e concreto, levando-o ao mundo de categorias abstratas e misteriosas. O valor é a realidade destituída de qualquer visibilidade, sensibilidade e naturalidade.

O valor de uso revela um o mundo sensível, material, concreto, da natureza perceptível. O valor de troca e o valor revelam o mundo inteligível, suprassensível, não natural, abstrato e não sensível. A Metafísica duplica essa realidade e a inverte, transformando o além e todos os conceitos suprassensíveis em princípios da realidade que explicam a realidade concreta. A Metafísica ainda autonomiza o mundo inteligível. Cria a ideia de que há um ente abstrato que governa toda a realidade concreta e material.

E assim, desde o duplo caráter da mercadoria, avançando pelo duplo caráter do trabalho, revelando a forma do valor, Antunes, seguindo a letra de Marx e cotejando as duas primeiras edições d´O Capital, avança até a forma dinheiro. Este é entendido como a superação das formas equivalente menos desenvolvidas, como aquele que deu ao mundo das formas relativas da riqueza a sua forma mais acabada.

O dinheiro, enquanto mercadoria das mercadorias, adquiriu poderes misteriosos e fantásticos. De acordo com Antunes: “O ente dinheiro instaura um cosmos no mundo do ente mercadoria, aparentemente ausente na forma geral e desdobrada de valor. O ente dinheiro instaura a vitória completa da Metafísica sobre o vivido, a phisis, a arte e o sensível”. (2018, p. 208). Antunes busca revelar que para Marx, o dinheiro é a expressão mais desenvolvida da Metafísica do capital.

Ao discutir o problema do fetiche, Marx, de acordo com Antunes, busca evidenciar que os homens têm uma relação dupla com o mundo. Ao longo de toda a exposição, o autor elucida que a realidade capitalista está divida sob uma dupla dimensão: a dimensão sensível e natural e a suprassensível e social. A mercadoria e o trabalho apresentam esta dupla e contraditória determinação. Com efeito, é deste caráter duplo, relativo, metafísico e contraditório que surge o fetiche.

O grande objetivo de Antunes em seu livro é demonstrar que O Capital de Marx é um estudo lógico, conceitual, abstrato e filosófico e, em certo sentido, Metafísico. Desta maneira, Marx não estaria interessado em apresentar um estudo empírico sobre o desenvolvimento do capitalismo, mas sim, em investigar e expor sua gênese lógica, ontológico e conceitual. Antunes busca demonstrar que para Marx, o dinheiro surge como resultado necessário e racional da própria mercadoria, como uma forma desenvolvida do ente mercadoria, como forma sensível e desdobrada da antítese entre valor de uso e valor contida no interior da forma mercadoria. O dinheiro aparece então como figura autonomizada e reificada do valor.

Na perspectiva apresentada por Antunes, a análise de Marx não pode ser inteiramente compreendida se resumida aos seus aspectos econômicos. É preciso trazer à superfície o seu conteúdo filosófico. Trata-se de desvendar o enigma da mercadoria e do dinheiro a partir do seu sentido filosófico e metafísico. Assim, a crítica à Economia Política é também uma crítica à Filosofia Metafísica. O livro se destaca por trazer à luz o problema filosófico que, muitas vezes, parece ser menosprezado. Nessa perspectiva, a obra apresentada por Antunes merece a atenção dos estudiosos de Marx. Trata-se de um livro que merece ser lido, discutido e comentado.

Carlos Prado – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Professor do curso de História da UFMS/FACH.

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O problema da crise capitalista em O Capital de Marx – BENOIT; ANTUNES (EL)

BENOIT, Hector; ANTUNES, Jadir. O problema da crise capitalista em O Capital de Marx. Jundiaí: Paco Editorial, 2016. Resenha de: PRADO, Carlos. Eleuthería, Campo Grande, v. 1, n. 1, p. 88-90, dez. 2016/mai. 2017.

Em meados de 2008, as contradições da produção capitalista, muitas vezes escondidas e camufladas pela fumaça do crescimento econômico, vieram à tona com o pedido de concordata do Lehman Brothers. A notícia da quebra de um dos bancos mais importante do mundo abalou as estruturas do mercado. A crise que sempre parecia atingir apenas os países periféricos se instalou no centro do capitalismo mundial. A crise chegou em Wall Street. A quebra do Lehman Brothers foi apenas o estopim de uma crise que ainda se arrasta. Mais uma vez, as ilusões liberais que defendem o livre mercado e o Estado mínimo se desmanchavam no ar.

As esperanças liberais de que a economia se recuperaria rapidamente não se concretizaram. Pelo contrário, diante de medidas provisórias que não alteram a lógica produtiva capitalista, a crise persiste. A economia mundial segue apresentando baixos níveis de crescimento e a desaceleração da economia chinesa é um fator determinante nesse processo. O receituário burguês para a aceleração econômica continua sendo a implantação de políticas de austeridade, que culminam no aumento do desemprego, no arrocho salarial, no prolongamento da jornada de trabalho e no corte de programas sociais. Enfim, na busca de salvar a “economia”, os trabalhadores são os primeiros a sofrer com a ofensiva do capitalismo em crise.

É nesse cenário incerto e de questionamentos à lógica da produção capitalista que a obra de Marx mostra mais uma vez sua vitalidade e atualidade. A crítica à economia política realizada em O Capital é indispensável para se pensar a realidade capitalista, suas contradições e sua superação. E é justamente esse o objetivo do livro de Hector Benoit e Jadir Antunes: O problema da crise capitalista em O Capital de Marx. Em primeiro lugar, temos que dizer que o conceito de crise é um dos principais problemas tratado pelos marxistas ao longo do século XX. E mesmo diante de uma vastíssima produção acerca da questão, o texto de Benoit e Antunes consegue apresentar uma análise original, realmente inovadora e inspiradora, pois lança luz em uma problemática cada dia mais atual e urgente, principalmente para pensarmos a transformação da atual sociedade.

O livro que é o objeto dessa resenha foi lançado pela primeira vez em 2009, no rastro do surgimento da crise. O título era O movimento dialético do conceito de crise em O capital de Karl Marx. Mas não foi apenas o título que se alterou, segundo os autores, o texto passou por uma revisão e ampliação, tornando-se mais sintético e assumindo uma forma definitiva. Nessa nova edição, o livro também conta com um prefácio escrito por Benoit que apresenta o cenário no qual essa problemática foi pensada e também com uma apresentação assinada pelo professor Plínio de Arruda Sampaio Júnior, do Instituto de Economia da Unicamp. Esses dois textos contribuem para enriquecer ainda mais essa nova edição.

O problema em torno das crises já foi objeto de investigação de diversos estudiosos marxistas. Contudo, a questão permanece sem uma conceituação que seja amplamente aceita. Não se chegou a um veredicto sobre esse tema. Muitos autores investigam esse conceito buscando encontrar uma passagem na obra de Marx onde ele apresentasse a “causa” das crises. É por meio dessa noção de causalidade de base empirista que autores clássicos como Kaustky, Luxemburgo, Hilferding, Grossman, Sweezy, Mandel, entre outros, apresentam a questão. Assim, a chave para entender a crise seria identificar a sua causa primeira. Nesse debate, alguns defendem que a causa seria a desproporção entre o departamento produtor de meios de produção e o departamento de meios de subsistência, outros falam da lei da queda tendencial da taxa de lucro e outros ainda lançam a ideia de que a causa é a superprodução.

Mandel foi um dos autores que se dedicou a essa problemática e lançou uma nova luz à questão quando questionou essas teorias monocausais, apresentando uma concepção multicausal, ou seja, apresentando uma teoria que englobava as diversas causas em um único movimento, estabelecendo assim, um encadeamento multicausal. A contribuição de Mandel foi relevante, mas ele também permaneceu preso à noção empirista de “causa”. E é aqui que podemos destacar a produção de Benoit e Antunes, pois a teoria lançada por eles rompe com essa concepção empírico-factual da crise. A proposta de ambos busca expor o conceito de crise a partir da dialética expositiva de O Capital, a partir do seu modo de exposição (die Darstellungsweise).

Essa leitura também rompe com a tese defendida por Rosdolsky, de que Marx não deixou uma teoria sobre as crises, de que essa seria uma lacuna em sua obra. Para Benoit e Antunes, Marx deixou sim uma teoria sobre as crises. A questão é que ela não se desenvolve em um capítulo determinado ou passagem específica de O Capital, pois é desenvolvida ao longo de todos os três tomos desta obra, exposta juntamente com o conceito de capital. Os autores defendem que Marx não abandonou a ideia de elaborar o conceito de crise, ele o fez em todo o percurso dialético-expositivo de O Capital. Nessa concepção, tal conceito aparece enquanto possibilidade ainda no Livro Primeiro, desde o primeiro capítulo, quando se trata da mercadoria e da contradição entre valor de uso e valor. A crise já está ali enquanto pressuposto.

Os autores não estão buscando as manifestações empíricas da crise, mas o seu conceito. E tal desenvolvimento conceitual é encontrado a partir da dialética. Abandona-se a noção de causalidade e se apresenta a noção de modo de exposição.  Não se trata de uma visão fragmentada, mas de conjunto, pois o conceito de crise é apresentado ao lado do próprio conceito de capital, a partir da própria mercadoria.

O livro está dividido em três capítulos que representam os três tomos de O Capital e os três grandes momentos da exposição dialética. O primeiro capítulo apresenta uma análise das contradições potenciais e abstratas do capital na esfera da produção de mais-valia. No segundo capítulo se investiga essas contradições na esfera da circulação. Somente no terceiro capítulo, quando se avança para o livro terceiro, é que se realiza a conversão das possibilidades formais e abstratas de crise em realidade.

Vale destacar que a perspectiva apresentada por Benoit e Antunes não é apenas dialética, mas, também, revolucionária. Compreendem que junto com o desenvolvimento dos conceitos de capital e de crise também está o desenvolvimento das classes em luta. Os autores não se esquecem do permanente conflito irreconciliável entre capital e trabalho. Ele não está ausente, mas presente, desde o início. Assim, abre-se um caminho para o desenvolvimento de um projeto político de superação do capital, justamente a partir do conceito de crise. Afinal, a crise é o momento em que as contradições encobertas do capital se revelam e a luta de classes emerge na cena política de forma mais clara. A crise significa a abertura de um novo caminho para a construção de uma alternativa para além da sociedade produtora de mercadorias.

A partir dessa análise surge uma mudança substancial na interpretação do problema das crises em Marx. Ao deixar de lado a perspectiva empirista e causal e desenvolver o conceito de crise a partir do modo de exposição, a obra de Benoit e Antunes se mostra extremamente original e significa uma importante inovação na investigação dessa problemática. Trata-se, sem dúvida, de uma contribuição original e que merece ser discutida e analisada por todos os interessados no trabalho de superação do estado de coisas dado.

Carlos Prado – Universidade Federal Fluminense (UFF).

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Representing Capital – JAMESON (FU)

JAMESON, F. Representing Capital. London/New York: Verso, 2011. Resenha de: FLECK, Amaro de Oliveira. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.13, n.1, p.90-94, jan./abr., 2012.

O novo livro de Fredric Jameson, Representing Capital: A Commentary on Volume One, tem por finalidade oferecer uma releitura do primeiro livro de O Capital de Karl Marx. A obra está dividida em sete capítulos, sendo os três primeiros uma apresentação central da argumentação marxiana – o primeiro capítulo é dedicado inteiramente à primeira seção, o segundo trata da segunda à sétima e o terceiro unicamente da oitava (a edição de O Capital em língua inglesa contém oito seções, e não sete, como as traduções em português e o original em alemão, sendo a oitava os dois capítulos finais, que, na edição em português e no original alemão, pertencem à sétima seção). Os três capítulos posteriores são análises detalhadas da questão do tempo (o quarto), do espaço (o quinto) e da dialética (o sexto), e o capítulo final é um rápido estudo sobre as conclusões políticas a serem tiradas de um livro que, segundo Jameson, não é ele mesmo político. Se O Capital não é um livro político, que será então? Ora, segundo Jameson, este não é um tratado filosófico (pois não lida primariamente com questões de verdade), e tampouco um econômico, no sentido especializado da maioria dos departamentos universitários; não tem por objetivo formular esta ou aquela concepção de capital, nem mesmo é um livro sobre trabalho; mas sim, em uma declaração que o próprio Jameson chama de escandalosa, é um livro sobre desemprego (retornarei a esta afirmação no último parágrafo da presente resenha). A questão da representação, que já aparece no próprio título da obra de Jameson, se refere ao fato de o capitalismo não ser visível como tal, de este ser uma totalidade que só é perceptível através de seus sintomas. Cada representação que se faz dele é, portanto, parcial, e somente por intermédio de uma pluralidade de perspectivas pode-se abordá-lo. Deste modo, a pesquisa não visa exaurir a totalidade, mas sim chegar a seu centro ausente utilizando distintas abordagens incompatíveis, tal como o “método” žižekiano da visão de paralaxe.

O primeiro capítulo, intitulado “o jogo das categorias”, discute a primeira seção da obra marxiana, seção esta que, segundo Jameson, é um tratado autônomo completo, tal como “o ouro do Reno” frente à tetralogia do anel wagneriana. Esta primeira seção lida com um enigma, o enigma de como coisas qualitativamente diferentes podem ser quantitativamente equiparadas, isto é, a velha questão da identidade e da diferença, porém agora remetida ao problema concreto do intercâmbio de mercadorias. E eis um dos pontos altos, a meu ver, do livro de Jameson: em vez de resolver falsamente o problema, aceitando o dogma marxista mas não marxiano de que este enigma é resolvido quando se percebe que a diferença qualitativa das mercadorias revela uma identidade do trabalho indiferenciado que subjaz nestas, Jameson segue atentamente a argumentação marxiana e nota que o próprio Marx não resolve tal enigma, mas o deixa em suspenso, de modo que “o quiasmo prevalece no estilo de Marx” (p. 23). Este problema não resolvido é transmudado na seção seguinte em um novo enigma, enigma este que ocupará as seções centrais de O Capital. De tal modo, conclui Jameson: “Toda a seção um pode então ser entendida como um ataque em bloco à ideologia do mercado, ou, se preferires, como uma crítica fundamental do conceito de troca e, na verdade, da verdadeira equação de identidade como tal” (p. 17).

“A unidade dos opostos”, capítulo seguinte do livro, começa com a transformação do enigma da equivalência do qualitativamente distinto no mistério do aumento do valor, isto é, de “como um lucro pode ser feito da troca de valores iguais?” (p. 47), sendo que este é o verdadeiro enigma a ser resolvido (o primeiro, diz Jameson, era uma falsa questão, falsamente resolvido com a aparição do dinheiro, que cristaliza a relação social que envolvia aquela questão). A esfera da circulação, na qual a troca ocorre, é insuficiente para resolver este enigma. Torna-se necessário, assim, analisar como as mercadorias são produzidas, aliás, torna-se necessário perceber a peculiaridade de uma mercadoria sui generis, a força de trabalho, que cria, na esfera da produção, mais valor do que aquele que é pago por ela na esfera da circulação. Isto é, o capitalista paga um tanto para contratar o trabalhador, mas este, durante o tempo no qual é contratado, cria mais valor do que o tanto inicial que foi pago por ele. O tom das quatro últimas seções analisadas neste capítulo (a saber, da quarta à sétima, mas que se manterá na oitava) é o que dá nome a ele. Segundo Jameson, há uma unidade dos opostos, de dois clímax antagônicos, positivo e negativo, otimista e pessimista, heroico e trágico. Assim Marx tratará a cooperação, a manufatura e a maquinaria, os aumentos da produtividade do trabalho, tanto com admiração quanto com pesar, notando que o progresso traz miséria e a riqueza privação. Jameson aponta ainda para o fato de Marx fechar a porta para regressões nostálgicas de formas mais simples e mais humanas de produção, diferentemente das críticas mais tradicionais ao capitalismo; mais tarde (no quarto capítulo), Jameson notará que, ao contrário do antimodernismo de Heidegger que propõe superar a alienação da técnica por algum modo de regressão, é justamente a alta produtividade introduzida pela maquinaria que poderia permitir um sistema econômico radicalmente diferente. Por fim, Jameson fala que os capitalistas nunca são o sujeito da história, mas suportes (Jameson cita o termo alemão, usado diversas vezes por Marx, Träger, também traduzido como “portador”) do capital, algo que, segundo ele, Marx nunca utiliza para se referir ao proletário (mas voltarei também a esta questão no parágrafo final).

“História como coda” (“coda” denota a seção conclusiva de uma composição, o seu arremate), o terceiro capítulo do livro de Jameson, que termina a seção expositiva do primeiro livro de O Capital, é um estudo focado na oitava seção da referida obra marxiana, parte esta que, segundo Jameson, pode também ser lida como um tratado autônomo, e mantendo a analogia musical, que vê na primeira seção uma “abertura” independente, este é a “coda”, o arremate, um capítulo propriamente histórico, ou, como o próprio Jameson afirma, “aquilo que geralmente tem sido estigmatizado como ‘filosofia da história’ – isto é, uma narrativa dos vários modos de produção, uma história das histórias” (p. 74). Neste capítulo, Jameson expõe a genealogia marxiana do capital, apontando para os processos de acumulações primitivas (conseguidas, em grande parte, com a caça de escravos no continente europeu e com o trabalho escravo nos trabalhos de mineração feitos no continente americano) que criaram a possibilidade de um mesmo capitalista empregar simultaneamente um grande número de assalariados, sendo que é a venda da força de trabalho por parte do trabalhador para o proprietário dos meios de produção que marca o começo do capitalismo, nos séculos XVI e XVII. Jameson observa também que “estruturas não capitalistas coexistem com estruturas capitalistas” (p. 84), de tal modo que a passagem do modo de produção feudal para o capitalista não é súbita, mas um longo processo transicional. Seguindo a proposta do livro, que é mostrar que há dois clímax antagônicos que se interpõem ao longo da obra, Jameson irá apontar para o fato de haver duas suposições acerca do final do capitalismo, uma heroica, a outra cômica. O final heroico está no término do capítulo sobre “a assim chamada acumulação primitiva”, e consiste na “expropriação dos expropriadores”, na transformação da propriedade privada capitalista em propriedade social; já o final cômico está no exemplo do infeliz Sr. Peel (no começo do capítulo final de O Capital, sobre “a teoria moderna da colonização”), um capitalista que migra para a Austrália com 3 mil trabalhadores para montar uma indústria, mas que vê seus trabalhadores se dissiparem tão logo chegam ao novo mundo, mundo este no qual encontram terra fértil barata em vez das relações inglesas de produção.

O quarto e o quinto capítulo de Representing Capital, denominados, respectivamente, “Capital em seu tempo” e “Capital em seu espaço”, tratam, como o título aponta, das questões da temporalidade e da espacialidade do sistema capitalista. A partir da observação de Althusser de que cada modo de produção específico produz e oculta a temporalidade apropriada a ele, Jameson aponta para o fato de haver uma dualidade no tempo capitalista na qual o capital tanto produz mercadorias quanto reproduz a si mesmo concomitantemente, de modo que o capital “oblitera os vestígios de sua própria pré-história” (p. 105), transformando-se a si mesmo em algo aparentemente “natural”. Se o tempo, segundo Jameson, corresponde à dimensão da quantidade, já que é ele que mede o valor de cada mercadoria, o espaço corresponde, portanto, à dimensão da qualidade. Com esta afirmação, Jameson visitará os capítulos mais “empírico-descritivos” da obra marxiana, revelando a precariedade das condições de trabalho nas apertadas fábricas capitalistas, assim como o modo farsesco pelo qual os capitalistas seguiam a legislação que regulava suas atividades, criando escolas, por exemplo, nas quais o próprio professor assinava em “x” por ser analfabeto.

O sexto capítulo, “Capital e a dialética” – a meu ver o outro ponto alto do livro de Jameson – é uma forte defesa da dialética contra seus detratores, em especial contra aqueles que querem ler Marx analiticamente (a escola do “marxismo analítico” de Cohen, Roemer e Elster), estruturalmente (tal como Althusser), ou a partir do historicismo (exemplificado com Karl Korsch). Jameson insiste sobre a dimensão antagônica do capitalismo, apresentada por Marx de modo positivo e negativo simultaneamente, de modo que sofrimento humano e alta produtividade tecnológica, vidas desperdiçadas e progresso científico, possam ser entendidos como fenômenos oriundos de um mesmo processo, processo este que só quando apresentado dialeticamente consegue explicar o antagonismo como tal (Jameson chega mesmo a nomear o antagonismo como “lei geral absoluta”, a unidade da produção capitalista com o desemprego). A negatividade e a contradição tem um papel central em O Capital, e privá-lo destas categorias, algo necessário nas leituras não dialéticas, conduz a “conclusões socialdemocratas de um tipo familiar, a saber, bem-estar, criação de novos tipos de ocupações, e outros remédios keynesianos” (p. 129).

“Conclusões políticas”, capítulo final da obra, volta a defender a ideia de que O Capital não é um livro político, seja no sentido de visar a uma prática, estratégia ou tática política, tal como os livros de Lênin, Maquiavel, ou mesmo do Marx do Manifesto comunista; seja no sentido de uma teoria política, algo que, para Jameson, é idêntico à teoria constitucional, desde sua origem em Aristóteles e Políbio. Mas não ser um livro político, para Jameson, é antes uma vantagem do que uma desvantagem. Segundo o referido autor, a centralidade da leitura do primeiro livro de O Capital deve ser o conceito de desemprego, já que Marx “mostra que o desemprego é estruturalmente inseparável da dinâmica de acumulação e expansão que constitui a verdadeira natureza do capital” (p. 149). Marx assim mantém em aberto duas possíveis experiências políticas resultantes da leitura de sua obra, como já notara Korsch (algo que, mais uma vez, remete ao antagonismo que o perpassa): por um lado, um voluntarismo oriundo da piedade pelas vítimas do sistema capitalista e da indignação frente a tal sistema; por outro lado, um fatalismo, associado a um cinismo passivo de desesperança e impotência frente este mesmo sistema todo-poderoso. Jameson, contudo, altera esta dualidade em outra, a saber, a tensão estrutural notada por Althusser entre as categorias de dominação e de exploração. O autor defende que se deve dar ênfase à categoria de exploração, que resulta em uma crítica ético-moral, frente à categoria de dominação, centralmente política, de tal modo que a balança tenda mais para o socialismo, resultante da crítica radical da exploração econômica do que simplesmente à democracia, resultante da crítica radical à dominação política.

Se, por um lado, a meu ver, o livro de Jameson tem a virtude de reapresentar o conteúdo do primeiro livro de O Capital de um modo claro e sucinto, com ótimas observações quanto ao método e à exposição da obra marxiana, além de instigantes e ousados comentários que convidam a revisitar uma obra que muito ainda tem a dizer; por outro lado, parece-me inegável que o autor comete alguns deslizes e que algumas de suas interpretações são, no mínimo, improváveis. Quando Jameson diz, por exemplo, que Marx só se refere ao capitalista como “suporte” do capital, e nunca atribui ao proletário a mesma função, ele deixa de perceber que Marx usa o adjetivo “agente” e “sujeito do processo” (ou ainda “sujeito automático”) para a própria categoria do capital, ignorando assim a passagem do capítulo “A reprodução simples” na qual Marx diz: “Do ponto de vista social, a classe trabalhadora é, portanto, mesmo fora do processo direto de trabalho, um acessório do capital, do mesmo modo que o instrumento morto de trabalho”(Marx, 1985, p.158, ênfase minha). Também, ao afirmar que O Capital é um livro sobre desemprego, Jameson reduz todo o antagonismo estrutural do capitalismo, que ele tão bem descreve, a uma única dimensão, obliterando assim as demais, como se o capitalismo superasse sua própria contradição fundante no momento que assegurasse o pleno emprego, algo que a social-democracia, que Jameson tanto critica, algumas vezes efetivamente conseguiu. O Capital é um livro sobre um processo estruturante das sociedades modernas ocidentais (a saber, o próprio processo capitalista) e que possui implicações políticas, filosóficas e econômicas, que são desdobradas ao longo do primeiro livro desta obra. Nada se ganha centrando sua leitura na questão do desemprego, um tópico sem dúvida importante, mas não por isso prioritário. Por fim, Jameson não consegue deixar claro no que concorda e no que discorda frente ao marxismo mais tradicional, algo problemático para um livro que se apresenta como uma releitura; não dialoga com as leituras mais recentes (e quiçá mais interessantes) da obra madura marxiana (como Moishe Postone, Christopher Arthur, Tony Smith, dentre tantos outros), dando um tom antiquado ao texto (o comentário de referência, ao qual ele se aproxima e distancia ainda é Althusser); e deixa diversas questões em aberto (Qual a dominação específica do capitalismo? Qual a importância da questão das classes? Por que a categoria de dominação é política e sua crítica conduz à democracia e não ao socialismo, ou, melhor ainda, a um socialismo democrático?). Enfim, com altos e baixos, o livro de Jameson deve servir, ao menos, para atiçar os debates entre aqueles que renovam a crítica ao capitalismo.

Referências

MARX, K. 1985. O Capital: Livro I, Volume II. São Paulo, Nova Cultural, 158 p.

Amaro de Oliveira Fleck – Universidade Federal de Santa Catarina. Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Florianópolis, SC, Brasil. E-mail: amarofleck@hotmail.com

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