Nobrezas e Hierarquias sociais, séculos XV-XIX / Revista Maracanan / 2018

O presente dossiê foi concebido com o intuito de reunir estudos sobre o papel da nobreza e das hierarquias sociais de maneira mais ampla. Congrega, portanto, textos que versam sobre as formas como essas hierarquias e o próprio conceito de nobreza eram pensados entre os séculos XV e XIX, bem como análises sobre as estratégias, redes e trajetórias de grupos ou indivíduos na mesma temporalidade.

Na Época Moderna, a desigualdade era naturalizada, constituindo-se em elemento central do ordenamento social, jurídico e ideológico europeu. Os diferenciais de renda e riqueza eram muito marcados e crescentes, 1 mas os discursos dominantes sobre a estrutura social enfatizavam o nascimento e a honra para justificar as disparidades que separavam o nobre de província do camponês que lavrava sua terra ou a aristocrata da criada que lhe vestia. 2

Tais atos de fala não são meras cortinas de fumaça, mas sim, como escreveu Barbara Fields, “o vocabulário descritivo da existência cotidiana, [configurando uma ideologia,] através da qual as pessoas compreendem a realidade em que vivem e que criam no dia a dia”. 3 Afinal, como indagou Marc Bloch, “uma hierarquia social é algum dia outra coisa que um sistema de representações coletivas, móveis por sua própria natureza?”. 4 Nesse sentido, trabalhos como as notas de pesquisa de Marcone Aroucha no presente dossiê, “Nobreza ibérica na Alta Idade Moderna: o mérito, a linhagem, os discursos” e de Nara Maria de Paula Tinoco, “Nobres e magistrados: uma discussão sobre o conceito de nobreza”, que analisa a relação entre nobreza e magistratura, são contribuições relevantes à compreensão de concepções coevas sobre nobreza e seus impactos sobre as escolhas das elites dos dois lados do Atlântico em sua busca por legitimidade social. A importância da honra estamental para a sociedade do Antigo Regime levava os agentes a buscarem o estatuto de nobreza através de estratégias diversas, termo, aliás, muito frequente nas análises sobre os processos de nobilitação como podemos perceber no artigo de Marcia Eliane Alves de Souza e Mello, “A trajetória de uma rede familiar no Pará setecentista: O caso da família Góis” e na nota de pesquisa de Maria Beatriz Gomes Bellens Porto, “Estratégias sociais nas festas de São Sebastião: o exemplo do financiador José Antônio de Freitas Guimarães no Rio de Janeiro (1795-1810)”.

Os dois princípios de hierarquização – classe e estamento – estavam intimamente ligados, pois recursos financeiros eram necessários para “viver a lei da nobreza”, como se dizia na Península Ibérica, e endinheirados costumavam ao longo de uma ou duas gerações transformar seu capital econômico em simbólico através da compra de terras, cavalos e (quando disponíveis) títulos e ofícios nobilitantes, afastando-se das atividades comerciais e manufatureiras, no processo batizado por Fernand Braudel, talvez com excesso de severidade e teleologismo, de “traição da burguesia”. 5

Pode-se dizer, portanto, que a Europa era, e o mesmo é válido com ainda mais razão para as sociedades coloniais em formação nas Américas, “uma sociedade estamental tendencialmente classista, um mundo ordenado teoricamente pelo sangue e nascimento; distribuído em grupos em realidade graças ao dinheiro e às relações pessoais e familiares. Neste sentido, a nobreza é antes de tudo um ideal, um modo de vida, uma aspiração”. 6

A história da nobreza europeia não é, portanto, uma inverossímil sobrevivência das mesmas linhagens da Idade Média até a Era das Revoluções, mas sim um constante processo de nobilitação e decadência, em que plebeus se tornavam nobres, a nobreza de província ascendia à Corte e cortesãos tornavam-se aristocratas, ao mesmo tempo em que famílias antes proeminentes desapareciam. Em Portugal, como no restante da Europa, o período que vai da segunda metade do século XIV até finais do Quinhentos foi de significativa mobilidade social, constituindo-se justamente nessa época a nobreza moderna. 7 Essa dinâmica também esteve profundamente ligada à monarquia pois, diferente do que defendera a historiografia tradicional, não havia uma oposição entre poder aristocrático e poder régio, mas sim uma relação umbilical, como se depreende da análise da professora Mafalda Soares da Cunha na entrevista que fecha esse dossiê.

Como aponta a historiadora portuguesa em sua fala, a especificidade lusitana está, porém, na importância que as possessões extra-europeias assumiram nesse processo, como se vê no artigo de Nuno Vila-Santa, “Do Algarve ao Império e à titulação: estratégias de nobilitação na Casa dos Barretos da Quarteira (1383-1599)”. Este trabalho é exemplar por demonstrar várias questões centrais nas historiografias sobre a nobreza: destaca, em primeiro lugar, tanto a importância do serviço ao monarca na ascensão de uma família provincial quanto o papel cada vez mais central assumido pelo império na reprodução social nobiliárquica desde o século XV. Também ilustra o ponto de Mafalda Soares da Cunha de que não é recomendável cindir de maneira exageradamente abrupta o final da Idade Média do início da Época Moderna, pois, especialmente no tocante à formação do grupo nobiliárquico, há muitas continuidades. Por último, evidencia a importância das estratégias familiares de longo prazo para a consolidação e exaltação do estatuto nobiliárquico.

Em razão do processo de atlantização do império português, o serviço no Estado do Brasil assumiu uma importância crescente a partir do século XVII e ainda mais no seguinte. 8 Devido à relevância política dos governadores e vice-reis, um estudo cuidadoso de suas origens e relações sociais pode iluminar sua relação com os vassalos ultramarinos. Reside aí a importância do artigo de Érica Lôpo de Aráujo sobre o início da trajetória de um aristocrata e militar que viria a se tornar um dos mais polêmicos governantes da América Portuguesa, o Conde de Óbidos: “D. Vasco de Mascarenhas: nobreza e trajetória de serviços (1626-1640)”.

O estudo das nobrezas lusoamericanas ainda é, mesmo depois das obras de fôlego de Evaldo Cabral de Mello, João Fragoso e Ronald Raminelli, 9 tema merecedor de mais atenção. Uma das áreas em que restam territórios a serem explorados é sua relação com os grupos subalternos dos quais dependiam seu poder, seguindo o exemplo de Mafalda Soares da Cunha em sua tese de doutoramento para a maior Casa aristocrática de Portugal, como destaca em sua entrevista. No Brasil, Fragoso tem estudado a relação com os cativos através do compadrio, 10 mas o artigo de Israel Silva Aquino & Fábio Kuhn, “Redes, hierarquia e interdependência social nas relações de compadrio do século XVIII (Viamão – 1747-1769)”, busca identificar as relações sociais de duas poderosas famílias do extremo sul do Estado do Brasil. Recorrendo à metodologia da análise de redes sociais, tem como uma de suas contribuições mais interessantes a descoberta da centralidade feminina nessas relações, sugerindo que os estudos sobre elites e nobreza devem esforçar-se mais para refletir sobre o papel das mães, esposas e filhas na constituição e reiteração das nobrezas locais.

Para além disso, cabe ressaltar a carência de estudos sobre a nobreza imperial brasileira tal como se configurou após a independência. Embora a concepção de nobreza já estivesse em processo de transição desde o período moderno, incorporando a variante do mérito, com a difusão dos critérios liberais, os debates políticos que se afirmaram nas primeiras décadas do Império independente apresentaram uma reflexão sobre a nobreza, tendo muitas vezes questionado sua existência ou, mesmo quando a tomaram como dada, buscando incorporar novos sentidos a ela. Nesta perspectiva, o modelo liberal que atentava para a figura do indivíduo, e não do pertencimento ao corpo social tal como existente no Antigo Regime, e, consequentemente, para a ideia de mérito, permeou a reformulação que muitos grupos faziam da sociedade. É preciso repensar, portanto, a ideia de nobreza e atentar para as formas como ela passou a ser concebida pelos atores políticos da época, para além do aprofundamento dos estudos sobre as relações entre nobreza e elite política e nobreza e poder econômico, aspectos os quais a análise de Luiz Fernando Saraiva, no artigo “O espaço da nobreza: hierarquia do poder em Minas Gerais no século XIX”, adiciona contribuição fundamental.

A manutenção de títulos e distinções no Império do Brasil não implicava necessariamente na manutenção dos sentidos construídos ao longo do Antigo Regime. Embora também nos séculos anteriores eles fossem múltiplos, fato é que a transição por que passou o novo Império que se criava, após os debates liberais e constitucionalistas, não poderia deixar de produzir uma grande aceleração nas maneiras de conceber as hierarquias sociais. Evidentemente, não se quer aqui afirmar que a nobreza imperial brasileira fosse completamente distinta daquela existente no período moderno, mas sim atentar para o fato de que os agentes históricos construíam e reconstruíam os sentidos atribuídos a ela, de modo que coexistiam percepções que a ligavam aos sentidos do Antigo Regime, e outras que as relacionavam aos sentidos liberais.

Compreender os sentidos atribuídos a esses títulos é fundamental porque permite o entendimento das ações e estratégias a que estavam dispostos os sujeitos históricos para alcançá-los. A legitimidade conferida por um título ou pela ocupação de um cargo valorizado na sociedade permite a compreensão das relações sociais, políticas ou econômicas traçadas antes do “prêmio”, mas também daquelas traçadas posteriormente a ele, visto que a legitimidade conferida pela titulação ou cargos colocava o agente em uma posição privilegiada para adquirir outras vantagens sociais. Com isso, quer-se dizer que essas posições não eram apenas o “fim” da trajetória, mas também representavam a abertura de outras possibilidades para o sujeito.

Para além do debate sobre a nobreza e sobre hierarquias sociais stricto sensu, percebemos no texto “A distância entre a cidade efêmera e a memória das pedras: arquitetura e hierarquia no Rio de Janeiro do período joanino” de Carlos Eduardo Pinto de Pinto como se pode pensar a ideia de hierarquização em seu aspecto mais amplo, isto é, expressa nas modificações urbanas sofridas pela cidade do Rio de Janeiro após a chegada da corte. O autor analisa o contraste entre uma cidade real ou material e uma cidade ideal que era erguida especialmente nos momentos de festividades na Corte através de uma arquitetura efêmera a qual era somada às gradações sociais dos participantes.

Outros textos complementam esse número, como o excelente artigo “Disputas pela história contemporânea de Portugal: a polêmica político-historiográfica entre José Agostinho de Macedo e Hipólito da Costa” de André da Silva Ramos & Valdei Lopes de Araújo, no qual é tematizada a produção historiográfica no Império português entre os séculos XVIII e XIX e a resenha de Tania Regina de Luca, que nos brinda com reflexões sobre a obra Como era fabuloso o meu francês! Imagens e imaginários da França no Brasil (séculos XIX-XXI), organizada por Anaïs Fléchet, Olivier Compagnon e Silvia Capanema de Almeida.

Dito isso, resta-nos apenas desejar: Boa leitura!

Notas

  1. Ver, para o caso inglês, o importante livro de: WRIGHTSON, Keith. Earthly Necessities: Economic Lives in Early Modern Britain. New Haven: Yale University Press, 2000, p. 182-201.
  2. BURKE, Peter. The language of orders in early modern Europe. In: BUSH, Michael L. (ed.). Social Orders & Social Classes in Europe since 1500: Studies in social stratification. Harlow: Longman, 1992, p. 1-12; THOMPSON, Irving. Hidalgo and pechero: the language of “estates” and “classes” in early-modern Castille. In: CORFIELD, Penelope (ed.). Language, History and Class. Oxford: Basil Blackwell, 1991, p. 53-78.
  3. FIELDS, Barbara Jeanne. Slavery, Race and Ideology in the United States of America. New Left Review, n. 181, 1990, p. 110. Tradução nossa.
  4. BLOCH, Marc. Les caractères originaux de l’Histoire rural française. Paris: Armand Collin, 1968 [1931], vol. I, p. 89. Tradução nossa.
  5. BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo na Época de Filipe II. São Paulo: EDUSP, 2016 [1949 / 1966], vol. II, p. 83-93.
  6. SORIA MESA, Enrique. La nobleza en la España moderna: cambio y continuidad. Madri: Marcial Pons, 2007, p. 319; Cf. também: p. 38-9 e 213-5.
  7. Ver, para a França, a síntese de: BEIK, William. A Social and Cultural History of Early Modern France. Cambridge: Cambridge University Press, 2009, p. 74-76.
  8. MONTEIRO, Nuno; CUNHA, Mafalda Soares da. Governadores e capitães-mores do império atlântico português nos séculos XVII e XVIII. In: MONTEIRO, Nuno; CUNHA, Mafalda Soares da; CARDIM, Pedro (eds.). OptimaPars: Elites Ibero-Americanas do Antigo Regime. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2005, p. 191-252.
  9. Cf., dentre outros: MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio: o imaginário da Restauração Pernambucana. São Paulo: Alameda, 2008 [1986], 3ª ed. rev., p. 155-80; FRAGOSO, João. À Espera das Frotas: microhistória tapuia e a nobreza principal da terra (Rio de Janeiro, c. 1600 – c. 1750). 2005. Tese (Concurso para Professor Titular de Teoria da História) – Departamento de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro; Idem. Nobreza principal da terra nas repúblicas de Antigo Regime nos trópicos de base escravista e açucareira: Rio de Janeiro, século XVII a meados do século XVIII. In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Fátima (orgs.). O Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, vol. III (1720-1821), p. 159-240; RAMINELLI, Ronald. Nobrezas do Novo Mundo. Rio de Janeiro: FGV, 2015.
  10. FRAGOSO, João. Elite das senzalas e nobreza da terra numa sociedade rural do Antigo Regime nos trópicos: Campo Grande (Rio de Janeiro), 1704-1741. In: FRAGOSO; GOUVÊA (orgs.). O Brasil Colonial. Op. cit., p. 241-305.

Camila Borges da Silva – Professora Adjunta, na área de História do Brasil, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É doutora em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio); mestre e graduada em História pela UERJ e graduada em Moda pela Universidade Cândido Mendes (UCAM); além de ter realizado estágio pós-doutoral no Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. É autora de artigos em periódicos nacionais e internacionais e dos livros O símbolo indumentário: distinção e prestígio no Rio de Janeiro (1808-1821) (AGCRJ, 2010) e As ordens honoríficas e a Independência do Brasil: O papel das condecorações na construção do Estado Imperial brasileiro (1822-1831) (AN, 2018).

Thiago Krause – Professor Adjunto, na área de História Colonial, do Departamento de História e membro permanente do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Possui Doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Mestrado e graduação em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). É autor dos livros Em busca da honra: a remuneração dos serviços da guerra holandesa e os hábitos das Ordens Militares (Bahia e Pernambuco, 1641-1683) (Annablume, 2012) e A América portuguesa e os sistemas atlânticos na época moderna: monarquia pluricontinental e Antigo Regime (Ed. FGV, 2013), este último publicado em conjunto com João Fragoso e Roberto Guedes.


SILVA, Camila Borges da; KRAUSE, Thiago. Apresentação. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n.19, 2018. Acessar publicação original [DR]

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