Nobrezas do Novo Mundo: Brasil e ultramar hispânico, séculos XVII e XVIII – RAMINELLI (RH-USP)

RAMINELLI, Ronald José. Nobrezas do Novo Mundo: Brasil e ultramar hispânico, séculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015. 260p. Resenha de: SOUZA, Priscila de Lima Souza. Nobrezas sem linhagem: a nobilitação na América Ibérica. Revista de História (São Paulo) n.176 São Paulo  2017.

A constituição das nobrezas na América ibérica durante os séculos XVII e XVIII é o tema investigado em Nobrezas do Novo Mundo, livro de autoria de Ronald Raminelli. Publicado no ano de 2015, o trabalho é o resultado de quase uma década de pesquisas parcialmente divulgadas em revistas nacionais e estrangeiras. Um dos destaques do livro é a abordagem comparada do tema, empreendimento pouco comum entre os historiadores brasileiros dedicados ao período colonial. Valendo-se do método da comparação formal, a América espanhola é concebida como parâmetro para problematizar e iluminar as especificidades da nobreza formada na América portuguesa, sendo esta, de fato, o objeto do livro. Os espaços selecionados para a análise são, na América espanhola, os vice-reinos do Peru e da Nova Espanha, cujas capitais concentravam parte significativa da nobreza hispano-americana, e, na América portuguesa, as capitanias de Pernambuco, Rio de Janeiro e Bahia, notoriamente privilegiadas em relação às demais.

Nas duas últimas décadas, a produção historiográfica sobre a nobreza do Antigo Regime tem aumentado consideravelmente. No interior desse campo de pesquisas, o livro de Ronald Raminelli diferencia-se por ser um estudo que propõe uma sistematização sobre as nobrezas existentes nas sociedades ibero-americanas entre os séculos XVII e XVIII, atentando particularmente para os seus traços constitutivos e para as suas transformações ao longo do tempo. Trabalhos com tal envergadura são menos comuns que os estudos de caráter monográfico e regional. Para o caso da América portuguesa, por exemplo, Ser nobre na colônia, de autoria de Maria Beatriz Nizza da Silva (2005), figurava como uma das únicas obras com essa ambição. Uma advertência feita por Raminelli diz respeito à tendência da historiografia brasileira em associar de modo naturalizado as elites coloniais com a chamada “nobreza da terra”. Contudo, no livro são considerados nobres somente os indivíduos que tiveram o status sancionado pelo poder régio por meio da concessão de títulos de nobreza, foro de fidalgo e hábitos das ordens militares (p. 24).

O autor afirma que a obra é, em primeiro lugar, um balanço da historiografia sobre os nobres americanos. Essa, de fato, é uma das qualidades do estudo, que dialoga com trabalhos clássicos e, principalmente, com a literatura renovada produzida nos últimos anos. Para os espaços da América portuguesa, porém, a pesquisa empírica ganha relevo com a análise de documentação proveniente de arquivos portugueses como o da Torre do Tombo. Nesse quesito, sobressaem as habilitações às ordens militares e ao Santo Ofício, material que permitiu ao autor investigar os trâmites institucionais da nobilitação.

O livro foi estruturado em duas partes, cada uma delas contendo três capítulos. Na primeira, denominada “Variações da nobreza”, o autor sustenta que a nobreza não deve ser concebida como uma condição homogênea, pois os critérios para o seu estabelecimento variavam no espaço e no tempo. Na segunda parte, intitulada “Índios, negros e mulatos em ascensão”, averíguam-se as possibilidades de nobilitação desses grupos sociais e as condições de manutenção da posição alcançada, análise que é circunscrita ao caso da América portuguesa.

Os dois primeiros capítulos apresentam uma temporalidade longa, que vai desde o século XVI até o contexto da segunda metade do século XVIII. Neles, o autor discute a natureza da nobreza americana, atentando particularmente para as suas hierarquias. Para tanto, compara as nobrezas peninsulares com as nobrezas americanas e estas entre si. Em primeiro lugar, sustenta que a nobreza americana se distinguia da nobreza radicada na península Ibérica pelo fato de, ao contrário desta, os seus títulos não serem hereditários. Em segundo lugar, sugere que uma das principais diferenças entre as nobrezas ibero-americanas era a existência da alta nobreza nos espaços espanhóis, segmento integrado por indivíduos que foram condecorados com títulos como os de marquês e conde, os mesmos concedidos à nobreza peninsular. Nos espaços luso-americanos, somente vice-reis e governadores, todos reinóis, ostentavam semelhante honraria. Em terceiro lugar, destaca-se a tese conforme a qual os processos de nobilitação eram mais rigorosos na América espanhola, pois lá se seguia mais estritamente os critérios de qualidade exigidos na Europa. Entre os hispano-americanos, faltas na qualidade – como a impureza de sangue – representavam um grande óbice à nobilitação. Por sua vez, em Portugal e em seus domínios americanos, havia certa flexibilidade na imposição desses critérios, os quais eram relevados em face dos serviços militares prestados à monarquia.

No segundo capítulo, “Nobreza e governo local”, discute-se a relação entre a ocupação de cargos na administração pública e a formação da nobreza americana. Tendo como referência teses consolidadas na historiografia, o autor demonstra que, por meio do monopólio das terras e do poder político exercido a partir dos cabildos e das câmaras municipais, os conquistadores e seus descendentes estabeleceram-se como nobreza local. Por outorgarem privilégios e o status de vecino/cidadão, tais instituições foram essenciais para o enraizamento da nobreza americana. Conforme Raminelli, a manutenção dessa posição ao longo das gerações permitiu ao grupo “consagrar-se como nobreza de sangue” (p. 85). Essa afirmação evidencia a necessidade de problematizar as fronteiras entre a nobreza política – dispensada pelo rei – e a nobreza de linhagem na América ibérica, uma vez que a tese defendida no primeiro capítulo é a de que a nobreza americana não se reproduzia hereditariamente.

O terceiro capítulo, intitulado “Riqueza e mérito”, é dedicado à análise das mudanças nas concepções sobre a nobreza ocorridas ao longo da segunda metade do século XVIII, fenômeno diretamente relacionado ao processo de centralização monárquica. Sugere-se que os critérios para a nobilitação, fundamentados na origem familiar, passaram a ser questionados devido à crescente valorização do mérito individual e da riqueza. O autor salienta que nesse período houve um aumento significativo na concessão de títulos de nobreza para grupos sociais tradicionalmente excluídos do acesso às honras nobiliárquicas, como era o caso dos comerciantes. Estes, valendo-se da prática da venalidade de cargos, títulos e hábitos militares, puderam ingressar na baixa nobreza. Raminelli admite que, se na América espanhola a relação entre riqueza e nobilitação era clara, o mesmo não pode ser afirmado para o caso português, em que a venda de cargos e títulos não constituía recurso comumente empregado (p. 120). Ainda assim, constata que ao longo desse período houve um aumento expressivo na concessão de hábitos das ordens militares em Portugal, tese que, no entanto, carece de dados empíricos para a América portuguesa.

Em “Malogros da nobreza indígena”, o quarto capítulo do livro, analisa-se a trajetória de ascensão social de índios em um recorte temporal compreendido de meados do século XVII até o início da década de 1730. A discussão é centrada na figura de dom Antônio Felipe Camarão e seus descendentes, índios da capitania de Pernambuco recompensados pela Coroa pelos serviços prestados durante as guerras contra os holandeses. Além das patentes militares, foram condecorados com hábitos das ordens militares portuguesas, inserindo-se, desse modo, na nobreza local. Raminelli sugere que a reprodução da nobreza indígena estava diretamente relacionada aos serviços militares prestados em situações de conflito bélico. Assim, com a relativa pacificação no início do século XVIII, as chefias indígenas foram paulatinamente perdendo seu poder de barganha com a Coroa, resultando na desmobilização completa do famoso terço de Camarão no início da década de 1730 e, consequentemente, no malogro de suas estratégias de ascensão social. A história dos corpos militares integrados por indígenas na América portuguesa ainda demanda pesquisas mais sistemáticas. Sabe-se que durante a segunda metade do século XVIII existiram corpos de ordenança e de auxiliares indígenas nas capitanias do norte pertencentes ao Estado do Grão-Pará e Maranhão, mas até o momento ainda são poucos os trabalhos dedicados às suas experiências. A discussão proposta por Raminelli constitui um bom caminho para incentivar novas investigações e problemas, o que permitiria averiguar se o fenômeno constatado por ele era restrito à capitania de Pernambuco ou consistiu em uma tendência de caráter geral.

O capítulo 5, “Militares pretos na Inquisição”, é o único que apresenta uma temporalidade curta, o que é justificado pelo objeto analisado. Nele, acompanha-se a trajetória de dois militares pretos do Recife durante a década de 1740. Esses homens eram integrantes do terço de Henrique Dias e, ao mesmo tempo, de uma fradaria, corporação que reunia características tanto de irmandade leiga como de ordem religiosa. Mesmo com parca atuação na corporação, os dois militares foram acusados de heresia e, por isso, presos e remetidos aos cárceres do Santo Ofício em Portugal. O autor demonstra que, diferentemente dos índios, os militares pretos que participaram das guerras contra os holandeses em meados do século XVII e seus descendentes não foram condecorados com hábitos das ordens militares, embora tivessem recebido promessas nesse sentido. Apesar disso, constituíam uma “elite preta” devido às patentes militares a eles outorgadas. Na perspectiva avançada por Raminelli, o episódio da prisão revela os mecanismos de exclusão social que afetavam os militares pretos em processo de ascensão social, tornando “instável a honra alcançada pela elite preta de Pernambuco” (p. 205). Não obstante a pertinência da interpretação, chama a atenção o dado conforme o qual os dois militares foram absolvidos e suas patentes restituídas, aspecto não problematizado pelo autor. Nesse sentido, seria promissor investir em explicações que considerassem a preservação do terço dos Henriques e de seus oficiais mesmo diante da oposição das elites brancas e do governo local.

Em “Cores, raças e qualidades”, o último capítulo do livro, procura-se entender os fundamentos que impossibilitaram a nobilitação de pretos e mulatos em Portugal e na América portuguesa. A discussão insere-se em um campo de debates polêmico, relacionado ao questionamento da existência de racismo e da ideia de raça em períodos anteriores à emergência das teorias cientificistas de meados do século XIX. Um dos méritos desse capítulo é a tentativa de definir de modo mais preciso a vinculação de pretos e mulatos à ideia de impureza de sangue, dimensão ainda pouco explorada pela historiografia portuguesa e brasileira. Mediante a análise de habilitações para familiares do Santo Ofício, o autor sugere que a falta de limpeza de sangue atribuída aos pretos e mulatos não era de natureza religiosa, como acontecia aos cristãos-novos, mas fundamentada na escravidão. Assim, ter “raça de mulato” remetia diretamente ao passado escravo e a crenças na transmissão hereditária de comportamentos. Diante disso, o autor advoga a pertinência do emprego das noções de raça e racismo para o período colonial, desde que suas particularidades no contexto sejam esclarecidas.

Ao longo do capítulo, sente-se falta de um diálogo mais estreito com a historiografia sobre os espaços hispano-americanos, que conta com uma boa produção de trabalhos que pensam o problema da raça e da limpeza de sangue relacionado aos afrodescendentes. Esse diálogo, tal como efetuado na primeira parte do livro, indubitavelmente enriqueceria ainda mais as discussões desenvolvidas na segunda parte do trabalho. Por outro lado, no que se refere aos impedimentos baseados na cor e na raça, a distinção entre pretos e pardos mereceria um tratamento mais detido. Ao questionar a inexistência da expressão “raça de preto” e a recorrência da “raça de mulato” (p. 237), Raminelli sugere que a condição material dos mulatos estaria na raiz da distinção. Dispondo de uma condição econômica mais abastada, por serem filhos de homens brancos ricos, eles pleiteariam por hábitos militares e familiaturas do Santo Ofício com mais frequência, instigando a concorrência com outros grupos em disputa pelas mesmas honras. Esta seria a origem da “raça de mulato”, um mecanismo empregado para excluí-los das posições sociais de maior prestígio. Embora o autor esclareça que se trata de uma hipótese, pode-se, no entanto, questionar os limites do argumento por centrar a explicação no fator socioeconômico. Seria importante considerar também as diferenças de status entre esses grupos, que tendiam a ser hierarquizados de acordo com a proximidade e o afastamento em relação à escravidão. Como a historiografia tem ressaltado, os pretos normalmente eram associados diretamente à escravidão e os mulatos, por sua vez, poderiam ser libertos ou estar afastados, em algumas gerações, do ascendente cativo. É possível inferir que era precisamente nesta última situação que a “raça de mulato” desempenhava a sua função primordial, qual seja, barrar a ascensão social de indivíduos que não podiam ser diretamente associados à escravidão.

A principal ressalva ao livro de Ronald Raminelli diz respeito ao descompasso entre as temporalidades abordadas na primeira e na segunda parte da obra. Se nos capítulos 1, 2 e 3 a narrativa foi articulada considerando os grandes contextos formativos da nobreza americana, desde o início da conquista até a transição para o século XIX, nos três últimos capítulos, o recorte limita-se ao tempo que vai das guerras contra os holandeses até fins da década de 1740. Conforme exposto no capítulo 3, a segunda metade do século XVIII foi uma época marcada, por um lado, pelo questionamento da primazia do sangue como critério para a condecoração dos súditos e, por outro lado, pela crescente valorização do mérito individual e da riqueza. Ao leitor fica a inquietação acerca do impacto desse quadro de mudanças nas possibilidades de ascensão social disponíveis a pretos, mulatos e indígenas, principalmente no que diz respeito ao ideário da pureza de sangue. Essa lacuna não diminui a importância do livro, que apresenta novos argumentos e complexifica teses já consolidadas. Ademais, Nobrezas do Novo Mundo indica um conjunto de temas ainda pouco explorados pela historiografia, evidenciando a existência de um promissor campo de investigações.

Priscila de Lima Souza – Doutora em História pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. E-mail: cila_lima@yahoo.com.br.

Nobrezas do novo mundo: Brasil e ultramar hispânico, séculos XVII e XVIII – RAMINELLI (Tempo)

RAMINELLI, Ronald. Nobrezas do novo mundo: Brasil e ultramar hispânico, séculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015. 200pp. Resenha de: FURTADO, Júnia Ferreira. A nobreza em movimento. Tempo v.21 no.38 Niterói jul./dez. 2015.

Em 1982, Desclassificados do Ouro, de Laura de Mello e Souza, renovou os estudos sobre a colônia ao trazer, para a cena histórica, “a pobreza mineira no século XVIII”, com seus marginalizados sociais, que surgiam na esteira do processo de centralização do estado moderno (Souza, 1982). Se a década de 1980 se caracterizou, no Brasil, pelo alargamento do campo histórico de análise, para incluir esses grupos “de baixo”, as camadas populares,2 o século XXI, na vertente oposta, assistiu ao renascimento do interesse pelo estudo das elites,3 nesse caso centrando-se no estudo da nobreza que emerge no contexto do período colonial. Esse movimento nasceu conjuntamente com um diálogo mais estreito que os historiadores brasileiros passaram a encetar com a historiografia portuguesa, destacando-se, nesta última, os estudos de António Manuel Hespanha (1997;2007), Nuno Gonçalo Monteiro (1993;2003), Mafalda Soares da Cunha (1990;2000), Diogo Ramada Curto (1988), Fernanda Olival (2001) e Pedro Cardim (1998),4 entre outros, que, então,se debruçavam sobre as elites, a aristocracia e a nobreza portuguesas,em um contexto de Antigo Regime.

Arriscaria apontar que, nessa vertente, no Brasil, o despertar pelo tema das formas, dos critérios e dos dilemas que as elites do Novo Mundo encontraram para se inserir no seio da nobreza lusitana foi inaugurado com o livro de Evaldo Cabral de Mello, O Nome e o Sangue (1989),5 no qual o historiador pernambucano “conta a história de uma manipulação genealógica destinada a esconder, no Pernambuco da segunda metade do século XVII e ao longo do século XVIII, o costado sefardita de uma importante família local” (Mello, 1989, p.11). Esse estudo se centra “num momento específico da vida de Filipe Pais Barreto, descendente de importante família da oligarquia açucareira de Pernambuco, que, em 1700, recebeu do rei de Portugal a honra de ostentar o título de cavaleiro da Ordem de Cristo” e que esperava, com tal mercê, assegurar “doravante o destino que lhe era reservado pelo nascimento: ‘viver na nobreza, servindo-se de bestas e criados’, como era o costume no nordeste açucareiro entre a elite da terra – os senhores de engenho e seus descendentes”, imitando a nobreza reinol (Furtado, 2008, p.58-61). A partir desse caso, o autor analisa “o conceito de nobreza, a hierarquia e os privilégios de sangue [que] faziam com que a linhagem e a genealogia ocupassem papéis importantes na manutenção e na transmissão do status quo” (Mello, 1989, p.67).

Entre esse livro de Cabral de Mello, hoje um clássico, e o recente de Ronald Raminelli, passaram-se pouco mais de 25 anos. Esse último estudo revela que foi tempo mais do que suficiente para aprofundar e refinaras análises sobre o que configurava ser nobre no Brasil colonial. A conjugação entre fontes (muitas inéditas ou pouco ou nada trabalhadas) e a extensa bibliografia sobre a nobreza no espaço ibérico, isto é, Portugal, Espanha e América luso-hispânica, de que este autor pôde se beneficiar permitem a produção de um estudo instigante sobre o tema, propondo,em muitos aspectos, interpretações inéditas e inovadoras, que revelam um pesquisador maduro e afinado com as novas metodologias do trabalho histórico.

Em primeiro lugar, é imperativo voltar a esse ponto para chamara atenção para a massiva variedade de livros, capítulos de livros e artigos com que Raminelli dialoga para embasar muitas das assertivas que faz ou que, por vezes, são alvo de sua crítica. Ademais, essa bibliografia torna-se essencial para que se possa estabelecer uma comparação com o mundo espanhol e, dessa maneira, aproximar ou identificar diferenças entre o que acontece nos diversos espaços dominados pelas duas coroas ibéricas, no além e no aquém mar. Essa se constitui uma das grandes virtudes e inovações desse estudo, o que requer erudição e contínua atualização bibliográfica, permitindo que a análise não se atenha apenas ao mundo luso-brasileiro, como acontece, de modo mais recorrente, com a maioria dos estudos

O pleno domínio e a ampla capacidade de estabelecer um diálogo crítico com a bibliografia atingem o ponto máximo no último capítulo, “Cores, raças e qualidades”, no qual são abordadas as questões do racismo e do preconceito racial, tornando-se esse texto, doravante, de leitura incontornável para os futuros estudos sobre esses temas. Nesse caso, não se trata apenas da historiografia luso-espanhola, mas também de autores franceses, italianos, ingleses, alemães e norte-americanos, que abordam essa questão para diversos espaços no contexto da expansão colonial europeia moderna.

No entanto, a armadilha nesse tipo de opção metodológica é que, como esse diálogo não se estrutura também a partir de pesquisas de fontes primárias, que não puderam ser realizadas para o lado espanhol, em razão da tarefa hercúlea que tal procedimento exigiria, muitas vezes, o leitor não consegue estabelecer uma relação crítica com a bibliografia hispânica selecionada. Um exemplo limite dessa dificuldade aparece quando o autor aponta, em nota (Raminelli, 2015, p.112), que um artigo de Langue (1999) contraria a afirmação de Lira Montt (1981) de que “na Espanha os nobres titulados gozavam de senhorios territoriais e vassalos perpétuos, benefícios inexistentes nas Índias”. Em que se baseia essa discordância? Novas pesquisas documentais? Quais? Que elementos permitem que eu, leitor,me posicione a favor de uma ou de outra interpretação e adote a mesma posição de Raminelli em favor da interpretação de Lira Montt?

Ainda que o centro da análise, como se explicita no subtítulo do livro, situe-se entre os séculos XVII e XVIII, o autor também aborda, quando se faz necessário, o XVI e o alvorecer do XIX, de modo a apreender as transformações ocorridas, muitas delas perceptíveis apenas na longa duração. O objetivo é compreender o que se define como nobreza, como se constitui, se estrutura e se identifica; os mecanismos de acesso, comparando tanto o espaço reinol como o americano, no que diz respeito aos impérios português e o espanhol, este tomado como base de comparação.

Nesse aspecto, o conceito adotado sobre o que é ser nobre é o institucional, que divide a nobreza entre a de linhagem e a de serviço, essa última alcançada por concessão régia. Nas sociedades de Antigo Regime, como era o caso de Portugal na era moderna, o lugar que cada indivíduo ocupava se baseava no nascimento. Era um mundo no qual a ordem social hierarquizada distinguia uns em detrimento de outros, buscando demarcar e separar, nitidamente, os estratos mais altos – aqueles a quem se conferia nobreza – dos mais baixos ou vis – os plebeus. Ser nobre, portanto, era estar entre os principais, a diferença constituindo o cerne desse mundo.

No capítulo um, o que se busca compreender é o que se configura como nobreza, investigando as normas legais exaradas para tanto. Por outro lado, o que se coloca como o grande tema de investigação, questão que perpassa os capítulos dois a cinco, é a possibilidade de ascensão de indivíduos cuja nobreza é alcançada não pelo nascimento, mas pela riqueza ou pelos préstimos/serviços realizados em prol do império e quem atinge, de maneira adquirida, tais patamares nas duas regiões – Ibéria e América hispânica. É essa nobreza de mérito – concedida pelo rei aos súditos da América portuguesa – e, na sua contramão, a quem tal honra não era concedida, ainda que seu pretendente preenchesse os critérios normativos para alcançá-la, que interessam, de modo central, ao autor. A ampla pesquisa de fontes busca encontrar as respostas para essas questões e para os paradoxos resultantes dessas possibilidades ou impossibilidades de alcançar nobreza em terras do além-mar. Quem se beneficiava desse mecanismo e, no sentido oposto, quem era excluído? Como a norma respondeu a essa demanda de ascensão nobiliárquica de estratos não nobres? Para responder a essas e a outras tantas perguntas, Raminelli, de maneira inovadora, associa o interesse que a historiografia devotou, tanto aos marginalizados quanto às elites (sem, no entanto, utilizar esse termo como conceito),5 porque, afinal, grande parte dos pretendentes era formada por negros, índios e mulatos, ou seja, constituíam o outro em relação à elite branca europeia.

Para compreender o processo ou as dificuldades de nobilitação, mas recusando o conceito de nobreza da terra muito em voga em trabalhos mais recentes (Fragoso et al, 2001Fragoso, 2003, p.11-36), o livro se debruça sobre os diferentes mecanismos utilizados por esses estratos em ascensão, como os serviços camarários, realizados pelos homens bons, (capítulo dois), a riqueza e o mérito (capítulo três) e as guerras brasílicas, nas quais se alistaram índios e negros (capítulos quatro e cinco).

A parte mais instigante se localiza exatamente no capítulo quatro, quando Raminelli examina as tentativas de nobilitação da nobreza indígena, as maneiras como eles “se inseriam na hierarquia social do Antigo Regime” e, finalmente, questiona “se as insígnias das Ordens Militares portuguesas teriam o mesmo significado para portugueses e índios” (Raminelli, 2015, p.135). Nessa parte, o autor manipula, com maestria, as fontes primárias – os pedidos de mercês indígenas protocolados em troca dos serviços militares realizados nas guerras contra os invasores estrangeiros, holandeses e franceses – para o Brasil. Ainda que afirme (Raminelli, 2015, p.136) que “para [esses] questionamentos ainda não obtive dados conclusivos”, o autor propõe uma conclusão totalmente inovadora. Segundo ele,como “tradicionalmente entre os tupis, as lideranças eram efêmeras, [e] raramente o poder de comando passava ao filho”, o recurso aos mecanismos de nobilitação dos portugueses foi “tática indispensável para perpetuar a liderança, o controle político de [uma] família [ao longo de diversas gerações] sobre as comunidades indígenas” (Raminelli, 2015, p.172).

Tal parece não ter ocorrido na América espanhola, onde, de um lado, à coroa nunca interessou conceder às lideranças indígenas tais títulos (Raminelli, 2015, p.18), visto que o que se buscava era, efetivamente, solapar-lhes o poder e, de outro, aos líderes nativos não era necessário recorrer às formas de nobilitação europeia para conservarem seu poder sobre suas comunidades, pois esse já estava consolidado no seio das estruturas políticas pré-hispânicas. Ora, para mim, essa distinção mereceria, por si só, um livro em separado, no qual o método comparativo buscasse, a partir de pesquisa de fontes também para a área espanhola, confirmar, ou não, as diferenças entre as estratégias indígenas no que concerne à nobilitação das lideranças nativas e as reações a elas por parte das duas coroas hispânicas.

Ao trazer para a cena as populações negras, índias e mestiças, tornou-se imperativo para o autor discutir os impasses e os paradoxos decorrentes do fato de que populações com outro sangue, modo de vida, moral e religião buscassem nobreza, ameaçando os critérios pelos quais os nobres reinóis, de ascendência branca, europeia e cristã, até então se constituíam e se distinguiam dos estratos sociais inferiores. No capítulo seis, que fecha o livro, Raminelli reflete sobre a viabilidade, ou não, do uso dos conceitos de raça e de racismo para analisar os mecanismos para a exclusão de parte das populações do novo mundo que buscava lugar no seio da nobreza imperial. O autor não cai na armadilha do uso a-histórico desses dois conceitos, visto que “são baseados no determinismo biológico oitocentista”, ou na sua recusa total, já que “não são adequados para pensar as relações sociais entre os séculos XVII e XVIII” (Raminelli, 2015, p.209). Nesse sentido,defende que, se o critério de raça, tal como seria empregado mais tarde, não era o acionado para impedir que essas populações (incluindo os cristãos-novos) tivessem acesso à nobreza, o conceito de racismo seria operacionalmente útil para compreender esses processos de exclusão.

Para tanto, discutindo com rara perspicácia com a historiografia mais recente, inclusive a brasileira,6 Raminelli resgata os termos que emergem da documentação de época, como o sangue, a qualidade, a cor e a condição (nesse caso a escrava), por meio dos quais se constituíam os impedimentos para se enobrecer. Dessa maneira, transforma a linguagem coeva em conceitos, o que lhe permite historicizar os mecanismos sociais de exclusão das populações nativas (índios, negros e mulatos) do Novo Mundo. Tal procedimento é próprio de pesquisador da melhor estirpe, afinado com os métodos mais recentes de análise historiográfica.

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2No que diz respeito a essa renovação, no panorama internacional, cabe destacar, entre os inúmeros estudos que exerceram impacto no Brasil, o de Hill (1987).

3Entre os trabalhos precursores dessa vertente, destaco Burke (1991) e Goff (1991).

4Ver também Cardim; Monteiro e Cunha (2005).

5Análise sobre o livro pode ser vista em Furtado (2008, p.57-85).

6Nesse sentido, como alerta, no Prefácio, Ronaldo Vainfas, “o livro se afasta da tendência da historiografia brasileira, mais ou menos recente, de ‘sociologizar’ o conceito de nobreza, assimilando-o ao conceito de elite”. In: Raminelli (2015, p.11).

7Como Lara (2007)Viana (2007); Krause (2012). Uma ausência que merece destaque é Rodrigues (2011).

Júnia Ferreira Furtado – Professora Titular do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais – Belo Horizonte (MG) – Brasil. E-mail: juniaf@fafich.ufmg.br.