Transvaloração e redenção na filosofia de Nietzsche: o niilismo tornado história | Ildenilson Meireles

Ildenilson Meireles Filosofia de Nietzsche
Ildenilson Meireles | Imagem: PPGDS/UNIMONTES

O que torna um texto entendível? Existe relação entre inteligibilidade e qualidade de uma obra? Por que aparenta que nem sempre filósofos fazem questão de se compreender? Não são essas perguntas que se quer responder aqui, mas elas têm ligação com a forma dada à narrativa produzida por Ildenilson Meireles ao publicar como livro o resultado de seu doutoramento, em 2009, pela Universidade Federal de São Carlos.

Anos após a defesa da tese, a obra Transvaloração e Redenção na Filosofia de Nietzsche: o niilismo tornado história, pode ser uma potente ferramenta de “tradução”, talvez até de “simplificação”, de elementos que compuseram parte da filosofia nietzscheana que, por vezes, é colocada como coisa “nebulosa”, rodeada por entraves e complicações, “coisa para poucos”. Como bem reconhece Meireles, a publicação vai a público como “uma necessidade de devolver a estudantes de graduação, pelo menos, o fruto de um trabalho acadêmico sobre um Nietzsche que ainda se pode ler com interesse e curiosidade” (p. 10). Parece ser esse, inclusive, o sentido da circularidade e repetição, ao longo da narrativa, de algumas noções que antes já haviam sido explicitadas por ele. Repetir não para fixar ou ser redundante, mas para esmiuçar mais, por cuidado com quem lê. Não se trata, porém, de “mastigar”, de “pegar na mão” do leitor. Trata-se, sim, de conduzir a leitura, de apresentar conceitos e termos, de destacar como tal noção se apresenta em tal obra de determinado período, de ir e voltar quando convém, de passar por outros nomes que, de algum modo, atravessam o entendimento da filosofia de Nietzsche. Leia Mais

Negação e poder: do desafio do niilismo ao perigo da tecnologia – OLIVEIRA (RFA)

OLIVEIRA, J. R. Negação e poder: do desafio do niilismo ao perigo da tecnologia. Caxias do Sul: Educs, 2018. Resenha de: VIOLA, Geovani. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.31, n.54, p.986-992, out./dez, 2019.

As ideias de Hans Jonas não representam “apenas” o pensamento de um filósofo clássico do século XX, mas remetem a uma das vozes mais importantes da ética contemporânea. O inventário de sua filosofia demonstra que seu interesse, no âmbito teórico, esteve voltado para a filosofia da religião e à filosofia da natureza (a partir dos interesses em torno da vida), e, em âmbito prático, para os efeitos da técnica e o despertar de uma nova ética.

No Brasil, o interesse pela obra de Jonas decorre inicialmente de sua proposta ética e pode ser demarcado pela tradução precursora do capítulo Por que a técnica moderna é um objeto para a ética? da obra Technik, Medizin und Ethik. Zur Praxis des Prinzips Verantwortung (Frankfurt a/M, Insel, 1985, pp. 42-52, mais tarde traduzido pelos membros do GT Hans Jonas da ANPOF), realizada pelo professor Oswaldo Giacoia Júnior. Posteriormente, a tradução da obra O Princípio Responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica (Contraponto, PUCRio, 2006) abriu caminho para uma série de publicações acerca do autor. Outros trabalhos de divulgação e interpretação foram se somando às traduções, mas é com a obra Negação e Poder, o “fascinante livro de Jelson Oliveira”1, que o pensamento de Jonas tem um novo e significativo capítulo impresso no cenário nacional.

O texto é fruto de pesquisa de pós-doutorado realizada na Universidade de Exeter, no Reino Unido, em 2016, sob supervisão do professor Michael Hauskeller. Sua publicação em 2018, estabelece definitivamente um marco no cenário filosófico brasileiro, sobretudo pelo protagonismo das conexões feitas por Oliveira entre o tema da técnica com os desafios do niilismo, atrelando o pensamento jonasiano ao de Nietzsche e de Heidegger. Se Jonas não explicitou a unidade teórica de seus textos, Oliveira demonstra que o conceito de niilismo é o traço característico e ao mesmo tempo um fio condutor da obra de Jonas (p. 24).

É sabido que as atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial e o crescimento exponencial da tecnologia impactaram e redirecionaram o interesse de Jonas, pois representavam um problema que advinha, sobretudo, de um âmbito eminentemente prático. A obra Negação e Poder segue as pistas de Jonas para demonstrar que, embora tais fatos fossem novos como fenômenos da modernidade, eles partilham com a Antiguidade o mesmo sentido daquela negação do mundo já identificada por Jonas nos movimentos gnósticos do cristianismo primitivo. Se na tradição gnóstica tal negação era expressa na forma hostil com a qual o homem se relacionava com o mundo, segundo a tradição existencialista, tal negação era revelada pela via da indiferença, cujo resultado é o mesmo — e talvez até mais grave: o antinomismo, o amoralismo, o libertinismo, o ascetismo, a crise da temporalidade e a abertura para a exploração da natureza como resultado daquela indiferença (p. 24

Se o uso de armas químicas e biológicas já tinha sido razão para preocupação na ocasião da Primeira Guerra Mundial, o desfecho da Segunda Grande Guerra deixou um legado ainda mais ameaçador com relação ao emprego da técnica para fins nocivos: as explosões das duas bombas atômicas no Japão e os experimentos com seres humanos nos campos de concentração alemães alertaram o mundo quanto ao descompasso que havia sido perpetrado pelas ações humanas. Esse contexto conservou o tema do gnosticismo, tratado como uma tipologia existencial, no horizonte das análises jonasianas durante toda sua vida. Oliveira evidencia que os textos sobre o assunto continuaram sendo revistos e produzidos, uma vez que a “forma existencial gnóstica” assumiu uma “dimensão paradigmática” no seu pensamento, tanto do ponto de vista teórico, quanto ético. Mais do que isso, o niilismo moderno é apresentado por Oliveira como chave de leitura para o diagnóstico jonasiano da era moderna, pois uma vez que a ciência esvaziou o sentido que antes era oferecido pelas crenças e superstições, ela própria seria um desdobramento do niilismo. Eis uma marca relevante da sociedade ocidental.

Digno de nota é o argumento de Oliveira acerca da diferença do homem gnóstico com o homem técnico. Se o primeiro lutava contra o mundo para fugir dele, o segundo trabalha no mundo para explorá-lo como fonte de recursos, amparado em um avanço do progresso que cresce proporcionalmente ao distanciamento do homem em relação à natureza (p. 25), um distanciamento tomado não apenas em relação ao mundo, mas também do ser humano perante si mesmo e em relação à sua imagem. O que a análise alcança é precisamente o despertar para o fato de que a posição de distanciamento que adviria, sobretudo do antropocentrismo moderno, teria por consequência um tratamento com a vida que não passaria por uma “inclusão”, mas, ao contrário, seria marcado por uma intensa “exclusão”.

Se o primeiro tipo de niilismo negava o mundo, o segundo exerce um poder sobre ele: negação e poder, por isso, antes de serem pares contrapostos, devem ser entendidos como elementos confluentes e intercomplementares (p. 25), pois conforme já havia indicado Jonas, em The phenomenon of life (p. 250), a filosofia existencialista — com seu “gnosticismo moderno” — produziu uma separação abissal entre o homem e a natureza. Para Oliveira, as duas formas de niilismo representam o modus operandi da cultura ocidental, segundo o qual a civilização cresce em sentido proporcionalmente contrário à natureza. Coadunando, assim, com a análise de Jonas quando afirma que essa separação chegou ao ponto em que “nunca uma filosofia preocupou-se tão pouco com a natureza quanto o existencialismo, para quem ela não conservou nenhuma dignidade” (PV, p.250), a obra Negação e Poder elucida com a acuidade peculiar do autor, como a natureza, na modernidade, foi destituída de qualquer dignidade quanto a fins e valores e transformada em um grande laboratório de experimentações. Desse modo, na medida em que a perda da dignidade humana ocorre como desligamento do homem em relação à natureza, ou seja, um erro avaliativo sobre o seu próprio lugar no âmbito da vida, tal situação “leva-nos mais uma vez de volta ao dualismo entre ser humano e physis, como fundo metafísico da situação niilista” (PV, p.251).

Negação e Poder está metodologicamente estruturada em cinco partes, sendo que cada novo capítulo representa, segundo o próprio autor, “um incremento aprofundado da abertura teórica anterior” (p. 30). No primeiro, Oliveira demonstra que Jonas, embora parta de suas próprias perspectivas teóricas acerca do niilismo, retoma o conceito a partir de Nietzsche e Heidegger, sobretudo na sua associação ao diagnóstico de decadência e declínio da civilização ocidental (p. 34), processo que culminará com a ruptura entre homem e o mundo. Mais do que isso, na concepção do mundo como um lugar inóspito e a natureza como um corpo morto, o que faz com que a ciência moderna se apoie em uma “ontologia da morte” (PV, p.30) e o homem defina-se enquanto ser, negando seu pertencimento ao âmbito da vida. Oliveira demonstra, no primeiro capítulo, que há um fio condutor na obra de Jonas em torno do tema do niilismo que pode ser organizada em três eixos temporais e temáticos (p. 125-126): a dimensão cósmica-gnóstica com seus estudos acerca da natureza, a dimensão onto-antropológica com seus estudos acerca do homem e a dimensão ética com seus estudos acerca da tecnologia. Em cada dimensão há em comum o diagnóstico de um dualismo latente. O niilismo, derivado desse dualismo, torna-se uma rejeição do mundo físico, que, pela via da ciência moderna, trouxe um afã de exploração humana da res extensa tida como inerte, sem preocupação e responsabilidade, sendo essa também a marca da ciência e da tecnologia moderna, as quais, legitimadas pela filosofia existencialista, compreendem o mundo pela vida da indiferença.

Oliveira finaliza o primeiro capítulo demonstrando que, embora Jonas tenha recebido influências de Nietzsche e Heidegger acerca da análise do niilismo, ele possui uma formulação própria do problema, ligada à atitude de negação do mundo na forma da hostilidade, da indiferença ou da exploração tecnológica. Em seguida, no segundo capítulo, o autor aborda três Formas do niilismo, sendo eles o niilismo cósmico, compreendido como negação do mundo; o niilismo antropológico, isto é, a negação da “imagem” do homem ou da própria ideia do que seja o homem propriamente dito; e o niilismo ético, amparado no diagnóstico do niilismo técnico, que deixou a humanidade sem um critério moral capaz de orientar a técnica. A técnica, nesse contexto, promove muitos êxitos, mas, desamparada eticamente, não é capaz de “julgar a sua eficácia do ponto de vista do bem da espécie”, apresentado por Oliveira como uma nova versão da ideia de “bem comum”, posto que ampliado para o âmbito extra-humano (p. 247).

O tema do terceiro capítulo é justamente O niilismo da técnica, que teria como característica a “desumanização e a desominização na forma de um acosmismo” (p. 260) e tratado por Oliveira a partir de quatro aspectos que demonstram como a técnica se apresenta em sua forma niilista: a sua dinâmica formal, a sua “vontade de ilimitado poder”, a ignorância dos fins e dos valores e a utopia do progresso. Esses quatro aspectos evidenciam, como produto da utopia tecnológica, a negação do caráter autêntico da humanidade atual em função de uma nova humanidade, culminando com uma “natureza desnaturalizada e um homem desumanizado” (p. 340). Dessa forma, o capítulo cumpre o objetivo de demonstrar os resíduos niilistas da técnica, movida por uma dinâmica própria e impulsionada por uma perspectiva utópica.

No quarto capítulo, denominado O transumanismo é um niilismo, Oliveira apresenta o transumanismo como último reduto das utopias e herdeiro do niilismo por três razões (p. 341): partem de uma “neutralização da imagem de homem” (SDD, 120); [2] que o ser humano, tal como ele foi até agora, permaneceu preso aos limites impostos pela natureza, portanto, a natureza ou mesmo a condição humana devem ser superadas para que o homem seja melhor no futuro — trata-se ainda de uma “ontologia do ‘ainda não’”; [3] a tecnologia ofereceria a possibilidade de melhoramento, mas sua ação permanece sempre atirada a si mesma, dado que lhe falta uma imagem ou modelo e mesmo um objetivo claro capaz de orientar o seu fazer. Embora Jonas não utilize o termo transumanismo, Oliveira elucida que sua reflexão inaugura a possibilidade de uma análise desse fenômeno, principalmente a partir da atividade reconfiguradora da biotecnologia, eis que o chamado movimento transumanista coloca-se no cerne no debate a respeito da reconfiguração do ser humano (e da vida em geral), posto que pretende corrigir e alterar (melhorar) a performance e obter total controle sobre a natureza, mesmo diante da ausência de um modelo (ou mesmo de objetivos claros) para tal. O quarto capítulo é finalizado demonstrando que as promessas do transumanismo, de prolongamento da vida ou cura da morte, acabam assumindo ares religiosos, na medida em que um dos pontos centrais da religião sempre foi a promessa da imortalidade.

No quinto e último capítulo, Oliveira detalhará que “ao pensar o niilismo como marca principal da história ocidental” (p. 395), a proposta de Jonas se apresenta, portanto, tanto como um diagnóstico de suas consequências, quanto como uma tentativa de formulação de três perspectivas esboçadas por Hans Jonas para o Enfrentamento do niilismo, sendo elas: a articulação de uma nova ontologia, uma nova antropologia e uma nova proposta ética baseada na responsabilidade. Sua ontologia é constituída a partir de uma compreensão biológicofilosófica do fenômeno da vida, o que seria uma nova interpretação do fenômeno da vida, por meio de um monismo de terceira via, ou de um monismo integral. A partir de tal ontologia, Oliveira explana como Jonas, embora não tenha desenvolvido uma nova antropologia, aponta para essa perspectiva a partir de um religamento do homem com a natureza/mundo/cosmos. Por fim, a terceira forma apresentada para o enfrentamento do niilismo está constituída em sua proposta ética, que é baseada na responsabilidade e seu fundamento é declaradamente metafísico, uma vez que se apoia em uma nova formulação para a pergunta sobre o Ser. Nesse sentido, o princípio responsabilidade nasce tanto de uma nova visão a respeito do homem (uma nova antropologia), quanto de uma nova perspectiva a respeito dos seus poderes tecnológicos, sendo que o princípio ético fundamental, do qual o preceito extrai sua validade, é o seguinte: “a existência ou a essência do homem, em sua totalidade, nunca podem ser transformadas em apostas do agir” (PR, p.86).

O Epílogo, por sua vez, resgata, na forma ensaística, um personagem tornado central por Camus na interpretação existencialista da condição humana. Diferente de Camus, o interesse de Oliveira é pelo Sísifo que ergue a pedra. “O que me interessa em Sísifo não é a sua tomada de consciência sobre o absurdo, mas o fato de que, diante da falta de sentido, ele continue trabalhando” (p. 473). Sísifo serve de fonte mítica para a interpretação do tecnologismo, que revela a condição existencial de nossa era, que da mesma forma, ao fazer, deixa de pensar e sem pensar, “seu fazer é redundante, sem finalidade, fechado no ato presente e, por isso, irresponsável diante do futuro” (p. 473). A condição de Sísifo serve de metáfora para a moderna tecnologia, na qual a atividade se torna obrigação por excelência, e, nesse caso, serve como uma espécie de conclusão do livro, na qual Oliveira, mais do que analisar o niilismo e seu desdobramentos, apresenta uma tarefa à filosofia: encontrar meios de contribuir para construir uma convivência que minimize as suas consequências. Aqueles que se interessam pela obra de Jonas certamente encontrarão neste livro um valioso subsídio para o melhor entendimento desse autor, pois se trata de um texto criterioso e original. Jelson Oliveira sempre desenvolveu intensa e extensa publicação de cunho filosófico, com grande dedicação à pesquisa. Essa é sua 31ª obra publicada. Se a quantidade impressiona, é a egrégia qualidade de sua pesquisa e maturidade de seu texto que lhe proporcionam respeito e reconhecimento junto à comunidade da área. Negação e Poder, sem a menor dúvida, posiciona o autor, no cenário nacional e internacional, entre o rol de experts dos estudos jonasianos.

Nota

1 Expressão utilizada por Michael Hauskeller, professor da Universidade de Liverpool, no prefácio (p. 15) da obra Negação e Poder.

Geovani Viola – Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curitiba, PR, Brasil. Doutor em Filosofia. E-mail: geovani.moretto@pucpr.br

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[DR]

 

Metafísica e ética. A filosofia da pessoa em Lima Vaz como resposta ao niilismo contemporâneo – OLIVEIRA (V)

OLIVEIRA, C. M. R. Metafísica e ética. A filosofia da pessoa em Lima Vaz como resposta ao niilismo contemporâneo. Coleção Estudos Vazianos. São Paulo: Loyola, 2013. 295p. Resenha de: RIBEIRO, Elton Vitoriano. Veritas, Porto Alegre, v. 63, n. 2, p. 814-818, maio-ago. 2018.

O livro Metafísica e ética de Cláudia Oliveira, professora de metafísica da FAJE, é fruto de seu doutorado em filosofia na Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma, Itália). Segundo a própria autora, este livro quer explicitar num grande panorama o percurso de Lima Vaz, na intenção de ser “uma introdução à sua proposta de reler a metafísica de Tomás de Aquino à luz da dialética platônico-hegeliana” (OLIVEIRA,2013,p.22). Este panorama, desenhado pela autora tem dois núcleos de atração, a metafísica e a ética na modernidade. Modernidade que Lima Vaz esforçou-se por compreender seus projetos, caminhos, descaminhos, conquistas e desilusões (OLIVEIRA,2013,p.25). Neste esforço, Lima Vaz fez em sua obra uma grande rememoração percorrendo toda a história da filosofia para pensar filosoficamente a existência humana num mundo. Mundo contemporâneo em contínua, rápida e variada transformação.

A pergunta inicial que guia a autora, em sua reflexão é muito interessante. Lima Vaz, em seu pensamento, distanciando-se da filosofia pós-metafísica, no livro “Introdução à ética filosófica 2” afirma: não há ética sem metafísica. A partir daí a autora se pergunta: existe uma relação necessária entre metafísica e ética? Nos termos da autora: “Se, por um lado, para Lima Vaz não há ética sem metafísica, por outro lado, é possívelafirmar que para ele exista metafísica sem ética?” (OLIVEIRA,2013,p.12). Aqui está, em germe, desenhado todo o percurso do livro que vai se desdobrando e encontrando dificuldades a ser analisadas. A primeira é a seguinte: o que Lima Vaz entende por metafísica? A pergunta pela ética, outro núcleo importante da reflexão foi respondida por Lima Vaz em vários livros e artigos, especialmente nos dois volumes de “Introdução á ética filosófica“. Mas, por outro lado, Lima Vaz nunca escreveu um livro de metafísica. Daí podemos perceber o valor da investigação da autora em resgatar a questão metafísica presente no pensamento de Lima Vaz. Ou, filosoficamente, resgatar a compreensão de Lima Vaz desta experiência de abertura ilimitada ao horizonte transcendente, fundamento e origem de toda experiência que o ser humano faz do próprio ser e do próprio agir.

Segundo a autora, Lima Vaz entende a metafísica num duplo sentido: um estrito e outro amplo (OLIVEIRA,2013,p.13). Em sentido estrito, a metafísica é o discurso que explicita diretamente a experiência do Uno. Em sentido amplo, é todo percurso que parte do múltiplo e se dirige ao Uno. Ora, Lima Vaz inspirado em Tomás de Aquino “estabelece a relação necessária entre a ética entendida como ontologia do agir humano e a metafísica entendida tanto em sentido estrito como em sentido amplo” (OLIVEIRA,2013,p.14). É esta relação que a autora busca elucidar. A elucidação tem como pano de fundo duas questões fundamentais sempre presentes no pensamento de Lima Vaz: (1) o problema do sentido da existência e (2) a pergunta a respeito da orientação ética para as ações humanas.

Este percurso elucidativo da autora, acerca do pensamento de Lima Vaz, tem como horizonte de realização a modernidade e a pós-modernidade. Na modernidade o desafio ao pensamento metafísico se configura na primazia da racionalidade técnico-científica e da exacerbação da subjetividade. Na pós-modernidade, o desafio é o avanço do niilismo ético e metafísico que questiona constantemente todas as tentativas de reflexão e ação. Assim, diante disso, a proposta de Lima Vaz é fazer memória do ser a partir de uma releitura dialética da metafísica de Tomás de Aquino. Didaticamente, a autora divide sua investigação em duas partes com três capítulos cada.

A primeira parte tem por título “Um percurso filosófico: ponto de partida, método e opção teórica”. Nela a autora identifica algumas questões importantes que acompanham a reflexão filosófica de Lima Vaz.

Pensar a existência e o agir humanos a partir da situação história é uma delas. A outra é pensar esta problemática a partir da abertura ilimitada ao horizonte transhistórico da Verdade e do Bem. Por isso, o primeiro desafio da autora é pensar a “Modernidade e o Niilismo” (capítulo 1). Neste capítulo, a reflexão caminha na direção de elucidar a interpretação da modernidade de Lima Vaz. Surge um enigma, o enigma da modernidade que tem que enfrentar a racionalidade moderna e a autonomia da razão técnico-científica, que se apresentam como desafios para o nosso tempo. Diante destes desafios o método filosófico de Lima Vaz é o “Método dialético” (capítulo 2). Segundo a autora, para Lima Vaz a dialética é um caminho de reflexão que parte de aporias concretas. Como método, Lima Vaz é devedor da filosofia de Platão e Hegel. Cada um destes filósofos, analisados pela autora em suas reflexões acerca da dialética filosófica em seus contextos, influencia Lima Vaz. Assim, Lima Vaz constrói seu próprio método buscando também, refletindo sobre os dualismos presentes na história, a unidade de sentido tão importante para a filosofia. Finalmente, no terceiro capítulo, a autora busca explicitar a reconstrução que Lima Vaz faz da metafísica tomista. “A opção por Tomás de Aquino” (capítulo 3) faz este trabalho importante de reler os textos sobre Tomás de Aquino; textos escritos por Lima Vaz e publicados ao longo de sua carreira filosófica. Reler e interpretá-los ajudando o leitor a compreender a importância fundamental da metafísica de Tomás de Aquino no pensamento de Lima Vaz.

Na segunda parte do livro o foco é a “Filosofia realista da pessoa” de Lima Vaz. Segundo a autora, a filosofia da pessoa de Lima Vaz é uma via alternativa ao niilismo pós-moderno, analisado na primeira parte, o qual Lima Vaz se apresenta como um crítico feroz. Esta filosofia da pessoa vaziana se apresenta como uma proposta de releitura dialética da metafísica de Tomás de Aquino inspirada na estrutura triádica da filosofia do espírito de Hegel (OLIVEIRA,2013,p.17). Ora, sendo aristotélico-tomista, esta filosofia tem um tríplice nivelamento: a pessoa humana, a pessoa moral e a pessoa absoluta. “A Pessoa Humana” (capítulo 4) deve ser interpretada filosoficamente a partir da experiência que cada um de nós faz do próprio ser. Nossa experiência, para Lima Vaz, acontece numa síntese dinâmica entre essência e existência. Nesta síntese, a pergunta fundamental que guia a busca de sentido à vida humana é: quem sou eu? Pergunta inalienável e fundamental para o ser humano e que guia também toda reflexão filosófica. Na busca de uma resposta o ser humano se descobre como ser em ato porque “aquilo que ele é por essência deve tornar-se na existência concreta” (OLIVEIRA,2013,p.18). Assim, neste percurso de indagação o ser humano se descobre como um ser paradoxal, um ser histórico. Mas, também, como não poderia ser diferente para a filosofia de Lima Vaz, um ser aberto ao horizonte transcendental da verdade. Os outros dois capítulos são, evidentemente, desdobramentos deste primeiro. “A Pessoa Moral” (capítulo 5) reflete sobre a pessoa a partir da famosa pergunta aristotélica, apropriada por Lima Vaz em sua filosofia: como convém viver? Pergunta ética por excelência ela quer apontar para a busca de significação da pessoa humana como pessoa moral. Pessoa moral que aponta, segundo Lima Vaz, contra muitas correntes filosóficas contemporâneas, para “A Pessoal Absoluta” (capítulo 6). Este sexto capítulo é o mais exigente na leitura, e para bem apreciá-lo em toda a sua potência é exigido profundos conhecimentos de metafísica, especialmente, metafísica tomista. Neste capítulo, no qual a autora demonstra seus profundos e articulados conhecimentos de metafísica, o caminho é lento e, por vezes, penoso. Diga-se de passagem, como deve ser todo caminho profundamente filosófico. A autora faz dialogar com Lima Vaz, para ajudar o leitor na compressão desta “experiência metafísica do ser absoluto que se constitui como condição de possibilidade da experiência do nosso ser como unidade dinâmica de essência e existência” (OLIVEIRA,2013,p.18), autores como J. B. Lotz (Transzendentale Erfahrung), J. Marechal (Le point de départ de la métaphysique) e J. De Finance (Existence et liberte), entre outros. Neste capítulo, Tomás de Aquino, Hegel e Heidegger são referências constantes na elucidação da experiência metafísica do Absoluto seja pela “via compositionis ou descensos“, seja pela “via resolutionis ou ascensus“. Neste percurso a autora conclui que “ao seguir o personalismo cristão, Lima Vaz também defende que o Absoluto real, afirmando em sua pessoalidade, constitui-se como fundamento último da pessoa humana. A experiência metafísica remete, pois, à experiência religiosa da Pessoa Humana” (OLIVEIRA,2013,p.270). Concluindo, para a autora “a experiência ontológica que fazemos do nosso próprio ser e agir nos remete à experiência metafísica como experiência do fundamento” (OLIVEIRA,2013,p.270).

A conclusão final da autora é de que “toda a filosofia de Lima Vaz deve, pois, ser interpretada a partir do seguinte pressuposto fundamental: ele era um cristão e sua filosofia é uma filosofia cristã. Ela nasce da experiência profunda da abertura radical ao transcendente e pretende ser tematização discursiva dessa experiência radical como resposta ao enigma de um tempo histórico” (OLIVEIRA,2013,p.273). No caso o nosso tempo histórico, onde somos convidados a responder a pergunta fundamental pelo sentido. Pergunta que nos coloca diante da realidade história, diante das aporias do pensamento, diante de nossa própria existência com os outros no mundo. Neste percurso, que parte da experiência ôntica, rumo às experiências ontológica, metafísica e religiosa; somos também nós, convencidos pela filosofia de Lima Vaz que existe uma “íntima ligação não apenas entre ética e metafísica, mas também entre metafísica e ética” (OLIVEIRA,2013,p.279). Portanto, temos aqui uma excelente reflexão filosófica que merece ser lida por todos os que se ocupam com o labor filosófico de alta qualidade em nosso país.

Elton Vitoriano Ribeiro – Professor de Filosofia – FAJE: Faculdade Jesuíta. E-mail: eltonvitoriano@gmail.com

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Schopenhauer, niilismo e redenção – RODRIGUES (V-RIF)

RODRIGUES, Eli Vagner Francisco. Schopenhauer, niilismo e redenção. Campinas: Editora Phi, 2017. Resenha de: SOUZA, Cláudia Franco. Voluntas – Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v. 8, n.1, p.211-214, 2017.

A partir do século XIX o niilismo se torna um tema central da historia da filosofia. Nietzsche ocupa certamente um lugar de destaque no panorama desta tema tica, principalmente devido ao aforismo 125 da Gaia Ciência, em que o filosofo anuncia que Deus está morto. O livro Schopenhauer, niilismo e redenção apresenta uma nova perspectiva de leitura da questão do niilismo na obra de Schopenhauer, mostrando a profundidade deste tema no pensamento filosófico do pensador em questão, que dialoga proximamente com a crise da razão.

Ao mesmo tempo em que o autor Eli Vagner Francisco Rodrigues utiliza as interpretações do pensamento de Schopenhauer realizadas tanto por Nietzsche quanto por Heidegger, o pesquisador mostra também os limites destas interpretações, como fica claro na seguinte passagem do seu livro:

A tentativa de identificar aspectos da filosofia de Schopenhauer com algumas características apontadas por Nietzsche e Heidegger em suas análises do niilismo se mostra, ao meu ver, produtiva para a compreensão da natureza do pensamento schopenhaueriano. Muitas vezes, porém, as análises de Nietzsche e Heidegger levam a ambiguidades que podem comprometer este trabalho (p. 105).

Salientar os limites da interpretação da filosofia schopenhaueriana que e feita tanto por Nietzsche quanto por Heidegger e de suma importância porque acentua a independência e a relevância da potencia do pensamento filosófico de Schopenhauer, que ocupa um lugar de especial importância na Historia da Filosofia no que toca a questão do niilismo, como esclarece o pesquisador Eli Rodrigues.

Um outro aspecto metodológico importante presente no livro em questão e a utilização do trabalho da Professora Maria Lu cia Cacciola para esclarecer pontos centrais da filosofia de Schopenhauer, como a questão do nada (p. 97). A perspectiva de leitura de Maria Lu cia Cacciola aparece em outros trechos do livro, revelando a importância e a profundidade da pesquisa sobre Schopenhauer que e realizada no Brasil.

Ao longo dos quatro capítulos que compõem o livro Schopenhauer, niilismo e redenção, o Professor Eli Rodrigues vai mostrando como a questão do niilismo encontra-se presente na filosofia de Schopenhauer ainda que este termo na o apareça na obra do filosofo, como esclarece a seguinte passagem, logo no início do primeiro capítulo:

Antes de ocupar-se das considerações sobre a origem do termo “niilismo” ou da derivação “niilista” é necessário esclarecer que os mesmos não aparecem em nenhum momento na obra de Schopenhauer. As considerações metafísicas, estéticas e éticas do filósofo enceram sem dúvida, posições niilistas em relação ao mundo, como aqui é defendido (p. 45).

Ao tratar das origens do niilismo, Eli Rodrigues destaca o aparecimento deste termo tanto na literatura, como aponta Franco Volpi, ao ressaltar a utilização do termo no romance Pais e Filhos de autoria de Turgueniev, quanto na filosofia ao comentar a carta escrita por Jacobi endereçada a Fichte, onde aparece o problema filosófico da “desvalorização dos valores supremos” (p. 47).

O autor de Schopenhauer, niilismo e redenção mostra que no livro Niilismo, de Franco Volpi, a obra filosófica de Schopenhauer na o ocupa o devido lugar:

O aspecto que se mostra pouco explorado na obra de Volpi é o da influência da filosofia de Schopenhauer no contexto da efervescência das ideias niilistas. O autor aponta a importância da reflexão schopenhaueriana como inspiração do enfoque nietzschiano sobre o tema, porém dá maior importância ao desenvolvimento efetuado por Nietzsche do que propriamente à análise da influência (p. 54).

Neste sentido, o livro de Eli Rodrigues acaba por preencher esse espaço vazio deixado por Volpi no que toca a importância da filosofia de Schopenhauer em relação ao tema do niilismo, tornando-se uma leitura imprescindível para todos os estudiosos que pretendem se debruçar sobre esse tema.

Ao tratar da metafísica da vontade e do niilismo no segundo capítulo, o pesquisador Eli Rodrigues mostra como a questão do nada ocupa um lugar de destaque na filosofia de Schopenhauer, como podemos ler neste trecho:

histórica para a humanidade contraria radicalmente a concepção que Schopenhauer tem do mundo. O mundo para o filósofo, não oculta uma ordenação originária de uma inteligência e nem encontra na razão um ponto de partida ou um fundamento para uma possível ordenação que possa estabelecer um sentido de “justificação” para a existência da natureza e dos seres vivos, racionais ou não. A teologia, as teodiceias e as filosofias tributárias de uma justificação da totalidade se opõem radicalmente à concepção de Schopenhauer (p. 88).

Eli Rodrigues mostra que a filosofia pessimista, e ate irracionalista e sombria para alguns interpretes mais radicais do pensamento de Schopenhauer, se constitui como um polo essencial na historia da filosofia no que tange a problema tica do niilismo. E através de suas reflexo es, o autor brasileiro revela quão debitaria e a filosofia de Nietzsche do seu mestre da juventude que foi Schopenhauer.

Ainda no segundo capítulo, ha a discussão sobre a metafísica da vontade e a e tica da compaixão. A e tica, ao ocupar um lugar de destaque na filosofia de Schopenhauer, e a ascese como caminho para a libertação, representaria o desprendimento da vontade (pp. 96-97). E o homem liberto da vontade e um homem de frente para o nada. A posição niilista seria, neste sentido, um caminho para a redenção (p. 97).

Nos dois últimos capítulos do livro, o autor Eli Rodrigues mostra as relações de Nietzsche com o niilismo schopenhaueriano. Todas as reflexo es desenvolvidas ao longo destas paginas são relevantes se considerarmos que o maior discípulo de Schopenhauer foi Nietzsche, e, frente a grandiosidade de Nietzsche, ha o risco de se interpretar a filosofia de Schopenhauer sob a perspectiva nietzschiana. Nestes dois capítulos, fica clara a diferença entre a filosofia, de certo modo niilista de Schopenhauer, e a interpretação nietzschiana do pensamento schopenhaueriano.

Para além destes aspectos, no terceiro capítulo Eli Rodrigues estabelece a relação entre a e tica e a teoria da arte schopenhaueriana, como podemos ler na seguinte passagem:

A ética de Schopenhauer está ligada à sua teoria da arte. Para o filósofo, a contemplação estética tem dois elementos inseparáveis: o conhecimento do objeto considerado, – não como coisa particular, mas como exemplar da ideia platônica, isto é, como forma permanente de uma espécie -, e a consciência do puro sujeito do conhecimento, sem a vontade (p. 113).

O pesquisador brasileiro desenvolve toda uma reflexa o entre sujeito do conhecimento e abandono do princípio da razão, revelando que o artista, de acordo com a visa o de Schopenhauer, se ocuparia da essência do mundo, desconectado do princípio da razão (p. 114).

No ultimo capítulo encontra-se uma importante discussão sobre a questão do suicídio a partir da filosofia de Schopenhauer. O suicida ainda estaria preso a s teias da vontade, segundo o filosofo em questão (p. 138) e, então, o suicídio na o se relacionaria de modo algum com a redenção, que só poderia ser alcançada por meio da ascese, que por sua vez, como sabemos, ocupa um lugar muito próprio nessa filosofia.

O livro Schopenhauer, niilismo e redenção e uma leitura incontornável para todos aqueles que desejam conhecer mais sobre a filosofia schopenhaueriana, mas também para os pesquisadores inclinados ao aprofundamento dos debates em torno da questão do niilismo. Trata-se de uma obra solida, bem estruturada e uma importante referencia para os estudos sobre Schopenhauer e o niilismo.

Cláudia Franco Souza – Pós-doutoranda em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Bolsista FAPESP. E-mail: claudiasouzzza@hotmail.com

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