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Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida – NIETZSCHE (CN)
NIETZSCHE, Friedrich. Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida. Tradução de André Luís Mota Itaparica, São Paulo: Hedra, 2017. Resenha de: JULIÃO, José Nicolao. Cadernos Nietzsche, São Paulo, v.38 n.2 maio/ago. 2017.
O ensaio de Nietzsche Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben apareceu ao grande público, em fevereiro de 1874, como a segunda parte de uma ambiciosa obra intitulada Unzeitgemässe Betrachtungen, cuja primeira parte, David Strauss der Bekenner und der Schriftsteller, publicada no ano anterior, havia feito grande sucesso de vendagem, exigindo uma segunda edição, no mesmo ano de sua publicação, sobretudo devido à polêmica matéria enfurecida que o periódico Grenzboten, em sua edição de outubro de 1873 (ano 32, 2º semestre, 2º volume, p. 104-110), com o título “Herr Nietzsche und die deutsche Cultur”, havia lançado contra ela. A mesma audiência, contudo, não alcançou de imediato a segunda das Extemporâneas, retumbando sobre ela um sonoro silêncio1, para depois tornar-se uma das mais conhecidas obras de seu autor e talvez umas das mais influentes no âmbito das Ciências Humanas. Herbert Schnädelbach considera esse ensaio de Nietzsche como o primeiro documento crítico ao Historicismo alemão2; Karl Schlechta diz o seguinte sobre o tratado: “Nele, o ‘Historicismo’ toma consciência dele mesmo de forma assustadora: o diagnóstico do autor foi tão sombrio que foi necessário familiarizar-se com esse estado de risco doentio”3. O filólogo Karl Reinhardt considerou que o Historicismo foi tão depreciado que fica difícil que se possa achar ainda algo a dizer contra ele4. Fora o impacto crítico ou devido a ele, como chama atenção o tradutor André Itaparica, na sua aguda introdução à sua cautelosa tradução, há também o destaque que o ensaio ganhou em obras já consagradas sobre a filosofia de Nietzsche, como nos livros de Karl Jaspers (Nietzsche, Einführung in das Verständnis seines Philosophierens – 1946) e Walter Kaufmann (Nietzsche: Philosopher, Psychologist, Antichrist – 1956), podemos adicionar a essa lista, entre aqueles que reconhecem o valor da Segunda Extemporânea e já se tornaram consagrados, Müller-Lauter (Nietzsche, Seine Philosophie der Gegensätze und die Gegensätze seiner Philosophie – 1971) e Michel Foucault (“Nietzsche, Freud, Marx” – 1967 – e “Nietzsche, la genealogie, l’histoire” – 1971). Itaparica menciona ainda o seminário ministrado por Heidegger, no semestre de inverno de 1938-39, dedicado à Extemporânea II (publicado no volume 46, da edição crítica: Zur Auslegung von Nietzsches II. Unzeitgemässer Betrachtung. In: Martin Heidegger Gesamtausgabe (HG. 46), Frankfurt: Vittorio Klostermann, 2005) para dar visibilidade à dimensão da projeção e fecundidade do texto nietzschiano. Neste assunto, nós nos deteremos um pouco mais para estabelecermos um contraponto à nossa compreensão do texto traduzido impecavelmente por André Itaparica.
No seminário, Heidegger retoma e desenvolve teses já apresentadas, incipientemente, em 1927, no parágrafo 76 de Ser e Tempo, intitulado Der existenziale Ursprung der Historie aus der Geschichtlichkeit des Dasein, nas quais ele mostra a partir de Nietzsche que o homem é essencialmente histórico, entretanto, cabe saber até que ponto a história é útil ou prejudicial à vida, tema central, que deve ser compreendido, como a experiência da vida humana, que só pode ser pensada no interior de uma cultura. No que concerne ao seminário, Heidegger, já na introdução, previne que a concepção ampla e ambígua do projeto lhe garante certa liberdade interpretativa, propondo, em seguida, uma divisão do estudo em três partes: “Grosso modo, o trabalho que nos propomos contém três partes: 1. Introdução à formação conceitual filosófica, 2. mas isto, como leitura e interpretação para um tratado definitivo e, consequentemente, 3. na abordagem da filosofia de Nietzsche.”5 Ele também deixa claro de imediato que não escolheu Nietzsche por moda, mas porque ele foi “o último pensador da história da filosofia ocidental, isto é, da metafísica: pensar o seu pensamento é, ao mesmo tempo, levar a filosofia ocidental em suas linhas básicas ao primeiro patamar do saber”6. Heidegger, embora não se expresse de forma tão clara na escolha da Segunda Extemporânea como tema para o seminário, no entanto, ele sugere que o trabalho lhe apresenta uma oportunidade especial para ilustrar a posição de Nietzsche na história da metafísica. A análise do tratado, para ele, tampouco se limita a uma mera interpretação, mas fornece uma justificação permanente para compreensão da posição de Nietzsche dentro da totalidade da tradição filosófica. O Filósofo da Floresta Negra procede, todavia, em conformidade, no decorrer do seminário, estabelecendo uma diferença entre a consideração científica e pensamento filosófico, ou seja, entre a conceituação científica e filosófica na orientação da análise do conceito de “vida” em Nietzsche. Desse modo, a interpretação é guiada pela hipótese de que “vida” é a leitwort da Segunda Extemporânea, assim como de toda a filosofia de Nietzsche7. Mas, segundo o autor de Ser e Tempo, o conceito de “vida” é ambíguo em Nietzsche, pois significa o ser em sua totalidade e o modo de ser do ser particular, cuja vida é a humana. O ser compreendido como o ser humano, como em toda a tradição filosófica, a metafísica não é superada, porém ratificada. Para Heidegger, o homem continua sendo um animal racional: a única novidade é a ênfase dada à corporalidade, mas que, para ele, não é suficiente para se ir além de Descartes. A concepção do sujeito como ego vivo8 é a justificação como o mais alto representante da vida e da verdade como um erro necessário da vida, que Heidegger atribui a Nietzsche, contudo é válido apenas como conclusão da metafísica moderna, ou como uma (possível) transição para outro começo, mas não como um (real) outro começo9, e é por isso que ele afirma: “A principal questão sobre a Segunda Consideração Extemporânea de Nietzsche não é a desvantagem ou a utilidade da história, mas a compreensão da vida como a realidade básica no sentido de uma biologia cultural ”10. Para ele, Nietzsche não consegue a superação da metafísica nem uma investigação detalhada da história, porque ele não pensou a história da História, isto é, a essência do homem, e a sua relação com a verdade do ser.
Na nossa compreensão, a interpretação esquemática de Heidegger, tão entusiasmadamente defendida pelos heideggerianos, para analisar a história da filosofia a partir da sua Seinsgeschichte, reduzindo-a à história da metafísica, não é satisfatória para a análise da Segunda Extemporânea. Atualmente, na Nietzscheforschung, a interpretação dominante desse ensaio tende a arrefecer justamente a carga metafísica do texto nietzschiano, tão enfatizada por Heidegger, mesmo que ainda sobre ele reverbere teses metafísicas da obra inaugural. Em o Nascimento da Tragédia, Nietzsche havia se posicionado radicalmente crítico em relação à infecundidade criativa do que então chamou de metafísica racional, caracterizada pela crença otimista na capacidade da razão em alcançar um conhecimento objetivo que consolaria o ser humano da sua condição de finitude e fraqueza, e, como alternativa, defendeu também uma “metafísica de artista” em que valoriza os efeitos ilusórios e criativos da arte como forma superior de compreensão do mundo. A repercussão da crítica à metafísica racional na Segunda Extemporânea recai sobre o tratamento caudal científico da historiografia como um rebento moderno da racionalização humana. Portanto, o diagnóstico de que os males da cultura se devem à hipertrofia do sentido histórico apresentado nesse tratado depende da tese peculiar do Nascimento da Tragédia, segundo a qual há na modernidade uma hipertrofia dos impulsos cognitivos que impossibilita uma cultura realmente autêntica e elevada. Por isso, para Nietzsche, os interesses teóricos predominaram sobre quaisquer outros interesses, produzindo, consequentemente, um desequilíbrio vital que ele, em oposição, apresentou como superior o caráter criativo e ilusório da arte. É nesse sentido que ele propõe, na segunda de suas Extemporâneas, uma escrita da história como recriação artística do passado, que pode ser compreendida como a “força plástica”, como alternativa à tendência racionalista, predominante na historiografia alemã de sua época, sem, contudo, recorrer à própria metafísica, como fez na obra inaugural. Argumentando a respeito de como seria possível medir até que ponto é salutar lembrar e em que momento é vital esquecer, Nietzsche descreve o conceito de força plástica, diz ele:
A fim de determinar esse grau e, por meio dele, o limite do que deve ser esquecido, para que o passado não se torne o coveiro do presente, se deveria saber exatamente quão grande é a força plástica de um homem, de um povo, de uma cultura, quero dizer, aquela força que cresce a partir de si mesma, transformando e incorporando o passado e o estranho, curando feridas, restabelecendo o perdido, reconstituindo por si mesma formas arruinadas (HL/Co. Ext. II, KSA 1.251).
Portanto, como capacidade de assimilação e resignação em relação ao passado como perda e alteridade, a força plástica habilita a memória a lembrar e esquecer, na exata medida, sem sobrecarregar-se de lembranças.
Nietzsche está, portanto, na busca de um saber filosófico que não seja nem filosofia da história nem história universal tal como já havia rejeitado Burckhardt nas primeiras linhas de suas Considerações sobre história universal:
Nós nos abstraímos de toda sistemática; não revindicamos nenhuma “ideia de história universal”, contentaremos em registrar nossas percepções e realizar uma série de cortes transversais ao longo da história na maior quantidade possível de direções; nós não oferecemos aqui nenhuma filosofia da história. Esta é um centauro, uma contradictio in adjecto, pois a história que coordena é a negação da filosofia, enquanto a filosofia que subordina é a negação da história.11
Ele busca uma base a partir da qual seja possível um saber que vincule a orientação à ação, pois nem a metafísica e nem a ciência – compreendida como ciência histórica -, podem mais oferecer tal nexo.
A tradução que André Itaparica apresenta de Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida, recém-publicada pela editora paulista Hedra, ao público de língua portuguesa, sem querer desmerecer as outras, que são meritórias em diversos aspectos, é a mais completa e bem sucedida tradução desse tratado de Nietzsche que nos permitirá um grande avanço, renovando as pesquisas, possibilitando outras compreensões que nos desamarrem das antigas e viciadas interpretações. Elaborada com acribia, a tradução soluciona alguns problemas sintáticos que dificultavam a compreensão semântica de diversas passagens, consolida também o estabelecimento de alguns termos chaves, como, por exemplo, o mais emblemático, Unzeitgemässe, como extemporâneas que era frequentemente traduzido, nas traduções anteriores, como intempestivas e, ainda, nos oferece um grande número de notas esclarecedoras. Sabemos que toda tradução é uma atividade árdua e desgastante, nem sempre reconhecida quando acertada e bastante criticada toda vez que mal executada. A princípio, para traduzir um texto não basta simplesmente transferir as palavras de uma língua para outra, tem de ter a capacidade de interpretar o significado de um texto em uma língua e a produção de outro texto em outra língua, mas que exprima o texto original da forma mais exata possível na língua de destino, mesmo que recaia sobre o tradutor a já repetida, ad nauseam, máxima italiana, em forma de jogo de palavras, que diz “traduttore, traditore” (“tradutor, traidor”), pois todo tradutor teria de trair o texto original para conseguir reescrevê-lo na língua desejada. Entretanto, pode-se garantir que, em se tratando de texto filosófico, a traição ocorrerá a partir do instante em que as ideias do autor do texto original forem distorcidas ou contrariadas no texto traduzido, ou seja, se ao comparar o nível e compreensão dos leitores das duas línguas for observado que há divergência quanto à compreensão das ideias. Nesse sentido, Itaparica não é traditore – como muito em voga, em todos os âmbitos da nossa cultura -, mas um traduttore e isto ocorre devido ser ele um conhecedor das duas línguas em jogo na tradução, o alemão e o português, além de ser um estudioso da filosofia de Nietzsche e, no caso específico do texto traduzido, eu diria, um perito, bastante familiarizado com os termos e temas nietzschianos ali expostos.
1Karl Hillebrand, ex-secretário de Heine, quem Nietzsche cita em EH (Cf. EH/EH. As Extemporâneas, 1, KSA 6. 318), devido a sua resenha favorável à Extemporânea I, publicada no Allegemeine Zeitung Augsburg, número 256-266, setembro de 1873, p. 256-266, publicou, depois, comentários às três primeiras Extemporâneas, na coletânea Zeiten, Völker und Mennschen. Strassburg, 1892, mas escrito em 1874-5. Nada indica que Nietzsche tenha conhecido o teor dos comentários à segunda e à terceira das suas Extemporâneas.
2Cf. Filosofía en Alemania (1831-1933). Trad. Española. Madrid: Ediciones Cátedras, 1991, p. 81.
3Cf. Der Fall Nietzsche: Aufsätze und Vorträge. 2. Auflage. München : Hanser, 1959, p. 44. (“Nietzsches verhältnis zur Historie”).
4Cf. Von Werken und Formen. Godesberg, 1948, p.432,
5HGA 46, 3.
6Cf. HGA 46, 6.
7Cf. HGA 46, 108
8Cf. HGA 46, 142 ss.
9Este seminário é contemporâneo à elaboração da obra Beiträgen zur Philosophie (Vom Ereignis), entre 1936 e 1938, e que só foi publicada postumamente, na qual Heidegger propõe a transição de Ser e Tempo para um “outro começo”, expressão muito utilizada por ele na época.
10HGA 46, 255.
11Cf. Weltgeschichtliche Betrachtungen. 2. Ausgabe. Berlin/Stuttgart: Verlag W. Spmann, 1910, p. 2. Embora, a primeira edição dessa obra seja 1905, trata-se das Vorlesungen de 1870-1871, ministradas em Basel e que Nietzsche havia assistido.
José Nicolao Julião – Professor titular da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil, Brasil. Pesquisador 2 do CNPq. E-mail: jnjnicolao@gmail.com
Introdução à Tragédia de Sófocles – NIETZSCHE (C-FA)
NIETZSCHE, Friedrich. Introdução à Tragédia de Sófocles. Tradução de Marcos Sinésio Pereira Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 2014. Resenha de: SOUZA, Ronaldo Tadeu de Souza. A Estrutura Filológica da Tragédia Grega: a propósito da “ Introdução à tragédia de Sófocles ”de Nietzsche. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, v.21, n.2 jul./dez., 2016.
Karl Marx escreveu um dos pontos mais significativos de sua Introdução para a crítica da economia política que:
a dificuldade não está em compreender que a arte grega e a epopéia estão ligadas a certas formas do desenvolvimento social. A dificuldade reside no fato de nos proporcionarem ainda prazer estético e de terem ainda para nós, em certos aspectos, o valor de normas e de modelos inacessíveis (Marx, [1857] 1974, p.131).
É certo que devemos aceitar na sua completude a afirmação de Marx acerca do “prazer estético” que a arte grega nos oferece ainda em nossos dias, mas é certo também que devemos nos esforçar para negar Marx ao dizer-nos que a arte grega porta “modelos inacessíveis”. A questão aqui envolve a possibilidade ou não de compreendermos aquela que talvez tenha sido a principal expressão artística do mundo grego antigo, a saber: a tragédia. Quanto mais compreensíveis forem as obras de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes, mais estaremos em condições de acessarmos o estatuto da cultura grega clássica para a história das sociedades humanas.
Introdução à tragédia de Sófocles, de Nietzsche, recentemente publicado pela editora Martins Fontes (fim de 2014 / início de 2015), nos apresenta esta possibilidade. Assim, quais são os pontos a serem destacados no escrito introdutório de Nietzsche sobre o drama antigo? Uma observação inicial que é preciso ser feita sobre Introdução à tragédia de Sófocles é a respeito da edição do livro. É um trabalho cioso e esmerado que a erudição de Marcos Sinésio Pereira Fernandes e André Luis Muniz Garcia apresenta aos leitores brasileiros – sobretudo na organização das notas explicativas que percorrem todo o texto de Nietzsche. André Luiz Muniz Garcia, referindo-se ao seu companheiro de tradução e preparação do texto, diz que o trabalho de Marcos Sinésio “é resultado de (…) profundo trabalho de tradução, mas também de pesquisa filosófica e filológica” (Garcia, [Apresentação] 2014, p.XV) que o erudito da Universidade Federal do Maranhão oferece ao nosso público. Em tempo de especialização e profissionalização empobrecedora da universidade, Marcos Sinésio desejou ofertar “tradução e comentários [que] chegassem às mãos não apenas do público acadêmico, mas, principalmente, do leitor não especializado, daquele [não iniciado em] pensamentoschave de nossa cultura” (idem, ibidem). Ao estilo de Fichte: a erudição, aqui, serve à humanidade 1.
Se o esforço de Marcos Sinésio Pereira Fernandes e de André Luis Muniz Garcia foi o de empreender rigorosa pesquisa filológica na tradução de Introdução à tragédia de Sófocles, é porque o próprio estudo de Nietzsche emoldura-se pela filologia. Assim, mais do que um estudo introdutório sobre o sentido da tragédia no mundo grego antigo, e, mais especificamente, sobre a obra de Sófocles, o trabalho de Nietzsche nos apresenta a estruturação filológica da arte trágica. Resultado de um curso proferido por Nietzsche na Universidade da Basileia em 1870, Introdução à tragédia de Sófocles é composta por 20 lições nas quais o filósofo alemão expõe detalhadamente cada composição estética e narrativa que forma a estrutura filológica da tragédia na Grécia clássica. Ao longo das lições, Nietzsche analisa a configuração de significados que a tragédia procura representar na cultura grega antiga. Esta é uma das virtudes do estudo: posicionar os lineamentos narrativos de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes com os momentos constitutivos do mundo da Grécia clássica. É claro que Nietzsche não faz trabalho de historiador arranjando linearmente os trágicos nos pontos mais sensíveis e de maior relevância daquela sociedade. Com efeito, a arte esquiliana, sofocleana e euripideana são perscrutadas como documentos literários que expressam as tensões sobre o sentido da vida e da existência de toda uma civilização. Não é ocasional e de menor importância o fato de Nietzsche iniciar seu curso comparando “a antiga forma da tragédia [com] a moderna” (Nietzsche, 2014, p.3), pois, para esta última, Édipo Rei “é pura e simplesmente uma má tragédia, porque nela a antinomia entre destino absoluto e culpa fica insolúvel” (idem, ibidem). O núcleo substantivo da tragédia antiga na leitura de Nietzsche é a oposição de ânimos que conformam o significado estético da narrativa; vale dizer, é aquilo sobre o que o homem grego procurou se equilibrar: “o sentimento de triunfo do homem justo, comedido e isento de paixão” (idem, p.5) com o “instinto [ hybris ] (…), o enigma no destino do indivíduo, a culpa sem consciência, o sofrimento imerecido [e] sua musa trágica [que leva à] idealidade da infelicidade” (idem, pp.7-8). É este núcleo que Nietzsche procura emoldurar com a estrutura filológica de suas lições. Quais são os aspectos mais significativos destas lições que compõem a Introdução à tragédia de Sófocles ?
Se hoje nós compreendemos todas as artes dramáticas como artes da visibilidade, do ver a performance de grupo de indivíduos inseridos em espaços construídos especialmente para isto, na sua origem a arte dramática, que emerge da tragédia grega, é a arte do ouvir. É a arte da palavra que se apresenta como característica primeva de Ésquilo, Sófocles e Eurípides. Assim, a “intuição íntima através da palavra induzindo à fantasia é o que vem primeiro, a visibilidade do quadro da fantasia na ação é algo mais tardio” (Nietzsche, 2014, p.10). Podemos perceber, deste modo, que um dos esforços de Nietzsche em seu curso é entender a tragédia antiga como símbolo do humor: da disposição de ânimo que tensiona a existência dos homens. Não é mero exercício de retórica a afirmação de Nietzsche acerca do fato de que a beleza da lírica, seus componentes filológicos sublimes, seja também a “expressão da dor diante da desarmonia entre mundo desejado e o real” (idem, ibidem). Ele procurou representar em suas lições sobre Sófocles na Basileia o sentimento existencial da cultura grega antiga. Mas vamos acompanhar o estudo introdutório nietzschiano um pouco mais nesta abordagem sobre a tragédia como arte do ânimo musicalizado.
O significado da tragédia concernente à linguagem da cultura grega surpreende àqueles educados na estética do idealismo pós-kantiano – aqui é o belo, a formação mesma da educação sentimental pela beleza que estrutura o entendimento da arte 2 ; em Nietzsche, é a filologia do instinto que deve ser compreendida na tragédia como um dos documentos constitutivos da cultura dos gregos. O que estes enfrentavam, e que a arte de Ésquilo, Sófocles e Eurípides procurou dramatizar pela lírica musical, era o sentir da vida como “elemento (…) perigoso (…) dos poderes mais perigosos da natureza” (Nietzsche, 2014, p.13) que fornece o suporte necessário para os gregos entenderem e, também apreciarem, que a transcendência se faz igualmente na existência terrificante (idem, ibidem). Diz Nietzsche:
Culpa e destino são apenas tais meios, (…) tais [ mekhanaí ]: o grego queria absoluta fuga para fora desse mundo da culpa e do mundo do destino: sua tragédia não consolava, algo como um mundo após a morte. Mas, momentaneamente, abriu-se ao grego a intuição de uma ordem das coisas inteiramente transfigurada (…) os atenienses fizeram isso abertamente quando não coroaram o Oedipus rex : eles ouviram tão somente os golpes de timbale, o selvagem circulozinho das Mênades, mas queriam também que Sófocles lhes dissesse que tinha visto Dioniso. O velho Sófocles exprimiu-se em Édipo em Colono (como Eurípides nas Bacantes ) sobre o elemento libertador-do-mundo da tragédia: Eurípides, com uma espécie de palinódia, na medida em que se deixou despedaçar como Penteu, como o sensato e racionalista opositor do culto de Dioniso (Nietzsche, 2014, pp.13-4).
Mas Nietzsche ainda insiste na musicalidade como elemento distintivo da tragédia grega. Esta é uma das contribuições de Introdução à tragédia de Sófocles para o entendimento desta arte tão particular – e da cultura que organizava o universo simbólico e filológico da Grécia antiga. Com efeito, “a tragédia [nasceu] da lírica musical das Dionisíacas” (idem, p.21), de sorte a estabelecer os lineamentos sentimentais de toda a subjetividade do povo grego. A tragédia como arte dionisíaca despertava nos populares um profundo sentimento de embriaguez musical possibilitando aos que a ouvissem a percepção plácida da transcendência. Importa dizer acerca das lições de Nietzsche sobre Ésquilo, Sófocles e Eurípides o caráter inteiramente popular da tragédia. Assim, a extensão da linguagem da lírica dramática “abrange a vida social” (idem, p.23) dos Gregos. E a “música popular subjetiva (…), a poesia popular da massa, nas fascinantes e demoníacas Dionisíacas (…), [a] impetuosa lírica das massas” (idem, p.24) irrompia na cena cultural como expressão do ímpeto de ânimo do homem grego na existência. Não foi fortuito que no “predomínio da reflexão e do socratismo, começa uma degeneração do dionisíaco na tragédia” 3 (idem, p.27).
Na sequência de seu curso na Universidade da Basileia, Nietzsche estuda com seus alunos (e nos oferece) dois elementos fundamentais na estrutura filológica da tragédia: “a construção do drama” e o “coro”. No que consiste a construção do drama na tragédia antiga? Pode-se dizer que, para a Introdução à tragédia de Sófocles, o edifício estético posto de pé por Sófocles e seus iguais objetivava à realização de “um ato” (idem, p.32); isto é, o drama grego potencializava o “ pathos [da] cena” (idem, ibidem), de modo que a construção daquele tinha como exigência a figuração do ato mesmo no curso da temporalidade existencial de quem a assistisse. Isto fica mais claro quando Nietzsche propõe em suas lições uma comparação entre a construção do drama moderno de Shakespeare e a tragédia de Ésquilo e Sófocles. O encadeamento da sequência no drama shakespeariano foi forjado para intensificar o movimento da fantasia; o que significa dizer que a linguagem da “tragédia” moderna necessitava para sua melhor exploração artística de espaço adequado no qual aquela pudesse ser representada. Por isso a configuração da cena “contém um palco mais elevado e menor; diante dele, degraus; ao lado, pilares; em cima, um balcão cujas escadas descem até o proscênio” (Nietzsche, 2014, p.33). Esta construção tensionava a fantasia (idem, p.34) de quem a assistisse como fatura do jogo entre o “palco” e seus “degraus”, entre as “escadas” e o “proscênio”, a “pausa” temporal (obrigando à atividade da fantasia) e os personagens que surgem dos “pilares” – é que tudo no drama de Shakespeare era para ser visto e depois imaginado. Em Ésquilo e Sófocles, a construção do drama buscava outros fins: aquela fantasia impulsionada pelas imagens “o grego não conhecia em sua tragédia” (idem, ibidem). Era a interiorização do pathos musical que o drama antigo objetivava; o que importava era (e é) o “ Tá apóskenês ” 4, o a partir da cena… Daí que a construção do drama antigo e, sobretudo, o sofocleano, estruturou-se pela disposição filológica do coro. De sorte que o efeito do cântico na tragédia conformava o “antagonismo” entre “o espectador idealizado (…) representante dos pontos de vista gerais” (idem, ibidem) e o coro dramáticolírico enquanto tal. Diz Nietzsche a esse respeito:
as canções do coro tinham que assumir um pathos interior: para não tornar a representação do coro inconsequente. Eurípides conduzia com consciência o coro em regiões sentimentais mais brandas e empregava também uma música mais suave em correspondência (…) Em Ésquilo e Sófocles, há por vezes incongruência entre o coro dos grandes cantica e os dos diálogos. A situação dos cantica é deslocada (…) o coro e a música coral já são (…) [ hedýsmata ] (Nietzsche, 2014, pp.34-5).
Assim, é no coro que podemos encontrar o real sentido da tragédia como documento cultural do mundo grego antigo. Nietzsche deixa entrever isto nos quatro pontos que estruturam a articulação interna da linguagem do coro. Ele, então, afirma que os pesquisadores devem atentar para os seguintes elementos: (1) o coro representa a construção filológica do novo momento do mundo antigo, ele é a expressão artística da apropriação pelo povo sensível dos negócios do palácio, ou seja, é como se o ânimo musical dos deuses se voltasse agora para o peito dos homens (Nietzsche, 2014, p.41) na intervenção do coro na estrutura da tragédia; (2) pode-se dizer com isto que com o coro a tragédia adquire aspectos reflexivos acerca dos conflitos da vida e do pensamento, de modo que a “liberdade lírica [com] todo o poder sensível do ritmo e da música” (idem, ibidem) presente no coro conduz à ação refletida, mas com “força poética” (idem, ibidem); (3) isto, inevitavelmente, de acordo com Nietzsche, faz do coro na arquitetura filológico-narrativa da tragédia o ponto de inflexão entre a simples exposição organizada de diálogos existenciais e a grandeza trágica; (4) quer dizer, o coro é a possibilidade de alcançar a exuberância dos afetos, é a capacidade que a arte de Ésquilo, Sófocles e Eurípides tem de transformar o “ânimo do espectador” (idem, ibidem) em um ensaio para a liberdade de e na ação existencial. Com efeito, “o coro é o idealizante da tragédia: sem ele, temos uma imitação naturalística da realidade [n]a tragédia, sem coro, (…) os homens falam e andam” (idem, p.42).
Nietzsche chega assim ao fim de sua Introdução à tragédia de Sófocles, e nós, deste breve ensaio. As leituras e hipóteses dele se voltam agora diretamente para a obra de Sófocles – o ponto mais elevado da tragédia antiga. Como Nietzsche procede aqui? A comparação no espaço mesmo da tragédia grega foi o procedimento utilizado por ele: o que Nietzsche pretende com isto é ressaltar os elementos distintivos das peças sofocleanas. Sendo a tragédia de Sófocles o ápice da arte dramática antiga, ela se posiciona a meio caminho entre o puro instinto esquiliano e a construção racionalizada – a destruição do instinto – de Eurípides. De sorte que em Sófocles “o pensamento é acrescido”, só que aqui “o pensamento está em harmonia com o instinto” (Nietzsche, 2014, p.63). Mas é na estruturação filológica que Sófocles se põe em patamar superior ao do drama de Ésquilo e Eurípedes. Assim, a obra do autor de Édipo Rei preconiza não certas unilateralidades que atravessam as peças de Ésquilo e de Eurípides, sobretudo acerca da interpretação (e utilização) da forma e do pensamento na fatura da tragédia – a grandeza artística de Sófocles foi dada pela unidade da forma com o pensamento, da fusão tensa e motivada pelo existencial e seu significado na cultura grega entre a feição exterior (a disposição enquanto tal das partes constitutivas da tragédia) e os momentos de reflexão do ser pela linguagem do drama (a irrupção decisiva, de acordo com Nietzsche, do coro…). A ocorrência deste posicionamento superior de Sófocles em face a Ésquilo e Eurípides se dá porque ele “ressuscita o ponto de vista do povo” (idem, p.68). Enquanto a tragédia esquiliana é épica e a euripideana socrática, o drama antigo em Sófocles representa a massa trágica, “o enigma na vida do homem”, quer dizer, o sentido da tragédia sofocleana é a transformação do sofrimento humano em algo “santificante” e virtuoso – é a busca do entendimento de que, uma vez o povo lançado na existência incerta e incomensurável, o sentido da vida frente ao destino, “o abismo infinito” (idem, ibidem), não resulta em culpa passiva, mas na musicalidade lírica da humanidade heroica. Terminemos com as próprias lições de Nietzsche:
agora, sabemos certamente que Sófocles no primeiro período imitava Ésquilo (…) A tragédia de Eurípides é a medida do pensamento ético-político-estético daquele tempo: em oposição ao instintivo desenvolvimento da arte mais antiga, que, com Sófocles nele, chega ao seu fim. Sófocles é a figura de transição; o pensamento movese ainda no caminho do impulso [ Trieb ], por isso ele é continuador de Ésquilo (…) [Pois] Sófocles havia comprimido a reflexão no coro, para purificar o poema dramático, (…) [para] distribuir felicidade e infelicidade [a]os povos, ou [a] humanidade [e as] pessoas individuais (Nietzsche, 2014, pp.74,76,79).
Por isso Sócrates não preferiu esta construção e estruturação filológica sofocleana. Sócrates como sábio de si mesmo e dos poucos: ele “assiste à tragédia de Eurípides.Sócrates o mais sábio junto com Eurípides” (idem, ibidem) preferiu a arte racionalizada e filosófica. É que com Eurípides, ao contrário de Sófocles, o autor trágico de Nietzsche por excelência, que a tragédia deixa de ser elemento “bombástico” (idem, p.80) na cultura grega antiga e passa a ser componente da ordem filosofante. Resta-nos aqui investigarmos (talvez na trilha de Marx), em que medida esta disputa trágicofilológica entre Ésquilo, Sófocles e Eurípides ainda guarda beleza – e possibilidade de deleite e reflexão de nossa existência. Introdução à tragédia de Sófocles ora recebido pela nossa cultura pode ser a primeira lição sobre isto.
Notas
1 Sobre a relação entre a erudição (e os eruditos) e a humanidade, ver: Fichte, 2014.
2 Ver sobre o idealismo alemão e a arte: Werle, 2005 e Videira, 2009.
3 Gostaria de chamar a atenção do leitor para as páginas 27, 28, 29, 30 e 31 do livro que ora estamos estudando. As passagens que constam nestas páginas são de importância seminal para a compreensão ofertada por Nietzsche sobre a relação da arte trágica antiga com os cidadãos atenienses – entendendo estes como os populares da cidade.
4 Ver nota 79 em que consta a tradução da expressão e seu significado filosófico e filológico
Referências
FICHTE, J. G. (2014).O Destino do Erudito. São Paulo: Hedra.
MARX, K. (1974). Introdução à Crítica da Economia Política. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural.
Nietzsche, F. (2014). Introdução à Tragédia de Sófocles. São Paulo: Martins Fontes.
Videira, M. (2009). Resenha de Arte e Filosofia no Idealismo Alemão, organizado por Marco Aurélio Werle e Pedro Fernandes Galé. São Paulo: Barcarolla, 2009.Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, 14, pp.147-151
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Ronaldo Tadeu de Souza – Universidade de São Paulo. ronaldolais@yahoo.com.br