A história nos filmes, os filmes na história – ROSENSTONE (HH)

ROSENSTONE, Robert A. A história nos filmes, os filmes na história. Tradução Marcello Lino. São Paulo: Paz e Terra, 2010, 262 p. Resenha de: NICOLAZZI, Fernando. Algumas reflexões sobre história e cinema. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 6, p.190-198, março 2011.

A afirmação de que o cinema mantém com o real uma relação, ao mesmo tempo, direta e complexa parece não demandar um esforço argumentativo mais detalhado, mesmo que as características de tal relação não sejam por si só evidentes. Desde que, em 1895, Louis e Auguste Lumière realizaram, no Salon Indien do Grand Café, em Paris, as primeiras exibições públicas de filmes de que se têm notícia, o cinema incorporou para si a função de se constituir como uma forma discursiva, entre tantas outras já existentes, ocupada em representar dimensões variadas da realidade. As cenas filmadas pelos irmãos franceses, na estação de La Ciotat (L’arrivée d’un train en gare à La Ciotat, 1895), exibidas em 1836, apareceram, aos olhos dos espectadores parisienses do final do século XIX, como a reapresentação concreta do movimento da locomotiva, a ponto de, segundo consta, o público correr surpreendido, imaginando que o trem encontrava-se, de fato, a sua frente.

Entre todas as instâncias possíveis do real de que se tem ocupado o cinema desde os seus primórdios, o passado constitui-se, para os historiadores, como uma das mais constantes e mais ricas em consequências. Como indicou Robert A. Rosenstone, em A história nos filmes, os filmes na história, já na primeira década do século XX, foram realizados filmes cujo enredo passavase em algum lugar do passado, para citar o título (traduzido) de um filme que, embora não tenha sido mencionado por Rosenstone, trabalha com a ideia que lhe é cara: a de se experimentar, novamente, os tempos de outrora, desde que cumpridas algumas regras fundamentais, dentre as quais, o desapego a todo e a qualquer vestígio da contemporaneidade (Somewhere in time, 1980).

Com base nessa constatação, a intenção declarada do historiador, que vem, há algum tempo, se dedicando à reflexão sobre a relação do cinema com a prática historiográfica – tendo publicado Visions of the past: the challenge of film to our idea of history, em 1998 –, é “entender como o cinema apresenta o mundo do passado” (ROSENSTONE, 2010, p.13). Mais do que isso, o livro, elaborado para a série didática History: concepts, theories and practice, da editora inglesa Pearson Education, traz a indagação sobre as formas pelas quais os historiadores, acostumados com o discurso escrito, podem oferecer uma compreensão renovada do mundo histórico através da experiência cinematográfica.

A primeira dificuldade, salientada pelo autor, de forma irônica, é, justamente, o fato de os historiadores, para falarem sobre cinema, não conseguirem encontrar outra forma senão a linguagem escrita. O capítulo inicial da obra começa, exatamente, com essa provocação: “isso não deveria ser um livro. São necessárias mais do que palavras impressas em uma página para entender como o cinema apresenta o mundo do passado” (ROSENSTONE, 2010, p. 13). No entanto, eis aqui um livro sobre a visão histórica do cinema.

Eis aqui, também, um desafio para os historiadores, uma vez que a história, nos livros, e a história, no cinema, apesar de manter algumas semelhanças importantes, constituem-se como dois meios, radicalmente, diferentes para a representação do passado. No caso das semelhanças, elas se consistem, no entendimento do autor, no fato de que as duas modalidades discursivas “referemse a acontecimentos, momentos e movimentos reais do passado e, ao mesmo tempo, compartilham do irreal e do ficcional, pois ambos são compostos por conjuntos de convenções que desenvolvemos para falar de onde nós, seres humanos, viemos” (ROSENSTONE, 2010, p. 14). Já para as profundas divergências entre escrita e filme, o autor ampara-se em uma perspectiva conhecida, desde meados do século XX, que considera que o meio tem implicações profundas na informação transmitida ou, para falar como um dos estudiosos que subsidiam a abordagem de Rosenstone, “o brilhante teórico Hayden White” (ROSENSTONE, 2010, p. 16), em suas palavras, que a forma e o conteúdo devem ser encarados de modo concomitante, no limite, a primeira determinando, fortemente, o segundo. Ou seja, a trasposição do livro para o filme implica, por si mesma, uma mudança considerável, “pois mudar a mídia da história significa mudar igualmente a sua mensagem” (ROSENSTONE, 2010, p. 19).

Para dar conta dessa complexa relação entre história e cinema, o professor de história do California Institute of Technology oferece aos leitores dez capítulos nos quais são contempladas dimensões variadas de tal relação, além de um “guia de leituras essenciais”, ao final do volume, para aqueles leitores dispostos a se enveredarem por estes caminhos. O primeiro deles, A história nos filmes, insere o leitor na discussão, ao mesmo tempo em que demonstra a pretensão do autor, qual seja, a de sugerir que a história pode e deve ser representada por outras modalidades discursivas e mesmo por outros meios (medium), além da forma escrita canônica. Nas suas palavras, trata-se de “quebrar uma prática antiga que passou a ser considerada imutável – a noção de que um passado verídico só pode ser contado por palavras impressas em uma página” (ROSENSTONE, 2010, p. 19). Através de um breve registro biográfico, no qual Rosenstone indica como e quando começou a se interessar pelo tema, ele salienta o impacto que o conhecimento da obra de teóricos como Hayden White e Frank Ankersmit teve na sua forma de compreender a prática historiográfica. Ambos ofereceram ao autor a noção de que todo discurso que toma o passado como objeto é, por natureza, um discurso metafórico. Ou seja, que ele não pode ser nunca uma representação transparente do real, mas que funciona por meio de uma inovação semântica na qual a linguagem tem um papel constituinte importante. Nesse sentido, os filmes constituem-se, para ele, como modalidades legítimas de discurso sobre o passado. Assim, afirma que alguns cineastas podem, inclusive, ser considerados como historiadores.

O segundo capítulo, intitulado Ver o passado, trata, de forma mais direta, do problema analisado pelo autor, ou seja, o das particularidades da representação histórica realizada nos filmes. Rosenstone sugere que os avanços tecnológicos ocorridos, no cinema, ao longo do século XX, não afetaram, decisivamente, a qualidade histórica, isto é, a historicidade dos ditos “filmes históricos”. Além disso, oferece três categorias através das quais é possível perceber diferenças na forma pela qual o passado é tratado em imagens cinematográficas: o “longa-metragem dramático”, o “documentário” e, por fim, o “filme histórico inovador ou de oposição”. Cada uma dessas categorias é tratada nos três capítulos subsequentes.

Na continuação do capítulo, o autor realiza uma espécie de retrospecto das produções dos historiadores voltadas para as relações entre cinema e história. Dentre todas, é dado destaque para o livro Slaves on screen (2000), da historiadora Natalie Zemon Davis, autora de The return of Martin Guerre (1ª. edição em inglês 1983), cuja história também serviu de base para o filme francês Le retour of Martin Guerre (1982), de Daniel Vigne, no qual a própria autora trabalhou como consultora durante a pesquisa para a elaboração de seu livro. Na obra discutida por Rosenstone, Davis procurou refletir sobre as diferentes maneiras pelas quais a experiência histórica da escravidão, desde o mundo antigo até os contextos coloniais modernos, foi representada pelo cinema. Embora reconheça a importância e a relevância dessa perspectiva, toda a crítica à abordagem da autora, que ressalta, em diversos filmes, o descompasso entre a representação e a realidade histórica representada, reside no fato de que, para Rosenstone, ela se baseia em uma cultura livresca para a avaliação das obras de cinema. Assim, o historiador sustenta que “às vezes, parece que a sua [de Davis] resposta às deficiências dos filmes seria torná-los mais parecidos com livros – ou pelo menos fazer com que eles seguissem mais de perto as regras da história tradicional” (ROSENSTONE, 2010, p. 53).

Nesse sentido, à reivindicação da historiadora para que “os filmes históricos [deixem] que o passado seja o passado” (ROSENSTONE, 2010, p. 53), o autor contrapõe o seu pleito: “deixe que os filmes históricos sejam filmes” (ROSENSTONE, 2010, p. 53). Para ele, portanto, é preciso encontrar outras formas de avaliação dos filmes históricos, que não seja as mesmas utilizadas para o que considera como a história tradicional da academia.

Em Drama comercial, terceiro capítulo do livro, Rosenstone aborda a primeira das categorias, anteriormente, mencionadas: os filmes de caráter, declaradamente, mercadológico e de maior apelo ao público. Novamente aqui, evidencia-se a necessidade do estabelecimento de padrões próprios para se julgar o caráter histórico de um filme. O autor menciona uma série de críticas elaboradas por historiadores a esse tipo específico de filmografia, salientando suas próprias divergências com relação a elas, sobretudo à forma como as obras cinematográficas são ali encaradas. Então, faz um questionamento: “ao avaliarmos filmes históricos, é fácil criticar o que vemos. Mas pergunte o que esperamos que um filme seja ou faça e, basicamente, nós, historiadores, não sabemos o que responder. Só insistimos que o filme deve aderir ‘aos fatos’” (ROSENSTONE, 2010, p. 59). No seu entendimento, “a nossa reação básica é pensar que um filme na verdade é um livro transposto para a tela, o que significa que ele deveria fazer a mesma coisa que esperamos de um livro: acertar os fatos” (ROSENSTONE, 2010, p. 60). Entretanto, o objeto “filme histórico” não se presta apenas a isso, uma vez que trata-se de um drama, uma interpretação, uma obra que encena e constrói um passado em imagens e sons. O poder da história na tela emana das qualidades singulares da mídia, da sua capacidade de comunicar algo não apenas de maneira literal (como se alguma comunicação histórica fosse totalmente literal) e realista (como se pudéssemos definir realisticamente o realismo), mas também, nas palavras de [Gerda] Lerner, de ‘maneira poética e metafórica’ (ROSENSTONE, 2010, p. 60).

Para Rosenstone, é preciso levar em consideração que os filmes históricos são formas particulares e “tentativas sérias de dar sentido ao passado” (ROSENSTONE, 2010, p. 62). Daí sua demanda, que atravessa todo o seu livro: “está na hora de parar de esperar que os filmes façam o que (na nossa imaginação) os livros fazem” (ROSENSTONE, 2010, p. 62). Por exemplo, mesmo que as duas mídias discutidas possam ser consideradas como formas metafóricas de representação do real, os mecanismos ficcionais dos filmes são distintos daqueles encontrados nos livros. No cinema, segundo o autor, é possível trabalhar fatos históricos por meio de “compressão ou condensação” (quando muitos eventos passam a se concentrar em apenas um), “deslocamentos” cronológicos (como consequência direta da condensação), “alterações” (atribuição de sentidos que, talvez, não fossem condizentes com o fato representado), além da “invenção de diálogos e personagens” (ROSENSTONE, 2010, p. 64) não existentes, de forma a auxiliar na construção do significado histórico mais geral do filme. Para Rosenstone, este é o ponto mais fundamental da questão. Ou seja, a aderência ao real não é nem deve ser o critério primordial para a avaliação do papel do cinema diante da história. Segundo o autor, são tais elementos fictícios “que criam a contribuição do filme histórico, que reside exatamente no nível do argumento e da metáfora, especialmente quando há uma interação com o discurso histórico mais amplo” (ROSENSTONE, 2010, p.65). Dessa maneira, “o filme estabelece uma relação, um reflexo, um comentário e/ou uma crítica com o corpo já existente de dados, argumentos e debates sobre o tópico em questão” (ROSENSTONE, 2010, p. 65).

No capítulo seguinte, Drama inovador, o autor analisa o que ele define, de forma discutível, como “filme histórico experimental ou inovador”. Trata-se, de modo geral, de filmes com uma abordagem considerada, politicamente, crítica pelo historiador. Através da análise do filme Outubro (1927), realizado pelo cineasta russo Sergei Eisenstein, e da sua comparação com cinco relatos escritos, entre 1919 e 1996, sobre os eventos da revolução de outubro na Rússia, Rosenstone busca testar as afirmações e os procedimentos sugeridos, nos capítulos anteriores, e, sobretudo, pensar de que forma o filme histórico “ao mesmo tempo estabelece uma relação e acrescenta algo ao discurso histórico do qual nasce e ao qual necessariamente se refere” (ROSENSTONE, 2010, p. 82). Dessa maneira, defende que, mais do que registrar fatos tal como eles, efetivamente, aconteceram, o filme de Eisenstein transmite significados que dizem respeito à “importância dos acontecimentos sociais e políticos em Petrogrado no outono de 1917” (ROSENSTONE, 2010, p. 105), situando-o no entremeio que separa, segundo Aristóteles, a poesia da história. Outubro é, na concepção de Rosenstone, a conjunção, na tela, entre o que aconteceu e o que poderia ter acontecido.

No quinto capítulo, intitulado Documentário, é, justamente, esse formato cinematográfico que, no senso comum, mais se aproxima do trabalho dos historiadores, o que é examinado. Filmes tais como Le chagrin et la pitiè (1969), de Marcel Ophüls, e o polêmico filme-testemunho de Claude Lanzmann, Shoah (1985), entram nessa categoria. Contudo, novamente, o autor estabelece um recorte mais específico para suas reflexões. No caso, o tópico escolhido é a guerra civil espanhola tal como foi registrada em alguns filmes. A tese de Rosenstone, que não é nenhuma novidade, é a de que mesmo essa modalidade fílmica, cuja definição pode conduzir ao equívoco de se tomá-la como simples documento do real (e acaso algum documento é, de fato, simples?), não se constitui como registro mais ou menos verdadeiro da história, mas sim emerge como apenas outra forma, elaborada segundo critérios diversos, de discurso sobre fatos do passado. Todo documentário oferece uma argumentação sobre o real, pautada por escolhas que são, conscientemente, determinadas. O valor de crença que é possível imputar aos documentários, no limite, não é mais forte do que, por exemplo, aquele voltado para os chamados “dramas comerciais”. Em última instância, compete ao espectador acatar ou não o argumento oferecido pelos autores de filmes documentários.

No sexto capítulo, Contando vidas, o autor trata do gênero das cinebiografias, argumentando, entre outras coisas, que essa é uma modalidade em que, à semelhança das biografias escritas, a presença do fictício manifestase de forma clara e contundente. Para ele, a ficção imposta por um enredo, o uso criativo dos fatos, a tradução necessária para tornar a vida compreensível e interessante – todos esses elementos que fazem parte da escrita biográfica tradicional (e do romance histórico) também marcam a cinebiografia (no qual parte da tradução envolve o uso da mídia visual e do som) (ROSENSTONE, 2010, p. 139).

Novamente, aqui, para tratar do tema mais geral escolhido, um recorte preciso é efetivado. Rosenstone analisa três longas-metragens que trataram da vida de John Reed, escritor norte-americano autor de The ten days that shook the world (1919), escrito com base no seu próprio testemunho da revolução bolchevique. Os filmes são Reed, México insurgente (1973), do mexicano Paul Leduc, Krasnye Kolokola (1982), do diretor soviético Sergei Bondarchuk, e Reds (1981), dirigido por Warren Beatty. O próprio autor esclarece os motivos da escolha desse tema. Além de ter escrito uma biografia sobre o personagem (Romantic revolutionary: a biography of John Reed, 1975), atuou, durante oito anos, como consultor histórico para a produção de Warren Beatty.

Coerente com todos os pressupostos salientados ao longo do livro, Rosenstone sugere, nessa análise, que “as cinebiografias, como todas as obras que lidam com o passado, são entidades com significados instáveis que mudam ao longo dos anos, obras que são interpretadas e entendidas de acordo com plateias e indivíduos específicos” (ROSENSTONE, 2010, p. 162). Em seguida, no capítulo Cineasta/historiador, Robert Rosenstone chega ao ponto que talvez incomode mais seus pares da academia, pois defende a ideia de que um cineasta pode ser, legitimamente, encarado como um historiador.

Dessa vez, é a obra cinematográfica de Oliver Stone ou, pelo menos, a parte histórica dela que lhe serve como objeto para sua discussão. A escolha devese ao fato de que, para o autor, “nenhum cineasta americano nos últimos cinquenta anos esteve mais obcecado por questões históricas ou gerou mais polêmica pública do que o diretor Oliver Stone” (ROSENSTONE, 2010, p. 166).

Relacionada a essa consideração, que torna o cineasta um objeto privilegiado para a reflexão, está a ideia de que, tomando sua obra como história, fruto de uma prática, propriamente, historiográfica, é possível oferecer uma definição ampliada do que pode ser considerado o gênero histórico. Para Rosenstone, alguns dos cineastas que se interessam pelo passado têm o mérito de o tornar significativo por três razões inter-relacionadas: seus filmes permitem visualizar, contestar e revisar a história.

No caso de Oliver Stone, filmes como Platoon (1986), Born on the fourth of july (1989), JFK (1991), Nixon (1995), entre outros, ocasionaram fortes discussões na história recente dos Estados Unidos. Entretanto, é justamente a forma dos cineastas narrarem os fatos históricos o que chama a atenção de Rosenstone, como quando, talvez com um impressionismo exagerado, considera que “Stone sempre parte para a jugular, usando todos os efeitos à sua disposição para intensificar a experiência da plateia, como que para se certificar de que você sentirá tanto quanto os personagens a dor (há pouca alegria em seus filmes) da história” (ROSENSTONE, 2010, p. 187). Muito desse tipo de formulação pode ser encarado como eco das ideias de Frank Ankersmit apresentadas no livro Sublime historical experience (2005) ainda que o título não faça parte da bibliografia trabalhada por Rosenstone. Ankersmit sugere, por meio de uma reflexão que não deixa de ser polêmica, a possibilidade da experiência efetiva de um mundo de outrora, efetivamente passado. A posição de Rosenstone em relação ao cinema parece ser, exatamente, esta: o filme permite estabelecer com a história uma relação talvez mais intensa do que aquela propiciada apenas pela leitura das palavras impressas no papel.

Dando continuidade a essa ideia, ao indagar “que tipo de mundo histórico um filme dramático propõe?” (ROSENSTONE, 2010, p. 197) o autor inicia o oitavo capítulo, Interagindo com o discurso. O tema escolhido não deixa de ser problemático, pois diz respeito aos filmes que tratam do holocausto. Após discutir alguns desses filmes, pautado na concepção defendida ao longo do livro, de que o passado é sempre mais ou menos “violado” (o termo é do autor) sempre que se procura representá-lo, não importando os recursos discursivos, Rosenstone afirma que a polêmica em torno das representações oferecidas, nos filmes analisados (ou da leitura que ele faz delas), deve-se ao fato de que “eles fazem isso explorando as grandes potencialidades de sua mídia – dando-nos a ilusão de que, por um curto período, testemunhamos, ou até mesmo vivenciamos, os problemas, iras, medos, alegrias e dores de outras vidas ambientadas em outras épocas” (ROSENSTONE, 2010, p. 223). Talvez, a noção de que se possa, de fato, vivenciar experiências traumáticas como a do holocausto, através dos recursos oferecidos pelo cinema, fira a sensibilidade daqueles que consideram esse tipo de experiência única em sua integralidade, impossível de ser experimentada por quem não a viveu ou, sequer, de ser transmitida em sua completude. Não obstante, a posição do autor é mantida, ao longo do livro, como se percebe no nono e último capítulo, Os filmes na história. Mesmo nos casos dos filmes sobre o holocausto, o cinema oferece algo, na forma de um pensamento histórico, para que os espectadores utilizem como acharem melhor.

Robert Rosenstone defende o caráter experimentalista que o cinema pode oferecer para a representação do passado, sugerindo que as diferenças entre essa forma discursiva e a história escrita permitem “especular se a mídia visual representa uma grande mudança na consciência de como pensamos sobre o nosso [sic] passado. Se isso for verdade, talvez os nossos historiadores cineastas estejam sondando as possibilidades do futuro do nosso passado” (ROSENSTONE, 2010, p. 234). Dessa maneira, sua conclusão é direta: o filme histórico não apenas desafia a História tradicional, mas nos ajuda a voltar para uma espécie de estaca zero, uma sensação de que nunca podemos conhecer realmente o passado, mas apenas brincar constantemente com ele, reconfigurá-lo e tentar dar significado aos vestígios que ele deixou (ROSENSTONE, 2010, p. 239).

Muitas dessas afirmativas carregam, em si mesmas, os elementos da sua crítica. Afinal, considerando a última citação, não seria viável considerar como conhecimento do passado, justamente, o ato de reconfigurá-lo e de dotá-lo de significados através dos indícios possíveis para tanto? Nesse sentido, falar sobre a impossibilidade de “conhecer realmente o passado” não é, por si mesmo, um equívoco? O tom didático do livro, condizente com a coleção editorial na qual está inserido, não esconde, portanto, algumas facilidades teóricas assumidas pelo autor. A primeira delas é a contraposição, por demais caricatural, entre a história da academia e a história realizada por cineastas.

Tem-se a impressão de que a história profissional, se assim se pode falar, é uma modalidade antiquada e retrógrada, afeita a resguardar seus canteiros com base em preconceitos e em um corporativismo voltado a excluir formas de representação que possam colocar em risco seu (suposto) monopólio sobre o passado. O cinema seria, naturalmente, o antídoto para isso.

Outra facilidade que salta aos olhos do leitor é o fato de que, mesmo fazendo menção a alguns teóricos ocupados em pensar o estatuto ficcional dos discursos sobre o passado, não há no livro nenhuma discussão mais substanciada sobre o que, realmente, se quer dizer quando se discorre sobre a ficção dos discursos históricos (sejam eles escritos ou fílmicos). O autor, simplesmente, recusa situar o leitor nesse tipo de problema epistemológico.

Ou seja, em sua pretensão didática, ele abdica, paradoxalmente, de tornar certas discussões mais claras para o leitor não especializado, colocando em risco aquela mesma pretensão que, por sua vez, caracteriza a coleção editorial na qual se insere o livro. Além disso, apesar de ter falado tanto em filme histórico, não fica claro o que define, especificamente, um determinado tipo de filme como “histórico” ou, nas palavras de Rosenstone, o que caracteriza, realmente, como históricas as “premissas históricas” das obras cinematográficas. Que se trata do filme com enredos ambientados no passado, é óbvio, mas, em um contexto no qual o tempo presente desponta com tamanha evidência aos olhos dos historiadores, tal definição não é ainda um tanto quanto restritiva? Da mesma forma, já que se trata de pensar a história nos filmes e os filmes na história, uma dimensão incontornável da questão não foi abordada de forma mais direta: como se valer dos filmes como fontes históricas? O ponto forte do livro é a insistência com a qual Rosenstone convida os historiadores a pensar formas renovadas e experimentalistas de discurso histórico ou modalidades distintas de representação do passado. Como fundador e editor do periódico Rethinking History: the journal of theory and practice, (tem essa vírgula?) que, nas suas, talvez exageradas, palavras, acredita ser “a única publicação desse meio que incentiva formas experimentais de escrita histórica”, o autor defende a ampliação dos recursos representativos de que se valem os historiadores. Evidentemente, isso não competiria apenas ao trabalho dos historiadores, mas envolveria repensar os próprios procedimentos pelos quais a história é ensinada. Fica a sugestão.

Fernando Nicolazzi – Professor Adjunto II Universidade Federal de Ouro Preto f.nicolazzi@hotmail.com Rua do Seminário s/n 35420-000 – Mariana – MG Brasil.