Sobre Coisas e Trajetórias / Revista Mosaico / 2017

O dossiê Sobre Coisas e Trajetórias tem como ambição trazer ao centro da cena aquilo que tomamos como as miudezas de nossa vida: o mundo dos objetos, enquanto constituintes dos tramados do nosso cotidiano e, portanto, assumidos aqui como coisas de importância, mesmo na possível e, a rigor, falsa banalidade de seus usos. Resultado da história humana em suas diferentes ordens de relações, das amigáveis às conflituosas, os objetos são expressivos, mas, para além disso, ao ganharem corpo e comporem o mundo da vida ajudam a acionar sentidos e modos de conduta. Uma dialética se faz operar na relação com essas coisas, enquanto modos de objetivação, pelos agentes que lhe conferem vida e significados cambiáveis. Tais figuras-síntese funcionam como uma espécie de atalho que permite que uma história se presentifique e contribua, como elo de continuidade, a que ela se perpetue. No entanto, seria simplista tomar os objetos enquanto este elemento de memória apenas pelo seu potencial de rastro e arquivo. A partir do manejo das coisas no mundo prático, atualizamos, mudamos, acrescentamos significados aos objetos, fazendo com que seu potencial de síntese se estabeleça não apenas no momento de sua produção (da produção do objeto), mas ao longo da dinâmica de seus usos, a despeito da possível fixidez de sua forma. Assim, à figura, somos obrigados a correlacionar a figuração dos significados dos objetos, enquanto estrutura que remete ao processo incessante de articulação de significados (no plural) que são conformados na prática, isto é, na própria relação com as coisas, não carecendo, portanto, de um momento reflexivo de atribuição de significados a elas. A dialética se dá, portanto, no processo hermenêutico de significação das coisas através e a partir de seu manejo em diferentes contextos, e não apenas quando tomamos as coisas como objeto para racionalizações. É, pois, na produção, no uso e nas trocas que os objetos ganham vida, e isso diz respeito às diferentes épocas e lugares.

A consolidação do capitalismo e sua expansão planetária fez com que os objetos se tornassem alvo de preconceito enquanto coisas “boas para pensar”, sendo relegados quase exclusivamente à condição de mercadorias fetichizadas, produtos sem alma da desalmada produção capitalista e que ainda seriam alçados à condição de gatilhos à alienação. Ora, mesmo tal temática nos evoca a importância de problematizar as coisas, em seu caráter de mercadoria, no lugar que assumem enquanto objeto de desejo, expressão de estilos de vida, depositários da felicidade humana, moeda nas negociações de significados, fetiche. O conjunto de artigos que compõe este dossiê expõem inelutavelmente a centralidade do debate das coisas como mercadorias, mas, ao mesmo tempo, articulam esta dimensão a uma série de outras que remetem aos complexos processos sócio- históricos de atribuição de significados a elas, isto é, às coisas enquanto produtos simbólicos. Ciência, magia / religião, higiene, beleza, modos de comercialização e publicização das coisas, modernização são acionados a fim de evidenciar a importância sócio-histórica das coisas e, para tanto, diferentes objetos são tomados: desde remédio, cerveja, absorvente feminino, roupa (na forma da moda e da indumentária religiosa) ao próprio corpo tornado objeto. O mote por excelência é posto na circulação das coisas e de seus significados, enfim, na trajetória dos objetos em sua articulação com as trajetórias humanas ao longo da história.

O artigo “O que não tem remédio midiatizado está: beleza e poder na publicidade de medicamentos do início do século XX” traz interessante discussão a respeito da publicidade de medicamentos, pensada para além de mera estratégia de divulgação de certa ordem de produtos. O autor, Moacir Carvalho, busca compreender o modo como tais peças publicitárias fazem dialogar o científico e o mágico-religioso no contexto brasileiro de início do XX, na medida em que o profissional médico necessitava angariar espaço ocupado ainda no período pelos diferentes profissionais populares de cura, a exemplo de curandeiros, que detinham o reconhecimento enquanto prática de cura legítima. Assim, ciência e magia se interpenetram, é o argumento do autor, na constituição de um mercado consumidor de medicamentos que teriam caráter quase mágico pelo alívio dos sofrimentos que conseguiam proporcionar. É por esta seara que o autor envereda ao fazer avançar a leitura na percepção de que se trata de um novo modo de vida em construção, ligado ao moderno, ao técnico e ao civilizado, e a que se liga o consumo do produto em questão, cuja função, pois, ultrapassa a possibilidade de cura. Consumir medicamentos em lugar de ervas serviria como indicador de um novo modo de vida, o civilizado, que se deseja construir, como projeto político nacional, em contraposição ao chamado mundo atrasado do campo e das curas rituais. No entanto, ao fazer isso, criam-se, via publicidade, novas ritualizações que fazem do medicamento um elemento simbólico a ser narrativamente articulado nas peças publicitárias através dos textos e das imagens. A base do argumento sustentado pelo autor converge para a polêmica afirmação da agência dos objetos, no caso do medicamento, a um só turno resultado de sínteses complexas e conformador de condutas.

Thiago Rodrigues, no artigo “Identidades Sociais em Dias de Modess”, por sua vez, também busca compreender a relação entre um bem de consumo e modernização do Brasil a partir da análise de material publicitário. Para tanto, toma como ponto de partida o ingresso dos absorventes higiênicos no mercado brasileiro e o desenvolvimento de seu uso a partir das transformações nacionais, na direção de uma desejada modernização, e das mudanças no modo de vida feminino. Assim, articulam-se três planos de interpretação acionados simultaneamente e sintetizados nas mensagens publicitárias de Modess na revista carioca Querida, dirigida ao público feminino de classe média, e tomadas pelo autor como eixo de sua problematização. Assim, à imagem de Modess referem-se a imagem desejada de nação e sua inserção no mercado capitalista das coisas modernas, bem como a autoimagem dessas mulheres, potenciais consumidoras, cujo modo de vida estava se transformando e ganhava expressão em comportamentos, anseios e aparências.

O artigo “Trajetória e sentidos da cerveja: das origens europeias à formação do Brasil moderno” traz à baila a questão de como uma bebida ancorada em forte tradição na Europa se torna símbolo nacional no Brasil. O autor, Matheus Lavinscky, segue o percurso histórico do produto para, a partir de seu processo de comercialização e consumo, compreender o modo de inserção da bebida no Brasil e sua rápida associação a uma concepção de moderno e modernas práticas de lazer vinculadas em especial ao segmento popular. Assim, assume como tese e conclusão que a cerveja não institui novos comportamentos e sim, em termos weberianos, se afina àquilo que são as aberturas do presente, potencializando-as e sendo potencializada por elas, mesmo no modo como o consumo de cerveja sobrepuja a posição da cachaça como referência de gosto, algo compreensível apenas à luz da interpretação das relações estabelecidas entre diferentes povos na concorrência pela conformação de um mercado consumidor de cerveja, por um lado, mas igualmente pelo percurso vivido pelo Brasil neste concerto internacional.

Tomando o contexto de século XIX, “Caminhos do objeto: a afirmação do leilão e os primeiros capítulos de uma história do comércio no Brasil oitocentista” busca problematizar e descrever o desenvolvimento de um dos modos de circulação / comercialização de mercadorias no Brasil do período: o leilão. Não apenas isso, a autora Carolina Fernandes aponta que os leilões se apresentaram como mecanismo recorrente à efetivação da circulação das mercadorias no Brasil, em especial aquelas advindas de importação, o que levou a que determinados modelos de organização e exercício da atividade ganhassem relevo por estas terras. Assim, não havia um único modelo, mas o que imperou no Brasil se apresenta como expressão e consequência das relações especialmente estabelecidas com a Inglaterra no quesito trocas comerciais. E, neste sentido, diferentes objetos eram leiloados, desde utensílios e alimentos até escravos, entendidos como objetos. A disposição das “coisas”, do leiloeiro e dos potenciais compradores foram analisados pela autora a partir de diferentes ordens de gravuras feitas sobre o Brasil e outros países, como Espanha. Assim, Carolina Fernandes apresenta um interessante quadro da atividade de leilões no Brasil oitocentista em seus produtos comercializados, gravuras, anúncios, bem como no modo (predominante inglês) de exercício da atividade.

Por sua vez, ”Beleza Pura: uma abordagem histórica e socioantropológica das representações do corpo e beleza no Brasil” parte da concepção de que o corpo foi tornado objeto e capital no percurso das interações, o que potencializou não apenas o trabalho (controle) sobre o corpo enquanto decorrência do processo civilizador ocidental, como a mercantilização de produtos e serviços ligados a esse controle / trabalho em contexto capitalista. Assim se justificaria a valorização da aparência física como um gosto sócio-historicamente construído, mas naturalizado, a fazer com que esses consumidores entendam tal trabalho como necessidade e prazer. Os autores Silvio Benevides e Vanessa Rodrigues, contudo, enfatizam as dinâmicas de poder envolvidas em tal processo, e não apenas suas variações históricas na definição do belo / feio e do corpo. Isto é feito ao pensar e discutir o corpo negro e a perspectiva decolonial, uma vez que, se retoma processos históricos, o faz à luz da tentativa de responder a uma questão do hoje que envolve jovens de maioria negra.

Já o texto “Vestir-se à Boa Morte: apontamentos sobre o vestuário em irmandades negras religiosas na região recôncava da Bahia” traz aquilo que cobre o corpo como mote de discussão. Trata-se da indumentária religiosa usada pela Irmandade da Boa Morte em Cachoeira e São Gonçalo dos Campos, ambas cidades da Bahia. Wilson Penteado Júnior e Vanhise Ribeiro tomam a indumentária enquanto expressão de significados, no caso sagrados e históricos, associados aos modos de vida de suas usuárias e às próprias transformações no contexto religioso-social. Isto é, apesar de se tratar de indumentária entendida como tradicional, a roupa da irmandade da Boa Morte permanece na medida em atualiza seus significados, quando não seus modos de cuidado, seus apetrechos e mesmo seus usos. O seu forte cariz expressivo ganha plena evidência na assunção de se tratar da roupa de Nossa Senhora, o que de acordo com os autores pode ter sido aspecto acionado apenas recentemente na defesa da indumentária contra ataques externos, bem como em sua relação com as Negras de Partido Alto. Mais do que isso, a dificuldade do cuidado, que poderia ser entendido como momento de sacrifício, em forte associação com o sofrimento de Cristo, de sua mãe Maria e dos negros escravizados trazidos ao Brasil, transmuta-se na emoção da redenção do sofrimento no uso de roupa de pompa em momento solene numa inversão simbólica que faz do escravo senhor. No caso, que faz da escrava uma senhora que bravamente resiste às inúmeras adversidades.

Por fim, em “As mãos que fazem o trançado – identidade e memória na produção de moda em Salvador-BA na virada para os anos 2000” Salete Nery toma não a roupa religiosa, e sim aquelas produções vinculadas à dinâmica capitalista de conformação dos objetos ligados à composição da aparência pessoal: a moda. O objetivo é, na contramão da concepção da singularidade do fazer criativo, buscar compreender como o tema da identidade (baiana) foi se tornando e foi tornado elemento de articulação de diferentes produções de moda na Bahia na passagem para o XXI como resultado da atuação de diversos agentes em contexto que, inclusive internacionalmente, parecia favorável à valorização das expressões locais-tradicionais-afro, mesmo em suas reelaborações contemporâneas na forma de produtos voltados ao mercado.

Assim, os diversos textos que conformam o dossiê apresentam diferentes facetas a partir das quais o mundo das coisas / as coisas no mundo podem ser tomadas como objeto de rica problematização.

Maria Salete Nery – UFRB

Organizadora do dossiê Sobre Coisas e Trajetórias


NERY, Maria Salete. Apresentação. Revista Mosaico. Goiânia, v.10, n.1, jan. / jun., 2017. Acessar publicação original [DR]

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