Vulnerabilidades: pluralidade e cidadania cultural / Revista Transversos / 2017

A ambição discreta de ser ensaio ou tentativa move esta edição da Transversos. Trata-se aqui de experimentar, no sentido duplo do testar e do sentir. A moderação justifica-se diante da imensidade da questão: as vulnerabilidades. Investigá-las é apurar uma escuta “em abismo”, é tentar conhecer essa frequência incômoda. A tarefa, aqui, é mergulhar no historicamente silenciado em busca de seu som.

Dois termos conduzem as contribuições selecionadas: pluralidade e cidadania cultural. Das frestas de uma sociedade hoje globalizada, através de estreitas passagens que permitem alguma luz e algum ar, materializam-se corpos, rostos e vozes multiplamente apagados na história: vulneraribilis, do latim, “aquele que pode ser ferido”. Sujeitos que, na gramática da vulnerabilidade, são somente pessoas indeterminadas, cujo nome não se enuncia. Submetidos / sujeitados, são o avesso da versão luminosa dos indivíduos modernos – esse espécime em cujo nome se fala de liberdades, direitos e conquistas. No reverso de uma ordem discursiva eufórica, colhidos pela trágica contingência histórica e social, indivíduos e grupos confrontam-se cotidianamente com o risco, a adversidade e a deterioração forçada de seus laços e memórias.

Sem abrir mão da definição econômica de vulnerabilidade, novas reflexões sobre o tema permitem, hoje, ampliar não só o campo de exame do problema – nas ciências humanas e sociais, sobretudo – bem como rejeitar certo determinismo das visões tradicionais. A pobreza, condição decisiva dos grupos vulneráveis não é, assim, tomada como sinônimo de uma passividade incontornável. Nas franjas da lógica do mercado, de uma sociedade sempre disposta a reforçar e reinventar hierarquias, e disposta igualmente a multiplicar os preconceitos correlatos, um repertório de ações às vezes minúsculas, mas constantes, nos dá notícias da existência material e simbólica dessas coletividades e subjetividades caladas à força.

Nesse sentido, a Transversos traz aos leitores e leitoras a possibilidade de pensar a vulnerabilidade como pluralidades e como cidadania cultural, termos que nomeiam uma das Linhas de Pesquisa do Laboratório de Estudos Sobre as Diferenças e Desigualdades Sociais (LEDDES / UERJ). Aliás, é preciso que se diga, o próprio espaço institucional em que se situa o Laboratório experimenta, atualmente, as ambiguidades e as contradições do campo que elegeu investigar. Ao mesmo tempo em que é um espaço legítimo de produção de conhecimento científico, vivencia a situação de vulnerabilidade em que se encontra, hoje, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Produzir mais uma edição da revista é, assim, uma ação política de afirmação e de resistência de pesquisadores e pesquisadoras da instituição.

Este número marca também uma inflexão da própria linha de pesquisa, momento no qual se propõe uma ampliação do entendimento de vulnerabilidade. O conceito, que emerge do debate acerca dos Direitos Humanos, foi apropriado pela Saúde Pública com um fim específico, na década de 1980, o de demarcar os setores sociais com mais riscos de contaminação do vírus da Aids, considerando a relação entre a exposição à doença e a condição socioeconômica do vulnerável.[1] Logo as ciências humanas e sociais entraram no debate, refletindo sobre o perfil concreto da população considerada de risco. Esses estudos mergulharam no tema, investigando os contextos de desigualdade material e simbólica em que tais segmentos se encontravam. Para Rubens de Camargo Ferreira Adorno: “a expressão vulnerabilidade social sintetiza a ideia de uma maior exposição e sensibilidade de um indivíduo ou de um grupo aos problemas enfrentados na sociedade”.[2] O especialista em Saúde Pública acrescenta, ainda, que a vulnerabilidade “reflete uma nova maneira de olhar e de entender os comportamentos de pessoas e grupos específicos e sua relação e dificuldades de acesso a serviços sociais como saúde, escola e justiça”. As ponderações do autor fornecem alguns aspectos do caminho escolhido para mergulhar nesse debate.

Paulo Roberto Tonani do Patrocínio, no artigo que abre o Dossiê, oferece importantes chaves para a reflexão aqui desejada. Examinando as tensões entre identidade e diferença cultural, o autor mobiliza operadores conceituais decisivos, como o termo différance, cunhado por Jacques Derrida, para problematizar termos fundadores do pensamento ocidental contemporâneo, como, por exemplo, o fonocentrismo. Da perspectiva sugerida pelos Estudos Culturais e Literários, Tonani do Patrocínio atende ao debate sobre a vulnerabilidade ao dar espessura teórica às questões culturais e identitárias. No percurso proposto, problematiza matrizes discursivas dominantes e ilumina um caso específico, o tratamento discursivo da surdez, retirando-a, como assinala, “de uma leitura baseada na patologia e passando a compreendê-la como elemento formador de uma identidade própria: a identidade surda”.

Em seguida, Lucas Freire examina o modo como a luta pelos direitos das pessoas transexuais passa pelo reconhecimento de suas existências como humanas ou não no contexto das relações heteronormativas em que se amparam as representações jurídicas. Nessa relação entre saber e poder, embasado em sólida pesquisa, o autor mostra como o discurso médico é acionado de modo a dar inteligibilidade às existências e habilitá-las como portadoras de direitos civis.

Entre barracões de escolas de samba e a sala de aula: circulando os saberes da arte do carnaval, artigo de André Porfiro, recupera a singularidade da criação artística do carnaval das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, para, em seguida, experimentar esse conhecimento em sala de aula. A originalidade da abordagem é realçada pelo texto envolvente, através do qual percebemos que a contingência é a matéria-prima da “invenção”. Desta, como sugere o autor, é possível engendrar novas estratégias de ensino e aprendizado das Artes em uma escola pública do Rio de Janeiro.

Se a linguagem significa aquilo que entendemos como realidade, cabe, então, ao historiador desconfiar de categorias pré-estabelecidas. É o que faz Gustavo Sousa, ao problematizar a construção do Oceano Atlântico como espaço disciplinado-disciplinador, como diria Michel Foucault. Na dimensão concreta e simbólica do mar-oceano, os diferentes Estados Nacionais envolvidos no tráfico de escravos vão reivindicar o uso legítimo de suas águas utilizando, para isso, o moderno discurso jurídico do século XIX, conforme aprendemos do cuidadoso artigo.

Em Uma evangelização duvidosa: o caso do Frei Gaspar, Thiago Bastos de Souza propõe, a partir de fonte inédita, que experiências históricas não são nem essencializadas nem dualistas, mas sim marcadas pelas contradições entre os dispositivos que convocam a assumir categorias hierárquicas e a forma como cada indivíduo responde a tal chamamento. É o caso do processo aberto pelas mulheres indígenas do pueblo de Turuana contra o frei franciscano Gaspar. O ensaio minucioso equilibra reflexão teórica e manejo de dados empíricos. Não apenas no pleito das mulheres submetidas ao abuso sexual, bem como na figura de um mediador local, embaralham-se as certezas previamente dadas na historiografia sobre o período. A reflexão faz lembrar a afirmação de Stuart Hall, segundo o qual as identificações são “pontos de apego temporário às posições-de-sujeito que as práticas discursivas constroem para nós”.

Problematizar os papéis supostamente passivos das “excluídas” diante da atuação ativa dos “incluídos” é a proposta de Maria Eugenia Cruset em Imigración y exilio: el papel de las mujeres. Ao investigar a atuação de mulheres bascas na Argentina, a autora recusa-se a afirmá-las como simples vítimas, propondo-se a validar positivamente suas atuações políticas – ainda que se vejam inseridas em posições hierárquicas desiguais. Cruzet nos informa sobre as diferentes atuações e papéis destas mulheres imigrantes, enfatizando aquilo que Michel de Certeau definiria como um jogo de tática e resistência.

Ainda na perspectiva de renovação das pesquisas sobre migrações em seus aspectos transnacionais, El exilio radical y la última dictadura militar en Argentina, de María Soledad Lastra, analisa as tensões e conflitos dos exilados do partido argentino Unión Cívica Radical (1974-1983), grupo duplamente marcado por sua condição externa, no exílio, e sua condição interna, pois a UCR se manteve atuante na Argentina durante o período ditatorial. Para melhor compreender essa vulnerabilidade, Lastra apresenta o caso específico do jornalista argentino Miguel Ángel Piccato em seu exílio no México. Aqui, a suposta identidade oculta dos exilados é questionada para acentuar a naturalização de contradições como efeito dos próprios dispositivos de poder em que são construídas.

História, ficção e cinema: distopias sobre a personagem indígena argentina, de Juliano Gonçalves da Silva e Érica Sarmiento, apresenta uma perspectiva diferenciada acerca de duas produções cinematográficas contemporâneas: os filmes Jauja (2014) e Bolívia (2001), respectivamente do argentino Lisandro Alonso e do uruguaio Israel Adrián Caetano. Num caminho original, os autores examinam as duas obras sob o ponto de vista teórico da ficção, realçando a trágica persistência histórica do extermínio do indígena e seu apagamento discursivo e simbólico.

Desde Descartes, partimos do princípio do cogito para considerar a existência humana. A partir daí, a racionalidade guiaria a compreensão do que chamamos de realidade, presidindo nossa forma de atuação sócio-política, ética e estética. Em Aos simbolistas, as margens: experiências estéticas e subjetividades politicas marginalizadas, Mariana Albuquerque Gomes questiona a primazia da racionalidade como sistematizadora das ações políticas. Por meio de um sensível partilhado, conforme apresenta Jacques Rancière, a autora afirma a criação estética dos simbolistas brasileiros do final do século XIX como ato político. Tal produção resulta do desencanto desse grupo com a funcionalidade lógica da vida moderna e da percepção de que suas subjetividades políticas e estéticas não são aceitas como legítimas. O texto pensa a vulnerabilidade a partir de um exercício densamente teórico em torno da marginalidade, articulando referenciais historiográficos, filosóficos e sociológicos.

Reforçando a articulação entre vulnerabilidade e cidadania cultural proposta neste Dossiê, Flávia Almeida nos informa das relações socioeconômicas que as atrizes das companhias de teatro portuguesas vivenciavam no final do século XIX e início do século XX no Rio de Janeiro. Almeida destaca a precariedade das condições de trabalho dessas atrizes, inseridas num ordenamento social que as categorizava em identidades profissionais e de gênero hierarquicamente inferiores. No entanto, em meio às contradições do mercado teatral carioca, essas atrizes, como nos casos examinados, se apropriavam desses conflitos com vistas a defender interesses próprios, explorando afirmativamente as rivalidades instigadas pelos fãs e repercutidas pela imprensa, numa estratégia que ampliava a legitimidade de seu trabalho e o poder de suas vozes.

Na sessão Notas De Pesquisa, José Roberto Saiol e Lorelai Kury discutem o tema da modernização técnica e científica a partir do trabalho do ilustrador francês J. J. Grandville (1803-1847). Examinando a interação dos aspectos descritivos à natureza imaginada e propriamente artística das imagens, os autores mostram como a modernização penetra o cotidiano e é percebida na obra de Grandville. Na investigação dessa tópica visual específica, revelam-se importantes referências ao campo das artes, especialmente à música, à escultura e à literatura.

Em Do quimono à casaca: transformações e marcas identitárias no indumentário japonês, Jaqueline de Sá Ribeiro e Fabiano Vilaça apresentam um objeto de estudo pouco prestigiado pela historiografia brasileira: o “distante” oriente japonês e a moda, aqui tratada como fonte legítima de trabalho para o historiador. As relações de poder – tanto material quando simbólico – são problematizados por meio da indumentária. O resultado é uma análise sensível e inovadora do Japão em seu momento de transformação social em direção a uma sociedade moderna e ocidentalizada.

A sessão Artigos Livres se abre com a colaboração de Tatyana Maia, As comemorações cívicas do 1º de Maio nos cinejornais da Agência Nacional da Ditadura Militar (1964-1979). Em artigo marcado pela precisão e sensibilidade, a autora examina três diferentes momentos, refletindo sobre a evolução das representações visuais do trabalhador no período da ditadura civil-militar brasileira. Remontando ao Governo Vargas, estabelece e analisa as ressignificações políticas das relações entre trabalhador, patronato e Estado durante a ditadura. Das imagens fílmicas examinadas no artigo depreendem-se as linhas mestras da cultura visual oficialmente orientada: a figura do trabalhador simultaneamente partícipe e beneficiário da modernização-conservadora. Na contrapartida, como o texto demonstra, evidencia-se o silenciamento das vozes da oposição e dos movimentos sociais.

Aceleração do tempo e processo histórico em Reinhart Koselleck e Timothy Brook, de Luís Claudio Palermo, propõe um exercício de aproximação entre duas reflexões historiográficas distintas no intuito de aprofundar noções de tempo histórico. Em seguida, Luciana Christina Cruz e Souza, em Patrimônios possíveis: modernidade e colonialidade no campo do patrimônio, instiga à discussão sobre as categorias de episteme que definem o que é aceito como conhecimento inteligível e, por isso, verdadeiro. A partir da noção de colonialidade, a autora analisa os critérios de seleção do que é ou não um patrimônio cultural. O artigo questiona a especialização do saber embasada unicamente em referenciais teóricos globais do eixo norte, como forma universal de legitimação sobre o conhecimento das humanidades. Afirma, assim, a importância de criarmos categorias de pensamento próprias às experiências de colonialidade e de analisarmos o campo do patrimônio e as possibilidades de constituição de novos saberes para as políticas de preservação.

Em Favela, mídia e remoções: discurso jornalístico, imagens sociais e políticas públicas de habitação em favelas cariocas, Pablo Nunes problematiza o papel da imprensa na construção e sedimentação de imagens-estereótipos dos habitantes das favelas cariocas. O autor seleciona três momentos da história dessas comunidades na cidade do Rio de Janeiro para analisar a relação entre Estado, imprensa e sociedade na condução de políticas públicas direcionadas aos moradores de tais comunidades. Nunes destaca os jornais como demarcadores privilegiados da opinião pública, a qual legitima, por sua vez, as políticas violentas e segregadoras do espaço público, bem como naturaliza os tradicionais estereótipos dos chamados favelados.

Um aspecto pouco conhecido do cristianismo é apresentado em Ritos de humilhação: al-qasim ibn ubaydallâh e os cristãos coptas (734-741), de Alfredo Bronzato da Costa Cruz. A vivência dos cristãos coptas, dentro da experiência histórica de um Egito controlado politicamente pelo califado omíada é marcada por repressões, explorações e humilhações públicas destes cristãos por não partilharem da fé islâmica. Por meio da História do Patriarcado Copta de Alexandria, o historiador analisa as táticas de resistência dessa comunidade ao criar uma realidade na qual os eventos ocorridos adquiriram significados religiosos que possibilitaram a união e preservação do grupo. Aqui, mais uma vez, a importância do cultural se faz presente nas estratégias de construção de si e do outro por meio de significações partilhadas socialmente.

Finalizando essa edição, Horacio Miguel Hernán Zapata apresenta a resenha do livro Una “guerra que se continúa por otros medios”. Acerca de los Tratados de Paz entre el estado argentino y las sociedades indígenas de la Frontera Sur (1850- 1880), de Graciana Pérez Zavala. A obra aborda os conflitos e negociações entre o Estado Nacional Argentino e as chamadas fronteras interiores (Chaco, Pampa y Patagonia), região em que o governo argentino não conseguiu estabelecer seu controle durante o século XIX. O autor destaca a renovação interpretativa empreendida por Pérez Zavala, autora que destaca, ao lado das ações violentas, o modo como o governo central teve que desenvolver outras formas de atuação – diplomáticas – com as comunidades indígenas para, assim, negociar o estabelecimento de suas fronteiras. Aqui, novamente, as relações históricas não são polarizadas entre vítimas e opressores; destacam-se, outrossim, suas características híbridas, os confrontos e negociações entre os grupos analisados. O que contribui para o atual debate sobre as demarcações de terras indígenas e os direitos das populações originárias da América dentro dos Estados nacionais modernos.

As múltiplas respostas à chamada desta Transversos confirmam o quanto pulsam, inquietos, o pensamento e a curiosidade. Os vulneráveis são aqui os que resistem; são os que delatam a falha do discurso. Aqueles que, na sua forçada inexistência e mudez, insistem em apontar as fraturas do mundo e em desenhar seus nomes com letras, às vezes mínimas, no livro cotidiano.

Esta edição não seria possível sem a colaboração de José Roberto Saiol, Juliana Martins, Priscila Araújo e Paulo Henrique Pacheco. Juntos, inauguramos a nova fase da Transversos, que passa agora a sair trimestralmente. Visibilidade e vida longa.

Notas

  1. A esse respeito, consulte-se Carolina Salomão Corrêa. Violência urbana e vulnerabilidades: O discurso dos jovens e as notícias de jornais. Rio de. Janeiro, PUC-RJ, 2010, Tese de Doutorado.
  2. Rubens de Camargo Ferreira Adorno. Um olhar sobre os jovens e sua vulnerabilidade social. São Paulo: AAPCS -Associação de Apoio ao Programa Capacitação Solidária, 2001

Laura Nery

Marina Carvalho

Rio de Janeiro, 17 de abril de 2017.


CARVALHO, Marina; NERY, Laura. Apresentação. Revista Transversos, Rio de Janeiro, n. 9, jan. / abr., 2017. Acessar publicação original [DR]

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História e Cultura Visual: múltiplas narrativas da experiência histórica / Revista Maracanan / 2016

Diálogos entre história, imagem e palavra

Nesta edição de Maracanan, o termo visual qualifica não apenas as fontes e as questões tratadas, mas procura nomear também certo modo de reconstrução do conhecimento e do passado. A aposta no enlace entre legibilidade e visibilidade levou ao acolhimento de formatos variados – o artigo, o ensaio, o depoimento, a entrevista – nos quais a reflexão se oferece como algo mais do que uma justaposição de diferenças. As colaborações reunidas revelam pontos de contato para além do interesse na imagem gráfica, retórica, poética, plástica. Como enfatizam Paulo Knauss e Ana Maria Mauad, a cultura visual coloca novos desafios para o historiador. “A elaboração dos quadros da historicidade deve partir da materialidade das experiências sociais, dos seus indícios, vestígios, restos e pistas”, argumenta Mauad: “não basta olhar, é fundamental estranhar”.

O número se inicia com os textos do Dossiê. Encontram-se lado a lado reflexões teóricas, análises pontuais e o registro de trajetórias individuais. No percurso intelectual de Paulo Knauss, o interesse pela arte e a pesquisa em acervos e coleções levaram ao encontro com especialistas de diversas áreas. A experiência foi decisiva no entusiasmo que o historiador nutre pela erudição e pela história da imagem. Para ele, a erudição significa “considerar qual o diálogo que a imagem estabelece em sua criação, na sua circulação”. Em seu depoimento, Knauss destaca a importância da imagem na definição da prática da história. O campo da cultura visual, assim designado desde a chamada “virada pictórica” dos anos 1990, afirma ele, tornou possível interrogar e reunir objetos e temas de tradições disciplinares aparentemente distintas. Referência nas pesquisas brasileiras na área, o pesquisador defende que a cultura visual não se feche institucionalmente, mas que, ao contrário, mantenha-se sempre aberta e fiel ao seu lugar de troca de experiências.

Renata Proença entrevista Glaucia Villas Bôas e demonstra a riqueza de sua trajetória pessoal e intelectual, relembrando a partida para a Alemanha durante a ditadura militar, na década de 1970, e o contato com a sociologia alemã, que marcaria suas reflexões sobre o pensamento social e a produção cultural no Brasil. De volta ao Rio de Janeiro, Gláucia interessa-se pela década de 1950 e pelo concretismo no país, aprofundando-se no estudo da relação entre o surgimento da arte concreta e a experiência artística no ateliê do Engenho de Dentro (1946–1951). A socióloga considera esta experiência sui generis, levando-a a fazer da relação entre arte e loucura o centro do debate sobre o processo criativo. Gláucia delineia também as principais questões que envolvem a concepção das imagens vistas como objetos que atuam no mundo. Pontua, ainda, que a cultura visual vem provocando um interesse crescente pela maneira de encarar a imagem como objeto atuante, cujo dinamismo e vitalidade devem ser percebidos e examinados.

Ao modo de uma “genealogia”, Ana Maria Mauad apresenta diferentes perspectivas e conceitos que orientaram o interesse dos estudos históricos na imagem a partir da renovação historiográfica dos anos 1970 e 1980. No contexto da chamada história das mentalidades, a iconografia ganhou destaque como fonte de indagação ao passado. Nos Estados Unidos, partindo de premissas distintas, Martin Jay e William Mitchell definiriam, na década seguinte, o campo da chamada cultura visual, cada vez mais relevante na história. Tratava-se, escreve a autora, de “pensar além das limitações que a textualização atribui ao mundo visível e suas formas de representação não verbais”. No artigo, Mauad aprofunda a reflexão ao descrever o percurso de sua própria pesquisa com a fotografia, realçando a possibilidade de realizar duplamente a “construção histórica do visual e a construção visual da história”.

Karl Erik Shøllhammer formula uma hipótese sobre a singularidade do trabalho da fotógrafa Claudia Andujar com os Yanomami, ampliando o entendimento acerca da divisa da fotografia na atualidade das artes contemporâneas. O crítico aponta o caráter original da fotografia de Andujar como “prática fotográfica” e “possibilidade de experiência” do corpo vulnerável do índio. Segundo Karl Erik, o “desafio de colocar a linguagem de documentarista à disposição de uma convivência afetiva com os Yanomami” é uma preocupação central da artista. Os impasses da referencialidade e da temporalidade são por ele tematizados. Do documentarismo fotográfico por ela praticado ao projeto artístico de envolver o espectador na imagem, o crítico afirma: “Andujar consegue criar um espaço afetivo que interpela o espectador dinamicamente em sua plasticidade, textura e luz”. As imagens de afeto trazem a marca de um “fazer fotográfico” a desenhar o tempo imaginado dos Yanomami, no qual contraditoriamente coincide um passado “fora de nosso alcance” e uma temporalidade “sinistramente profética, apontando à catástrofe em curso”.

Em seu ensaio, Márcio Seligmann-Silva retoma a teoria benjaminiana da fotografia e a aproxima de uma escrita historiográfica capaz de facultar ao historiador, o alegorista da cultura, o gesto de congelar o tempo. Além disso, localiza na visão positiva de Benjamin sobre os avanços técnicos a cena de uma “segunda técnica” intensificadora de ilusões emancipatórias. “Novos espaços de jogo e de liberdade” são capturados pela câmera fotográfica que nos traz “o real” e produz “a visão da efetividade imediata”. Seligmann aponta para o jogo lúdico da “segunda técnica” com a natureza, de tal modo que seu fenômeno seja ainda mais desnaturalizado por nós, se supusermos, como Benjamin sugere, que cada época tem sua própria natureza conforme a sua tecnologia.

Apresentando material inédito, Maria Lucia Bueno destaca o modo pelo qual a internacionalização da moda da alta costura francesa no início do século XX ocorre em estreita relação com o desenvolvimento de uma cultura visual moderna, que teve como protagonista a imprensa de moda. A autora toma como exemplo as práticas publicitárias desenvolvidas pela costureira Jeanne Paquin e discute a maneira pela qual os criadores de moda se utilizaram dessa nova cultura visual para divulgar suas criações.

Lígia Dabul debate os processos criativos em arte e as interações sociais estabelecidas por meio da troca de cartas entre artistas, problematizando a invenção artística para além dos objetos já consagrados. O texto aponta ainda para a discussão da noção de autoria, tradicionalmente vista como produto do trabalho de um indivíduo singular.

Em seu artigo, Raquel Quinet reflete sobre o desenho como expressão da razão teórica, examinando o momento de inflexão em que a teoria da arte desponta como “uma crítica de si mesma”. Diferenciando-se, no interior da tradição platônica da pintura, os teóricos da arte passam a se confrontar com questões de natureza artística. Refinam-se, assim, os sentidos do desenho que recebe o novo significado de imagem mental constituída na interioridade do artista.

Finalizando o Dossiê, Kelvin Falcão Klein recorre à historicização dos modos de atenção conforme estabelece o crítico de arte Jonathan Crary para articular em alguns textos de W. G. Sebald, autor de Austerlitz (2001), Os anéis de Saturno (1995) e Os emigrantes (1992), uma “peculiar mistura de atenção flutuante, multitemporalidade e reflexão sobre as imagens”. Klein explora a proximidade entre os conceitos de “deriva”, “psicogeografia” e “détournement” de Guy Debord e as relações entre escritura e o ato de caminhar em Sebald, a fim de problematizar o vínculo de sua prática poética com a história, a memória e o espetáculo.

A entrevista com Ettore Finazzi-Agrò destaca os impasses historiográficos que atravessam a produção literária brasileira. A partir da hipótese da “situação intempestiva” que marca a temporalidade de nossa formação cultural, o crítico realça a literatura como o espaço de escuta de um sujeito ausente da história, citando Certeau em L’absent de l’histoire. Pois, segundo ele, “na defasagem entre o poder-dizer e o dito […] habita […] uma certa imagem da história e a própria história como sucessão caótica e heterogênea de instâncias aleatórias e como interrogação incessante desse caos e dessa heterogeneidade”.

Em resenha crítica, o escritor e historiador da arte Rafael Cardoso aponta qualidades e lacunas em Books and Periodicals in Brazil 1768-1930: a Transatlantic Perspective (2014). O livro apresenta o estado dos debates sobre a história do periodismo brasileiro, em especial do século XIX. Nem sempre atingindo o resultado proposto, segundo o resenhista, a publicação merece, entretanto, destaque pela reunião de um conjunto importante de temas, constituindo-se uma referência para o público de língua inglesa.

A seção de artigos reforça a proposta geral do Dossiê. André Azevedo remonta à centralidade do visual na tradição ocidental, destacando a arquitetura como arte estratégica para o controle da urbe e seus habitantes. Seguindo essa perspectiva, o autor mostra como a reforma urbana empreendida no Rio de Janeiro, no início do século XX, mantém firmes os laços com tal tradição. O projeto de reordenação de Pereira Passos deixara de considerar, porém, que a cidade e suas tradições – ou as “várias cidades” numa só – pediam mais do que a “persuasão estética” e o ideal civilizatório da remodelação.

O tema da reforma urbana reaparece no texto de Viviane Araújo. A partir de um álbum fotográfico encomendado pelo prefeito de Buenos Aires, Torcuato de Alvear, em 1885, a autora investiga as transformações da cidade na década de 1880. A historiadora destaca a eloquência dessas imagens no interior de um discurso voltado para a difusão de valores como o progresso, a salubridade e a modernidade em que, no entanto, as tensões e os estranhamentos decorrentes da reforma jamais se mostram.

Caio Proença e Charles Monteiro examinam a historicidade do fotojornalismo e suas práticas no Brasil dos anos 1970, tendo em vista as diferentes etapas da atividade. A partir da cobertura fotográfica das manifestações estudantis ocorridas em Porto Alegre, em 1977, publicada pela revista Veja, os autores consideram a natureza peculiar da linguagem visual construída coletivamente num grande veículo de comunicação, investigando suas implicações ideológicas e políticas.

Maria da Conceição Pires analisa estratagemas discursivos e visuais nas tirinhas de Bob Cuspe, personagem do cartunista Angeli. O humor orienta aí os jogos de adesão e oposição aos modelos estabelecidos, criando um entre-espaço no qual se efetua o que ela chama de contraconduta dos modos de viver e interagir numa grande cidade dos anos 1980. Pires realça que a crítica contida nos quadrinhos promove, senão a mudança, ao menos a desestabilização de valores social e historicamente dados.

No contexto da contemporaneidade literária, Felipe Charbel atualiza a tradição do uso de recursos retóricos em Sexo, romance de André Sant’Anna, explorando lugares-comuns, ideias-tipo e repetições no procedimento de tipificação de imagens performáticas. O historiador ressalta o “inesperado” atravessamento do campo do desejo sexual pelo automatismo das relações humanas: “o desejo é pensado no romance como puro discurso social, que realça hierarquias e reforça preconceitos, desumanizando as pessoas em vez de aproximá-las”.

A seção conta ainda com três artigos que tomam o cinema como matéria de reflexão. Alexandre Guilherme e Flávio Trovão investigam a trajetória de vida de Larry Flynt na sua crescente militância pela liberdade de expressão nos EUA. Como objeto de estudo, os autores analisam o filme “O povo contra Larry Flynt” (1996) de Milos Forman. Jean Carlos Costa e Luiza Melo Alvim discutem as relações entre a montagem cinematográfica e a escrita da história a partir das Passagens de Walter Benjamin. Tempo e narrativa são termos problematizados no gênero documentário tratado no texto. Já Sylvia Nemer, aponta para os diferentes olhares sobre a imigração produzidos pelo cinema, destacando adaptações cinematográficas de obras literárias. No artigo, ressalta a diferença de abordagens entre a década de 1970 e os anos 2000.

Encerrando a seção, Roberta Ferreira e Ivan Lima apresentam aspecto pouco estudado da obra do caricaturista Angelo Agostini: sua colaboração em publicações de destaque nos primeiros anos da República brasileira, as revistas O Malho e O Tico-Tico, esta última voltada para o público infantil. O artigo mostra a busca pela inovação da linguagem visual empreendida pelo artista e seu engajamento em temas como a cidadania, o progresso e a república, contribuindo para a reavaliação da memória do desenhista, sempre associada à imprensa oitocentista e à luta pela abolição.

As Notas de Pesquisa completam a proposta da revista. Maria Cristina Volpi reconstrói a trajetória intelectual de Sofia Jobim Magno de Carvalho, pioneira nos Estudos em Indumentária da atual Escola de Belas Artes da UFRJ, especialmente nas décadas de 1940 e 1950. A autora parte do acervo formado pela própria Sofia, atualmente sob a guarda do Museu Histórico Nacional, para revelar sua importância no campo dos estudos da moda e da indumentária. Paralelamente, Volpi ressalta o papel de Sofia no Clube Soroptimista do Rio de Janeiro, associação feminina de origem norte-americana e cunho feminista, da qual foi integrante e uma de suas fundadoras. Isabela Moura Mota examina a série “Tipos do Rio de Janeiro”, publicada em 1863, na revista satírica Semana Ilustrada. A historiadora parte de uma hipótese pouco explorada, aproximando o discurso plástico-literário criado na revista brasileira às fisiologias, gênero editorial de sucesso no início do século XIX, especialmente na França. Caroline Pires Ting aprofunda a relação entre o escritor e dramaturgo Antonin Artaud e o pintor Edvard Munch. Sob a chave da intertextualidade, a autora entrelaça histórias de vida e experimentação plástica e poética, refinando a reflexão sobre as influências entre os artistas. Por fim, Rosiel Mendonça e Vinícius Amaral valorizam a discussão em torno do documentário “Amazonas, Amazonas” produzido por Glauber Rocha em 1966. Os autores explicitam as tensões ideológicas que marcam o contexto de produção da obra, trazendo à luz um Glauber pouco conhecido.

A resposta positiva ao convite para o debate feito por esta Maracanan indica o amadurecimento da relação entre a história e a cultura visual nos estudos realizados no Brasil. O crescente reconhecimento do campo, marcado pela vocação para a aproximação e troca entre distintas tradições, acentua, assim, os méritos de um projeto multidisciplinar.

Laura Nery – Doutora em História Social da Cultura pela PUC-Rio, é professora visitante do Departamento de História da UERJ, onde atua como pesquisadora do Laboratório Redes de Poder e Relações Culturais (Redes) e do Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades Sociais / LEDDES. Integra o grupo de pesquisa do CNPq “Imprensa e circulação de ideias: o papel dos periódicos nos séculos XIX e XX”.

Cláudia de Oliveira – Doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, é professora da Escola de Belas Artes da UFRJ. Coordena o grupo de pesquisa do CNPq “Arte, Gênero e Cultura Visual no Brasil”, e o curso de graduação em História e Teoria da Arte e integra o programa de pós-graduação em Artes Visuais (PPGAV / EBA / UFRJ).

Lúcia Ricotta – Doutora em História Social da Cultura pela PUC-Rio, é professora do curso de Letras do Centro de Letras e Artes da UNIRIO e do Programa de Pós-Graduação em Letras da UNIFESP (PPGLETRAS). Participa dos grupos de pesquisa do CNPq “Literatura e Linguagens: fronteira, espaço, performance, memória” e “Teoria e História Literária e Geografia: Epistemologia, História e Ambiente”.


NERY, Laura; OLIVEIRA, Cláudia de; RICOTTA, Lúcia. Apresentação. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, v.12, n.14, 2016. Acessar publicação original [DR]

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