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Uma dobra no tempo: um memorial (quase) acadêmico – PRETTO (REi)
PRETTO, Nelson de Luca. Uma dobra no tempo: um memorial (quase) acadêmico. Ilhéus-BA: Editus, 2015. Resenha de SOMBRA, Laurenio Leite. Revista Entreideias, Salvador, v. 5, n. 1, jan./jun. 2016.
Ler Uma dobra no tempo, de Nelson Pretto, é uma experiência particular. O subtítulo do livro aponta para um “memorial (quase) acadêmico”. De fato, tudo partiu do Memorial Acadêmico, escrito por ele, como requisito para progressão de carreira na Universidade Federal da Bahia (UFBA), para professor titular. Mas o próprio Pretto lembra que recebeu uma crítica em sua defesa do mestrado: “apesar da linguagem jornalística, está bom” (p. 80). Lendo o livro, percebo que o examinador acertou meio sem saber: a linguagem é “jornalística” porque ela tem uma imensa e desavergonhada capacidade de comunicação: se as “regras da ABNT” estão aqui, nem nos lembramos delas, apenas entramos numa conversa longa e animada em que a gente se enreda numa vida verdadeiramente repleta de construções de diversas ordens, de sucessos e fracassos que são contados com a mesma verve, com um jeito gostoso que não nos poupa sequer de sorrisos e algumas gargalhadas. E qual a regra que diz que um texto acadêmico não pode ser assim? A comunicação de verdade é muito mais do que aquelas regras de “mensagem-emissor-receptor-resposta” com um pouco de ruído: ela pressupõe um nó imenso e complexo de pessoas que contribuem mutuamente, que compartilham ideias, que entram também em conflito. Pressupõe, enfim, uma polis que não se traduz em uma assembleia geral, mas em uma rede de pessoas interagindo e construindo coisas. O que a torna, inevitavelmente política.
Se isso se dá em um casamento indissolúvel com a educação, o propósito de formação ganha um colorido novo: significa incluir o educando nessa rede, escutar o seu desejo, dar-lhe possibilidades que ele não teria de outro modo, lhe conectar. Significa a abertura de não saber o que vai resultar disso, mas a imensa convicção de que esta rede aberta só pode ser profícua, só pode resultar em pessoas melhores, mais interessantes, quem sabe mais cidadãs.
Pois bem: esse casamento indissolúvel de educação (ampliada) e comunicação (ampliada) parece que une a múltipla vida profissional desse físico que se tornou cada vez mais educador, desse educador que foi sempre um comunicador. É nesse contexto que a gente pode ver aquele jovem de 20 e poucos anos “gastando” um período inteiro da disciplina de Física para ensaiar Galileu de Brecht com os alunos do Colégio Marista (p. 50); ou promovendo semanas de debates, no mesmo Colégio, para “julgar” a aventura nuclear do governo militar com os alunos, experiência que, claro, mereceu uma bronca dos próprios militares (p. 51-52). É nesse mesmo contexto que o vemos, desde cedo, inserido num processo de “despelegação” do Sindicato dos Professores no Estado da Bahia (Sinpro) (p. 60-61), inserção política que iria se desdobrar numa participação ativa no Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), no futuro exercício como assessor do reitor e parceiro Felippe Serpa, nos oito anos como diretor da Faculdade de Educação (Faced) da UFBA, e mesmo nas duas campanhas (fracassadas?) para reitor na mesma Universidade.
Por fim: esse casamento de educação e comunicação produziu os vários modos de conexão com os quais estamos a acostumados a acompanhar Nelson Pretto. Nele se inseriu sua atuação no Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), em Brasília, para pensar o livro didático (p. 89-96); lá, a derivação para outras temáticas, como a educação a distância, a discussão da educação via satélite, a televisão educativa; a sua passagem para a FUNTEVÊ no Rio de Janeiro (p. 97-109); o doutorado na Universidade de São Paulo (USP), onde participou ativamente de projeto de TV e vídeo, embrião da futura TV USP (p. 113-118); na volta para casa, na atuação como assessor de Felippe Serpa, o esforço de construção de uma rede na UFBA como embrião do acesso à internet (p. 151-158), os esforços para conectar as diversas universidades; como diretor (p. 185-228), participou da elaboração de um plano diretor para a Faced, da reforma da Biblioteca Anísio Teixeira, de uma adaptação arquitetônica do próprio espaço da Faced, depois o projeto Tabuleiro Digital em Salvador e em Irecê. No meio de tudo, uma ampliação cada vez maior dessa articulação educação-comunicação e a ideia, cada vez mais consolidada, de uma “ética hacker” (p. 245-250), que viraria currículo, aprofundamento teórico, participação em comitês políticos e muita discussão.
Ler o livro de Pretto é perceber, de modo muito concreto, que é possível articular seriedade acadêmica, compromisso político, articulação permanente com os pares da mesma e de outras universidades, e tudo isso sem perder o humor. Quem não quiser se comprometer, sugiro que não o leia.
Laurenio Leite Sombra – Doutor em Filosofia (UFBA) e Mestre em Filosofia (Unb).