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Ao longo daquelas ruas: a economia dos negros livres em Richmond e Rio de Janeiro, 1840-186 – VILLA (Tempo)
VILLA, Carlos Eduardo Valencia. Ao longo daquelas ruas: a economia dos negros livres em Richmond e Rio de Janeiro, 1840-1860. Jundiaí: Paco Editorial, 2016. 400 p.p. Resenha de: BOTELHO, Tarcísio Rodrigues. Ao longo daquelas ruas: a economia dos negros livres em Richmond. Tempo, v.24 n.2 Niterói maio/ago. 2018.
Embora a história comparada tenha uma longa e importante trajetória na historiografia contemporânea, ela implica enfrentar uma série de questões que fazem com que poucos historiadores se aventurem nesse ramo. Em primeiro lugar, é necessário definir muito bem o que será comparado, pois os objetos selecionados devem conter ao mesmo tempo semelhanças (para que possam ser de fato comparados) e diferenças (para que se consiga avançar no conhecimento da área). Em seguida, é preciso recortar escopos documentais que permitam realizar a pesquisa, e isso é mais problemático à medida que se recua no tempo, pois os tipos documentais disponíveis para os objetos escolhidos tendem a ser cada vez mais diversos. Em terceiro lugar, é fundamental que se tenha clareza das opções metodológicas, bem como segurança em seu uso, para que elas permitam de fato articular as questões levantadas e as fontes disponíveis. Finalmente, há um problema cada vez mais recorrente no meio acadêmico e que inviabiliza muitas pesquisas comparadas, que é o tempo demandado para sua execução, pois no mínimo deve-se ter familiaridade com discussões historiográficas e fontes documentais distintas, as quais se pretende comparar.
A obra de Carlos Eduardo Valencia Villa é um bom exemplo de como todas essas questões podem ser enfrentadas com sucesso, mesmo no curto tempo que hoje se pode dedicar à realização do doutorado. E a prova de seu êxito é o fato de ter sido distinguida com o prêmio Anpuh-Rio de Janeiro Eulália Maria Lahmeyer Lobo no ano 2014. A publicação em livro da tese revista permite agora que um número muito maior de leitores possa ter acesso aos resultados de sua pesquisa. Contudo, mais do que apenas os resultados, creio que a melhor contribuição do livro reside na exposição de suas opções metodológicas, calcadas em vasto levantamento documental, que respeitou as especificidades de cada uma das cidades que ele decidiu comparar.
O primeiro aspecto a se destacar na obra é, portanto, a definição daquilo que será comparado. A escolha recaiu sobre duas cidades (Richmond e Rio de Janeiro) de dois países muito distintos (Estados Unidos e Brasil), embora entrelaçados por uma mesma instituição: o escravismo. Como destaca o autor, o que se irá comparar serão cidades oitocentistas, atlânticas e escravistas. Oitocentistas porque foi nesse momento histórico que ambas assumiram a posição de importantes centros econômicos, demográficos e políticos. Atlânticas porque a condição de porto não apenas as tornava semelhantes em muitos aspectos como também as unia por meio do comércio, sintetizado no binômio café (do Rio de Janeiro) com pão (do trigo de Richmond). Escravistas porque em ambas se empregavam vastos contingentes de escravos em amplos setores da sociedade. E, embora compartilhassem essas similaridades, elas também eram díspares: o Rio de Janeiro era uma cidade com uma população muito superior à de Richmond, e sua influência política no território nacional ao qual pertencia era muito maior do que o papel que Richmond chegou a desempenhar no sul dos Estados Unidos e mesmo em período posterior, durante a Guerra de Secessão. Entretanto, é exatamente nesse equilíbrio entre o que se assemelha e o que se diferencia que se buscam os melhores resultados de um estudo comparado.
O desafio seguinte enfrentado pelo autor foi conhecer as fontes documentais disponíveis em ambas as cidades que pudessem trazer informações sobre a economia de seus negros livres. E aqui residem os maiores problemas enfrentados. O autor reconhece que a grande flexibilidade social dos negros livres implicava desafios para conseguir acompanhá-los, tanto em Richmond quanto no Rio de Janeiro. Entretanto, em cada uma delas essa flexibilidade transparecia na documentação de forma diferente. A solução foi buscar fontes massivas de informação que também trouxessem os nomes dos indivíduos, de modo a poder cruzar as observações mais gerais da abordagem quantitativa com achados mais esclarecedores permitidos por uma abordagem qualitativa. Desse modo, foram levantados milhares de anúncios de jornais e de escrituras em ambas as cidades, além das listas de impostos pessoais e dos censos de Richmond. Também foram construídas algumas séries de dados econômicos, sobretudo de preços, que permitiram acompanhar as diversas conjunturas compartilhadas pelas duas cidades. Nesse sentido, deve-se destacar a periodização feita pelo autor, que dividiu as duas décadas de pesquisa em quatro momentos específicos: 1840-1846, 1847-1850, 1851-1856 e 1857-1860. A análise quantitativa deu à luz uma simetria bastante grande (embora não perfeita) entre os ciclos econômicos vividos pelas duas cidades, separadas por milhares de quilômetros, mas unidas pelo Atlântico. Essa união atlântica fica clara, por exemplo, quando se percebe que a conjuntura de crescimento econômico no início da década de 1850 no Rio de Janeiro, muitas vezes atribuída ao fim do tráfico de africanos e a consequente “liberação de capitais” para serem aplicados em outras atividades econômicas, na verdade foi compartilhada por Richmond, o que denota tratar-se mais de um movimento econômico internacional do que de uma conjuntura interna ao Brasil.
Um levantamento massivo de dados pode gerar, entre seus subprodutos, um atordoamento que impede a visualização de qualquer tendência ou sentido. Isso só pode ser minimizado por estratégias metodológicas bem-elaboradas e adequadas tanto ao objeto quanto aos dados disponíveis. Nesse sentido, a obra de Villa apresenta-se também como um bom guia metodológico para trabalhos historiográficos de mesma natureza. Além da análise estatística, tanto descritiva quanto inferencial, deve-se destacar o uso inovador da cartografia histórica em conjunto com o sistema de informação geográfica (SIG). O livro apresenta uma série de mapas das cidades de Richmond e Rio de Janeiro, baseados em cartas de época. Entretanto, esses mapas não são meras ilustrações, e sim uma estratégia metodológica elaborada para resolver o problema da falta de dados precisos sobre a localização dos sujeitos no espaço da cidade. Embora houvesse uma quantidade enorme de informações sobre indivíduos em locais específicos da cidade, não era possível compará-los no tempo, porque as referências a endereços não eram precisas. A solução encontrada foi trabalhar com áreas da cidade (em lugar de pontos individualizados), de modo a permitir acompanhar as transformações ocorridas ao longo do tempo, sobretudo no que diz respeito ao comportamento da mão de obra. Dado o uso ainda recente e incipiente do SIG na historiografia brasileira, esse é outro aspecto que torna a obra de Villa especialmente valiosa.
Do ponto de vista da apresentação, o livro se organiza em uma introdução, cinco capítulos e uma conclusão. A introdução é dedicada a uma discussão historiográfica que conduz o leitor à definição do tema: a economia dos negros livres em meados do século XIX. Daí, segue-se uma discussão da pertinência da comparação, justificando a escolha das duas cidades (Richmond e Rio de Janeiro). Há uma descrição das fontes que levaram a certas decisões quanto aos dados a serem levantados e às metodologias a serem adotadas. Finalmente, há uma justificativa do período a ser abordado (1840-1860).
O Capítulo 1 (“O vaivém nos portos”) descreve as cidades de Richmond e Rio de Janeiro, iniciando-se com a economia da cidade e sua ligação umbilical com as atividades portuárias. Esse é, inclusive, o elemento que ligaria duas cidades tão geograficamente distantes. Em seguida, descreve-se a situação dos trabalhadores, sobretudo escravos. O terceiro item trata do perfil demográfico de ambas as cidades desde a década de 1820 até a década de 1870; nesse momento também são apresentados os mapas das cidades que serão utilizados no georreferenciamento. O quarto item trata do perfil dos “negros livres”, e nesse ponto evidencia-se uma diferença nas fontes do Rio de Janeiro e de Richmond. Enquanto em Richmond a documentação censitária e fiscal identifica com mais clareza a cor (e em muitos casos a condição social), no Rio de Janeiro a documentação cartorária não traz essa informação. O autor contorna essa limitação ao concentrar seu foco nas escrituras de menor valor, supondo que nestas predominariam as pessoas de cor. O último item desse capítulo aprofunda a descrição das cidades e sua posição econômica e política em seus contextos nacionais.
Os capítulos seguintes vão apresentar o que seria o comportamento econômico dos negros livres nas duas cidades, e cada um deles abordará um dos quatro momentos específicos identificados pelo autor. O Capítulo 2 (“Na esquina ou na metade do quarteirão: primeiros negócios, 1840-1846) é o mais longo deles, porque se incumbe de apresentar pela primeira vez ao leitor como as informações foram sendo organizadas e tratadas para se obterem os resultados sistematicamente apresentados a seguir, sobretudo em relação ao georreferenciamento; e, em seguida, se estruturam os itens que se repetirão nos capítulos seguintes. Os Capítulos 3 (“Ainda na freguesia e no bairro: a vida econômica na metade do século, 1847-1850), 4 (“Para além da rua: a expansão econômica no começo da década de 1850”) e 5 (“A estrada que virou beco: os problemas econômicos, 1857-1860”) se organizam de forma semelhante, em quatro itens que contemplam a conjuntura econômica, o mercado de trabalho, o custo de vida, o patrimônio dos “negros livres” e sua localização espacial. Esse, que é o núcleo central do livro, apresenta um desafio quanto à narrativa. Os dados coletados e tratados pelo autor devem ser apresentados de forma sistemática e comparável, por isso parecem repetitivos e às vezes confusos. Entretanto, não há como escapar desse formato, porque é ele que costura a comparação e evidencia os achados que ela permite. O autor mescla tal abordagem com uma série de evidências qualitativas, construídas muitas vezes pelo cruzamento nominal de diversas fontes. Esse contraponto procura responder ao anseio do autor, formulado ainda em sua introdução, de fugir da mera descrição quantitativa, de cair em uma história descarnada. Essa estratégia funciona de forma variada. De modo geral, permite ao leitor “respirar” em meio ao oceano quantitativo; às vezes, vai mais longe e possibilita que se chegue perto dos atores sociais (como é o caso do Capítulo 5, no qual a crise econômica ganha uma face humana ao se observar mais de perto o que acontece com o patrimônio dos indivíduos).
O livro se encerra com considerações finais, que a rigor são verdadeiras conclusões. Enquanto muitos autores de livros e teses se abstêm de formular conclusões, Carlos Villa proporciona ao leitor uma revisão do que foi apresentado ao longo do livro, o que considero algo de louvor.
A obra resenhada, portanto, é um trabalho historiográfico de fôlego, tanto do ponto de vista das fontes documentais quanto das estratégias metodológicas e ainda da forma de apresentação. Merece figurar entre as melhores obras de história econômica lançada nos últimos anos, destacando-se sobretudo pelos desafios metodológicos que lança e soluciona.
Entretanto, há um conjunto de observações a serem feitas. Em primeiro lugar, na verdade, o autor compara dois grupos distintos: a população de cor de Richmond e o segmento mais pobre da população do Rio de Janeiro. Embora os dois grupos possam se sobrepor, eles são distintos. Isso fica claro no início da tese, e considero uma estratégia válida para superar as limitações da documentação carioca quanto à declaração da cor. Mas, à medida que a tese avança, essa diferenciação vai sendo ocultada, de modo que na conclusão já se fala em “negros livres richmonianos e cariocas” (p. 297). Considero que isso deveria ser mais bem explicitado e tratado com mais cuidado.
Em segundo lugar, chamo a atenção para a ausência de referências à obra de Zephyr Frank (2004). Os trabalhos de Frank e Villa abordam a mesma cidade (o Rio de Janeiro), tratam de período semelhante (meados do século XIX), usam fontes semelhantes (a documentação cartorária) e incorporam de forma inovadora o georreferenciamento. Seria bastante interessante se o leitor interessado nesses tópicos pudesse ver um contraponto mais explícito entre as duas pesquisas.
Finalmente, quero chamar a atenção para falhas na revisão do livro, e isso é um problema não do autor, mas da editora. Faltou uma melhor revisão gramatical, pois o texto contém palavras e expressões que não são de uso corrente na língua portuguesa. Ademais, há referências a livros que não constam na bibliografia final, privando o leitor dessa informação primordial. Um livro tão inovador mereceria um cuidado maior por parte da editora.
Tais observações não diminuem em nada a importância e o interesse do livro. Como já destaquei, suas inúmeras qualidades, tanto em termos de conteúdo historiográfico quanto em termos de avanços metodológicos, o tornam leitura obrigatória não apenas para os interessados em temas como escravidão urbana e história econômica, mas para todos aqueles que queiram se inteirar de novas perspectivas metodológicas para os estudos historiográficos.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
FRANK, Zephyr Lake. Dutra’s world: wealth and family in nineteenth-century Rio de Janeiro. Albuquerque: University of New Mexico Press, 2004. [ Links ]
Tarcísio Rodrigues Botelho – Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) – Belo Horizonte (MG) – Brasil. E-mail: tarcisio.botelho@gmail.com