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Resistência: memória da ocupação nazista: memória da ocupação nazista na França e na Itália – ROLLEMBERG (Topoi)
ROLLEMBERG, D. Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália. São Paulo: Alameda, 2016. Resenha de: GHERMAN, Michel. “Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália.” Uma perspectiva comparativa acerca do uso da memória. Topoi v.19 n.37 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2018.
Em seu livro Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália, publicado pela editora Alameda em 2016, a historiadora Denise Rollemberg propõe uma reflexão relativamente rara em trabalhos produzidos no Brasil: a análise dos lugares de memória da resistência ao nazismo em países que tiveram distintas experiências em relação à ocupação na Segunda Guerra Mundial, França e Itália.
Sua obra se divide em uma apresentação e em mais duas partes. Na apresentação, capítulo “Resistência: o desafio conceitual”, a autora faz um cuidadoso debate acerca das formas de resistência, de sua historiografia e de seus usos políticos. A Parte I, que trata de “Memória e resistência na França” se divide em dois capítulos.
No capítulo 2, “Museus e memoriais franceses”, é feita a análise de monumentos e museus da resistência francesa, discutindo referências teóricas de história e de memória e suas distintas adaptações nos vários casos dos “lugares de Memória” (p. 92) no país. No capítulo 3, “Em algumas horas vou morrer… As cartas de despedida dos resistentes”, a autora analisa cartas de despedida deixadas por resistentes que seriam, às vezes algumas horas depois de escrevê-las, fuzilados. Interessante notar aqui a tentativa de desconstrução de percepções prévias, por vezes consolidadas na memória da resistência, sobre os “mártires” assassinados pela repressão nazista.
Finalmente, na parte II: “Memória e resistência na Itália”, composta por mais dois capítulos, a autora faz uma reflexão sobre o uso da memória no país. O capítulo 4, “Museus e memoriais italianos” é aberto por um interessante debate sobre a própria construção da história italiana, no que diz respeito à memória da resistência. A partir dessa percepção, a resistência aberta ao nazifascismo, de fato estabelecida a partir da invasão estrangeira ao país (em 1943), teria sido iniciada, segundo a narrativa italiana do pós-guerra, já com a subida de Mussolini ao poder. Aqui, exposições e memoriais analisados parecem tentar estabelecer uma história contínua de resistência ao fascismo a partir da década de 1920. No livro, a autora aponta estratégias usadas na construção da memória sobre a resistência na Itália ao utilizar referências da unificação italiana (risorgimento, em fins do século XIX), como forma de estabelecer uma narrativa nacional contra a invasão alemã e o fascismo (p. 236).
Por fim, no capítulo 5, “Os sete fratelli”, o livro trata dos memoriais em homenagem a sete irmãos, militantes contra o fascismo, fuzilados em 1943. Aqui a autora analisa como os irmãos, simpatizantes do comunismo e moradores do interior da Itália, são alçados, no pós-guerra, à condição de símbolo nacional de resistência ao fascismo no país. Ao refletir sobre memoriais e museus em homenagem aos “sete fratelli”, a historiadora estabelece uma reflexão sobre a construção de uma memória sacralizada (p. 235) que transforma o caso específico de resistência e fuzilamento em referência simbólica da luta contra o nazifascismo na Itália.
O livro Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália constitui um trabalho importante por estar baseado em duas propostas de análise distintas e complementares. A primeira delas pretende estabelecer um estudo acerca da ocupação nazista em alguns países da Europa ocidental (França, Itália e Alemanha). Nesse contexto, a ideia de “uma resistência europeia” é desafiada. Para isso, a autora tenta historicizar a noção de resistência, ao propor questões determinadas pelas especificidades da política de ocupação em cada país.
A segunda proposta de análise está relacionada com a construção de uma memória da resistência. Aqui, Rollemberg analisa as narrativas sobre a resistência nos países citados. Essa revisitação da história é feita a partir da reflexão sobre os “usos da memória” na França, na Itália e na Alemanha, apresentando importante contribuição para debates acerca da ideia de memória sobre a resistência ao nazismo (p. 40).
O desafio de estudar museus e monumentos em países que tiveram experiências tão diferentes em suas respectivas relações com a expansão do nazismo na Europa demanda extrema habilidade na análise documental (de museus e memoriais), bem como uma perspectiva metodológica que garanta pertinência aos objetos escolhidos. Acredito que o livro de Denise Rollemberg tem muito sucesso em suas escolhas.
Esse sucesso está relacionado à cuidadosa análise que a autora faz do próprio conceito de resistência. Ao propor uma espécie de “dialética da resistência” (p. 20), Rollemberg afirma que o sentido de resistência deve estar menos vinculado, como propunha uma historiografia mais tradicional, com análises reificadas e absolutizadas da resistência propriamente dita. Aqui, a autora busca uma análise mais aprofundada a partir perspectivas mais críticas da própria resistência. Os diversos regimes escolhidos são analisados em conjunto com as respectivas formas de resistências ao nazismo. Nesse contexto, a historiadora propõe uma dinâmica comparativa entre dois (ou três) países com experiências bastante distintas na guerra: França e Itália (e Alemanha). Apesar de regimes diversos e das diversas formas de resistir, é proposto no livro que as referências de comparação podem ser não apenas possíveis, mas devem ser uma importante referência de pesquisa (p. 19).
Em sua pesquisa a historiadora propõe que seja estabelecida uma relação entre “forma da ocupação” e “forma da resistência”. Assim, o livro relaciona os diversos regimes de ocupação nazista às várias formas de resistência. Segundo a autora, onde as expressões do totalitarismo e da ocupação fossem mais pungentes e completas, mais flexíveis e menos específicas seriam as possibilidades de resistência. Nos casos em que o totalitarismo e a ocupação tivessem menos sucesso, as formas da resistência apareceriam de maneira menos ampla e mais objetiva.
Nesse sentido, países onde estruturas do regime fossem efetivamente hegemônicas, como é o caso da Alemanha, as formas de resistência deveriam ser vistas com lentes que dessem a elas maior expressão. Em países como a França (principalmente no norte do país), as análises sobre resistência deveriam ser feitas com mais exigência e fôlego, afinal, haveria, a princípio, maior espaço social e político para formas mais específicas e objetivas de resistência ao regime ocupante (p. 20).
Ao se debruçar sobre o caso francês, a autora faz um estudo de casos sobre “a história da memória” da resistência à ocupação. Se após a libertação a França produziu uma memória de “todos os resistentes”, essa memória se desloca para outro lugar depois das primeiras três décadas depois da ocupação nazista. Aqui, o livro aponta como referência o lançamento do documentário Le Chagrin et La Pitié, como forma de localizar e justificar a mudança da memória francesa no que diz respeito à resistência de todos. A perspectiva do documentário desafiava a memória oficial francesa, justamente por inverter esses sinais. A tese central do filme era de que, na França, todos foram, de uma maneira ou de outra, colaboracionistas (p. 21).
Nesse contexto, o “mito da resistência”, utilizado por governos do pós-guerra, seria substituído pelo “mito da colaboração”. Em um movimento de “contramemória”, os franceses revisitam as experiências do nazismo com, por assim dizer, sinais trocados. A autora defende que as transformações no tratamento da memória da resistência tenham sido um subproduto das manifestações de maio de 1968. Desse modo, a derrubada de heróis (típica da rebelião dos estudantes) chegava à experiência da resistência na guerra. Importante notar, como bem apontado no livro, que a produção dessa contramemória ocorre em um momento em que a geração dos “resistentes”, ou “colaboradores”, ainda estava ativa na França (p. 26).
Nessa dinâmica de memória e contramemória, a autora nota que outro debate começa a consolidar-se historiograficamente justamente após a publicação de uma importante obra que será referência. Vichy, France escrita pelo britânico Robert Paxton, propunha uma análise mais complexa do fenômeno da resistência. Nesse contexto, se buscava fugir das lógicas absolutas fosse da “nação de resistentes”, fosse da “nação de colaboradores”. De fato, o modelo paxtoniano apresenta uma nova abordagem sobre a história da resistência francesa, ou, segundo Rollemberg “entre os dois modelos de memória, ou entre as duas memórias, a historiografia buscou seu caminho próprio” (p. 23).
A partir desse momento, o livro debate modelos “pós-paxtotianos” da historiografia francesa que vão estabelecer critérios mais claros no que diz respeito às formas de resistência e as formas de colaboração. Afastando-se da noção do “homem providencial” (p. 27) e da naturalização da resistência (ou da colaboração) a historiografia francesa estabelece fronteiras e critérios para discutir formas de resistência na história do país.
A partir de então, a autora propõe que, para além de perspectivas “sacralizadas” das vítimas (p. 9), o “giro historiográfico” francês passa também a lidar com referências mais complexas de resistência. Saindo do debate baseado em figuras heroicizadas (no caso de resistentes) ou vilanizadas (no caso de colaboracionistas), a autora propõe análises a partir das “zonas cinzentas” de atuação (usando o conceito que Laborie pega emprestado de Primo Levi) (p. 9). A disputa entre a vítima sacralizada e a produção historiográfica mais crítica ainda está, entretanto, presente nos monumentos e nos debates sobre a memória francesa, como a autora bem demonstra no decorrer do livro (a abertura da obra com o exemplo do memorial de Jean Moullin ilustra muitíssimo bem esse debate) (p. 9).
Na parte sobre a resistência italiana, a autora trabalha a partir da perspectiva comparativa e estabelece características distintas em relação à resistência francesa. A resistência italiana se inicia com a ocupação nazista no país, justamente após a derrota do fascismo. Ou seja, há uma clara definição temporal e política sobre o início da resistência. Em comparação com a oposição contra o fascismo, a relação com os ocupantes nazistas aliados do fascismo era de combate (p. 44).
Esse período se estabelece quando estruturas de poder nazistas (como a Gestapo e a perseguição aos judeus) (p. 45) começam a se apresentar na Itália. Nesse momento, os opositores históricos ao fascismo italiano iniciam a resistência aos nazifascistas. Assim, a resistência italiana teria surgido, conforme propõe a autora, em 1943, junto à ocupação estrangeira.
Como bem coloca a historiadora, o combate e o apoio dos resistentes italianos é mais militar do que político (em comparação com a resistência francesa), apesar dos vários grupos envolvidos no combate aos nazistas (comunistas, democratas cristãos, socialistas, anarquistas etc.) e de suas perspectivas distintas de combate e de vitória sobre nazifascismo (tese das três guerras, p. 47).
Nesse sentido, inclusive haveria dois ocupantes no mesmo momento, os aliados (percebidos como parceiros na luta contra o nazifascismo) e os nazistas (em sua aliança com os fascistas), que teriam se transformado em inimigos e alvo da resistência italiana na guerra.
Nessa realidade, apresentada como referência comparativa ao que ocorria na França, a Itália vai produzir uma rede de memoriais, museus e monumentos muito específicos, como a autora apresenta na última parte do livro.
O último caso comparativo da obra de Denise Rollemberg é o caso da Alemanha, que por algum motivo não aparece no título e nem é alvo de análise quando a autora fala dos monumentos à resistência, na última parte da obra. Bastante diferente dos dois casos discutidos anteriormente, o caso da resistência na Alemanha é único.
Em primeiro lugar por não se tratar de uma resistência a invasão de potência estrangeira. A “resistência” alemã se estabelece no enfrentamento (ou na oposição) a um movimento social e político do próprio país. O segundo ponto importante está relacionado com o caráter do regime. Ao contrário do que ocorria na Itália e na França, a base social, as possibilidades de delação e o diminuto espaço para resistências criavam um tipo muito específico de oposição ao regime. Conforme proposto pela autora, no caso da Alemanha, o estabelecimento de um regime de alto grau de controle demanda que as análises de possíveis resistências sejam mais flexíveis e amplas. É isso que a autora faz.
A resistência alemã ao regime nazista fez com que ao fim da guerra se estabelecesse uma percepção de “grande élan moral e com um engajamento político intenso” (p. 50) que procurava se opor à “tese da culpabilidade coletiva”. Nesse sentido, se pretendia estabelecer uma espécie de lastro político para que “da outra Alemanha” pudesse surgir uma “nova Alemanha” (p. 51).
A ideia de que seria inviável, dado às expressões totalitárias do regime, que houvesse resistências internas na Alemanha foi largamente aceita, conforme mostra a autora, pelos historiadores do pós-guerra. A ideia de impossibilidade fazia com que se buscassem novas formas de compreensão da resistência alemã no contexto do regime nazista.
Essa perspectiva foi desafiada por Martin Boszat já na década de 1970. Para o historiador, a noção de “resistenze” (reações espontâneas, quase naturais) poderiam descrever as formas de “resistência” na Alemanha. Assim, a simples negação de uma saudação nazista, ou a não participação em desfiles do regime, seriam, em última instância, maneiras de resistir ao regime totalitário. Dessa forma, posicionamentos quase que exclusivamente individuais e “funcionalistas” (em oposição à natureza intencionalista da resistência francesa e italiana, p. 53), seriam as referências possíveis em uma Alemanha dominada pelo nazismo.
Na década de 1980, Ian Kershaw vai desafiar as perspectivas propostas por Boszat. Segundo ele, referências individuais e pontuais de “resistenze” poderiam apagar “zonas cinzentas ideológicas” (p. 54) que foram estabelecidas pelo próprio regime. Aqui, Kershaw chamaria a situação de dissidência, mas não utilizaria o conceito de resistência, sob o risco, segundo ele, de produzir-se heroicização de atitudes individuais. A autora faz, então, um levantamento de tentativas de resistência a partir de movimentos políticos coletivos que, apesar de poucos e dispersos, aconteceram na Alemanha nazista.
Esse debate sobre “culpabilidade coletiva”, “outra Alemanha” e sobre formas individuais e coletivas de resistência vai criar outro modo de produção de memoriais e museus que, infelizmente não são tratados no livro, centrado nos casos da Itália e da França.
A publicação no Brasil de um livro sobre a memória da resistência em países ocupados pelos nazistas na Europa é de fundamental contribuição em nosso país, no qual o debate sobre memória e resistência à ditadura parece encontrar novos desafios políticos e historiográficos.
Referências
ROLLEMBERG, D Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália. São Paulo: Alameda, 2016. [ Links ]
2Como citar: ROLLEMBERG, D Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália. São Paulo: Alameda, 2016. Resenha de GHERMAN, Michel. Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália. Uma perspectiva comparativa acerca do uso da memória. Topoi. Revista de História, Rio de Janeiro, v. 19, n. 37, p. 232-236, jan./abr. 2018. Disponível em: <http://www.revistatopoi.org>.
Michel Gherman – Pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: michelgherman@gmail.com.
Resistência – Memória da ocupação nazista – ROLLEMBERG (Tempo)
ROLLEMBERG, Denise. Resistência – Memória da ocupação nazista na França e na Itália.. São Paulo: Alameda Editorial, 2016. 374p. Resenha de CARVALHO, Bruno Leal Pastor. Resistência – memória e historiografia em panorama. Tempo v.23 no.1 Niterói jan./abr. 2017.
O nome da historiadora Denise Rollemberg, professora de história contemporânea do Instituto de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF), sempre esteve muito associado aos estudos sobre ditadura militar brasileira, tema para o qual contribuiu de maneira original com as pesquisas que realizou no mestrado e no doutorado. Nos últimos anos, Rollemberg vem se dedicando a outros regimes de exceção do século XX, igualmente marcados pelo elevado grau de violência. Essa expansão de domínios já tinha dado as caras com as coleções “História e memória das ditaduras do século XX” e “A construção social dos regimes autoritários”, publicados em 2010 e 2015, respectivamente, ambas coordenadas em parceria com a historiadora Samantha Viz Quadrat (UFF). Em 2016, esse caminho se consolida com a publicação do livro Resistência – memória da ocupação nazista na França e na Itália (Rio de Janeiro: Alameda, 2016).
“Resistência” é o resultado direto da pesquisa que Rollemberg vem desenvolvendo, nos últimos anos, sobre diversos museus e memoriais da resistência ao nazismo em França, Itália, Alemanha, Países Baixos e Polônia, pesquisa essa que contou com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). No livro, a autora propõe um exame crítico do conceito de resistência, recorrendo, para tal, aos esforços da historiografia do pós-guerra e a estudos de memória, analisando narrativas presentes em museus e memoriais localizados na Itália e na França, países onde estes são mais numerosos. Segundo Rollemberg, a Itália, ocupada entre 1940 e 1945, conta com cerca de 60 museus dedicados ao tema, ao passo que a França, ocupada entre 1943 e 1945, tem aproximadamente 15. O livro é dividido em cinco capítulos, quatro dos quais distribuídos em duas partes, além de uma apresentação.
No primeiro capítulo, o leitor encontra uma breve, porém consistente, discussão historiográfica sobre o conceito de resistência. E esse não é um debate simples de se fazer. Durante a Segunda Guerra Mundial, parte significativa da Europa foi ocupada pelas forças alemãs. Os nazistas derrubaram democracias e ditaduras, regimes parlamentaristas e monarquistas, de países pequenos e grandes do ponto de vista territorial. Enquanto alguns governos caídos reerguiam-se no exterior, parte da população desses países, organizada ou não, militarmente ou não, resistiu ao invasor e aos colaboracionistas usando os mais diferentes expedientes. Como abordar, então, um debate tão amplo? Em vez de propor respostas generalistas, Rollemberg faz aquilo que se espera de um bom historiador: um recorte. A historiadora volta seu olhar para o debate historiográfico surgido na França, na Itália e na Alemanha no pós-guerra.
Ao falar do caso francês, Rollemberg dá destaque para trabalhos como o de Henri Michel, autor da primeira tese acadêmica sobre a França ocupada, defendida em 1962, e de Robert O. Paxton, que, nos anos 1970, segundo a autora, deu uma “guinada” na historiografia francesa sobre o tema, até ali ainda muito tributária do mito da resistência. Outros autores, mais contemporâneos, também são bem lembrados, tais como François Bédarida, François Marcot, Henry Rousso e Denis Peschanski. Todos esses autores, de forma bastante pioneira, enfrentaram problemas de definição bastante sensíveis que foram se colocando ao longo do tempo: seriam resistentes apenas aqueles que pegaram em armas ou aqueles que também protegeram judeus ou desobedeceram a ordens do governo? Resistência é uma ação coletiva ou também é possível concebê-la individualmente? Resistir é uma luta de oposição interna ou contra um inimigo estrangeiro? Podem-se incluir dentro do “guarda-chuva” resistência ações das igrejas católicas e protestantes que intercederam em favor dos perseguidos pelo nazismo e pelo fascismo?
No caso italiano, há diferenças expressivas. Rollemberg explica que a historiografia tem nos chamado a atenção para a existência tanto de uma oposição ao fascismo (1920-1922 e 1943) quanto de uma resistência a este (1943-1945). Aqui, a autora perpassa os trabalhos de historiadores como Gianni Perona, Zeev Sternhell e Claude Pavone, este último autor de uma tese publicada em 1991 que sustenta a ideia de que a Resistência italiana abrigou três guerras simultâneas: a patriótica, a civil e a de classe. Por fim, há o debate sobre a historiografia alemã, bastante especial, uma vez que a Alemanha não esteve ocupada por um inimigo externo durante os anos de guerra. Rollemberg, nesse ponto, dá ênfase aos trabalhos de Martin Broszat, fundador e diretor do Instituto de História Contemporânea de Munique, que, na década de 1970, desenvolveu o conceito de resistenza, originário da biologia, para se referir a uma “atitude refratária” dos alemães diferente, em essência, do conceito de resistência – pelo menos como este tem sido normalmente em outros países. Empregando mecanismos e estratégias da história social, Broszat recuperou e esmiuçou aspectos da vida cotidiana da população bávara sob o Terceiro Reich, procurando avaliar “pequenas formas de coragem do cidadão” perdidas no meio do cotidiano do alemão anônimo. Além de Broszat, a autora também se apoia no trabalho de nomes como (Sir) Ian Kershaw e Klaus-Jünger Müller, igualmente decisivos para uma melhor compreensão do tema da resistência na Alemanha.
O debate sobre a historiografia italiana é mais breve que o sobre a francesa e a alemã. Mas isso não enfraquece a importância do primeiro capítulo, mais do que fundamental em um país como o Brasil, cuja tradição editorial, mesmo a universitária, não parece nem um pouco sensível ao tema da resistência ao nazismo, ocupando-se muito pouco com a tradução de livros clássicos nessa área. Isso tem deixado incontáveis gerações de estudantes de história desamparados. Aliás, embora nazismo e fascismo sejam uma pauta recorrente em mídia de massa, a universidade ainda enfrenta bem pouco suas problemáticas. Na maior parte das universidades, o portfólio de disciplinas que abordam esses temas ainda é bastante tímido, talvez, pelo menos em parte, pela ainda mais tímida disponibilidade de material bibliográfico sobre eles no país. Nesse sentido, o debate conceitual-historiográfico nesse capítulo do livro é um plano de voo valiosíssimo para quem deseja alçar voo nesses campos historiográficos.
Os Capítulos 2 e 3 compõem a Parte I do livro, dedicada aos museus e memoriais franceses. No Capítulo 2, a autora faz uma análise dos vários “lugares de memória” que visitou na França. Foram 16 no total, distribuídos por todo o país. Em vez de preocupar-se apenas com os tipos de objetos exibidos em cada museu, Rollemberg faz uma leitura ampla e interdisciplinar da museografia dessas instituições, o que inclui olhar para elementos como textos, localização, contextos, iluminação, som, meios digitais e outros elementos museográficos, que, uma vez pensados juntos, nos levam a perceber o discurso museográfico. Isso nos permite pensar museus e memoriais como um projeto muito maior, integrado à sociedade e que tem por base determinados projetos político-pedagógicos. A tese que Rollemberg defende no decorrer dessa análise é bastante clara. De acordo com a autora, durante muito tempo os memoriais e museus franceses elaboraram um discurso laudatório e mitológico da resistência. As instituições, por exemplo, pouco mencionavam o colaboracionismo e produziam narrativas apaziguadoras dos anos de ocupação. No caso francês, o modelo gaullista de memória foi predominante e pouco admitia concorrência. Na década de 1970, aponta Rollemberg, isso começou a mudar, haja vista que a própria sociedade mudava. Passou-se a discutir mais abertamente Vichy, tal como as contradições e as complexidades das resistências, assim mesmo – vistas a partir de agora no plural. Rollemberg acredita que os museus desde então vêm mudando de discurso. “Hoje,{…} os museus e memoriais não são mais simplesmente a celebração de um mito. Procuram rever antigas interpretações, posicionando-se diante de revisões presentes na historiografia e no debate político” (p. 85). A autora cita, por exemplo, como prova desse ponto de injunção, a incorporação ao plano da curadoria histórias do colaboracionismo, das múltiplas das formas resistência e de narrativas dos judeus.
Por outro lado, e aí chegamos à segunda grande questão desse capítulo, a autora acredita que essa transformação não foi completa. Muitas instituições, conforme pontua, ainda estão apegadas ao modelo memória-homenagem, o que implica, quase sempre, a elaboração de personagens unidimensionais, sem opções em suas épocas históricas, sujeitos que ou são vítimas, ou são algozes. Uma de suas críticas nesse capítulo é destinada ao Museu de Grenoble, cuja curadoria é extremamente preocupada com o público infantil e juvenil. Em uma exposição, por exemplo, há o holograma de um jovem, filho de um resistente, que dá um depoimento bastante assustador e sombrio dos tempos da resistência. Em seguida, a projeção aproxima-se dos jovens visitantes do museu e pergunta se as memórias que eles acabaram de ouvir estariam apenas ligadas ao passado ou se têm ligação também com o presente. Um cronômetro é disparado e, depois, conhecem-se as estatísticas registradas até aquele momento pelo sistema. Para Rollemberg, a evocação da resistência por meio da chave familiar e de uma teatralização da vida pode ser problemática. O museu abriria mão da vocação histórica e assumiria a vocação de memória. “Além da construção da memória em favor de certos valores éticos e políticos, esse e os demais recursos pedagógicos vistos aqui são também discursos moralizantes, segundo certa concepção de história que lhe atribui a função de, através do conhecimento do passado, evitar erros futuros” (p. 131).
No Capítulo 3, Rollemberg examina cartas de resistentes e reféns executados na França durante o período de ocupação, tanto nas mãos dos nazistas quanto nas mãos dos próprios franceses de Vichy. O capítulo, explica a própria autora, é uma forma de verticalizar o estudo de temáticas presentes nos museus e memoriais citados no capítulo anterior. A autora está preocupada, agora, em discutir como esses documentos remetem a experiências individuais da resistência. Cerca de 4.020 homens foram fuzilados no país. Muitos deixaram cartas e outros documentos para suas famílias, escritos pouco antes de suas mortes. Esse material começou a ser recolhido antes mesmo da Libertação (1944) e, em seguida, passou para os arquivos do Comitê de História da Segunda Guerra Mundial, instituição criada em 1951 pelo historiador Henri Michel. Mais ou menos 500 cartas de 350 desses fuzilados encontram-se hoje dispersas por diversos museus franceses e arquivos, além de em posse de particulares, material que representa um riquíssimo acervo para museus e historiadores.
As possibilidades de análise são vastíssimas. Da micro-história à história das mentalidades. Da história vista de baixo à história da morte e do medo. Rollemberg extrai leituras bastante reveladoras desse universo memorialístico de quase morte. A autora nota, por exemplo, que os condenados raramente usaram nas cartas as palavras resistentes, resistência, Resistência e resistir para se referirem a si mesmos e a suas ações. Isso porque, como salienta, essa “morfologia da despedida” destaca-se muito mais pelo foro íntimo. E é justamente esse o caminho que, acertadamente, Rollemberg toma como fundamental para compreender tal experiência histórica. “Importa aqui verticalizar a análise das motivações, sentimentos, da subjetividade, enfim, dos condenados” (p. 179). São ainda, como diz, “retratos íntimos da derrota”. Rollemberg mostra, curiosamente, que, apesar das várias diferenças entre os condenados – níveis de escolaridade, idade, engajamento político etc. -, há certas homogeneidades nas cartas. Nelas, seus autores buscam a absolvição de pecados antigos. Eles se dirigem quase sempre aos familiares. Evocam a família, a religião (exceto os judeus, majoritariamente) e a tradição como grandes lemas em seu momento de despedida. Em geral, os condenados não demonstram ódio nem ressentimento, Rollemberg pontua. Ela cita a carta que o conde Honoré d’Estienne d’Orves escreve à sua irmã antes da execução: “Que ninguém pense em me vingar. Desejo apenas a paz na grandeza reencontrada pela França” (p. 209). Tudo isso nos ajuda a compreender como esses resistentes viam a si mesmos nessas situações-limite e, mais do que isso, a forma como esse comportamento assentou-se na memória coletiva francesa.
Ao ler tais cartas, podemos evocar as velhas histórias de santidade e heroísmo cristão que há muito tempo fazem parte da tradição cristã. Esse ponto é importante, pois, como assinala Rollemberg, as execuções caracterizadas como martírios estão vivas ainda hoje na memória coletiva graças à ritualização de que são objetos nos mencionados museus e memoriais. Para a historiadora, a ideia de martírio e vitimização eclipsou os diversos embates políticos e ideológicos que abundavam no interior da(s) resistência(s). A autora afirma:
Se é compreensível que as associações de familiares, desde o pós-guerra, elaborem a memória desses homens como mártires, comprometidas que estão com o dever de memória, é bom refletir sobre o papel que os museus, mais até do que os memoriais, desempenham nessa tensão entre história e memória, sobretudo entre aqueles que se propõem produtores do conhecimento. (p. 192)
A crítica à memória que vemos aqui é bastante pertinente, especialmente no contexto do pós-guerra francês, quando a resistência se tornou base de certa identidade francesa e também, ao mesmo tempo, uma espécie de patrimônio histórico francês, pouco afeito a críticas e revisões. Por outro lado, é preciso estar atento a alguns riscos da oposição entre história e memória. Certamente, estamos diante de duas narrativas com características e missões completamente diferentes. Contudo, como leituras do passado que são, elas podem por vezes comportar-se de forma parecida, além de produzir resultados semelhantes. Essa ponderação é necessária porque os próprios historiadores franceses apenas muito lentamente foram se debruçando sobre a questão da resistência. A autora lembra isso na apresentação do livro: “no pós-guerra, a historiografia sobre o assunto seguiu a forte tendência presente nos países outrora ocupados de lembrar aqueles anos celebrando os feitos heroicos da Resistência, contornando as colaborações e, sobretudo, evitando as zonas cinzentas entre os dois extremos” (p. 10). A autora também destaca em outra passagem que apenas em 1988 surgiu o primeiro manual escolar de história a relativizar a importância da Resistência francesa na liberação do país. A França, como não podemos ignorar, a exemplo de diversos outros países, também soube cultivar narrativas historiográficas de cunho nacionalista, que contribuíram, à sua maneira, para a produção de mitos sobre a resistência.
Chegamos à Parte II, que engloba os Capítulos 4 e 5, dedicados aos memoriais e museus da resistência na Itália. Aqui, vamos encontrar uma estrutura muito parecida com a que vimos na Parte I. Se, ao falar do caso francês, vimos um capítulo dedicado ao estudo das instituições de memória e, depois, um capítulo dedicado a um estudo mais verticalizado, agora vamos encontrar a mesma divisão. No Capítulo 4, Rollemberg esquadrinha os museus e memoriais que visitou na Itália. À medida que vamos avançando na leitura, vamos nos convencendo de que Itália e França têm mais semelhanças do que diferenças no que diz respeito aos usos e abusos da memória da resistência e dos resistentes. Rollemberg analisa oito instituições naquele país. Nessa análise, a autora identifica o mesmo fenômeno de memória visto na França: a forma como a museografia escolheu, organizou e significou suas exposições contribuiu para a minimização de contradições no interior da resistência, para a criação de heróis e vilões, para o escamoteamento de tensões, de complexidades políticas e para a variedade de matizes ideológicos que fizeram da resistência italiana um fenômeno extremamente complexo. Nas palavras da própria autora, “o museu é lido como documento, embora seja concebido como monumento” (p. 238). Segundo Rollemberg, embora os museus italianos, tal qual na França, tenham passado, nas últimas décadas, por transformações profundas, a dimensão do mito persiste em suas narrativas. É importante sublinhar que as narrativas dos museus e memoriais italianos não formam um bloco homogêneo. Alguns enfatizam mais, por exemplo, a luta antifascista no período anterior à queda de Mussolini, caso do Museu de Bologna, enquanto outros, como é o caso do Museu Audiovisual da Resistência de Massa Carrara e La Spezia, especializaram-se nos partigiani. Porém, a maioria continua assumindo um papel pedagógico bastante moralizante e desprezando complexidades.
Ainda no caso do Museu de Bologna, vale mencionar uma dessas contradições entre memória e história que ilustram o livro. Em uma exposição do museu, há várias fotos de italianos capturados pelos alemães na Itália, nos Bálcãs e na Grécia, nos campos de concentração, todos submetidos à “duríssima reclusão”. Muitos tinham recusado o recrutamento fascista que se deu após a queda de Mussolini. Como pontua Rollemberg, a narrativa do museu, sem dizê-lo, apresenta esses militares, em sua grande maioria, como vítimas da Alemanha e da República Social Italiana, livrando-os das responsabilidades das guerras travadas em nome do fascismo em anos anteriores. Da mesma forma, diz a autora, que houve mobilização popular contra o nazifascismo, houve também mobilização em sentido contrário.
No Capítulo 5, Rollemberg faz do caso dos “Sete Fratelli” seu estudo vertical em âmbito italiano. No dia 28 de dezembro de 1943, sete irmãos de uma única família, a família Cervi, moradora da província de Reggio Emilia, região da Emlia-Romagna, foram fuzilados pelos fascistas locais por esconderem prisioneiros estrangeiros desmobilizados ou fugidos de prisões, bem como desertores italianos e alemães. A situação dos “Sette Fratelli” transformou-se, como aponta a autora, em um caso bastante emblemático da memória coletiva da Resistência italiana no pós-guerra. O caso inspirou diversos autores, entre eles Ítalo Calvino, e diversas correntes políticas a produzirem suas próprias interpretações, tanto da esquerda quanto da direita italiana. Aqui vamos ver mais uma vez a construção memorialista que opta pelo enredo do herói e do sacrifício, pela leitura moralizante que esconde não só tramas do passado como também os usos políticos do próprio presente. Rollemberg chama a atenção principalmente para a narrativa do Partido Comunista italiano (PCI), que se apropriou do caso, o que surge como uma questão moral relevante, haja vista que, segundo estudos de alguns historiadores, o PCI poderia ter protegido os irmãos Cervi (comunistas, mas não membros do PCI), mas não o fez. Rollemberg mais uma vez destaca a necessidade de uma abordagem historiográfica que seja capaz de problematizar o passado:
A história é muito mais complexa do que a memória, construída do presente para o passado, invertendo a direção da própria história, aparando arestas indesejáveis, possibilidades incômodas, buscando legitimar a realidade presente e os projetos para o futuro. A memória inventa o passado.{…} A ideologia impede, ainda hoje, o esclarecimento dos fatos. (p. 343)
Concluindo, Resistência – memória da ocupação nazista na França e na Itália, de Denise Rollemberg, é um estudo de fundamental relevância e que vem diminuir uma lacuna importante no mercado editorial brasileiro, lacuna essa que, como mencionei antes, tem reflexos diretos na maneira como o tema é abordado nos cursos de história. Rollemberg reconhece a legitimidade dos museus e memoriais franceses e italianos, bem como todo o esforço engendrado nas últimas décadas para não só honrar aqueles que tombaram na luta contra o nazismo e o fascismo, como para também para produzir conhecimento a partir desse passado. Porém, as narrativas que são produzidas hoje são tributárias de uma visão ainda muito mitologizada. Rollemberg justifica a escolha pela memória como centro propulsor dessa narrativa: tal modelo serviu para reerguer, do ponto de vista moral, os países que tinham, então, colaborado com o nazismo e o fascismo. Na década de 1970, os historiadores começaram a desconstruir o mito. O que não significa que problemas não tenham aparecido. O conceito de resistência, por exemplo, ou foi muito alargado, ou muito restringido, o que lhe fez perder o sentido ou excluir experiências históricas fundantes. Museus e memoriais seguiram essa tendência, enfrentaram esses desafios, chegaram a questionar mitos e a problematizar pontos que até então passavam ao largo, caso do colaboracionismo. Porém, a despeito desses avanços, pontua Rollemberg, encontram-se ainda muito tributários daquele modelo de memória. A autora, por vezes, expõe a memória como um trabalho com resultados potenciais completamente diferentes da história, o que podemos (e devemos relativizar). Porém, seu olhar para os abusos da memória nos museus italianos e franceses é preciso e extremamente necessário para que percebamos como essas instituições, apesar da intenção nobre de produzir conhecimento, ainda precisam se livrar das amarras negativas da memória. E isso, como alerta Rollemberg, não é um problema. O desafio desses lugares de memória, defende a autora, é eternizar homens e mulheres que lutaram contra a ocupação nazista e seus colaboradores na história – porém, ela pondera: “Não como mitos intocáveis, senão como seres humanos em sua complexidade, quer individual, quer na sua dimensão coletiva. Essa é a maior homenagem, divergências à parte, que lhes podemos prestar” (p. 14).
Bruno Leal Pastor de Carvalho – Doutor em História Social (PPGHIS/UFRJ). Mestre em Memória Social (PPGMS/Unirio). Coordenador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos e Árabes da UFRJ (Niej). Fundador da rede social Café História.(www.cafehistoria.com.br). Membro da Rede Brasileira de História Pública (RBHP) e da Associação de Humanidades Digitais (AHDig).