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Out of our heads: Why you are not your brain, and other lessons from the biology of consciousness – NOË (P)
NOË, Alva. Out of our heads: Why you are not your brain, and other lessons from the biology of consciousness. New York: Hill and Wang, 2009. 214 p. Resenha de: NASCIMENTO, Laura Machado do. Principia, Florianópolis, v.16, n.3, p.495–504, 2012.
Out of our heads é uma apresentação voltada a um público não acadêmico de uma reação a concepções da filosofia da mente tradicional, encontradas principalmente, nos dias de hoje, na ciência cognitiva. Um dos principais pressupostos da ciência cognitiva é a ideia de que as respostas para algumas questões básicas da filosofia da mente serão encontradas no estudo do cérebro, sendo este o principal responsável pela atividade mental, enquanto o resto do corpo e o ambiente em que se vive teriam apenas papéis secundários. Apesar de notáveis desenvolvimentos na compreensão do funcionamento do cérebro, especialmente a partir da década de 1990, a “década do cérebro”, alguns problemas impostos pelos pressupostos da ciência cognitiva permanecem tão misteriosos hoje quanto na tradição cartesiana. Problemas difíceis, como a relação entre o cérebro e a consciência, por exemplo, ainda não têm uma solução satisfatória. Para Noë, dificuldades como essas no estudo da mente decorrem da incompreensão do que são os fenômenos mentais e como ocorrem. Cientistas e filósofos, ao procurar a mente no cérebro, estariam procurando no lugar errado.
Na concepção de Noë, a mente é produto de uma interação entre corpo (inclusive o cérebro) e meio externo. A mente não é algo que ocorre em nós, realizado pelo cérebro (na tradição contemporânea) ou por uma substância imaterial (na tradição cartesiana). Para compreender a mente, precisamos, segundo ele, direcionar a atenção a uma imagem mais ampla. Nesta resenha, serão abordados os seguintes temas: o uso de técnicas de escaneamento para estudar a consciência, a concepção de percepção e cognição assumidas pela ciência cognitiva e, por fim, apresentaremos brevemente a concepção alternativa de mente proposta por Noë.
O cérebro
Em meados do século XX, Francis Crick, prêmio Nobel de Medicina de 1962, junto com James Watson, pela descoberta da estrutura da molécula de DNA, afirmava que “você, suas alegrias e suas tristezas, suas memórias e suas ambições, seu senso de identidade pessoal e livre arbítrio, não são, de fato, mais do que o comportamento de um vasto conjunto de células nervosas e suas moléculas associadas” (Crick apud Noë, p.5). Na concepção tradicional, supunha-se que a demonstração empírica de que a consciência é redutível a processos cerebrais seria só uma questão de tempo.
Disso se seguiria que “não é preciso mais gastar tempo tentando [. . . ] aguentar o tédio dos filósofos perpetuamente discordando uns com os outros. A consciência é, agora, em grande medida, um problema científico” (Crick apud Noë, p.6).
O otimismo na ciência cognitiva nas últimas décadas foi em grande parte possibilitado por avanços tecnológicos, como o surgimento das tecnologias de escaneamento cerebral. De acordo com essa abordagem, tecnologias como as de ressonância magnética funcional (fMRI ou RMf, na sigla em português), tomografia por emissão de pósitrons (PET) e eletroencefalografia (EEG), permitiriam observar diretamente o funcionamento do cérebro em ação e correlacionar a atividade cerebral com o que os pacientes experimentam subjetivamente, mostrando que o cérebro é o centro da atividade mental. Contra isso, Noë argumenta (cap.1) que existem limitações sérias para as conclusões que se procura extrair dessas correlações. Uma delas, de caráter metodológico, diz respeito às medições realizadas nas técnicas de “imageamento” cerebral. A utilização dessas técnicas não mede diretamente a atividade consciente, mas apenas exibe indícios indiretos. No PET, uma substância, como a glicose, é ligada a isótopos radioativos de iodo ou flúor, por exemplo, e injetada no sangue do paciente. O isótopo emite pósitrons que, ao colidirem com elétrons, liberam raiosgama.
O que é medido, então, é a emissão de raios-gama causada pelas colisões entre os elétrons e os pósitrons. Como o fluxo sanguíneo e o consumo de oxigênio são necessários para a atividade cerebral, infere-se que a região ou conjunto de células com maior emissão de raios-gama é responsável por determinado estado ou processo mental. Não se trata de um registro direto da consciência, mas sim, de uma inferência que supõe que o cérebro é a sede da consciência.
Noë chama atenção também para o fato de que esses exames possuem uma resolução espacial e temporal muito baixa. Eles podem identificar regiões entre dois e cinco milímetros, mas nessa porção espacial há centenas de milhares de células. Assim, não é possível distinguir na imagem eventuais especializações celulares naquele local. De maneira similar, os processos celulares ocorrem em intervalos de milésimos de segundos, e isso também não pode ser medido pelos exames de escaneamento.
Além disso, com base em pesquisas sobre plasticidade neural (apresentadas no cap.3), Noë mostra que não há uma relação necessária entre as experiências sensoriais e as áreas cerebrais normalmente identificadas como responsáveis pelo processamento das informações sensoriais. Em um experimento conduzido por Mriganka Sur (ver Sur et al. 1999) no MIT, modificou-se a disposição perceptiva normal de furões (animais que, ao nascer, são neurologicamente bastante imaturos). Em vez de permanecerem ligados ao córtex e ao tálamo visuais, como em circunstâncias normais, os pesquisadores conectaram os olhos dos animais ao córtex auditivo. O resultado esperado seria que os animais pudessem “escutar com os olhos”, mas o que ocorreu foi que passaram a ver com a parte do cérebro que é normalmente dedicada à audição. Ao ser estimulado visualmente, o córtex auditivo dos furões adaptou sua função. Estudos como esse mostram que o cérebro é plástico, e que o que chamamos experiências sensoriais é constituído não somente pelo cérebro, mas também pela interação do cérebro com o ambiente circundante.
Ao contrário do que sugerem os estudos em ciência cognitiva, os fenômenos mentais não são produtos exclusivos do cérebro e, desse modo, as técnicas de imageamento cerebral procuram pela consciência no lugar errado. Noë salienta que o resultado de um exame de escaneamento é mais parecido com um “retrato-falado” do que com uma fotografia do cérebro. A imagem resultante não é, de maneira nenhuma, um registro direto da atividade cerebral, mas um conjunto de informações combinadas que servem mais como uma hipótese sobre o que está acontecendo do que propriamente uma “fotografia” da atividade mental. Na ciência cognitiva, no entanto, essas hipóteses são em geral tomadas como fatos, por exemplo, a identificação de áreas dedicadas ao processamento de certas funções. Assim, embora haja indícios de correlações entre a atividade mental e a atividade cerebral, elas podem ser questionadas e, desse modo, pouco se pode concluir sobre a natureza da consciência ou da mente com base apenas no estudo do cérebro. Similarmente, Noë argumenta que a tese reducionista (identificar os fenômenos mentais aos fenômenos físicos que ocorrem no cérebro) não é propriamente um resultado da pesquisa, mas uma pressuposição filosófica não questionada da ciência cognitiva. Assim, para Noë, o estudo sobre a mente com certeza tem um aspecto científico, mas isso de maneira nenhuma exclui a filosofia.
A percepção
A percepção, nas concepções tradicionais da mente, é um processo pelo qual são extraídas informações do mundo exterior que são então processadas internamente e produzem uma representação mental do ambiente circundante. Segundo essas concepções, estamos errados ao pensar que por meio da percepção estamos em contato com as coisas como são. Em vez disso, temos acesso direto não ao mundo exterior, mas a representações mentais.1 Assim, as informações provenientes dos órgãos dos sentidos seriam diferentes daquilo que realmente vemos, e a percepção correria sempre o risco de ser uma grande ilusão.
A concepção de que a percepção é um processo interno realizado pelo cérebro (ou mediado pelo cérebro) é amplamente difundida, e diversas são as abordagens em que isso é evidente. Na tese de Fodor (1983) sobre a modularidade da mente, por exemplo, a consciência perceptiva é realizada por módulos, que são componentes da arquitetura mental localizados no cérebro. A função dos módulos é “representar o mundo de maneira a torná-lo acessível para o pensamento” (Fodor 1983, p.40).
Os módulos forneceriam uma representação da realidade baseada em informações provenientes de estímulos relativos à cor, tamanho e relações espaciais tridimensionais etc. (Fodor 1983, p.47). Nessa concepção, os módulos realizam o papel da integração perceptual, ou seja, processam as informações provenientes dos órgãos dos sentidos criando uma representação interna.
De fato, a ideia de que o cérebro processa a informação estimulacional que recebemos parece ser confirmada por diversos estudos (apresentados por Noë no cap.6), por exemplo, estudos sobre o ponto-cego e sobre a ótica ocular, conhecida pelo menos desde Kepler (1571-1630). No olho humano, há uma região (“ponto-cego”) em que não há fotorreceptores, porque esse é o ponto em que o nervo ótico atravessa a retina. No entanto, não há um ponto cego correspondente em nosso campo visual. O que os estudos sobre o tema sugerem é que o cérebro “preenche” o ponto-cego para evitar a descontinuidade na imagem. É possível, no entanto, observar o ponto-cego, com auxílio da Figura 1 (adaptada de Maturana e Varela 2001, p.23): tape o olho esquerdo e olhe fixamente para a cruz, mantendo cerca de 40 cm de distância da figura. O ponto preto à direita da figura deverá sumir, esse é o ponto-cego, cuja falha seria “preenchida” pela imagem ao redor.
Figura 1 Outro exemplo provém do estudo da ótica ocular: além de serem projetadas duas imagens retinais, a cena visível projeta uma imagem invertida no interior do olho.
Isso mostra que há uma diferença entre o que é visto conscientemente e os dados que geram a visão. Como não vemos de maneira dupla nem invertida, deve haver um processo, em algum momento, que normaliza as imagens. Segundo a descrição tradicional, esse processo é realizado pelo cérebro, que gera uma representação rica e complexa do mundo e que compensa o caráter limitado dos estímulos sensoriais.
Para Noë, estudos desse tipo ilustram de modo claro o que há de equivocado na concepção tradicional: a visão é concebida como um processo interno realizado primariamente pelo cérebro. Um dos problemas dessa concepção é que ela leva a certo tipo de ceticismo (“tradicional”): acreditamos ver o mundo de maneira detalhada, mas na verdade, só temos acesso consciente a representações mentais, que são produto do processamento cerebral dos estímulos recebidos. Noë discute também estudos que mostrariam que nossas representações mentais do mundo exterior são falhas (embora em geral não as percebamos como tais). Ou seja, acreditamos ver o mundo de maneira detalhada, mas na verdade não é isso o que ocorre. Mágicos, por exemplo, tomam proveito disso, podendo fazer com que acreditemos que uma moeda está em uma mão, quando na verdade está em outro lugar. Isso mostraria que nossa consciência visual não é tão rica ou detalhada como pode nos parecer.
Isso fica explícito na cegueira por desatenção [inattentional blindness], exemplificada pelo famoso experimento em que se pede a alguém que conte a quantidade de vezes que uma bola é passada de uma pessoa para outra em um vídeo.2 Enquanto prestamos atenção nas jogadas e na bola, um gorila passa dançando na tela, sem que a maioria das pessoas note. Outro exemplo interessante é a cegueira à mudança [change blindness]: a não ser que tenhamos nossa atenção diretamente voltada para o objeto ou aspecto da imagem que está em transformação, não notamos mudanças no ambiente. Por exemplo, quando piscamos, mudanças relativamente discretas, podem passar despercebidas. Essas considerações, mais recentes, do ponto de vista da ciência da visão, levam também a um “novo” tipo de ceticismo, encontrado em autores como Daniel Dennett (1991) e Susan Blackmore (2002), que dizem explicitamente que a verdadeira ilusão associada à visão é a de que pensamos ver o mundo em detalhes, quando na verdade, não o vemos tão detalhadamente assim. Segundo Noë, ambos tipos de estudos fornecem razões para se crer que o mundo percebido seja uma ilusão, já que o que é experimentado não é o próprio mundo, mas uma representação.
Para Noë, conclusões céticas como essas são problemas que só surgem em concepções representacionais da percepção. Assim, uma alternativa — a que é perseguida por Noë — é evitar concepções representacionalistas.
No entanto, há diversas críticas à ideia de que se pode prescindir da noção de representação e mais especificamente, à ideia de que a cegueira por atenção e a cegueira à mudança implicam que não há representações envolvidas na percepção.
Prinz, por exemplo, analisa o que considera ser o melhor argumento de Noë para negar uma concepção representacionalista da percepção, mas o critica, apresentando indícios provenientes de estudos empíricos.3 Para Prinz, “Noë interpreta esse dado [a falha em notar a mudança na cena visual] como demonstrando que o sistema visual extrai apenas uma representação rasa que deixa de fora muitos detalhes” (2006, p.13). Prinz afirma que há uma concepção compatível com esse dado, a de que “o sistema visual gera representações complexas, mas sem conferir cada detalhe” (ibid.).
Segundo ele, o sistema visual registra as mudanças, mas não o fato de que tenha ocorrido uma mudança. Como indício, Prinz apresenta estudos que mostram que inconscientemente essas informações são registradas pelo cérebro. Por exemplo, em Mitroff et al. (2004), os participantes de um experimento observam pares consecutivos de imagens representando diversos objetos que mudavam. Os participantes, em geral, foram incapazes de relatar as mudanças. No entanto, em um exame subsequente, acertavam mais do que a média quais os objetos haviam desaparecido sem que notassem (Prinz 2008, p.6). Para Prinz, se as representações não fossem detalhadas, as mudanças não poderiam ter sido registradas de modo algum.
Disso, Prinz conclui que não só deve haver um tipo de representação interna desses objetos, como ela também seria detalhada e que poderíamos ter algum tipo de acesso a ela, ao menos quando estimulados adequadamente. Há considerável controvérsia sobre a questão da representação, mas Noë afirma que, mesmo que exista algo como uma representação, não teríamos acesso a ela. Para Noë, “não parece a nós, percebedores, como se o cérebro construísse um modelo interno do mundo, mas sim que o mundo está aqui e nós estamos nele” (2009, p.140). Para Noë, a percepção é enativa, ou seja, é uma atividade que envolve a habilidade de utilizar o corpo na exploração do mundo: não é “o caráter intrínseco da estimulação sensorial que fixa o caráter da experiência; mas sim a maneira em que a estimulação sensorial varia como uma função do movimento em relação ao ambiente” (2009, p.63) que caracteriza a percepção.
Além disso, Noë argumenta que as concepções representacionalistas não estão de acordo com o que sabemos a respeito da biologia da percepção. Na evolução dos seres vivos, os órgãos perceptivos não foram primariamente selecionados pela sua capacidade de representar internamente o mundo exterior, mas por permitirem um certo tipo de interação ou acesso a ele. Noë enfatiza que o que vemos é mal descrito como um conteúdo mental; antes, ver é tornar disponível para mim um aspecto do mundo. Assim, não é o caso que eu tenha uma representação interna detalhada do mundo, mas sim que os detalhes do mundo tornam-se disponíveis para mim de tal modo que eu posso então interagir conscientemente com eles: “o mundo não aparece para mim como presente de uma vez só na minha mente. Ele se mostra como estando ao alcance, mais ao menos próximo, mais ou menos presente” (Noë 2009, p.141). A disponibilidade, claro, ocorre também porque o ambiente é causal e fisicamente regular, ou seja, a nossa percepção dele como sendo assim depende de que ele realmente seja assim.
Em resumo, para Noë, é um erro pensar na percepção como sendo realizada primariamente pelo cérebro, o qual agiria como um “sistema de input-output que codifica uma representação interna do mundo externo” (Noë & Thompson 2002, p.5). Certamente, o cérebro desempenha uma função importante, mas não a de gerar uma representação do mundo a partir dos estímulos sensoriais. Para Noë, sua função é “facilitar o padrão dinâmico de interação entre cérebro, corpo e mundo” (Noë 2009, p.47), permitindo que o ser vivo domine suas capacidades sensório-motoras.
Éa partir do domínio dessas capacidades que a percepção é entendida, como uma atividade que envolve habilidade na exploração do mundo. Assim, a percepção é uma atividade que “realizamos”, e não que é “realizada em nós”.4 Cognição Segundo a concepção tradicional, um traço característico do ser humano é o de ser racional e deliberativo. Isso levou pesquisadores a acreditar que as decisões humanas são tomadas com base em critérios universais formuláveis de modo descontextualizado, sem levar em conta, por exemplo, as emoções e a história dos sujeitos. Uma analogia recorrente para se explicar a mente humana tem sido a dos programas de computador: pensar é computar, ou seja, realizar certo tipo de cálculo com base em regras. Um especialista em determinado assunto seria assim um ótimo aplicador de regras.
Noë argumenta (cap.5) que essa descrição das capacidades cognitivas é errônea. Mesmo habilidades cognitivas como jogar xadrez ou aprender uma língua são “envolventes”, ou seja, necessariamente dependentes do sujeito, do seu corpo e do contexto. Aquilo que caracteriza nosso pensamento é o envolvimento com o mundo, seja em atividades como jogar baseball, xadrez ou aprender uma língua. Para Noë, o que realmente caracteriza o especialista é justamente a ausência ou diminuição de deliberação e julgamento. Na verdade, a descrição intelectualista do especialista como alguém que conhece tão bem as regras que consegue aplicá-las rápida e adequadamente é, na verdade, mais parecida com a de um iniciante. Um jogador iniciante de baseball deve pensar e prestar muita atenção naquilo que está fazendo ao bater com o bastão na bola. O jogador experiente, ao contrário, age quase sem pensar.
Sequer em atividades intelectuais o pensamento e a deliberação são os padrões característicos da atividade humana, segundo Noë. Na descrição intelectualista, um jogador de xadrez analisaria, a cada jogada, um número enorme de jogadas possíveis, escolhendo a mais adequada, como um computador faria. Jogadores humanos (ao menos os profissionais) precisam considerar apenas as jogadas relevantes possibilitadas pela configuração do jogo em andamento. O humano, na verdade, não calcula como um computador. O xadrez, para o humano, é uma atividade que envolve a compreensão de regras, mas também de objetivos, costumes, entre outros aspectos que constituem um contexto.
É possível aplicar essas considerações também ao aprendizado da linguagem.
Novamente, segundo a descrição tradicional, um falante competente da linguagem natural seria aquele que combina as regras sintáticas e semânticas formando uma frase bem formada. Assim, nossa competência linguística (ou a de nosso cérebro, salienta Noë) consistiria basicamente na análise e na decodificação de frases de maneira rápida e confiável. Mais do que informar ou comunicar pensamentos, a linguagem é um aspecto do comportamento humano em relação ao mundo. Para Noë, no entanto, a linguagem não é apenas um conjunto de símbolos e regras, mas sim um dos componentes do contexto no qual os seres humanos vivem. Assim, Noë remete (ver Deacon 1998) a uma concepção diversa sobre o aprendizado da linguagem, segundo a qual a facilidade com que qualquer pessoa aprende a utilizar a linguagem é explicada pelo fato de que ela é um instrumento com o qual lidamos com o mundo, e não é coincidência ou acaso que sejamos tão bons na sua utilização. Ela foi criada por nós e para nós.
Qual é, então, a natureza de nosso envolvimento com o mundo? Não parece ser primariamente cognitivo; não é o caso que ajamos como iniciantes, pensando e prestando atenção em tudo o que fazemos. O envolvimento prático com o mundo é a base da atividade consciente e é a partir desse envolvimento que desenvolvemos nosso conhecimento do mundo.
“Mente é vida” Para Noë, se quisermos ter uma compreensão adequada sobre o que é a mente de um animal, “deveríamos não somente olhar para dentro, para a sua constituição física e neurológica” mas “prestar atenção à maneira que o animal vive, à maneira que está envolto no local em que vive” (2009, p.42). A mente é compreendida, assim, não como algo que acontece dentro de nós, mas como resultante da interação dinâmica entre seres vivos e o meio externo. Nessa concepção, todos os seres vivos possuem algum tipo de mente, até mesmo uma bactéria. Essa afirmação pode soar estranha ou extravagante, mas do ponto de vista que Noë defende, a bactéria não pode ser compreendida como um conjunto de átomos que reagem causalmente a estímulos externos. Uma abordagem estritamente física como essa impediria que reconhecêssemos aspectos importantes da vida de um ser. Para poder reconhecer a vida de uma bactéria (ou de qualquer outro ser), devemos compreendê-la como um ser adaptado a seu meio, e que possui agência, mesmo que de um tipo primitivo. A vida e a mente da bactéria estão relacionadas de uma maneira que só pode ser entendida quando levamos em conta que “a mente da bactéria não consiste na maneira em que ela está internamente organizada. Ela diz respeito, em vez disso, à maneira em que ela ativamente mistura-se ao seu meio e se entrosa com ele” (Noë 2009, p.42). Como se vê, o conceito de mente proposto por Noë difere dos encontrados na tradição.
Obviamente, é mais fácil para nós reconhecermos mentes em animais como um cãoguia, que possui uma relação de envolvimento colaborativo bastante complexo com os seres humanos. Para os seres humanos envolvidos nesse tipo de relação, torna-se impossível negar que um cão-guia possua uma mente. Considerações semelhantes aplicam-se às capacidades mentais de crianças pequenas: sabidamente não são de maneira nenhuma indiferentes a seus cuidadores, e são altamente sensíveis aos sentimentos e atitudes dos outros desde bebês. As crianças desenvolvem, por exemplo, relações comunicativas delicadas com seus pais ou cuidadores, respondendo ao toque, à voz, ao sorriso etc. Em resumo, “uma vez que nos engajamos com um certo tipo de coabitação com outros — uma vez que nos engajamos em relações de amizade, casamento, trabalho colaborativo etc. — então, torna-se impossível levar a sério o pensamento de que lhes falta a consciência” (Noë 2009, p.38).
Considerações como essas dissolvem um dos problemas clássicos da filosofia da mente: o chamado “problema das outras mentes” (como podemos saber que os outros seres possuem mentes?). De acordo com a concepção de Noë, a base do nosso comprometimento com outras mentes é o envolvimento mútuo, prático e colaborativo.
O problema das outras mentes entendido de maneira tradicional só surge quando temos uma concepção de mente como um processo que ocorre dentro da cabeça, além da observação possível. Nessa concepção, alguns critérios auxiliam na resposta, como os marcadores comportamentais ou a atividade cerebral, que podem ser insuficientes em alguns casos. No entanto, quando consideramos a mente como interação entre o corpo, meio e outros seres, a consciência torna-se um processo observável. Assim, não se faz necessário, em circunstâncias normais, a utilização de critérios ou inferências que nos permitam saber que outros possuem mentes. Isso já é sempre pressuposto nas relações práticas que temos com eles, e somente questionamos esse pressuposto quando a vida é ou se torna estranha, como no caso da bactéria ou nos casos de pacientes em estados vegetativos, por exemplo. O problema das outras mentes não é nesse sentido um problema estritamente teórico.
Enquanto estamos nos relacionando praticamente com outros, o problema não tem como surgir.
Conclusão
Nesta resenha, apresentamos argumentos de Noë contra alguns dos pressupostos da ciência cognitiva contemporânea, que seriam infundados e implicariam em uma concepção errônea da mente. Para Noë, os fenômenos mentais não são dependentes unicamente do cérebro (ou de uma substância mental). A compreensão dos fenômenos mentais exige uma concepção mais ampla, que leve em conta a interação entre o cérebro, o corpo e o ambiente em que se vive. Todos esses componentes são constitutivos da consciência, e não têm com ela uma mera relação de interação causal.
Nessa concepção, a consciência é em parte constituída pelo que fazemos e por onde estamos, ou seja, a mente é entendida como uma relação com o meio circundante.
Nisso tudo é perceptível a proximidade com autores como Wittgenstein, Heidegger e Merleau-Ponty, bem como a influência de pesquisas em inteligência artificial e robótica. Sua concepção de percepção é diretamente inspirada nos trabalhos dos biólogos Humberto Maturana e Ernesto Varela e do psicólogo James Gibson. A tese da “mente corpórea” [embodied mind] é, hoje em dia, uma alternativa interessante às concepções tradicionais, uma vez que permite dissolver alguns problemas de difícil solução como o problema das outras mentes e o problema do ceticismo sobre o mundo exterior mencionados acima.
Para um leitor acadêmico mais exigente, a argumentação de Noë pode, em alguns momentos, parecer deficiente. Por exemplo, suas críticas às concepções representacionalistas precisam ser adicionalmente desenvolvidas para efetivamente imporem-se aos argumentos contrários. Mas isso dificilmente pode ser considerado um problema grave do livro. A intenção de Noë não é apresentar uma tradição de pesquisa já estabelecida e seus resultados, mas uma alternativa à tradição que vem se desenvolvendo nos últimos anos, e difundi-la a um público mais amplo, de tal modo a alterar a concepção que predomina hoje sobre nossas capacidades mentais, tanto nos ambientes acadêmicos quanto fora deles. Nesse sentido, o livro tem propósitos políticos, explicitamente declarados pelo autor (p.xiv): influenciar os rumos da nossa cultura, desafiando a ortodoxia na busca de uma compreensão não-fragmentada da vida.
Referências
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Notes
1 Ver, por exemplo, Bertrand Russell, Os problemas da filosofia, cap.1: “Aparência e realidade”.
2 O vídeo pode ser assistido no site do professor Daniel Simons: http://www.dansimons.
com/videos.html.
3 Ver Prinz 2006, p.4; 2008, p.13. As críticas de Prinz dirigem-se a considerações semelhantes às de Out of our heads sobre as cegueiras por mudança e à atenção que Noë faz no livro Action in perception (2004).
4 Nesse ponto, Noë parece inspirar-se em argumentos de tipo wittgensteiniano como os que encontramos em Bennett & Hacker (2003). Ver sobretudo o capítulo 3.
Laura Machado do Nascimento – Universidade Federal de Santa Maria BRASIL lauranasciment@gmail.com