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Averróis – a arte de governar – PEREIRA (RA)
PEREIRA, R. H. S. Averróis – a arte de governar. São Paulo: Editora perspectiva, 2012. Resenha de: NASCIMENTO, Carlos Arthur Ribeiro do. Revista Archai, Brasília, n.11, p.157-158, jul., 2013.
Não é à toa que a autora de Averróis – A Arte de Governar, Rosalie Helena de Souza Pereira, relembra a certa altura (p. 39) o conto de Borges sobre Averróis tentando adivinhar o que Aristóteles entendia por tragédia e comédia. Vez por outra os estudiosos do Comentador devem se sentir, como Averróis, como Borges, como este resenhista… Diante de uma obra que se deixa ler através de traduções e traduções de traduções não há como não concordar que se trata do “caso de um homem que se propõe um fim que não está vedado a outros, mas sim a ele”.
O livro de Rosalie Pereira contém duas partes: uma introdutória, falando de Averróis e seus escritos, e outra, indicada pelo subtítulo, a arte de governar. A primeira parte recolhe as informações sobre o que se conhece da pessoa de Averróis e seu contexto na corte almôada em Córdova. Retoma também as diferentes facetas daquele que ficou conhecido no Ocidente latino sobretudo como o comentador por excelência de Aristóteles: filósofo, jurista, médico e até mesmo teólogo.
A segunda parte começa também por evocar o contexto da obra de que tratará especificamente, O Comentário da República, dentro da filosofia (falsafa) de Averróis. Como o próprio Averróis indica (I <I, 8>), dedica-se a comentar a República, de Platão, porque “o livro de Aristóteles sobre a política ainda não chegou até nós”.
A análise do Comentário da República comporta a consideração de seu gênero literário e de sua textura peculiar, terminando com um percurso sobre as virtudes e qualidades do governante.
Além de ser o único comentário de Averróis a uma obra platônica, O Comentário da República difere bastante dos comentários deste às obras de Aristóteles. Por exemplo, Averróis não se priva de mencionar exemplos de seu tempo e mesmo de fazer duras críticas a práticas políticas dele conhecidas. Na elaboração de seu texto, Averróis se serve de um quadro conceitual aristotélico, de tal modo que a autora pode falar de uma “leitura aristotelizante da República ”. Esta característica encontra uma aplicação importante na caracterização do governante como um “sábio de acordo com a ciência operativa”(II <I, 3>), isto é, um phrónimos ou prudente, no sentido da Ética Nicomaqueia.
A autora, Rosalie Pereira, escreveu anteriormente, a partir de sua dissertação de mestrado, um livro sobre Avicena – A Viagem da Alma (2002), em que expôs a biobibliografia de Ibn Sina, os grandes temas de sua obra, diversos enfoques do mesmo sobre o conhecimento humano, terminando com uma análise da Narrativa de Hayy ibn Yaqzan. Agora, ela traz a público, a partir de sua tese de doutorado, uma obra sobre Averróis que pode ser considerada como a segunda parte de um díptico. Assim, presta ela mais um apreciável serviço ao estudo da filosofia em árabe no nosso meio. Haveria ainda que assinalar o impecável trabalho editorial do livro ora publicado.
Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento – Professor do Departamento de Filosofia da PUC-SP.
O intelecto em Ibn Sina (Avicena) – ATTIE FILHO (RFA)
ATTIE FILHO, Miguel. O intelecto em Ibn Sina (Avicena). Cotia: Ateliê, 2007. Resenha de: NASCIMENTO, Carlos Arthur Ribeiro do. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.21, n.28, p.255-258, jan./jun., 2009.
Aquele que conhecemos simplesmente como Avicena, tinha um nome digno de um persa (nasceu em Bukhara em 980 e morreu em Hamadan em 1037) de cultura árabe, já que não havia ainda paulistas de quatrocentos anos: Abu ‘Ali Al-Hussein Ibn ‘Abd Allah Ibn Al-Hassan Ibn ‘Ali Ibn Sina. Foi, como se diz, um homem dos sete instrumentos: médico, exerceu o cargo de vizir (ao pé da letra “aquele que carrega o fardo”, na falta de um piano, naturalmente), deixo uma extensa obra (os catálogos enumeram mais de 270 títulos a ele atribuídos) e ainda viajou pela sua terra natal e foi preso…
Entre os livros que escreveu, pelo menos dois tiveram uma importância extraordinária tanto no mundo de língua árabe como no Ocidente latino: o Canon de medicina, que foi (como o próprio título indica) canônico no estudo da arte médica, pelo menos do século XII ao XVI na Europa latina) e a enciclopédia Al-shifa (A cura) que os latinos utilizaram, parafrasearam, copiaram e pilharam de todos os modos possíveis e imagináveis. Esta pretendia reunir o que havia de melhor em matéria de conhecimentos científicos e filosóficos, no que dizia respeito “a todas as coisas cognoscíveis e mais algumas outras,” isto é, o conhecimento da organização e dos procedimentos próprios do pensamento humano (lógica), o conhecimento das coisas materiais (ciência da natureza ou física), os conhecimentos matemáticos (aritmética, geometria, música e astronomia – o quadrívio da Antiguidade Tardia e da Idade Média) e aquele campo de conhecimentos que Aristóteles tinha denominado filosofia primeira ou teologia, isto é, a metafísica. A lógica constitui uma espécie de propedêutica. As três grandes áreas seguintes, compunham o conhecimento teórico, vindo depois delas o estudo da praxis humana (ética e política). Assim como Avicena adota na organização do estudo da lógica a ordem dos escritos do Organon aristotélico, segue também, no que se refere ao estudo da natureza a ordem dos tratados aristotélicos a respeito (METEOROLÓGICOS, Liv. I, c. 1 ). Isto não significa que Avicena se restrinja a comentar os textos de Aristóteles. Inspirandose deste e de outras fontes, procede a uma reelaboração do que Aristóteles dizia. O estudo da natureza tem início com a formulação das condições gerais dos seres dotados de matéria e sujeitos à mudança, seguindo-se o estudo dos seres inanimados e dos animados, isto é, vivos, pois dotados do princípio vivificante, a alma (al-nafs, em árabe). Deste modo o Livro da alma (Kitab alnafs) é um estudo de abertura do que diz respeito aos vegetais e animais, ocupando o sexto lugar na sequência dos tratados; daí o nome que recebeu muitas vezes na tradução latina “Liber Sextus de Naturalibus”.
O “Livro da alma” ou o De anima de Avicena ou o “Livro sexto a respeito do que é natural” tem também, grosso modo, uma organização paralela ao Peri Psychés de Aristóteles, mas Avicena inova em vários pontos. Entre outros, na definição da alma como subsistente por si mesma; no detalhamento da teoria dos sentidos internos – tema da dissertação de mestrado do professor Miguel Attie Filho na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), publicada sob o título Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena). Porto Alegre: Edipucrs, 2000; no estatuto e funcionamento do intelecto humano. Este terceiro tema é que dá título ao livro do Professor Miguel e foi, antes de se tornar livro, o assunto de sua tese de doutorado defendida no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP).
Avicena reinterpreta o livro III, capítulos 4-5 do Peri Psychés dentro de um quadro cósmico, em que o intelecto humano aparece como a última de uma hierarquia de inteligências ligadas às esferas dos astros. O intelecto humano de que cada indivíduo é portador é simplesmente receptivo em relação ao que, em liguagem plotiniana, é denominado o “doador das formas”. Este recebe tal nome porque, sendo a inteligência imediatamente superior ao intelecto humano, ligada à esfera da Lua, infunde as formas na matéria terrestre, para que as coisas deste mundo existam e no intelecto passivo humano para que sejam conhecidas. Mas, para que isto se realize é necessária uma preparação que é constituída por todo o procedimento, denominado na tradição aristotélica de “abstração da matéria sensível e das condições materiais”, que parte da atividade dos sentidos externos, prossegue com a dos sentidos internos e dispõe o intelecto passivo para que este se volte para a inteligência agente ou doador das formas. Assim sendo, é possível dizer que Avicena procede a uma síntese da tradição aristotélica com um arcabouço neo-platônico. Daí, inclusive, a imagem, por ele utilizada, das “duas faces da alma”, uma volta para o mundo material e outra para o mundo não-material ou espiritual, consistindo a plena realização da alma humana (felicidade) em sua união com a inteligência agente e, através desta, com a inteligência primeira.
O livro, que o professor Miguel dá a público, O intelecto em Ibn Sina (Avicena), retraça o que foi aqui resumido, em sua Introdução e capítulo 1º, tratando mais detalhadamente do intelecto nos capítulos 2º e 3º. Apresenta também em anexo uma tradução do texto de Avicena sobre a inteligência ativa e a inteligência passiva (LIVRO DA ALMA, liv. III, seção 5), feita diretamente do texto árabe e acompanhada da tradução latina medieval. É proposta uma interpretação original desta passagem, na medida em que o intelecto passivo não estaria retido exclusivamente ao papel de puro receptor do inteligível, já dado como tal na inteligência agente, mas a ele se atribuiria uma participação mais ativa no processo de intelecção e se entenderia a participação da inteligência agente acentuando sua analogia com o papel da luz na visão sensível e não como uma fornecedora de formas inteligíveis inteiramente acabadas.
O livro do professor Miguel aponta no seu capítulo 3º para as discussões sobre os intelectos agente e passivo após Avicena, tendo atingido sua culminância na Universidade de Paris no século XIII. No final da década de 60 e no início da década seguinte deste século, tal debate movimentou as Faculdades de Artes e de Teologia, nele participando alguns mestres de ambas (Boaventura, Tomás de Aquino, Siger de Brabante, Boécio de Dácia). Este debate girou em torno de Averrois (Ibn Rushd, Córdova, 1126-Marrakech, 1198), que sustentava uma concepção sobre o intelecto, podendo ser considerada mais radical do que a de Avicena, pois afirmava que, tanto o intelecto possível como o agente eram instâncias transcendentes aos indivíduos humanos, sendo estes dotados apenas dos sentidos externos e internos. Mas, antes de se avirem com Averrois, os mestres da Faculdade de teologia tiveram de enfrentar a tese aviceniana de que cada indivíduo humano é dotado de um intelecto receptivo, mas que o intelecto produtor do inteligível não é individual e sim uma substância não material, transcendente aos indivíduos e única para toda a humanidade.
Talvez, ao percorrer os avatares das teorias sobre o intelecto, de Aristóteles a Avicena e Averrois e à Universidade de Paris no século XIII, alguém possa dizer: muito bem, tudo isso são águas passadas, quando muito um passeio por entre ruínas do passado ou por um cemitério de ideias e doutrinas. Seria, no entanto, permitido duvidar, sem necessariamente pretender ser paradoxal. Relembremos apenas que Boaventura e, particularmente, Tomás de Aquino se opuseram, neste tópico, tanto a Avicena quanto a Averrois, para defender a tese de que cada indivíduo humano é que pensa, sendo então dotado da capacidade, tanto de produzir o universal inteligível, quanto de recebê-lo e exprimi-lo num conceito ou numa proposição afirmativa ou negativa. Assim sendo, como o professor Alain de Libera tem insistido, numa “hermeneutica do sujeito” é preciso reservar um lugar, não só para Agostinho (sempre citado), mas também para a polêmica medieval sobre a “unidade do intelecto” (quase nunca lembrada). O livro do professor Miguel é, então, uma excelente apresentação, tanto deste debate, como de aspectos importantíssimos que o condicionaram e lhe deram origem. Trata-se de um trabalho maduro, de alguém que se ocupa com o tema já há um bom tempo, tendo escrito não só o livro já citado sobre Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena), mas também uma apresentação mais geral da Falsafa, A filosofia entre os árabes e tem no prelo uma tradução, diretamente do original árabe do Livro da alma de Avicena. Além do mais, o leitor será premiado com um trabalho editorial impecável e uma prosa elegante e agradável. Salam!
Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento – Doutor em Filosofia pela Universidade de Montreal, Canadá. Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, SP – Brasil. E-mail: carlosarthur@pq.cnpq.br
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