Conceitos elementares da Guerra Fria nos livros didáticos | Leonardo Augusto de Carvalho

Guerra Fria CanvaPro

Intitulada Conceitos elementares da Guerra Fria nos livros didáticos, a obra é resultado de um curso de especialização em Saberes e Práticas na Educação Básica, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (CESBEP/UFRJ), em 2018, na qual são condensados questionamentos que emergiram das experiências de Leonardo de Carvalho Augusto, a partir de seu trabalho na educação básica como professor de História e as reflexões alcançadas a partir da pós-graduação. Dessa forma, pode conciliar questões do mundo contemporâneo com indagações próprias ao ensino de História.

Guerra Fria Conceitos elementaresO livro tem como objeto a escrita didática em torno de um tema: a Guerra Fria. Influenciado pela teoria da história alemã atrelada à história dos conceitos de Reinhart Koselleck e da Didática da História de Jörn Rüsen, Carvalho Augusto investigou como os conceitos que dão realidade à Guerra Fria foram mobilizados e em que medida contribuíram para a constituição de um sentido a partir da narrativa dos livros didáticos. Leia Mais

September 11, 2001 as a Cultural Trauma | Christine Muller || How Nations Remember: a narrative approac | James V. Wertsch

Os livros September 11, 2001 as a Cultural Trauma (2017), de Christine Muller, e How Nations Remember: a narrative approach (2021), de James V. Wertsch, são obras desenvolvidas a partir duma sólida base interdisciplinar (com contribuições vindas da Psicologia, Sociologia, Antropologia, História, Ciência Política, entre outras) que abordam os temas da memória das nações e a importância de eventos traumáticos na respetiva memória. A presente resenha aos dois livros surge num momento oportuno da História Contemporânea, em que várias nações do mundo usam a memória para revisitar o seu passado, impulsionadas por derivas nacionalistas identitárias, por tentações revisionistas, ou por movimentos de contestação como o Black Lives Matter.

Passados vinte anos sobre o atentado terrorista do 11 de setembro, e depois de inúmeros artigos e livros sobre o trauma cultural associado à infame data, foi com muito interesse que analisei a obra de Christine Muller, que aborda o ataque terrorista como um case study de trauma cultural. O livro lançado em 2017 apresenta exemplos de produções culturais populares norte-americanas, em que a típica narrativa otimista e recompensadora do “sonho americano” é substituída por narrativas dominadas por crises existenciais, ambivalência moral e fins trágicos inevitáveis. Leia Mais

Miradas góticas. Del miedo al horror en la narrativa argentina actual | Adriana Goicochea

ACECHAR LO GÓTICO. UNA APROXIMACIÓN CORAL A LA NARRATIVA ARGENTINA ACTUAL

En Fantasy. Literatura y subversión, Jackson recurre al concepto óptico de paraxis (de par-axis: junto al eje) para presentar la tesis central de su libro: “es un área en la que los rayos de luz parecen unirse en un punto detrás de la refracción. En esta área el objeto y la imagen parecen chocar, pero en realidad ni el objeto ni la imagen reconstituida residen ahí verdaderamente: ahí no hay nada” (Jackson, p. 17). Lo fantástico constituye así una mirada a lo real que lo ensombrece y amenaza: “Toma lo real y lo quiebra” (Ib. p. 18). Esta característica subversiva y problematizadora de la percepción constituye una de las marcas centrales de las Miradas góticas que, compiladas por Adriana Goicochea, se disponen a acechar las modulaciones de “lo gótico” en la narrativa argentina reciente. Leia Mais

AI Narratives / Stephen Cave, Kanta Dihal e Sarah Dillon

DIHAL Kanta
Kanta Dihal / Foto: Media & Press /

DIHAL K Al narrativesArtificial intelligence (AI)’ is a loaded term, rife with connotative contradiction that inspires debate, disagreement, and disillusion. But what is AI, really? How have our expectations of computational capability, and even a robot Armageddon, come to be? Why does it matter how we talk about increasingly sophisticated technology, not just in expository prose, but also in fiction? How might visual and cinematic representations of AI technologies reflect and contribute to particular understandings and potentialities? AI Narratives: A History of Imaginative Thinking about Intelligent Machines is an ambitious effort to prompt widespread critical consideration not of AI itself, but of the stories—particularly fictional stories—surrounding this pervasive but still largely misunderstood technology. Comprising 16 chapters by scholars from various disciplines, AI Narratives offers a panoramic snapshot of a land still largely unexplored: AI humanities. Leia Mais

screver história do direito: reconstrução/ narrativa ou ficção?

Com a publicação do livro de Michael Stolleis (2020)2 a literatura de teoria da história do direito em língua portuguesa ganha um fecundo estímulo.3

O campo da teoria e metodologia da história é uma especialização consolidada, com congressos e periódicos próprios. No Brasil, já há uma volumosa bibliografia a respeito traduzida, com peso maior para a linhagem francesa (de Bloch e Braudel a De Certeau, Ricoeur e Hartog, afora tantos outros), mas também da língua inglesa (Collingwood e Hayden White), italiana (Ginzburg) e alemã (Koselleck e Rüsen)4. Estes textos são referência inescapável para boa parte da pesquisa em história do direito produzida em âmbito universitário entre nós. A lacuna maior se dá justamente para a bibliografia específica de teoria e metodologia da história do direito (Fonseca, 2011; Paixão, 2002).5 Embora sem o nome de fantasia de “teoria da história do direito” ou “legal metahistory”, há muita reflexão metodológica acumulada, com alguma institucionalização6 , se bem que, na maior parte das vezes, esta reflexão ocorre (quando se dá explicitamente) entrelaçada com a pesquisa monográfica sobre um objeto qualquer. O livro de Stolleis, pois, é um convite para uma reflexão atenta e destacada dos pressupostos teóricos e metodológicos da escrita da história do direito em diálogo com a teoria da história. Leia Mais

Infancias. La narrativa argentina de HIJOS | T. Basile

Teresa Basile es Doctora en Letras, miembro del Comité Científico e Investigadora del Centro de Teoría y Crítica Literaria (IdIHCS-CONICET) y Profesora Adjunta Ordinaria en la Universidad Nacional de La Plata [1]. Sus trabajos abordan los vínculos entre literatura, política y memoria en las producciones literarias de las últimas décadas. En esta oportunidad, Basile se interesa por los hijos/as de los militantes revolucionarios que también fueron víctimas de la última dictadura militar (1976-1983). Analiza sus narrativas ofreciendo un panorama exhaustivo de las producciones culturales sobre infancias atravesadas por el terrorismo de Estado. Si bien es un trabajo que aborda los procesos históricos principalmente desde la literatura, resulta una innovadora perspectiva para quienes estudiamos la historia reciente y estamos interesados en la segunda generación en la post dictadura. Leia Mais

A aventura – AGAMBEN (SO)

AGAMBEN, Giorgio. A aventura. Tradução de Cláudio Oliveira. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. Resenha de: PROVINCIATTO, Luís Gabriel. Sofia, Vitória, v.8, n.2, p.232-236, jul./dez., 2019.

A tradução das obras de Giorgio Agamben (1942) para o idioma português é significativa para o avanço dos estudos acerca do pensamento desse filósofo contemporâneo que se põe a discutir temas de filosofia, religião, política, direito, economia, cultura. A diversidade temática, característica que perpassa as obras de Agamben, implica possíveis diferentes matizes através das quais se pode aproximar e abordar suas obras: elas não são um domínio exclusivo da filosofia, sendo discutidas também pelas ciências sociais e pelos braços que delas derivam, pela ciência da religião e pela teologia, pela ciência política e pelo direito. Isso é possível porque o conteúdo trazido por Agamben está vinculado à interpretação dos problemas contemporâneos, que, por sua vez, exigem distintas abordagens para que sejam compreendidos em sua integralidade. A aventura ( L’avventura ), obra originalmente publicada na Itália em 2015, não foge a essa caracterização geral.

Trazendo como tema central a aventura, a obra está organizada em cinco capítulos, seguidos de um posfácio, próprio da tradução brasileira, assinado por Davi Pessoa. Aventurar-se : esse é o título do posfácio, que, de acordo com nossa perspectiva, deveria ser a primeira parte da obra a ser lida por dois motivos. Primeiro, ele situa o leitor quanto à arqueologia, método muito caro a Agamben e utilizado pelo autor em uma perspectiva particular. A adequada compreensão da metodologia de investigação implica uma leitura menos propensa a equívocos interpretativos e, além disso, mostra que o método arqueológico não é utilizado na investigação do passado pelo passado, pois para o filósofo importa fazer confluir passado e presente. Conforme indica Pessoa, é preciso “saber viver o embate entre presente e passado para desativar as amarras do chronos , produzindo uma transformação por dentro da temporalidade linear através do uso errático do anacronismo” (PESSOA, 2018, p. 70). Segundo, o posfácio mostra que A aventura não é uma obra sobre um tema aleatório: justifica-se a realização de uma arqueologia da aventura no contexto das investigações de Agamben já publicadas. Esse é outro mérito do posfácio: trazer, mesmo que brevemente, outras obras de Agamben para mostrar a relevância de uma abordagem sobre o tema da aventura. Aí são citadas Signatura rerum: sobre o método (Boitempo, 2019), Ideia da prosa  (Autêntica, 2012) e Infância e história: destruição da experiência e origem da história (Ed. UFMG, 2012). O posfácio ainda faz notar que ao tema da aventura está implícito o da história e o da linguagem, logo, o do surgimento do homem enquanto ser falante e histórico. Ao tema da aventura, então, está vinculado o da antropogênese, que, por sua vez, interessa a cada humano particularmente, pois diz respeito à sua condição de vivente. O posfácio, assim, traz e faz uma adequada introdução à obra no contexto que lhe é próprio.

Demônio : esse é o título do primeiro capítulo. Conforme indica a nota de tradução, o termo original utilizado por Agamben é demone , que, em italiano, guarda uma relação com o termo grego daímon . Note-se, então: a relação aqui pretendida é com a tradição grega e com o significado de daímon , que denota o caráter divino (transcendente) de um chamamento, tal qual acontece com Sócrates, por exemplo. Mantendo essa relação com um aspecto divino/transcendente, Agamben inicia sua obra fazendo menção às Saturnais de Macróbio e para o fato de que nelas se narra um banquete onde uma das personagens atribui aos egípcios a crença de que o nascimento de cada homem é presidido por quatro divindades: Daimon (Demônio), Tyche (Sorte), Eros (Amor) e Ananche (Necessidade). Cada homem, em vida, deve pagar o seu tributo a cada uma dessas divindades e “o modo como cada um se mantém em relação com essas potências define a sua ética” (AGAMBEN, 2018, p. 12). É a essas divindades que Goethe, em Palavras originárias ( Urworte ) (1817), tenta pagar seu débito, acrescentando-lhes uma quinta: Elpis (Esperança). A leitura aí realizada por Agamben mostra que Goethe paga seu tributo somente a uma divindade, Daimon . O poeta tem consciência de sua fuga frente à responsabilidade de pagar tributo a cada uma das divindades e, por isso, acrescenta uma quinta, Elpis , que, de acordo com Agamben, nada mais é do que um disfarce de Daimon . Assim, Goethe mantém-se fiel a uma única divindade e espera dela a salvação. O capítulo se conclui com uma citação a um aforismo de Hipócrates no qual se encontram cinco palavras-chave: vida ( bios ), arte ( techne ), ocasião ( kairos ), experiência ( peira ) e juízo ( krisis ). De acordo com Agamben, essas cinco palavras guardam uma “secreta correspondência” com as divindades de Macróbio e Goethe. Aí está em “jogo a breve aventura da vida humana” (AGAMBEN, 2018, p. 23).

Aventure (em francês): esse é o título do segundo capítulo. Aqui Agamben recorre à literatura trovadoresca para falar da aventura, o que torna A aventura próxima de uma das primeiras publicações de Agamben, Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental (Ed. UFMG, 2007). Tal proximidade se nota, sobretudo, pela lida com obras de poetas trovadores, revelando, assim, sua importância para o pensamento de Agamben como um todo. É nesse capítulo que se inicia propriamente uma arqueologia da aventura. Trata-se, porém, não de uma arqueologia cronológica, mas kairológica, pois o que interessa ao autor é ir em direção à origem da palavra na condição de evento. Para tanto, importa compreender duas identificações realizadas ao longo do capítulo. A primeira é entre cavaleiro e poeta: a procura daquele por aventura é a mesma deste. O poeta, assim, narra-se no poema. Dessa maneira, não é possível pensar a aventura sem pensar na implicação de um “eu”. Não se trata, porém, de tomar a aventura como um objeto contraposto ao sujeito: não há antecedência de um ou outro aqui, tampouco a identificação do “eu” com um “sujeito”. A partir dessa primeira identificação, Agamben afirma: “a aventura é para o cavaleiro [logo, para o poeta] tanto encontro com o mundo quanto encontro consigo mesmo e, por isso, fonte ao mesmo tempo de desejo e de espanto” (AGAMBEN, 2018, p. 29). A segunda identificação é entre evento e narração: o que se escreve é a narrativa, mas esta coincide com a aventura histórica, de tal modo que “aventura e palavra, vida e linguagem se confundem” (AGAMBEN, 2018, p. 32).

É com o exemplo de um poema de Maria de França que Agamben prossegue a arqueologia kairológica da aventura. O que aí surge em palavra é aventura e, ao mesmo tempo, verdade: verdade não no sentido apofântico da lógica, isto é, como coincidência entre evento e narrativa, mas verdade como advir. Assim, “aventura e verdade são indiscerníveis, porque a verdade advém e a aventura não é senão o advir da verdade” (AGAMBEN, 2018, p. 34). Outro exemplo por ele utilizado é o da identificação da aventura com uma mulher, Frau Âventiure : aqui a intenção de Agamben é fazer notar que a aventura não é algo que preexiste à história narrada. A aventura é a narrativa e está viva nela e através dela, sendo, por isso, o próprio evento da palavra. Se há uma identificação notável entre evento e narrativa, então a aventura não pode ser somente um termo poetológico, mas deve também possuir um significado ontológico: “se o ser é a dimensão que se abre para os homens no evento antropogênico da linguagem, se o ser é sempre algo que ‘se diz’, então a aventura tem certamente a ver com uma determinada experiência do ser” (AGAMBEN, 2018, p. 38). O final do segundo capítulo aponta para uma interlocução com o filósofo alemão Martin Heidegger que será levada a cabo no quarto capítulo.

O terceiro capítulo — Eros — inicia-se com uma advertência: antes de tentar definir essa experiência do ser, deve-se “limpar o terreno das concepções modernas da aventura, que correm o risco de obstruir o acesso ao significado originário do termo” (AGAMBEN, 2018, p. 39). Essa advertência servirá de guia para os apontamentos críticos que Agamben irá fazer a respeito da concepção de aventura de Hegel, Georg Simmel e Oskar Becker, tidas por ele como concepções modernas, nas quais se encontra “a ideia de que ela [a aventura] seja algo estranho — e, portanto, excêntrico e extravagante — com relação à vida ordinária” (AGAMBEN, 2018, p. 41). O capítulo se encerra com uma crítica a Dante Alighieri: para este autor do medievo a vida do homem não é algo como uma aventura. Isso, de acordo com Agamben, significa uma traição consciente do sentido próprio do termo no período medieval, ou seja, ao não utilizar a aventura para narrar as experiências vividas pelos cavaleiros, Dante está afirmando que a vida não é tal qual a aventura. É a isso que Agamben se contrapõe, mostrando, assim, que a sua concepção é mais próxima dos poemas dos trovadores, onde há identificação de vida e aventura, do que dos modernos, onde a aventura é algo excêntrico.

O quarto capítulo — Evento — é onde Agamben apresenta a sua ideia do que seja aventura. Deve-se notar aqui a importância do segundo capítulo para que o quarto seja bem compreendido: estando mais próxima da concepção de aventura das trovas medievais, a ideia de aventura agambeniana não se identifica com elas, porém. Os apontamentos críticos do terceiro capítulo servem de baliza para a posição assumida por Agamben: nem medieval, nem moderna, mas em diálogo com ambas. Para compreender a sua posição é preciso estar atento a dois pontos característicos desse capítulo. Primeiro: a aventura sempre se dirige a um quem , que, por sua vez, não preexiste à aventura como um sujeito. Para Agamben, a aventura é o que se subjetiviza. Disso decorre a afirmação de que “eu”, “tu”, “aqui” e “agora” são categorias de locução e não categorias lexicais, isto é, são categorias que não podem assumir/possuir uma definição prévia definitiva. O evento, assim, é sempre evento de linguagem e a aventura se torna indissociável da palavra que a anuncia. Há, de fato, uma proximidade entre evento, aventura e linguagem. Por isso, a aventura/evento não exige uma decisão/escolha, logo, nela não há um problema de liberdade. É só assim que o vivente pode se apropriar do evento, ou melhor, ser apropriado por ele. Essa é uma tese que Agamben busca em Heidegger, seu principal interlocutor nesse momento da obra: o homem não possui a linguagem, mas a linguagem o possui. O homem serve-lhe de morada. A interlocução com Heidegger é o segundo ponto característico desse capítulo. Afirmando a ocorrência simultânea de apropriação de ser e homem que acontece no evento/aventura, Agamben coloca em questão o tornar-se humano do homem vivente: “o vivente se torna humano no instante e na medida em que o ser lhe advém” (AGAMBEN, 2018, p. 57). O evento/aventura é antropogênico e ontogênico, pois nele coincide o tornar-se falante do homem com o advento do ser à palavra e da palavra ao ser. Há aí uma analogia entre aventura e Ereignis , termo chave do pensamento tardio de Heidegger. Agamben, na verdade, chega a sugerir que a tradução mais adequada de Ereignis é aventura, deflagrando, com isso, seu aspecto ontológico.

A aventura tem a ver, então, com um vivente tornar-se humano, isto é, falante, o que guarda relação direta com duas obras de Agamben, a saber, O aberto: o homem e o animal (Civilização Brasileira, 2017), na qual o que está em jogo é como o homem se diferencia do animal, e Ideia da prosa (Autêntica, 2012), na qual o tema central é a linguagem e a sua indissociabilidade do pensamento. Descobre-se, desse modo, o que está em causa em A aventura : o evento antropogênico, que, em si, “não tem história e é, como tal, inapreensível” (AGAMBEN, 2018, p. 60). Esse é o principal resultado da arqueologia kairológica: como não pode ser definido definitivamente, o evento antropogênico (e ontogênico) é sem história .

Elpis : esse é o título do quinto capítulo. Aqui o autor volta a falar do significado de Demônio e, com isso, regressa ao ponto inicial da obra, fechando-a tal qual um círculo. Já não fala mais de Goethe, mas o exemplo lá utilizado pode ser aqui percebido nas entrelinhas. Por isso, interessa entender a importância do manter-se fiel ao demônio: “o demônio é a nova criatura que as nossas obras e a nossa forma de vida colocam no lugar do indivíduo que acreditávamos ser segundo nossos documentos de identidade” (AGAMBEN, 2018, p. 62). Daí a importância de Goethe: a vida poética é aquela que se encontra como tal e, com isso, rompe com uma pseudo-identidade. “Isso significa que ao demônio pertence constitutivamente o momento da despedida — que, no momento em que o encontramos, devemos nos separar de nós mesmos” (AGAMBEN, 2018, p. 62). No limite, o exemplo inicial de Goethe orienta toda a reflexão de Agamben. O demônio não é um deus, mas semideus, isto é, sempre possibilidade, potência, e nunca atualidade do divino. A potência que regenera, ou seja, liga-rompendo, é Eros , amor, à qual está ligada a esperança, Elpis , trazida por Goethe como a quinta divindade, mas que, na verdade, se mostra como uma outra face do Demônio .

Desse modo, em A aventura, o que está em causa para Agamben não é a mera arqueologia de um termo, abordando-o desde uma perspectiva que faz implicar filosofia e literatura. Ao realizar uma arqueologia da aventura, Agamben traz à tona uma nuance específica do evento antropogênico e ontogênico do tornar-se humano: o fato dele ser sem história . Desde nossa perspectiva, esse é o ponto culminante do texto e, justamente por isso, tem-se, a partir dele, uma chave de leitura muito interessante fornecida pelo próprio Agamben contra concepções historicistas que se acercam de sua obra. Por fim, recomenda-se a leitura de A aventura , pois somente assim o leitor ficará a par da complexidade e da qualidade da discussão aí trazida por Agamben.

Luís Gabriel Provinciatto – Doutorando em Ciência da Religião na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Brasil. E-mail: lgprovinciatto@hotmail.com

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Vivendo autobiograficamente: a construção de nossa identidade narrativa – EAKIN (FH)

EAKIN, Paul John. Vivendo autobiograficamente: a construção de nossa identidade narrativa. São Paulo: Letra e Voz, 2019. Resenha de: MOREIRA, Igor Lemos. Pensar a autobiografia entre história, identidade e narrativa. Faces da História, Assis, v.6, n.2, p.566-572, jul./dez., 2019.

As discussões a respeito das relações entre identidades e narrativas são recorrentes nas Ciências Humanas e Sociais. Desde a virada linguística no século XX, os estudos em diferentes áreas do conhecimento como a história, a crítica literária, a psicanálise e a antropologia têm procurado compreender estruturas, práticas e processos que envolvem o ato narrativo, destacando constantemente sua relação com a formação de identidades/identificações e representações. Publicada em 2019, a obra Vivendo autobiograficamente: A construção de nossa identidade narrativa, do pesquisador estadunidense Paul John Eakin, contribui para o aperfeiçoamento das discussões sobre identidades e narrativas em áreas de estudos como práticas biográficas, cultura escrita e narrações contemporâneas.

Paul John Eakin é graduado em História e Literatura pela Universidade de Harvard, onde também cursou seu mestrado e doutorado. Especialista na área de autobiografias, é professor emérito da Indiana University, onde ocupou a cadeira Ruth N. Halls de Inglês. A obra, publicada originalmente pela Cornell University, foi lançada no Brasil pela editora Letra e Voz, sendo a primeira tradução para português de um trabalho do autor. O livro está estruturado com uma introdução e quatro capítulos, apresentando os seguintes eixos centrais: os processos de narrativa sobre si; a consciência autobiográfica; a construção identitária por meio das narrativas; e autobiográfica, memória e rememoração.

O primeiro capítulo, “Falando sobre nós mesmos: as regras do jogo”, parte das discussões sobre as narrativas de “si” na contemporaneidade, ao analisar articulações analisando articulações entre autobiografias e mídias (com destaque a programas televisivos como Oprah). Partindo de vasta revisão bibliográfica e passando por autores como Oliver Sacks, Eakin discute e identifica alguns processos envolvidos nas narrativas autorreferênciais construtivas de cada indivíduo. Entre os temas que gravitam este capítulo estão: os efeitos/elaborações de acontecimentos atuantes na constituição das subjetividades; as “regras” que constituem o ato narrativo e a identidade narrativa, que para o autor é algo característico de todo sujeito; a ideia de efeito de verdade, permitindo ao(a) leitor(a) observar um breve panorama da densidade de discussões que perpassam o debate sobre autobiografias. Neste capítulo, a discussão realizada destaca que “[…] quando se trata de nossas identidades, a narrativa não é simplesmente sobre o eu, mas sim de maneira profunda, parte constituinte do eu.” (EAKIN, 2019, p. 18, grifo do autor)  A respeito desta discussão é interessante apontar que, na perspectiva do autor, a construção autobiográfica é um processo que lida com diferentes dimensões temporais de passados e experiências vividas, para além de ser um ato sempre do “tempo presente”, ou seja, do momento de elaboração da narrativa. Essa construção no presente é o que manifesta, ou representa, as identidades dos sujeitos que a constituem a partir de suas vivências, memórias, lembranças e projeções de futuro. Dentro desta chave é possível aproximar os atos narrativos da elaboração de acontecimentos (narração de fatos) que rompem com as temporalidades, sendo uma questão em comum entre o autor e as discussões de François Dosse (2013). Para o historiador francês, a elaboração de um acontecimento é sempre uma produção atual, do momento de comunicação, que articula uma forma de significação acerca da experiência, sem a qual o evento não existiria.

Eakin (2019) aproxima-se dessa leitura ao considerar que esses processos, muitas vezes, levam a incluir experiências coletivas, que nem sempre são frutos de vivências pessoais. Para exemplificar, o autor destaca o 11 de setembro de 2001, uma vez que inaugurou a possibilidade de ter civis como personagens do acontecimento, o que atesta “o desejo de pessoas comuns enxergarem por si mesmas o que aconteceu naquele dia” (EAKIN, 2019, p. 20). Ao analisar esse evento, Dosse (2013) observa o papel das mídias que fabricaram instantaneamente o acontecimento, ao mesmo tempo que o historicizavam. Nesse caso, Dosse e Eakin concordam que um acontecimento testemunhado, direta ou indiretamente, é fundamental na elaboração das identificações, relação possível através das narrativas que permitem ao sujeito inserir-se em contextos que não necessariamente tenha vivido ou experienciado diretamente.

Outro elemento central no capítulo, e que perpassa o restante da obra, é a noção de identidade narrativa e sua relação com a construção de histórias de vida e trajetórias. Para o autor, a identidade, elaborada a partir de identificações, é fruto de construções narrativas entendidas “[…] de um modo inescapável e profundo, elas são o que somos, pelo menos enquanto atores posicionados dentro do sistema de identidade narrativa que estrutura nossos arranjos sociais atuais.” (EAKIN, 2019, p. 10, grifo do autor). Nesta interpretação, a identidade narrativa envolve a estruturação de uma forma de construção autobiográfica que molda o sujeito, reestruturando o passado em uma perspectiva linear e progressiva dos fatos.

A perspectiva do autor enquadra-se no fato de a identidade narrativa ser acumuladora de mais elementos com o passar dos anos, resultado de uma construção da história dos sujeitos, constantemente resignificada. Esse processo estrutura uma narração intencionalmente progressiva sobre a trajetória do sujeito, sempre promovida pelo individualismo. Eakin (2019) destaca que as falhas na memória, vistas como esquecimentos, impactam diretamente na constituição dos relatos autobiográficos, fragilizando a construção dessa identidade narrativa. Essa relação pode ser vista dentro da noção de ipseidade de Paul Ricouer (1991), na qual os sujeitos moldam constantemente o passado de acordo com aquilo que os jogos entre memória e esquecimento permitem e não apenas o que a experiência vivida ou apreendida possibilita relatar1.

No capítulo seguinte, intitulado “Consciência autobiográfica: corpo, cérebro, eu e narrativa”, o autor analisa produções literárias e autobiográficas nas últimas décadas, discutindo como tem se elaborado diferentes formas de identidade narrativa no tempo. Partindo da compreensão de que tais obras são consumidas constantemente, na medida em que existe um desejo das sociedades contemporâneas pela identificação com um outro e pelo consumo de memórias, o autor propõe entender o lugar da ficção e da história no ato de “relatar a si mesmo”. Ao afirmar que “[…] a memória e a imaginação conspiram para reconstruir a verdade do passado” (EAKIN, 2019, p. 76), Eakin destaca que as memórias são perpassadas constantemente pela tensão entre ficção, verossimilhança e “verdade”.

Nos estudos historiográficos sobre autobiografias2 é importante, muito mais que a verdade dos fatos narrados, compreender os diferentes modos como indivíduos pensaram e sentiram os fatos de suas vidas. Enquanto o historiador e/ou biógrafo finda um compromisso com os fatos ocorridos ao narrar uma trajetória, o autobiógrafo tem sua lealdade associada ao “eu”/sujeito construído. Deste modo, a autobiografia apresenta-se como espaço de tensões e o historiador e/ou pesquisador dedicado ao seu estudo necessita de atenção redobrada para observar que a principal relação não se dá na verossimilhança, mas sim com o efeito da linguagem que representa um sujeito, que almeja determinado fim. Um elemento central para compreender esse efeito de linguagem é a noção de corpo, pois não somente é o espaço em que o “euhabita, como também é o que permite o indivíduo sentir e experienciar a vida.

Nesse sentido, é possível perceber que o principal argumento do autor centra-se na ideia de que a autobiografia está necessariamente associada à espetaculização dos indivíduos, ou seja, seu local é não apenas o presente, mas também o seu destinatário, “o outro”. Artiéres (1998), ao debater os processos de arquivamento do eu nas sociedades contemporâneas por meio das práticas de guarda e constituição de acervos pessoais, problematiza essa questão de maneira semelhante a Eakin. Ambos os autores, ao discutirem os processos autobiográficos, tencionam as relações temporais para além apenas de destacar o ato de escrita no presente ou sua intencionalidade futura. Dentro dessa perspectiva, construir uma autobiografia é elaborar uma narrativa sobre si e sobre um tempo não linear, apesar de sua sistematização geralmente ser, como forma de orientação e constituição das identidades.

O terceiro capítulo, “Trabalho identitário: pessoas fabricando histórias”, inicia uma segunda parte do livro no qual o autor procura construir breves relatos de estudos de caso. É possível perceber que Eakin divide seus estudos de caso em torno de dois grupos principais de documentações: (1) Obras autobiográficas e literárias de grande recepção, publicadas na idade moderna e na contemporaneidade; (2) Relatos de vidas cotidianas e de pessoas “ordinárias”. Para o primeiro caso de estudo, o autor retoma relatos autobiográficos desde o século XVIII e XIX, como os depoimentos recolhidos por Henry Mayhew (1881-1841), para debater as diferentes operações e processos que envolvem as autobiografias nos séculos XX e XXI.

Tomando o final da Idade Moderna francesa como ponto de partida, o autor historiciza a emergência das práticas de relatar a si mesmo e das autobiografias. Para Eakin (2019), apesar de os relatos escritos serem predominantemente ligados às elites, ainda assim é possível mapear a construção de narrativas autobiográficas através de leituras a contrapelo, como fez Mayhew. Embrenhando-se pelo que pode ser considerado um exercício de busca pela compreensão dos estratos de tempo (KOSELLECK, 2014), apesar de essa dessa relação não ser mencionada, Paul Eakin afirma que esse processo foi intensificado com a emergência dos meios digitais, criando sociedades cada vez mais narradoras de si. Redes sociais, a exemplo do Facebook e o MySpace foram fundamentais para lançar a centelha que favorece a alteração da identidade, uma vez que propiciam a mudança não somente de construções narrativas, mas também cria-se a necessidade constante do on-line, o que causa profunda sensação de aceleração do tempo e a consequente efemeridade da elaboração de uma identidade narrativa.

Nesse capítulo, o segundo conjunto de fontes utilizadas são os relatos do cotidiano de sujeitos considerados, pelo autor, como “comuns” ou “ordinários”. Diferentemente de uma análise exclusiva sobre como o cotidiano é narrado por esses sujeitos a partir dos livros autobiográficos, Eakin (2019, p. 114) afirma que seu interesse é compreender que a “atividade de construir eus e histórias de vida consiste ainda em mais uma prática cotidiana”, perspectiva elaborada através dos estudos de Michel de Certeau.

Michel de Certeau (2009) entende que o cotidiano é constantemente elaborado por meio de dinâmicas entre estruturas socioculturais e práticas individuais e (re)inventivas. Eakin analisa de que modo as práticas de relatar o cotidiano são elaboradas, dimensionando o consumo destas narrativas. Uma das ocorrências analisadas, e talvez o mais intrigante dos estudos de caso, é o do próprio pai do pesquisador, no qual, para além de pensar nos impactos da figura paterna na construção da identidade narrativa, discute de que maneira ele o influenciou a se interessar por autobiografias. Partindo dessa relação, o autor discute suas próprias narrativas autobiográficas, interrogando-se sobre a maneira como “modelos” de histórias e os relacionamentos interpessoais influenciam na constituição de identidades.

A discussão sobre o pai do autor prossegue no capítulo seguinte da obra, quando Eakin passa a realizar um relato autobiográfico. Em “Vivendo autobiograficamente”, capítulo que dá nome à obra, o autor mergulha em uma escrita autobiográfica sobre si e sua identidade narrativa. Se até essa altura do livro houve a discussão dos aspectos teóricos e metodológicos, bem como a realização de estudos de caso e a historicização de algumas práticas, o último capítulo apresenta o autor problematizando seu exercício cotidiano. Em sua leitura é possível perceber uma provocação intencional a quem “[…] se propõe a usar esse material como fonte para uma análise social deve perguntar […] de onde é que provem o entendimento de um indivíduo acerca do eu e da história de vida” (EAKIN, 2019, p. 130). Nesse sentido, para analisar autobiografias, Eakin diz que a experiência é fundamental para compreender suas práticas.

O autor utiliza a sua trajetória para refletir sobre o perfil adaptativo da história, dependendo sempre do narrador/elaborador, seu contexto e sua intencionalidade. Através dessa perspectiva, Eakin (2019, p. 158) defende que “[…] o discurso autobiográfico tem um papel decisivo no regime de responsabilização social que rege nossas vidas, e, nesse sentido, pode-se dizer que nossas identidades são socialmente construídas e reguladas”. Dentro dessa constatação é perceptível a centralidade do eu e de suas intenções, em que se pode considerar a narrativa como instrumento de legitimação de poder e de um determinado status ou lugar social no qual seu comunicante se insere. Essa questão pode ser interpretada através de outras perspectivas contemporâneas das ciências humanas que não citadas por Eakin, como, por exemplo, os conceitos de lócus de enunciação (GLISSANT, 2011). Nessa articulação, não apenas o passado mobilizado no presente da narração, mas também a categoria e diferentes noções de futuro são aspectos centrais.

É particularmente interessante observar que, ao chegar ao último capítulo da obra, o(a) leitor(a) tenha sido conduzido a perceber a forma de organização dos temas intensamente problematizados. Partindo inicialmente de uma discussão teórica sobre as questões autobiográficas, o autor procurou definir seus conceitos norteadores, abordando também suas historicidades, para aplicá-los em estudos de caso e, por fim, produzir sua própria identidade narrativa. Tal estratégia cria um espaço para que o(a) leitor(a) mobilize as discussões do próprio teórico, percebendo os processos apontados e também sua tese principal: a de que é impossível fugir da narrativa, pois a elaboração de identidades é um processo de construção de histórias no presente a partir de suas relações com o tempo.

Referências

ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 11, n. 21, p. 9-34, jan./jun. 1998.

BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (Org.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2006. p. 183-191.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. 16. ed. Petrópolis: Vozes, 2009.

DOSSE, François. Renascimento do acontecimento. São Paulo: EdUNESP, 2013.

GLISSANT, Édouard. Teorias. In: GLISSANT, Édouard (Org.). Poética da relação. Portugal: Porto Editora, 2011. p. 127-170.

KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre a História. Rio de Janeiro: Contraponto, Ed. PUC-RJ, 2014.

RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. Campinas: Papirus, 1991.

Notas

1 Essa discussão encontra-se no texto de Pierre Bourdieu (2006) sobre a “Ilusão Biográfica”, conceito mobilizado pelo sociólogo para alertar aos pesquisadores na área de biografias e trajetórias, assim como os biógrafos, a respeito dos perigos da linearidade e das construções teleológicas da narrativa de vida de sujeitos. Em função da proximidade com os indivíduos biografados, e o processo de pesquisa que permite ao biógrafo conhecer na maioria dos casos o desfecho de sua obra antes mesmo de iniciar sua narrativa, Bourdieu reafirma a necessidade de problematização das trajetórias, compreendendo os processos, percursos e enfrentamentos que marcam a vida dos indivíduos.

Igor Lemos Moreira –  Doutorando em História pelo programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina (PPGH-UDESC), na linha de pesquisa Linguagens e Identificações. Bolsista PROMOP/UDESC, estado de Santa Catarina (SC), Brasil. Mestre e Graduado em História (Licenciatura) pela mesma instituição. Integrante do Laboratório de Imagem e Som. E-mail: igorlemoreira@gmail.com.

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História e narrativa: a ciência e a arte da escrita histórica – MALERBA (PL)

Em História e narrativa: a ciência e a arte na escrita histórica, Jurandir Malerba, professor da UFRGS, reúne textos de importantes pesquisadores, filiados a diferentes áreas das Ciências Humanas, cuja temática nos convida a refletir em que medida a história se aproxima de um discurso científico e/ou artístico.

Resultado de uma disciplina ofertada no Programa de Pós-graduação em História da PUC-RS, o livro tem o mérito de trazer ao público que compartilha a língua portuguesa a tradução de estudos seminais para o campo da narrativa histórica, além de textos inéditos ou reeditados que evidenciam o reconhecimento e a competência de pesquisas produzidas por brasileiros no campo da teoria da história. Leia Mais

Prácticas docentes de la enseñanza de la historia: Narrativas de experiencias – SALTO (REH)

SALTO, Victor A. (Comp.), Prácticas docentes de la enseñanza de la historia: Narrativas de experiencias. UNCo, 2017. 227p. Resenha de: ALVARELLOS, Pablo. Reseñas de Enseñanza de la Historia, n.15, p.231-236, ago. 2017.

Pablo Alvarellos – UNCo – FaHu – CRUB Acesso apenas pelo link original

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Encontros com Moçambique / Regiane A. Mattos, Matheus S. Pereira e Carolina G. Morais

“Encontros com Moçambique” é um livro fruto de apresentações e debates realizados durante a II Semana da África: Encontros com Moçambique, na PUC do Rio de Janeiro, entre os dias 21 e 23 de março de 2016. Se há uma década os colóquios e seminários reuniam pouco mais de uma dezena de pesquisadores interessados na grande área de História da África, abrangendo assim um amplo recorte temático e temporal de estudos, este livro é o retrato de como, hoje, encontramo-nos em um novo momento. Regiane Augusto de Mattos, Carolina Maíra Gomes Morais e Matheus Serva Pereira apostaram que seria possível organizar uma obra que reunisse pesquisas cujo tema principal fosse Moçambique. A investida não apenas se concretizou como é prova, como afirma Valdemir Zamparoni em seu prefácio à obra, de “um amadurecimento ímpar da área de estudos africanos”2 no Brasil.

Com a maioria dos trabalhos delimitados pelo período colonial ou que perpassam o período em sua análise, o livro conta com 10 artigos divididos em 3 unidades: Deslocamentos, conexões históricas e conflitos; Narrativas; e Agendas de um Moçambique contemporâneo. Na primeira parte, um ponto de união entre os textos são os fatores condicionantes e as consequências de deslocamentos, forçados ou não, em diferentes períodos históricos, além do uso de fontes oficiais, trabalho etnográfico ou registros de imprensa para as análises, com acurado rigor metodológico no uso da documentação.

O artigo de Regiane Mattos, “Aspectos translocais das relações políticas em Angoche no século XIX”, contempla as relações entre sociedades litorâneas e interioranas do norte de Moçambique, destacando os contatos não hierárquicos entre o sultanato de Angoche e as elites muçulmanas de outras localidades, em especial no Zanzibar. Mattos parte de um evento principal para orientar sua pesquisa e desafiar a interpretação tradicional da historiografia: a viagem do comandante militar de Angoche, Mussa Quanto, e seu parente sharif, em 1849. A autora, a partir desse deslocamento, avalia a formação de uma rede comercial e cultural no oceano Índico em consonância com o aumento da presença da religião muçulmana nesses territórios. Mais do que realizar a análise histórica de uma questão localmente específica, interessa a Mattos averiguar as conexões a partir da perspectiva da translocalidade, conceito desenvolvido pela historiadora Ulrike Freitag e central na abordagem proposta no artigo. Muito bem explicado no texto, o conceito ampara a pesquisa em seu objetivo de destacar as interconexões entre lugares e atores, abrindo espaços para ressignificações de aspectos globais em âmbito local.3

No artigo seguinte, “Algazarras ensurdecedoras: conflitos em torno da construção de um espaço urbano colonial (Lourenço Marques – 1900-1920)”, Matheus Serva Pereira aborda, a partir de notícias na imprensa local, a difícil relação entre o projeto urbano colonial português para Lourenço Marques, cuja área central de Maxaquene foi delimitada para a ocupação de famílias brancas europeias, e a insistência – e resistência – dos “batuques” da população local. O argumento de Serva Pereira é que, a despeito do projeto colonial urbano, do uso da violência física e simbólica no deslocamento forçado das comunidades para a periferia, as notícias veiculadas na imprensa da época põem em xeque o sucesso de tal empreitada. Pereira atesta que os batuques, como práticas culturais, revelam uma atuação “longe de passiva em relação as instituições criadas para regular e fiscalizar o perímetro urbano de Lourenço Marques”4, estabelecendo assim um diálogo estreito com as premissas teóricas de Frederick Cooper sobre a noção de resistência em espaços coloniais5. Do mesmo modo, o autor esforça-se em defender uma organização social não totalmente polarizada na cidade, ao recompor o espectro social dos batuques nas cantinas de Lourenço Marques, onde não era incomum a convivência, num mesmo espaço de diversão, de figuras oficialmente opostas na lógica colonial e urbana.6

Ainda sob a premissa dos deslocamentos e seus conflitos, o capítulo que encerra o primeiro conjunto de textos, “Saúde além das fronteiras: doenças, assistências e trabalho migratório ao sul de Moçambique (1930-1975)”, de Carolina Maíra Gomes Morais, analisa de que maneira a imigração de trabalhadores para a África do Sul, no período colonial, além de atender a uma demanda econômica, trouxe consequências sensíveis no âmbito da saúde e das relações pessoais em Moçambique. Para acessar as condições desse movimento migratório, Morais faz uso, sobretudo, de fontes oficiais de relatórios de inspetores administrativos e se questiona de que maneira se davam as relações entre medicina “oficial” e “tradicional”. Pela disponibilidade das fontes, há uma comprovação mais substancial em relação à atuação dos Serviços de Saúde do que ao recurso à medicina tradicional. Interessante é notar a fluidez de fronteiras entre Moçambique e África do Sul sugerida pela autora para os saberes e medicinas tradicionais, proporcionada pelo trabalho migratório, além da ampla modificação nas relações pessoais em Moçambique, quando do retorno dos trabalhadores.

Na segunda unidade do livro, composta por trabalhos de pesquisadores provindos de diferentes áreas do conhecimento, os artigos têm em comum o estudo de uma obra ou do conjunto da obra de moçambicanos. Nesta unidade, que traz fontes interessantes e pouco convencionais nas pesquisas sobre Moçambique, como a fotografia e o cinema, cumpre enfatizar como nota comum o superdimensionamento do contexto histórico nas abordagens. Nos trabalhos, o contexto é instrumentalizado de modo a legitimar as narrativas ficcional ou visual presentes na documentação, utilizada muitas vezes como mero exemplo comprobatório da realidade colonial. Não resta dúvida quanto ao esforço teórico de todos os textos da unidade, mas, de um modo geral, a metodologia utilizada para a análise da relação entre ficção e História, literatura e História e visualidade e História nesses trabalhos limitou o uso mais abrangente das fontes, negligenciando, em certa medida, as narrativas criativas das próprias obras como propositivas e autoras de discursos formadores do social.

Em “O cinema em Moçambique – história, memória e ideologia: análise dos filmes Chaimite, a queda do Império Vátua (1953) e Catembe: sete dias em Lourenço Marques (1965)”, Alex Santana França realiza uma interpretação sócio-histórica e comparativa entre os filmes Chamite… e Catembe…, ancorando-se na perspectiva teórica de Francis Vanoye. Com a análise sobre Chaimite, o autor demarca as principais características do cinema de propaganda portuguesa, que se dispunha a responder, na época, à crítica internacional sobre o colonialismo luso. Catembe…, ao mesmo tempo em que demonstra o empenho português em conformar uma imagem oficial das colônias, comprovado pelos diversos cortes impostos ao filme, é considerado pelo autor como um exemplo de crítica à colonização.

Em “Não Vamos Esquecer! A propósito da fotografia ‘Marca de gado em jovem pastor’ de Ricardo Rangel”, Isa Márcia Bandeira de Brito busca analisar uma imagem feita pelo fotógrafo moçambicano em 1973, na qual um menino havia sido ferido a ferro na testa por seu patrão, por ter deixado fugir um animal. O prisma da autora na interpretação da imagem, no entanto, não favorece uma análise aprofundada e complexa do objeto, já que toma a imagem como exemplo das relações de violência colonial de maneira generalizada e dicotomiza as relações colonizador/colonizado, enfoque do qual vem se distanciando a historiografia mais recente, amparada nos estudos pós-coloniais, como são exemplos trabalhos consagrados, como os de Frederick Cooper, Homi Bhabha e Mary Louise Pratt7. A autora, vale frisar, mobiliza uma bibliografia interessante para a teorização do objeto no campo das visualidades e o trabalho dimensiona possíveis significados simbólicos da fotografia.

Em “A poesia contestatória de Noémia de Sousa e a situação colonial em Moçambique (1948-1951)”, Gabriele de Novaes Santos se propõe a compreender como a imprensa se ofereceu como veículo para a poesia de contestação colonial da escritora moçambicana Noémia de Sousa. O trabalho de Gabriele Santos é ainda inicial e, portanto, muito promissor, uma vez que a autora abre, no próprio texto, possibilidades de pesquisa interessantes sobre a obra da moçambicana. Por fim, o texto que encerra Narrativas é de autoria de Fatime Samb, com o título “A mulher moçambicana e as práticas culturais”. Ainda no primeiro parágrafo, a autora atesta sua proposta de fazer uma análise sobre o livro Niketche: uma história de poligamia e sobre o papel da mulher na obra de Paulina Chiziane. Samb faz uma importante recapitulação sobre as relações de gênero em Moçambique e a posição social da mulher na “sociedade tradicional” moçambicana, além dos impactos da independência nas relações de gênero e atuação política feminina a partir do comando da Frelimo, um tema ainda pouco conhecido e abordado em pesquisas sobre Moçambique.

A terceira e última unidade do livro, Agendas de um Moçambique contemporâneo, é formada por três artigos, sendo que dois estão em profundo diálogo a respeito da inserção internacional moçambicana, e provêm de duas áreas de formação distintas: Administração e Antropologia. Elga Lessa de Almeida e Elsa Sousa Krayachete, em “Moçambique e a cooperação internacional para o desenvolvimento”, fazem um retrospecto sobre as relações bilaterais estabelecidas por Moçambique com seus parceiros internacionais, demarcando a diferença entre cooperações verticais e horizontais, estas firmadas por países em desenvolvimento, como África do Sul, China e Brasil. O estudo de Elsa de Almeida e Elga Krayachete e o de Fernanda Gallo, “(Des)encontros do Brasil com Moçambique: o caso da Vale em Moatize” complementam-se diante do leitor atento às investidas e consequências da presença brasileira no país. Com um interessantíssimo trabalho antropológico, Gallo busca a vivência da população diante das transformações provocadas pela chegada das empresas multinacionais, em especial a mineradora Vale, e pergunta-se se há alguma relação entre esses megaprojetos para o país e a retomada crescente dos conflitos com a Renamo e ataques a trens. A antropóloga, munindo-se das comprovações de seu trabalho de campo, torna evidente ao leitor o desrespeito das empresas sobre as relações das pessoas com seus locais de origem, ao decidirem, unilateralmente, os locais para reassentamento, por exemplo, e deixa às claras o descompasso entre o discurso oficial da solidariedade e a prática de maximização dos lucros das empresas estrangeiras no país.

O livro se encerra com o capítulo desafiador de Vera Fátima Gasparetto, no qual a autora se dispõe a discutir as possibilidades de uma pesquisa interdisciplinar feminista a partir de uma análise sobre a questão da veiculação da imagem feminina na mídia, comparando a atuação feminina sobre essa questão no Brasil e em Moçambique. A autora traz um panorama sobre a composição e atuação das mulheres em seus espaços de organização nos dois países, como o Fórum Mulher e a Rede Mulher e Mídia. De um ponto de vista feminista e das novas epistemologias no Sul, em diálogo com Boaventura de Sousa Santos, por exemplo, Gasparetto faz ainda uma crítica interna a algumas teorias feministas que essencializam africanas, fazendo do trabalho acadêmico também um trabalho militante na investida de produzir “[…] uma investigação interessada em conhecer a partir das mulheres, conceituadas como sujeitas conhecedoras e conhecíveis.”8

O livro sem dúvida é uma referência importante e necessária para quem deseja se aprofundar em alguns temas moçambicanos e os trabalhos são, em conjunto, uma contribuição valiosa que demonstra um país repleto de possibilidades de pesquisa e com múltiplas fontes possíveis para análise. Mostra-se especialmente interessante nessa obra organizada o diálogo bibliográfico entre os trabalhos e, sobretudo, os diferentes exercícios teóricos e metodológicos que ultrapassam as barreiras temáticas e configuram-se como inspiração aos pesquisadores leitores. Assuntos e referências atravessam alguns capítulos do livro, como o conceito de colonialidade de Aníbal Quijano9, mais profundamente abordado no artigo de Vera Gasparetto, a discussão de gênero, de trabalho e a noção de resistências, no plural, ao longo da história moçambicana. Esse é um livro que, sem dúvida, deve ser consultado para se conhecer mais e melhor sobre Moçambique.

Taciana Almeida Garrido de Resende – Doutoranda em História Social – USP. São Paulo, SP-Brasil. E-mail: tacianagarrido@gmail.com.


MATTOS, Regiane A. de; PEREIRA, Matheus Serva; MORAIS, Carolina Gomes (Org.). Encontros com Moçambique. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2016. 286p. Resenha de: RESENTE, Taciana Almeida Garrido. Desafios metodológicos, interdisciplinaridade, História: Encontros com Moçambique. Outros Tempos, São Luís, v.13, n.22, p.238-243, 2016. Acessar publicação original. [IF].

Labirintos da Modernidade: memória/ narrativa e sociabilidades | Antônio Jorge Siqueira

Antônio Jorge Siqueira tem formação acadêmica no campo da Filosofia, Teologia, Ciências Sociais e da História, o que, em grande medida, reflete em seus escritos. No seu olhar sobre os problemas do Brasil, e em particular do Nordeste, podemos identificar essas várias facetas que compõe o intelectual e professor da Universidade Federal de Pernambuco. Não é por acaso que em suas obras e artigos aparece insistentemente um Jorge multidisciplinar. É essa heterogeneidade intelectual que torna a sua narrativa densa e complexa, e ao mesmo tempo instigante, pois apresenta para o leitor outras possibilidades de analises sobre a nossa contemporaneidade.

Começo explicando o real interesse pela obra de Jorge Siqueira, ou seja, o que me motivou a elaborar estas considerações. Devo mencionar que sua escrita contempla questões complexas do campo das ciências humanas, aspectos que devem, sem dúvida, fazer parte das discussões e de nossa formação enquanto intelectuais. É de fato um livro denso, recheado de questões atuais e pertinentes ao oficio do historiador. Trata-se de uma coletânea produzida ao longo de quase vinte anos, com muitos de seus textos já com ampla circulação, mas que de alguma maneira foram agora organizados mantendo uma conexão entre si, há um fio condutor. Dito isto, o passo inicial para construir um entendimento sobre o conjunto dessa obra é procurar se aproximar – daquilo que poderia ter sido – do exercício de escrita agenciado por Jorge Siqueira. Com este objetivo, procurei em Orhan Pamuk, no livro A maleta do meu pai, imaginar o que poderia significar o ato de escrever para Jorge.

Afirma Pamuk:

Quando o escritor passa anos recolhido para aprimorar seu domínio do ofício – para criar um mundo –, se ele usa as suas feridas secretas como ponto de partida, consciente disso ou não, está depositando uma grande fé na humanidade. Minha confiança vem da convicção de que todos os seres humanos são parecidos, que os outros carregam feridas como as minhas – e que portanto haverão de entender. Toda a verdadeira literatura vem dessa certeza infantil e otimista de que todas as pessoas são parecidas. Quando um escritor se recolhe por anos a fio, com esse gesto ele sugere uma humanidade única, um mundo sem centro (pp. 27-28).

Este fragmento me fez pensar melhor no esforço que exige o ofício do escritor. Muito provavelmente o autor recorreu ao isolamento, ao silêncio, e assim foi capaz de construir, com sua narrativa, outras imagens do mundo para cada um de nós. E, levando em consideração o volume de sua obra, foram longos períodos de trabalho intenso, de solidão com seus autores de referência. Seus textos e conferências organizados neste livro são provas desse trabalho. E, como afirma Pamuk, posso pensar que Jorge tem a convicção de que sua escrita irá inquietar outros, que as questões por ele problematizadas ao longo das quase 400 páginas de alguma maneira irão atingir inúmeros leitores. Isso significa que em Jorge, de fato, ainda permanece uma certeza infantil e otimista na humanidade.

Sua escrita apresenta temas extremamente densos, mas o faz de maneira suave. Questões diversas como modernidade, pós-modernidade, ciência, humanidade, historiografia, Nordeste, sertão, catolicismo popular, Brasil e América Latina, entre outras tantas, foram tecidas obedecendo a um estilo e estética capaz de bem envolver o leitor. Apenas para ilustrar, reproduzimos aqui um pequeno fragmento sobre a crise da modernidade, temática recorrente na obra:

Resultado dessa consciência de crise e de desamparo humano é que terminou por se falar no esgotamento da modernidade racionalista e cientificista, cedendo lugar a um novo período nebuloso – a pós-modernidade, que, também pode ser concebida como Contemporaneidade ou mesmo Modernidade Tardia. Mas importante do que a nomenclatura – e ela é muito complexa e sem unanimidade – são os questionamentos que essa contemporaneidade faz à razão modernista. Está posto em dúvida o conhecimento da realidade como algo constante, estável e imutável; ou seja, critica-se o domínio positivista da razão. Coloca-se sob suspeita a aceitação unânime do conceito de progresso como substantividade, duvidando-se de que ele seja o garantidor de uma vida melhor para a humanidade. Suspeita-se, de igual modo, das grandes narrativas que seriam subjacentes às crenças num futuro cada vez perfeito (pp. 38-39).

O fragmento projeta uma concepção de modernidade a partir de suas experiências, de alguém que conhece os dramas e as tramas dos grupos sociais aos quais se refere. A modernidade é analisada considerando-se as particularidades inerentes ao Brasil e ao Nordeste. As questões postas e seus personagens são de alguma maneira conhecidos, versam sobre coisas comuns aos nossos sentidos. Aliado a tudo isso, não há uma simples transposição ou acomodação de perspectivas teóricas. Entendo que o autor é um observador das questões culturais, sociais, políticas e econômicas da contemporaneidade, e a concepção teórica adquire significado porque se encontra articulada a sua condição de crítico de seu tempo, possibilitando, assim, maior identificação do leitor, pois seus textos tratam de questões complexas, significativas, mas que são próximas, permitindo-nos identificar a modernidade como um tempo conhecido para nós.

Ainda dentro dessa gama de questões muito me sensibilizou um aspecto recorrente ao longo do livro: as relações entre tempo e memória. A narrativa apresenta uma memória inconsciente – memória que entendo como experiência de vida, de aprendizagem. Ressalto aqui o momento em que o autor narra sobre a obra de Graciliano Ramos, São Bernardo, que se encontra no capítulo treze. São vários mundos e temporalidades que se entrelaçam naquele São Bernardo: o caos, a desordem, a doença, a morte, a traição, enfim:

Percebe-se que em São Bernardo é o espaço ficcional que permite figurar tudo isso, a um só tempo, fundindo e confundindo temporalidades históricas. Seu Ribeiro, Paulo Honório, Madalena e Padilha são personagens, racionalidades, tempos, narrativas, memórias e linguagens simultâneas, afins e diferentes. Até porque a viagem narrativa de Seu Ribeiro em direção a um tempo pretérito de felicidades pode significar um simbólico recuo de Paulo Honório… (pp. 207-208).

Sua concepção de tempo e a forma como foi articulada na narrativa fez-me recordar uma experiência que acredito em muito assemelhar-se ao que o autor entende por tempos múltiplos. A imagem que chega aos sentidos é a da travessia de um rio, em particular do rio Ipanema, que corta o município de Águas Belas/PE, onde nasci e vivi até atingir a maioridade. Em determinada época do ano (claro que com mais regularidade que em anos recentes) seu leito era coberto pelas águas e sua travessia exigia certas habilidades. Suas águas escuras não nos permitiam ver onde estávamos pisando, de modo que cada passo precisava ser dado com cautela, sendo necessário examinar a segurança do passo seguinte. A depender da força de suas águas, era praticamente impossível realizar a travessia em linha reta, mas sempre em diagonal, acompanhando o curso de sua correnteza. E não significava que uma vez feito o traslado havíamos descoberto uma passagem segura para as novas travessias, isso porque nunca sabemos como se comportam as correntezas, visto que em determinados momentos mudam de direção, fazendo surgir naquele caminho outrora seguro inúmeras armadilhas, depressões. As correntezas não necessariamente têm o mesmo sentido, há uma dinâmica imprevisível, em dado momento poderão nos levar para o fundo do leito, ou projetar uma força capaz de fazer flutuar sobre as águas o aventureiro, ou mesmo o conduzir em movimentos circulatórios, enfim, poderá ainda nos levar rio abaixo ou rio acima.

Essa obra é também uma travessia, uma passagem. O tempo no livro Labirintos da Modernidade: memória, narrativa e sociabilidades, em minha leitura, não se apresenta seguindo uma linearidade, pelo contrário, ele é curvo, cheio de surpresas, de idas e vindas como são os trajetos que percorremos em um labirinto. A construção dos vários textos que compõem este livro teve seu tempo, e eles apresentam marcas da nossa contemporaneidade.

Márcio Ananias Ferreira Vilela – Universidade Federal de Pernambuco.


SIQUEIRA, Antônio Jorge. Labirintos da Modernidade: memória, narrativa e sociabilidades. Resenha de: VILELA, Márcio Ananias Ferreira. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.32, n.1, jan./jun. 2014. Acessar publicação original [DR]

 

Desconstruindo a história – MUNSLOW (HH)

MUNSLOW, Alun. Desconstruindo a história. Tradução de Renata Gaspar Nascimento. Petrópolis: Vozes, 2009, 272 p. Resenha de MELLO, Ricardo Marques. Um desconstrucionista desconstruindo a história. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 05, p.232-238, setembro 2010.

Alun Munslow é professor visitante de teoria da história da universidade inglesa de Chinchester. É também editor de Rethinking History: The Journal of Theory and Practice, um dos principais periódicos internacionais dedicado a publicar textos inseridos nas discussões a respeito das condições cognitivas do saber histórico a partir de perspectivas comumente nomeadas pós-modernas, que, em certo sentido, são desdobramentos de considerações nietzschianas, de insights da linguística saussuriana e de discussões oriundas da filosofia da linguagem.

Desconstruindo a história, cuja primeira edição data de 1997, insere-se nesse debate. Especificamente, Munslow questiona-se sobre as possibilidades de recuperação e representação precisa do conteúdo do passado por meio da narrativa. Ele é adepto da tese de que a linguagem, diferentemente do que acreditam muitos historiadores, não é um meio transparente para descrever e explicar a realidade pretérita, mas um fator que impõe ao passado um dado formato que não lhe é próprio, criando, destarte, um significado para os indivíduos do presente.

O livro de Munslow, porém, não se reduz à defesa de uma perspectiva teórica sobre o conhecimento historiográfico. Nele, seu autor identifica e descreve três abordagens, coexistentes contemporaneamente, sobre o saber historiográfico, o reconstrucionismo, o construcionismo e o desconstrucionismo, de modo que o leitor possa situar-se a respeito dos principais argumentos usados pelos praticantes dessas três vertentes.

Na Introdução, Munslow apresenta as quatro questões que nortearam os sete capítulos e a conclusão do livro: 1) O empirismo pode constituir-se como uma epistemologia? 2) Qual o caráter e a função da evidência? 3) Qual o papel do historiador e como ele usa as teorias sociais para compreender e explicar a história? 4) Qual a importância da forma narrativa para a explanação histórica? (MUNSLOW 2009, p. 12). Toda a estrutura de Desconstruindo a história gira em torno de uma estratégia: colocar essas quatro questões a cada uma das três abordagens. Em outros termos, Munslow pretende expor como as perspectivas reconstrucionista, construcionista e desconstrucionista responderiam, cada uma a sua maneira, a esses quatro questionamentos.

No capítulo um, o autor apenas apresenta cada uma das três abordagens de modo breve. Além disso, identifica o estruturalismo, o pós-estruturalismo e o que denomina de novo historicismo (estadunidense) como origens das atuais revisões sobre o estatuto da história como disciplina.

No capítulo dois, Munslow caracteriza as abordagens reconstrucionista e construcionista da história, tendo em conta os quatro pontos supracitados que nortearam seu trabalho (epistemologia, evidência, teorias sociais, narrativa).

Epistemicamente, ambas compartilham a crença geral na capacidade do historiador em conhecer o que realmente ocorreu no passado por meio da análise do material empírico. Ademais, seus praticantes acreditam que há uma separação nítida entre fato e valor, história e ficção, sujeito e objeto, e de que a verdade, fim último de um trabalho historiográfico, não é uma perspectiva (MUNSLOW 2009, p. 57). O mecanismo que assegura a verdade pretérita é a referenciação. Crê-se, portanto, na relação de correspondência entre o que ocorreu no passado e o que é descrito sobre ele, entre os significados de então e os apresentados pelos historiadores do presente. A evidência, dessa perspectiva, assume o caráter de fonte comprobatória. Para os reconstrucionistas, essa característica da evidência emerge por um processo indutivo: é a análise do material empírico que permite as descobertas sobre o acontecimento pesquisado. Para os construcionistas, porém, a verdade pretérita não surge apenas das evidências, mas pode ser combinada com teorias sociais em um processo, também, dedutivo. O uso de teorias sociais na compreensão do passado pelos construcionistas é justamente o que os diferenciam dos reconstrucionistas, avessos a qualquer tipo de apreensão a priori. Os reconstrucionistas conservadores (termo do autor) criticam o uso de teorias, pois elas dizem respeito a situações universais de comportamento e, por isso, são impróprias para entender realidades e agentes históricos singulares. Os construcionistas, por sua vez, contra-argumentam dizendo que seus modelos são “conceitos” que emergem das evidências como um auxílio para a própria compreensão da evidência. Além disso, toda teoria poderia ser colocada à prova pelo material empírico. Na questão da narrativa, em linhas gerais, os reconstrucionistas conservadores sustentam que ela funciona apenas como um veículo para conclusões inferidas a partir das fontes. Os reconstrucionistas moderados e os construcionistas sustentam que a narrativa constrói significado, mas permanece como uma dimensão secundária (MUNSLOW 2009, p. 79- 80).

No capítulo três, Munslow caracteriza a abordagem da qual é adepto, o desconstrucionismo. E o faz marcando as diferenças entre este, o reconstrucionismo e o construcionismo. No quesito epistêmico, o desconstrucionismo nega o pressuposto teórico que atribui à historiografia condições de conhecer o passado como realmente aconteceu, seja pela análise empírica, seja por meio do uso de teorias sociais. Entre os resquícios pretéritos e sua representação narrativa no presente, existe uma série de elementos que se interpõem, como a ideologia, a linguagem, as preferências pessoais e as discussões historiográficas, impedindo, assim, de haver imparcialidade e objetividade. Para os desconstrucionistas, os significados do passado são antes criações circunstanciadas que descobertas reveladas pelos historiadores. A evidência a partir dessa perspectiva, não reflete e/ou representa o passado, mas serve ao historiador na composição de sua narrativa. Munslow, contudo, ressalta que a abordagem desconstrucionista não é antirreferencialista, mas ela nos adverte sobre as fronteiras e o papel que a evidência exerce no trabalho do historiador: a evidência não emite os significados do passado, por um lado, nem permite que qualquer coisa seja escrita sobre ele, restringindo, destarte, a poiesis historiográfica. Em outros termos, nem primazia nem insignificância.

Em relação às teorias sociais, ele limita-se a mencionar que a discussão a respeito do uso ou não de teorias como um recurso é irrelevante. No aspecto relativo à narrativa, porém, o autor de Desconstruindo a história despende uma longa descrição, uma vez que as principais diferenças entre as três abordagens são oriundas justamente da forma como cada uma compreende a narrativa.

Com base em Roland Barthes, Michel Foucault, Stephen Bann, Frank Ankersmit, Paul Ricoeur e, sobretudo, Hayden White, Munslow afirma que no desconstrucionismo a narrativa historiográfica não é apenas um meio de apresentação dos resultados de pesquisa. O historiador, ao reunir, selecionar e usar informações pretéritas na elaboração de um texto coerente, vale-se da imaginação figurativa, impondo um enredo ao passado a fim de criar e constituir um significado ao presente. Não há, portanto, uma relação precisa de correspondência entre o passado e sua representação narrativa.

Baseado nos argumentos dos reconstrucionistas e dos construcionistas, Munslow ocupa-se, no quarto capítulo, em assinalar o que há de errado com a história desconstrucionista. Em linhas gerais, o grupo dos contendores radicais, representados por Geoffrey Elton, Michael Stanford e Arthur Marwick, reitera os pressupostos mais conservadores do reconstrucionismo. O grupo dos denominados reconstrucionistas moderados ou realistas-práticos, baseados nas obras de Edward Carr e Robin G. Collingwood, e representados, principalmente, por Joyce Appleby, Lynn Hunt, Margaret Jacob, James Kloppenberg, James Winn, James Mcmillan, Frederick Olafson e Behan McCullagh, aceitam parcialmente as proposições desconstrucionistas, sem, contudo, se desprenderem dos princípios empiricistas: eles admitem certas limitações da linguagem, a presença da subjetividade, certo grau de manipulação das evidências, a construção social da verdade e até um apriorismo – com a pergunta inicial apresentada pelos historiadores às suas fontes. Porém, insistem que alguma objetividade há de existir: e ela provém da referenciação, a qual permite a vinculação entre presente e passado. Os moderados fogem, assim, do absolutismo do reconstrucionismo conservador, por um lado, e do desconstrucionismo relativista, por outro.

No quinto capítulo, Munslow faz o caminho inverso, perguntando-se o que há de errado com o reconstrucionismo/construcionismo, reiterando as críticas feitas pelos adeptos do desconstrucionismo. O argumento geral consiste em, uma vez mais, defender a parcela de imposição e criação do historiador em relação ao passado. Nesse sentido, o desconstrucionismo renega, entre outras, a crença dos reconstrucionistas na relação de correspondência entre a evidência e a verdade histórica; reafirma que a construção do significado dos eventos pretéritos é fruto da adoção de uma dada estrutura narrativa; contesta a convicção de que é possível encontrar a estória, sentido, significado dos fatos pretéritos, simplesmente por que eles não têm um sentido em si; e refuta o argumento dos construcionistas, os quais posicionam o arcabouço teórico em primeiro plano e a narração como algo secundário.

No sexto e sétimo capítulos, Munslow comenta as contribuições dos dois principais autores que fornecem suporte teórico para as proposições desconstrucionistas, Michael Foucault e Hayden White. De acordo com Munslow, o pensador francês rejeita a relação de correspondência entre as palavras e as coisas ou, em outros termos, a correspondência entre o mundo empírico e os discursos a seu respeito: a evidência, por exemplo, não expressa a realidade em si, mas ela mesma é uma representação/interpretação historicamente determinada: pelas disputas por poder, pela episteme dominante de uma época, pelas forças constitutiva e formativa que a linguagem exerce. O historiador, portanto, não tem acesso direto ao passado. Ele seria alguém que faz uma interpretação das representações pretéritas, que não é objetiva, imparcial e linguisticamente transparente. A linguagem usada por ele molda os dados do passado – a partir de uma dada episteme, isto é, uma forma específica de produção do conhecimento – de tal modo que estes façam sentido e tenham significado para os indivíduos do presente: em vez de refletir a realidade, a linguagem, na tentativa de apreendê-la, a constitui.

Depois da análise das contribuições de Foucault, Munslow interpreta os princípios teóricos de Hayden White “provavelmente o mais radical desenvolvimento na metodologia histórica nos últimos trinta anos” (MUNSLOW 2009, p. 187). Alguns pressupostos whiteanos ressaltados são relevantes para compreendermos a base das argumentações dos desconstrucionistas. Entre eles, o de que os eventos em si não trazem consigo uma dada história originária: isto é, os acontecimentos não são inerentemente trágicos, cômicos, satíricos, etc. Não existe um enredo a descobrir nos acontecimentos pretéritos. Estes são, em termos de enredo, neutros e amorfos. É o historiador, no presente, que organiza as informações de uma determinada maneira a fim de que a narrativa tenha um dado significado, impondo ao passado um enredo de um tipo específico. Essa organização é condicionada pelo uso, consciente ou não, de um tropo (metáfora, metonímia, sinédoque e ironia), que, por sua vez, condiciona as opções éticas, estéticas e epistêmicas do discurso historiográfico.

Outro pressuposto relevante refere-se à relação entre parte e todo: os enunciados de uma obra historiográfica podem ser verdadeiros; porém, uma narrativa historiográfica, considerada um todo integrado, não é a mera soma de suas partes. Trata-se de outro nível do discurso dos historiadores, no qual se constrói e atribui significado ao seu objeto. Esse significado é, em grande medida, uma consequência do tropo escolhido e não das próprias fontes. Esses dois pressupostos sustentam as afirmações de White, e as apropriações de Munslow, sobre o caráter imposicionalista do historiador, por meio da linguagem, na construção das narrativas sobre o passado e, consequentemente, de seus significados.

Na conclusão do livro, Munslow refuta a ideia de que a aceitação dos argumentos desconstrucionistas possa acarretar algum descrédito para o status da história como disciplina. A exemplo do que fez no capítulo cinco, ele sugere que reconhecer o papel da narrativa não é um novo tipo de essencialismo, isto é, algo que substitui o empirismo. Mas um princípio que abre espaço para novas maneiras de descrever o passado, com maior consciência do processo de produção do discurso historiográfico. Ter conhecimento do papel que a formalização da linguagem exerce no estudo do passado e pôr em questão a verdade/imparcialidade/objetividade da historiografia “pode levar a uma forma mais abrangente de análise histórica, menos provável de excluir o marginalizado e ‘o outro’” (p. 225). Depois da conclusão, Munslow ainda incluiu um glossário com parte dos principais verbetes usados no livro, bem como um “Guia para leituras adicionais”, no qual cita obras ligadas às três formas de abordagens descritas por ele.

Em termos gerais, compreendo que o livro como um todo apresenta alguns problemas. O primeiro é relativo às categorias usadas para designar as três abordagens (reconstrucionismo, construcionismo e desconstrucionismo): qualquer tentativa de delimitar autores tão distintos entre si em apenas três modalidades tende a abreviar a complexidade de posições. Roger Chartier, por exemplo, ora é colocado ao lado de autores desconstrucionistas, como White – o que é, no mínimo, curioso –, ora é incluído, juntamente com outros historiadores da École des Annales, na plêiade de construcionistas. O segundo diz respeito à falta de discussão e/ou conceituação do que se compreende por termos como objetividade, verdade histórica, imparcialidade, entre outros.

Embora possa parecer, essa não é uma discussão vã, contemplação vazia ou fuga do que realmente interessa. Mas um ponto de partida que não deve ser ignorado. Outro problema teórico refere-se ao uso do termo desconstrucionismo como uma forma de abordar a história, isto é, uma prática da mesma natureza do reconstrucionismo e do construcionismo. Apesar de alguns historiadores aceitarem as proposições ditas desconstrucionistas, essa maneira de conceber a produção do conhecimento histórico não se consubstanciou ainda como uma forma de investigar o passado, mas, até o momento, como uma reflexão teórica sobre a forma como os historiadores transformam os fragmentos do passado em historiografia. De outro modo, é, antes, uma teoria a respeito das possibilidades cognitivas do saber historiográfico (metateoria) e não propriamente uma abordagem da história em seu acontecer. E, por fim, o autor usa, por vezes e indistintamente, a palavra história para designar tanto a disciplina como os acontecimentos no tempo, dificultando o entendimento de determinados trechos.

Todavia, Desconstruindo a história tem muitos méritos. Conquanto a originalidade de ideias não seja um atributo a ser destacado, sobretudo por ser baseado nas proposições de Foucault e White, o livro de Munslow organiza didaticamente complexas maneiras de se entender o conhecimento histórico em três termos e apresenta ao leitor importantes tópicos e pressupostos das discussões atuais sobre teorias da história, que, em certo sentido, são muito úteis para aqueles que se interessam pelo tema. Outro ponto a ser ressaltado é que, por ter o foco em uma discussão que é encaminhada majoritariamente em ambiente anglo-saxão, Desconstruindo a história torna visível autores pouco citados entre pesquisadores nacionais. Além disso, embora Munslow seja adepto do desconstrucionismo, ele, a rigor, não reduziu totalmente as outras duas abordagens (reconstrucionismo e construcionismo) a esquematismos simplistas.

Diferentemente disso, ele cita e apresenta um número razoável de autores alinhados com essas duas “correntes”, mostrando-se, inclusive, simpático com algumas “soluções” encontradas pelos realistas-práticos (reconstrucionistas moderados), ainda que tenha enfatizado, o que é compreensível, determinadas ideias e encaminhado o debate de modo que o desconstrucionismo, ao final, fosse considerado a melhor maneira (senão única) de se conceber a produção do conhecimento historiográfico.

Embora repetitivo e com uma tradução problemática, Desconstruindo a história, enfim, pode ser considerado um livro que introduz o leitor em um ambiente intelectual bem delimitado, defende uma perspectiva no debate contemporâneo acerca do fazer historiográfico e estimula-nos a refletir sobre o ofício de historiador. Ainda que não se concorde com os pressupostos e ideias do “desconstrucionismo”, conhecê-lo por um de seus defensores parece ser uma maneira astuta de discordar, com fundamento, das proposições dessa vertente. Por isso, Desconstruindo a história pode ser um ponto de partida proveitoso àqueles que pretendem pesquisar e escrever a respeito da história e/ou pensar sobre esse complexo e atraente processo.

Ricardo Marques de Mello Doutorando Universidade de Brasília (UnB) ricardo.mm@hotmail.com Campus Darcy Ribeiro, ICC Norte, Subsolo, Sala 679 Brasília – DF 70910-900 Brasil.

Voz narrativa en Breath, Eyes, Memory – DANDICAT (M-RDHAC)

DANDICAT, Edwidge. Voz narrativa en Breath, Eyes, Memory. Memorias – Revista Digital de Historia y Arqueología desde el Caribe, Barranquilla, n.13, jul./dez. 2010.

Ahogadas, escupimos el oscuro Peleando con nuestra propia sombra el silencio nos sepulta.

Gloria Anzaldúa

Qué hay en el silencio del título de esta novela y a qué interrogantes responde son las inquietudes a las que este trabajo contestará, pero primero un poco del contexto en que ella se desarrolla. Históricamente, las mujeres se han situado más cerca de la palabra que del silencio. Hablar, cantar y susurrar siguen siendo las formas en que una mujer aprende y practica el arte de comunicarse. En su trabajo en la esfera pública y privada.

Las mujeres de descendencia africana en el Caribe, han estado envueltas en la fuerza de trabajo dentro y fuera del hogar lo cual ha sido una contribución de suprema importancia en la manutención de sus familias. Mucho de este trabajo ha sido arduo, estereotipado pero no reconocido. Durante la esclavitud, ellas trabajaron junto a los varones en los cañaduzales. Inclusive durante los periodos de emancipación y finales del colonialismo en la región, sus actividades eran mal pagadas, consideradas de bajo status y segregadas de acuerdo a su sexo. Muchas de estas estaban relegadas al renglón de la economía informal. Las mujeres del campo en Haití, controlan la distribución productos allí y en la ciudad, un papel que les debe garantizar una voz fuerte y poder considerable en las actividades económicas y sociales de la comunidad. Acerca del papel de la mujer haitiana en su país, Karen McCarthy Brown dice que “her freedom and responsabilitiy are increased by the fact that it is woman who run the markets.. .[they] sell such things as baskets, candies, and bread along with the family farm produce (125).”

De manera que la producción de bienes de consumo ha estado en los hombros de la mujer haitiana desde hace más de dos siglos pero esto no se manifiesta en capacidad de manejar sus propias vidas. El silenciamiento de sus contribuciones ha sido permanente y de la misma manera sus manifestaciones en el plano sexual también. Aunque el libro dedica su mayor parte a contar la historia de Sophie, quien funciona como eje del texto y se dedica a relatar cómo la protagonista emprende su jornada desde Haití a Nueva York buscando significado, un lenguaje de afirmación que no encuentra en una sociedad más amplia después de confrontarla. Así que llega buscando respuestas en un grupo de apoyo de mujeres. Esta historia es la de una mujer en una cadena matriarcal y a eso debe su efectividad. Su experiencia es inseparable y responde en gran medida a su condición femenina. Pero Sophie Caco es el eslabón en una cadena que extiende sus ramas no solo a su madre y abuela, sino directa e indirectamente hacia su tía Atie y su amiga Louise, y otras mujeres de su vida en Haití. Es curioso anotar que todas estas relaciones se desarrollan en la isla y no existe ningún otro personaje femenino -aparte de la madre Martina- en Nueva York quien es responsable de la llegada de Sophie a los Estados Unidos.

Lo importante aquí es traer a la luz y darle voz a la pareja Atie y Louise que funcionan como representación de la identidad lesbiana en la novela. Esta última es la encargada de enseñarle a la primera el francés. Dice Léspoua fè viv: “[Atie’s] relationship with Louise is, in fact, subtly coded as a lesbian love relationship” (128). Aquella desafía las convenciones sociales, por alejarse intencionalmente de su madre, Ifé, para establecer una relación primaria con Louise, aunque abiertamente no se menciona una relación sexual entre las dos, existen numerosas escenas en las cuales esta sale al atardecer y regresan juntas de mañana. En una discusión entre Ifé y Atie por ese motivo, se establece el conflicto y su naturaleza. Aquella dice: “The way you go about free in the night, one would think you a devil,” a lo que esta responde “The night is already in my face, it is. Why should I be afraid of it” (107).

Además, para describir su relación, Louise dice en la novela que ellas “are like milk and coffee, lips and tongue. We are two fingers on the same hand. Two eyes on the same head” (98). La imagen que esta descripción trae a la lectora es de erotismo al mezclar leche y café en un abrazo imposible de separar, labios y lengua reminiscencia de clítoris y vulva, dedos de la misma mano que proveen placer y dos ojos de la misma cabeza en un cometido por mirar, observar, aprehender el mundo de una forma colaborativa. Es interesante anotar, que si aquella es la encargada de dar una visión global su relación en prosa y creole, Atie integra en sus escritos lírica y creole, cubriendo entre las dos el terreno de la creación literaria que hace posible una integración de esa lengua como determinante, primaria en su propia expresión.

Debido a la gran difusión de la experiencia del exilio y al sentimiento de degradación simbólico y físico del suelo haitiano, los escritores han tenido que luchar con ese conflicto de identidad móvil y una geografía imaginativa en la cual establecer un sentido de pertenencia. La noción literaria tradicional que ve al exilio simplemente en términos de desaparición, alienación y la nación como paraíso perdido ha cambiado. En Breath, Eyes, Memory creole fácilmente reconocible es utilizado en el proceso de comunicación de las mujeres. Aunque “to this day, is often referred to as a bastard tongue, denigrated as a lesser language of French, even though it has certainly always been the dominant language of the country” (fè viv 129). De allí la importancia de su uso por parte de Atie, quien sirve de interprete del texto. Al decidir aprender francés, se apropia de la lengua extranjera, traduce sus anotaciones -que Louise llama poemas- toma textos que son adaptaciones del francés al creole y por medio de esas traducciones-adaptaciones establece la conexión de ambas lenguas con la expresión de sus deseos sexuales por Louise.

She speaks in silent voices, my love
Like the cardinal bird, kissing its own image.
Li palé vwa mwin,
Flapping wings, fallen change
Broken bottles, whisling snakes
And boom bang drums.
She speaks in silent voices, my love.
I drink her blood with milk
And when the pleasure peaks, my love leaves (134-5).

Como se puede observar ambas lenguas son usadas en el poema y así como parte del creole no puede traducirse ni expresarse por completo en el otro, el amor de Atie por Louise tampoco es abiertamente manifestado en el texto. Se da entonces una correspondencia definitiva entre lengua bastarda y amor entre dos mujeres no permitido por su entorno. Parte importante de los vocablos escogidos para hablar de su cariño -negativamente sancionado por la sociedad-, están en una muy cercana relación con la idea de separación y abandono, lo cual sucederá al fin de la novela, cuando Louise finalmente consiga el dinero con la venta de un cerdo y se traslade a los Estados Unidos. Son metáforas de no-aceptación de su unión en su comunidad y que Ifé señala constantemente a lo largo de la novela: “That Louise is trouble.. .everything from her shadow to that pig is trouble” (137).

Para Henry Louis Gates,

Black vernacular English is a healthy, living form of language, one which, shows the signs of people developing their own grammar and one which manifests various linguistic signs of separate development.it reflects a larger social picture (20).

Esta idea es aplicable al creole de Haití ya que también presenta la renuencia a disminuir, menos a desaparecer a pesar de todos los esfuerzos por instituir francés como la única lengua allí. La descripción de lo haitiano no sería completa, si no se incluye el creole ya que este encarna el desarrollo de una lengua propia y además es manifestación cierta de lo social en ese país.

La mitificación de Haití adquirió una especial agudeza durante la dictadura de los Duvalier. En respuesta, en Haití se intenta escribir su existencia, usar la palabra escrita para defenderse contra el trauma y la realidad. Habiendo sido deformados y condenados al ostracismo corporal, los individuos se resarcen por medio de la imaginación. Esto es lo que Atie hace al reservar un espacio físico y sicológico que preserva su habilidad para lidiar con la realidad por medio de su poesía. Si se toma su personaje y capacidad para producir una voz en el ámbito literario como una respuesta al silencio de la escritura femenina, ella es también paradigma de la mujer que escribe. A propósito de la creación de un espacio más amplio para literatura hecha por mujeres y su difusión, dice bell hooks que “anyone who teaches courses on black women’s fiction knows how difficult it is to find the works of black women” (142). hooks reconoce y maneja muy de cerca esta problemática ya que la accesibilidad y consecución de esos textos tiene que ver con las casas editoras y su decisión de publicar o no una obra de ficción y darla a conocer a un público más allá del entorno inmediato. Agrega, “These systems of domination operate in such way as to ensure that only a very few fiction books by black women will be published at any given time” (143). Este manejo de lo que se da a conocer a una audiencia mayoritaria por parte de una editorial, es aplicable también -guardadas las proporciones- a la situación de Atie y el propósito de la sociedad de acallar su producción literaria y negarle la posibilidad de hacerse oír a nivel macro. Aunque su audiencia inmediata -Ifé- intenta suprimir su voz, su hermana y sobrina están presentes en el momento en que los diálogos toman lugar, se da una tendencia a no entender -por lo menos conscientemente- los significados implícitos en las acciones y escritos de Atie, ella continúa escribiendo y luchando por mantener los espacios conseguidos al alejarse de lo tradicional en su voz y vida personal. Ella no asume el papel de víctima ni es posible por parte de la lectora, tomarla desde ese punto de vista. Atie consigue acrecentar su poderío “by sharing knowledge and resources, not by bonding on the basis of being victims” (Killing Rage, 52). Aunque existe una larga historia de imágenes de victimización en literatura pero ni el señalamiento, ni el rechazo la convierten en chivo expiatorio de las culpas de una sociedad en crisis. No se puede vivir plenamente pretendiendo utilizar ese papel y esa es la respuesta del personaje a ese intento. Ella es parte de una tradición que se manifiesta en la lucha constante por no abandonarse al silencio. Su imagen evoca un sentimiento de promesa y posibilidad, una visión de libertad que reta el status quo, toma el riesgo de ser rechazada por expresarse.

En una colección de escritoras caribeñas editada por Myriam J.A.

Chancy, aparece un cuento de Danticat, perteneciente a su primer libro de historias cortas, que significativamente es el último en el orden de dicha antología, en una suerte de singularización de la importancia de la obra de esta autora. Ella es también, eslabón del canon que reclama la expresión de lo erótico, y una parte integral de su demanda por obtener acceso sin restricción al mundo de la escritura y de lo sexual, cualquiera que sea su orientación. Agrega: “I know many amazing and resourceful, incredible Haitian women, poor women who cannot read but who do extraordinary things -send kids to medical school, put all sort of things together. Atie is one of them” (385). Y lo más importante, no solamente luchan a brazo partido por los suyos como tradicionalmente se ha estudiado el papel de la mujer, batallan por mantener su propia voz, sin caer en el silencio sin significado.

Referências

ANZALDÚA, Gloria. Borderlands/La frontera. The NewMestiza. California: Aunt Lute, 1987.        [ Links ]

DANTICAT, Edwidge. Breath, Eyes, Memory. New York: Vintage, 1994.        [ Links ]

_. Entrevista de Renee H Shea. The Dangerous Job of Edwidge Danticat. Callaloo 19:2 (1996) 382-9.        [ Links ]

GATES, Henry Louis. The Signifying Monkey. A Theory of African-American Criticism. New York: Oxford UP, 1988.        [ Links ]

HOOKS, Bell. Killing rage. Ending Racism. New York: Holt, 1995.        [ Links ]

_. Talking Back. thinking feminism thinking black. Boston: South End, 1989.        [ Links ]

Léspovua fè viv. “Female Identity and the Politics of Textual Sexuality in Nadine Magliore’s Le mal de vivre and Edwidge Danticat’s Breath, Eyes, Memory.” Framing Silence. Revolutionary Novels by Haitian Women. Ed. Myriam J.A. Chancy. New Jersey: Rutgers UP, 1997.        [ Links ]

MCCARTHY BROWN, Karen. “The Power to Heal.” Ed. Consuelo López Springfield.        [ Links ]

_.Daughters of Calibán. Bloomington: Indiana UP, 1997. 123-42.        [ Links ]

Gloria Anzaldúa

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Narrativas e Experiências: Histórias orais de mulheres brasileiras (CP)

VÁRIOS AUTORES. Narrativas e Experiências: Histórias orais de mulheres brasileiras. São Paulo, D’Escrever/Letra e Voz, 2009. Resenha de: CÁSSIO, Fernando Luiz. Faces do feminino em histórias de vida: Narrativas e experiências de mulheres brasileiras. Cadernos Pagu, Campinas, n. 32, Jul./Dez. 2009.

Narrativas e experiências: histórias orais de mulheres brasileiras é para ser lido sem pressa. A estrutura é despretensiosamente simples: dez histórias de vida de mulheres brasileiras apresentadas e comentadas por dez historiadores-oralistas fortemente envolvidos com o ofício. O trabalho textual é a marca formal comum – entrevistas transcritas e transformadas em textos de qualidade literária, autobiográficos, confessionais – em muito distantes da sisudez não rara nos volumes voltados exclusivamente ao público acadêmico.

O prefácio de Esmeralda Blanco B. de Moura dá o tom da obra: “a circularidade da qual resulta, o entrelaçar de entrevistadores, entrevistadas e entrevistas que não subverte o singular” (p.7). Idade, local de nascimento, cor da pele, vivências familiares e profissionais – marcas do individual – não isolam estas mulheres do resto do mundo; as insculpem nele. Singularidade sim; excentricidade jamais. Nem heroínas nem vítimas. Mulheres, apenas. Lê-las é deixar-se arrebatar e carregar por suas histórias – fluxos vivos, pungentes, generosos – para destinos deliciosa e inevitavelmente desconhecidos.

Podemos começar por Monalisa, garota de programa que ganha a vida no Sul da Flórida. No hotel cinco estrelas onde atendia a seus clientes, entre um e outro programa, cedeu entrevista a Valéria Barbosa de Magalhães. Oportunidades financeiras, desapontamentos profissionais, o afastamento da família e a estereotipia da mulher brasileira no exterior talham a sua fala corajosa e oferecem outro olhar para a profissão de prostituta – mais que “vida fácil”, efeito de uma causa, a imigração para a Flórida e os seus desdobramentos sociais e pessoais. “O dinheiro pesa para eu continuar dançando. É muito dinheiro, ganho mais do que um gerente de banco, só que o gerente vai ter a profissão a vida inteira, eu não”.

Noah Osman Turk, entrevistada por Samira Adel Osman, é da primeira geração brasileira da família de imigrantes libaneses. Se Monalisa se afasta dos seus, estes sempre estiveram presentes na história de Noah como guardiões das tradições e protagonistas de confrontos socioculturais inconciliáveis. “Foi na adolescência que eu comecei a sentir o peso dos costumes familiares…”. A demarcação dos papéis masculino e feminino – o primeiro provedor e o segundo mantenedor – forja o ambiente infantil de Noah, em muito dependente das relações entre mãe, filha e irmãs. Ao mesmo tempo, a difícil adaptação à vida no Brasil parece reforçar o valor da cultura árabe: Noah mantém os filhos dentro das tradições e planeja viver com o marido no Líbano.

Dona Ana, Ana Luiza da Silva, é devota de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Quase octogenária, viúva e mãe. Assim o historiador Rodrigo de Almeida Ferreira nos apresenta a sua entrevistada, cuja história é a própria história da Marujada e da Festa do Rosário, festas religiosas das quais participa desde os doze anos. Na atmosfera cálida da casa simples, aquecida pelo fogão de lenha no qual cozinha a comida dos Marujeiros, fala sobre as graças recebidas de Nossa Senhora do Rosário com alegria e devoção – mas sem exageros: “O que eu quero mais? Se eu pedir muito, ela fica com raiva de mim” (p.72). Tradições seculares mantidas por sutilíssimas ações: “Já estou esperando a festa deste ano! E vou ajudar com muito café!” (p.73).

Tata Fernandes é artista, filha, neta, tia, amiga, namorada, vizinha, fonoaudióloga, divulgadora, leitora, ouvinte. E musa. Tata é todas. Ricardo Santhiago, de maneira impressionista, descreve a gracilidade que emana de Tata – a mulher encantadora seguida por uma multidão colorida de crianças, alunas da sua oficina de composição. Tata, mais que impressionista – lírica -, narra a partir das felicidades do dia-a-dia, das pequenas delícias: ouvir bolerões de Glenn Miller durante a faxina, fingir tocar violão na praia com as primas, assistir a séries policiais nas madrugadas da TV, cuidar das plantas em casa – do mais singelo brota uma potente paixão pela vida. Não é de espantar que a foto de abertura de sua entrevista seja um gregário entrelaçar de mãos, marca distintiva de uma existência sempre compartilhada.

Também artista, Joana D’Arc foi vedete do teatro rebolado. Entre álbuns de fotografias e jornais antigos, narrou sua história de vida a Maria Aparecida Blaz Vasques Amorim. A extrema pobreza na infância, o glamour dos palcos, a vida na Europa, suas relações com os presidentes Getúlio e JK. Depois de circular pelos salões do poder no Brasil do século XX, Joana, na velhice, reflete sobre sua trajetória sem arrependimentos: “Sabe, costumo dizer que minha vida se divide em três atos: um miserável, paupérrimo, outro de total apogeu e agora, tenho o terceiro, tranquilo, sem recalques” (p.124).

Suzana Lopes Salgado Ribeiro entrevistou Dona Ana Ramos, dona-de-casa e assentada rural. Escolhendo os legumes, preparando a comida do dia e falando quase sempre no diminutivo, ela conta sua história desde o nascimento no interior de São Paulo até a vida cooperativa do assentamento. O cotidiano perpassa sua fala: em detalhes, Dona Ana relata o trabalho na horta medicinal comunitária, o cuidado das crianças, o serviço da casa: “O meu dia aqui é bom. Acordo, arrumo o café, saio, bato um papo com os vizinhos” (p.140). O que há de mais extraordinário neste cotidiano (como estampado no título do texto) é justamente o que ele tem de ordinário, de mais trivial.

A presença e a atuação feminina no futebol brasileiro são retratadas por Marcel Diego Tonini, autor da entrevista com a árbitra-assistente Aline Lambert. Atento à posição da mulher em um ambiente predominantemente masculino, Tonini oferece importante contribuição documental ao discutir relações de gênero no seio da cultura futebolística. As influências familiares, vindas do pai árbitro, e o desenrolar de sua carreira na profissão pontuam um relato marcado pela consciência da especificidade de ser mulher, e das implicações que daí derivam, neste campo.

Edna Pereira é soldado da Polícia Militar do Ceará. Por ter participado do movimento grevista de 1997, foi excluída da corporação, sendo reintegrada quase oito anos depois. Voltada ao estudo da repercussão nacional deste movimento, a pesquisadora Juniele Rabêlo de Almeida insere a história de vida numa trama complexa. Para Almeida,

Edna aponta em sua narrativa importantes questões para o estudo do repertório da ação coletiva dos policiais grevistas, destacando a dificuldade de se compatibilizar o princípio da igualdade e o direito de participação, com preceitos militarizantes de disciplina e hierarquia (p.175).

Marta Gouveia de Oliveira Rovai nos apresenta Sônia Miranda, mulher que, segundo ela, “foge ao estereótipo feminino de fragilidade” (p.193). De formação católica, Sônia frequentou as reuniões promovidas pela Juventude Operária Católica e ganhou consciência sobre o momento histórico que vivia: a ditadura militar brasileira após 1968. Seu marido, sindicalista-metalúrgico, foi levado para o DOPS, onde foi preso e torturado. Escondida no interior do Rio de Janeiro, viu-se só: “Estava sozinha com três crianças! Lavava e secava fralda com ferro. E só chovia!” (p.205). Apesar disso, os traumas e as lutas diárias moldaram a educação de seus filhos, “pessoas conscientes e comprometidas com a solidariedade, a ética, a justiça” (p.209).

Surda desde os 11 anos, em decorrência de uma meningite, Sônia Oliveira é a última entrevistada do livro. Fábio Bezerra de Brito introduz a entrevista enfatizando que Sônia viveu uma “experiência de inclusão extemporânea”, numa escola regular, aprendendo a falar e a entender a palavra falada via leitura labial – adaptando-se a um mundo oralizado. Só depois de adulta, contudo, Sônia descobriu a Língua Brasileira de Sinais (Libras) e, a partir daí, passou a se reconhecer como surda (“Conheci um mundo diferente e fiquei dividida entre eles, o mundo surdo e o mundo ouvinte, até dar um jeitinho de transformá-los num único, pelo menos na minha vivência” (p.231) e a construir uma outra inclusão.

A relação da história oral com a história das mulheres e os estudos de gênero é bastante conhecida, seja na produção nacional ou estrangeira, na forma de trabalhos teóricos ou temáticos. Narrativas e Experiências dialoga com essa tradição, mas possui uma qualidade singular. Além das histórias de vida, matéria primeira do livro, os textos dos entrevistadores exibem a dimensão metodológica de seus trabalhos individuais, como notas de um caderno de campo; oscilam entre etnografias impressionistas e relatos minuciosos sobre os caminhos de suas pesquisas. Contribuições consistentes tanto à prática da história oral (área de atuação dos autores) como à sua aplicação direta aos estudos de gênero.

Narrativas e Experiências é para ser lido a partir da capa. Fugindo a convencionalismos, ela reproduz uma folha de planta bem de perto, com suas cores e nervuras – dando a ver aproximações e afastamentos entre essas mulheres, suas narrativas e experiências, sempre em movimento. A brasilianista Daphne Patai, na quarta-capa, define a obra como “um mosaico rico de memórias e vivências”. Longe da aleatoriedade de uma colcha de retalhos, um mosaico tem caráter dual: a individualidade das tésseras, visto de perto; e o coletivo da forma, visto de longe. Igualmente, o leitor deve mover-se entre o que cada uma destas mulheres tem de particular e o quadro que juntas compõem: modos de viver o feminino no Brasil contemporâneo.

Fernando Luiz Cássio – Aluno de Doutorado no Instituto de Química da Universidade de São Paulo, com bolsa FAPESP. E-mail: fernando@cecm.usp.br.

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Motivation and narrative in Herodotus | Emily Baragwanath

Nos últimos anos é expressiva a quantidade de trabalhos publicados dedicados às Histórias de Heródoto. O empreendimento de Emily Baragwanath, intitulado Motivation and narrative in Herodotus (Motivação e narrativa em Heródoto), ainda sem tradução para o português, inserese nesta tendência de um “retorno” ao autor de Halicarnasso. Publicado pela série Oxford Classical Monographs, o estudo resulta da iniciativa da editora de publicação das eleitas melhores teses sobre literatura grega e latina, história e filosofia antiga da Universidade de Oxford. Leia Mais

Entre a tinta e o papel. Memórias de leituras e escritas femininas na Bahia (1870-1920) – BARREIROS LEITE (CP)

BARREIROS LEITE, Márcia Maria da Silva. Entre a tinta e o papel. Memórias de leituras e escritas femininas na Bahia (1870-1920). Salvador, Quarteto, 2005. Resenha de: COSTA, Suely Gomes. Um encontro com Hans-Georg Gadamer e com muitas mulheres. Cadernos Pagu, Campinas, n. 32, Jan./Jun 2009.

O livro em pauta, originalmente tese de doutorado em História (PUC-São Paulo), sob orientação da historiadora Maria Odila Leite da Silva Dias, situa, oportunamente, revisões historiográficas abertas pelos debates contemporâneos sobre o tempo histórico, o discurso e a representação do e sobre o passado, a narrativa e a linguagem do historiador; enfim, sobre tudo aquilo que tem agitado os métodos da história. De especial interesse para a história das mulheres e das relações de gênero, o texto move-se “entre certezas e inquietude”, como observa Chartier (2002), quanto às tentativas intelectuais que “colocam no centro de seu método as relações que mantêm os discursos e as práticas sociais”. Ao trazer experiências femininas na cultura letrada da Bahia, entre 1870 e 1920, o livro associa a inquietude sobre a produção do conhecimento no âmbito das ciências humanas a certezas sobre a oportunidade de perseverar na crítica aos grandes modelos explicativos, que ainda rondam a produção da história das mulheres. A autora enfrenta, sem temor, os conhecidos desafios do ofício do historiador, por entender que “o passado sempre é o olhar do presente”; para desocultá-lo, apóia-se no senso histórico, modo de refinar sua sensibilidade de pesquisadora, tomando o passado “a partir do próprio contexto em que ele emerge”, como lhe sugere Gadamer (1998:18).

Voltada, em particular, para questões relativas à história das mulheres e aos estudos de gênero, a autora se afasta das construções genéricas, da noção de sujeito universal e, assim, localiza singularidades históricas pouco conhecidas. Isso porque escolhe um método de análise que, tanto é “capaz de pensar a complexidade do problema da consciência histórica, quanto também de desenvolver e instigar um pensamento mais plural, com vista à interpretação de passados múltiplos” (18) – grifo da autora. O livro prova, à farta, o quanto determinados canônes, ainda presentes numa certa história das mulheres, insistem numa presumida “condição feminina”, assentada em sistemáticas oposições de homens e mulheres e no forte legado da noção universal e abstrata de patriarcalismo (Piscitelli, 2004; Costa, 2004). Desmonta, pois, imagens correntes sobre mulheres brasileiras de todos os tempos, representadas como figuras esmaecidas e fugidias, submissas, de imprecisos contornos intelectuais, predestinadas a prendas domésticas, a habilidades para “artes menores” e para o trato da intimidade pensada sem qualquer sinal político, ou quando, diante de algumas outras, portadoras de idéias próprias, “pessoas de opinião” ou, transgressoras de certas “regras sociais”, as pensa como mitos. Como parte dos mesmos cânones ou reforçando-os, acumulam-se representações em relação ao inexorável poder dos homens sobre as mulheres. Em perspectivas como essas, é comum que veleidades intelectuais femininas sejam vistas como inexoravelmente submetidas a impedimentos ou desencorajamentos postos pelos homens. Ao contrário disso, o livro sugere, nas situações estudadas, relações de cumplicidade de homens e mulheres, que também favorecem uma considerável circulação de livros, periódicos e cartas, redes de bibliotecas privadas e públicas. Tais referências sobre acessos das mulheres à leitura e à vida intelectual ampliam as dimensões políticas do cotidiano familiar e expõem complexidades culturais pouco pensadas; a abordagem desse cotidiano se reconstrói e confirma a relevância de pesquisas voltadas para a história regional, recorte espacial que dá visibilidade a configurações singulares da presença de mulheres intelectuais na vida social. Lidando com maestria com uma enorme quantidade de fontes, a autora faz emergir a leitura e a escrita de mulheres intelectuais de Salvador, das cidades do recôncavo e do sertão baiano, e oferece ao seu leitor muito das sensibilidades, matéria plural ainda tão invisível, com que se tecem sociabilidades de cada tempo e lugar.

Na “Introdução” do livro, a autora faz uma cuidadosa exposição de caminhos percorridos de pesquisa: para as questões historiográficas enfrentadas, releva seu encontro com Gadamer e com mulheres baianas intelectuais, das quais se ocupa. Distingue o perfil dessas mulheres: “senhoras e senhorinhas da elite, educadas e instruídas dentro de modelos de letramento e socialização de códigos de cultura vigentes”. Não só: apresenta-nos mulheres, cujas experiências intelectuais “produziram e registraram uma memória coletiva acerca das relações entre os sexos no contexto em estudo”. Cuida bem para afastá-las do risco de serem enquadradas como mitos ou exceções, e as exibe em carne e osso, através de uma infinidade de registros – biografias, memórias, escritos literários, cartas, fotografias e periódicos.

Seguem-se quatro capítulos. A autora os agrupa em duas partes. Na primeira (Capítulo 1 – “História da leitura e leitoras baianas: práticas culturais e perfis femininos”; Capítulo 2 – “Os espaços e as experiências de leitura feminina: a aventura do livro”), os “atos de ler” estão nos espaços da casa, tomados como lugares de sociabilidades intelectuais, nem sempre visíveis nos estudos sobre brasileiras letradas. Além de recorrer às memórias de Anna Ribeiro de Góes Bittencourt, autora de Longos Serões do Campo, numa narrativa familiar, o texto examina escritos literários de cunho autobiográfico de Anna Teófila Autran, desvendando muito das relações da vida íntima com a pública, quando associa as práticas de leituras à circulação de livros, disponíveis em academias, institutos, grêmios, gabinetes, associações, bibliotecas, livrarias e escolas. Localiza a intensificação da vida literária da Bahia que, numa conjuntura de auge, entre 1850 e 1870, conta com o aparecimento de aproximadamente cinqüenta revistas e periódicos literários e científicos. Romances, artigos de jornais, livros de memórias, poesias, escritos por mulheres – fontes vistas em sua dimensão pública, marcam a presença feminina no mundo das letras, um lugar, em geral, pensado como estritamente masculino. Nessa parte, ao apoiar-se ainda nas experiências de cultura letrada de outras mulheres, traz à baila muito das sociabilidades intelectuais. Remete, assim, a algo destacado por R. Gontijo (2005:260) sobre a existência de uma sociabilidade peculiar a esse meio, “reconhecido como polimórfico e polifônico”, indagando “de que modo o meio intelectual produz sua especificidade?” (251), com base em preocupações de Trebitsch (1992). Imagens emblemáticas de auto-representações como intelectuais estão nas fotografias de mulheres, em posição de leitura ou com um livro nas mãos. Essas mesmas imagens se associadas a reproduções de algumas capas de livros e de textos publicados, estimulam a pensar as sociabilidades intelectuais femininas, naquela dupla acepção referida por Sirinelli (2003): “a de rede organizacional e a de microclima” de tantas surpresas. Isso está presente, também, na segunda parte do livro (Capítulo 3 – “O fazer literário das baianas: práticas de escrita” e Capítulo 4 – “A imprensa e as mulheres baianas: periodismo e redes de solidariedade”). Aqui, memórias, escritos biográficos, correspondência de mulheres, preservados, em grande parte, em arquivos privados, além de produções literárias e jornais e revistas, ajudam a ampliar o cenário dessas sociabilidades intelectuais; discursos e práticas sociais de homens e mulheres sugerem a dinâmica social em que se move o processo de tomada de consciência de gênero na segunda metade do século XIX e que deixa, ainda, como marca, caminhos específicos de lutas femininas por educação e cidadania. Trata-se de uma leitura que estimula e faz pensar novas iniciativas de pesquisa em direção a áreas ainda tão encobertas da história das mulheres.

Referências

CHARTIER, R. À beira da falésia. A história entre certezas e inquietude. Porto Alegre, Ed. Universidade/UFRGS, 2002 [Trad.: Patrícia. C. Ramos]         [ Links ].

COSTA, Suely G. Movimentos feministas, feminismos. Estudos Feministas, vol 12 /Especial, Florianópolis, CFH/CCE/UFSC, 2004, pp.23-36.         [ Links ]

GADAMER, Hans-Georg. Problemas Epistemológicos das Ciências Humanas. In FRUCHON, Pierre. (org.) O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro, Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1998.         [ Links ]

GONTIJO, R. História, cultura, política e sociabilidade intelectual. In: SOIHET, R., BICALHO, Maria Fernanda B., GOUVÊA, Maria de Fátima S. Culturas políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro, Mauad, 2005.         [ Links ]

PISCITELLI, Adriana. Reflexões em torno do gênero e feminismo. In: COSTA, Claudia Lima e SCHMIDT, Simone Pereira. (orgs.) Poéticas e políticas feministas. Florianópolis, 2004.         [ Links ]

RAMOS, Alcides Freire; PATRIOTA, Rosangela e PESAVENTO, Sandra Jatahy. Imagens da História: objetos da História Cultural. São Paulo, Editora Hucitec, 2008.         [ Links ]

SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: RÉMOND, R. Por uma história política. 2ª ed. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2003 [Trad.: Dora Rocha]         [ Links ].

TREBITSCH, Michel. Avant-propos: la chapelle, le clan et le microcosme. Les Cahiers de l’Instintut d’Histoire du Temps Présent – Sociabilités intellectuelle, nº 20, Paris, Centre National de la Recherche Scientifique, mars, 1992.         [ Links ]

COSTA, Suely Gomes.- Doutora em História, Professora do Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais e de História da Universidade Federal Fluminense, Campus do Gragoatá. suelygom@oi.com.br.

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Metahistory. The Histórica, Imagination in Nineteenth-Century Europe / Hayden White

O papel da historiografia na construção social da cultura e, por conseguinte, na conformação da identidade dos integrantes dos respectivos grupos é um tema relevante na reflexão histórica contemporânea.

O ponto fulcral para a contribuição historiográfica ao processo de construção das identidades está no pensamento histórico e nas formas culturais de fixação deste pensamento. Esse tema tem ocupado debates e colóquios pelo mundo afora, além de conduzir a um grande número de publicações, desde a década de 1980.

Destacar e explicar o caráter multifacetado e mutante dos modos de expressão histórica do pensamento identificador da individualidade e da sociedade foi um dos objetivos principais do modelo narrativista inaugurado pelo livro de Hayden White, Metahistory. The Histórica/ Imagination in Nineteenth- Century Europe} Rapidamente essa obra veio a ser considerada como o sinal de uma mudança de paradigma na historiografia contemporânea, com a pretensão de ter superado ingenuidades passadas quanto à isenção metódica da história. A idéia é a de que o pensamento histórico de cada geração (mesmo dentro de uma “mesma” cultura) elabora seu modo próprio de ler e reler seu tempo e seus textos, a exemplo das teorias literárias estruturalistas, semióticas, desconstrutivistas, formalistas, intertextualistas, analíticas do discurso, enfim pós- e até mesmo pós-pós-modernas. O “choque” provocado pela teoria narrativista, ao pôr em evidência os limites da ciência histórica — questão que o paradigma “libertário” do modelo positivista e do seu culto às fontes, em sua influência sobre os modos de fazer história desde meados do século 19, havia amplamente ignorado. Um exagero parece ter acarretado o outro. As reações à teoria de Hayden White foram muitas. Aqui não se busca examinar este debate, mas registrar um de seus efeitos benéficos. A conside ração da diversidade historiográfica como um ganho para a produção do pensamento histórico e de sua inserção cultural em um mundo cada vez mais interativo e interdependente decorre, ao menos em sua valorização recente, deste debate, prevalente nos últimos vinte anos. Não há nisso apenas a (re)descoberta do outro como identidade própria (e não sempre reduzido à do observador ou a ela submetido), mas igualmente uma revalorização do recurso à teoria da história como sistema de equacionamento dos inúmeros fatores que constituem o “objeto” da análise social, inclusive no caso da história.

A coletânea editada por Jôrn Rüsen e Sebastian Manhart, Geschichtsdenken der Kulturen — Eine kommentierte Dokumentation (O pensamento histórico nas culturas — uma documentação comentada, Frankfurt/Main, Alemanha: Humanities On Line, 2002) tem por objetivo imediato abrir acesso, a todos os interessados, aos espaços culturais em que a memória e a narrativa, como constituintes do pensamento histórico, contribuem para a construção das identidades. Os dois primeiros volumes dessa colerânea trazem textos e comentários do espaço sul-asiático: Südasien — Von den A.nfàngen bis %ur Gegenwart (Ásia do Sul — dos primórdios ao presente). Stephan Conermann edita, introduz e comenta a visão muçulmana do século 13 ao século 18 (Die muslimische Sicht, 2002, ISBN 3- 934157-22-X, 350 p.), e Michael Gottíob faz o mesmo com o pensamento moderno da Ásia do Sul, de 1786 até os dias de hoje {Historisches Denken im modernen Südasien, 2002, ISBN 3-934157-23-8, 474 p.). Um terceiro volume encontra-se em preparação, versando sobre poética histórica indiana, a cargo de Georg Berkemer (Vom Rigveda %ur historischen Versdichtung — Hinduismus, Jinismus, Buddhismus und orale Traditionen, 2003, ISBN 3-934157-30-0, 344 p.).

A inspiração culturalista e historiográfica dessa coletânea deve seu impulso principal à teoria crítica da história elaborada por Rüsen,2 desde seu tempo como professor na Universidade de Bochum, mas fundamentalmente nos projetos que dirigiu no Centro de Pesquisa Interdisciplinar da Universidade de Bielefeld (ZiF, Bielefeld, Alemanha) e nos que dirige há quase dez anos no Instituto de Ciências da Cultura (Kulturwissenschaftliches Instituí), em Essen. Rüsen é certamente um dos principais autores contemporâneos de teoria e metodologia da história. Seu diálogo internacional é amplo e sua preocupação com a tarefa esclarecedora do pensamento histórico como fator de resgate da autonomia crítica dos indivíduos e como fator de entendimento multicultural são mundialmente reconhecidos Um dos desafios enfrentados por Rüsen está na forte pressão que o paradigma ocidental da ciência história vem sofrendo, nos últimos anos. Exige- se desse paradigma e de seus praticantes a revisão de seus fundamentos, não apenas por causa dos avanços significativos e da inovações de sua especialidade, mas igualmente pela consciência crescente de que o sistema ocidental de interpretações, predominante até o presente, está sendo cada vez mais posto em cheque pelas tradições historiográficas não-ocidentais, amplamente ignoradas, subestimadas ou menosprezadas. Apesar de o conhecimento das culturas não-européias ter progredido gradualmente — o que se deve também ao fato de que o circuito de influências da globalização produz efeitos reversos sobre os centros de irradiação da pressão econômica, comercial ou culrural — o conhecimento das múltiplas formas não-ocidentais de lidar com o passado ainda continua sendo absorvido de modo apenas superficial, tanto na ciência histórica como no senso comum. A perspectiva da historiografia ocidental continua claramente hegemônica, e até a história da historiografia permanece concentrada na historiografia ocidental desde os gregos (uma espécie de eurocentrismo expandido). Uma provável causa desse déficit cognitivo não se reduzia à mera falta de interesse pelas formas de pensar e de exprimir-se não-ocidentais, mas pode estar nas grandes dificuldades em se ter acesso aos textos básicos dessas culturas. As dificuldades mais freqüentes são duas: a barreira da língua e a inexistência de corpora sistematizados.

A falta de conhecimento acerca da relevância de determinados textos e das relações entre os diferentes gêneros textuais dificulta igualmente a compreensão de seus discursos quando não se está por dentro das respectivas ciências especializadas (por exemplo: sinologia, arabologia, indologia e assim por diante). A diversidade das tradições historiográficas, cujo significado somente se alcança no contexto da respectiva história social, religiosa e discursiva, tampouco vem a ser apreendida e avaliada adequadamente sem a intermediação de especialistas.

A edição comentada de textos “O pensamento histórico das culturas” contribui para diminuir os obstáculos referidos ao estudo dos discursos historiográficos não-ocidentais e para criar um acesso às formas mais representativas do modo de lidar com o tempo, com a lembrança e com a história, fora do âmbito eurocêntrico. A coletânea procura fornecer ao leitor um primeiro panorama de diversos textos de diferentes feituras, de modo a permitir construir uma representação adequada das respectivas tradições historiográficas. O período coberto vai dos primeiros inícios das tradições orais e escritas na forma de lendas religiosas, anais tribais, crônicas da corte ou do Estado, até os textos cada vez mais marcados pelo modelo da historiografia ocidental (ou a ela opostos, a partir de um passado recente).

Os critérios adotados pelo procedimento de seleção têm, obviamente, uma conseqüência inevitável: de um corpus sempre cada vez maior só se pode apresentar uma parte relativamente pequena. Ademais, quase sempre é preciso fazer a primeira tradução na história desses textos em uma outra língua, além de os ordenar e comentar cientificamente. A escolha e o comentário dos textos vão, pois, bem além do âmbito de uma única ciência especializada.

A edição destina-se tanto ao especialista em história ou outras ciências sociais da cultura como aos demais interessados, abrindo-lhes o acesso à história e à cultura das regiões em questão. Até os dias de hoje, não há, em inglês, francês ou alemão, nenhuma coletânea de fontes históricas dessas culturas. Para o público de língua neo-latina, como o leitor do português, a barreira da língua continua, mesmo se forma relativa, na medida em que o alemão não é um idioma correntemente praticado. Mas a barreira diminui, certamente, pois é ainda mais difícil encontrar quem possa ler e comentar textos em mandarim, hindu ou japonês.

O conceito diretor da coletânea, “pensamento histórico”, tem por intenção dar conta do amplo espectro das mais diversas maneiras e práticas de refletir sobre a experiência do tempo, o relacionamento com o tempo e as atribuições de sentido ao passado. A antologia reúne, por conseguinte, além de excertos da historiografia dinástica chinesa e dos discursos mais recentes sobre a especificidade científica da concepção indiana de história desde a independência, inscrições chinesas em ossos de oráculo ou em tablitas indianas, lendas de templos budistas, epopéias persas ou ainda trechos de romances populares árabes. A grande quantidade de gêneros literários, assim como sua classificação e seu comentário permitem apreender a amplitude dos modos de lidar com o passado, fora das tradições que nos são familiares. Pode-se desvelar, assim, a evolução constante de determinados gêneros literários, por vezes ao longo de séculos, e sua diferenciação, influência recíproca e mescla.

Ter colocado lado a lado conteúdos e linhas de tradição diversas permite também elaborar uma primeira representação da complexidade das respectivas culturas e relações sociais, determinantes dos processos de intercâmbio intercultural contemporâneo, no plano regional como global.

O plano geral da obra inclui ainda duas outras coletâneas já em andamento: sobre a China e sobre os países centrais do islamismo. Nas três coletâneas fica claro que a periodização estabelecida pelos autores foge do eurocentrismo, que colocaria o domínio colonial e a independência com marcos delimitadores. As obras procuram inserir-se em referências cronológicas internas aos textos e às culturas em que foram concebidos — embora, obviamente, as datas obedeçam ao calendário gregoriano hoje universalmente praticado na vida civil. Uma vantagem está em que as obras estão disponíveis também em formato eletrônico (www.humanities-online.de). E de se recomendar a todo interessado em abrir seus horizontes e conscientizar-se da diversidade social e cultural do mundo — mais importante talvez do que sua pasteurização “globalizada” — que faça uso dessa(s) coletânea(s), enriquecendo sua própria cultura com o aprendizado dos idiomas que lhes dão acesso — que seja começando pelo alemão.

Notas

1 O edição original, em inglês, foi publicada em 1973 pelajohns Hopkins University Press (Baltimore e Londres). Como em diversos outros países, o livro de H. White só veio a ser traduzido no Brasil em 1992 (EDUSP), omitindo-se no título em português de que se trata da imaginação histórica na Europa do século 19. A polêmica suscitada pela obra talvez explique a opção os editores. Com efeito, Metabistory tornou-se um clássico do assim chamado pensamento pós-moderno acerca da historiografia, a ponto de duas das mais importantes revistas dedicarem números especiais ao tema: History and Tbeory (vol, 19,1980) e Storia delia Storiografta (vols. 24 e 25,1993 e 1994).

2 A Editora da Universidade de Brasília já publicou o primeiro volume da teoria da história de J. Rüsen: Razão Histórica, 2000). Os dois volumes que completam o tríptico deverão ser publicados em 2003.

Estevão C. de Rezende MARTINS – Universidade de Brasília.


WHITE, Hayden. Metahistory. The Histórica/ Imagination in Nineteenth-Century Europe. Johns Hopkins University, 1973; RÜSEN, Jörn; MANHART, Sebastian (Ed.). Geschichtsdenken der Kulturen — Eine kommentierte Dokumentation (O pensamento histórico nas culturas — uma documentação comentada). Frankfurt/Main: Humanities On Line, 2002. Resenha de: MARTINS, Estevão C. de Rezende. Pensamento histórico, cultura e identidade. Textos de História, Brasília, v.10, n.1/2, p.214-219, 2002. Acessar publicação original. [IF]