Arte e política: Estado e nacionalismo / Faces de Clio / 2020

A Revista Faces de Clio, periódico discente ligado ao programa de pós graduação em história da Universidade Federal de Juiz de Fora, tem o prazer de apresentar a sua mais nova edição “Arte e política: Estado e nacionalismo”. Essa edição foi toda construída, desde a escolha do tema, o recebimento de artigos, avaliação dos textos até a diagramação dos arquivos, durante a pandemia do Coronavírus e a crise sanitária, política e social que estamos vivendo. Por esse motivo, reconhecemos e agradecemos o esforço de toda a nossa equipe e dos pareceristas que colaboraram para manter a qualidade da revista. Diante do complicado momento que enfrentamos, a Faces de Clio reforça o seu compromisso com a ciência e com a defesa da Universidade pública, ressaltando a importância de combatermos o negacionismo, o autoritarismo e as falsas notícias.

O presente dossiê apresenta vinte artigos que versam sobre o tema das relações e disputas entre a arte e política, com a temática mais ligada à utilização da arte pelo Estado e como instrumento de construção de nacionalismos. Partindo dos mais diferentes suportes artísticos, da música à história em quadrinhos, dos mais diversos espaços geográficos e períodos históricos, os textos apresentam grande contribuição historiográfica e cultural.

Abrimos a edição com o artigo do Álvaro Saluan da Cunha que busca apresentar alguns aspectos observados na coleção de gravuras e textos intitulada “Quadros historicos da guerra do Paraguay” e nas imagens e notícias da Guerra que circularam em periódicos como a Semana Illustrada e A Vida Fluminense, que foram úteis, não só para informar o povo da Corte, mas também para a consolidação da memória e do imaginário popular sobre o conflito.

Em seguida, ainda no campo da história militar, o artigo da Bárbara Tikami examina a relação entre a Marinha Brasileira e um determinado conjunto de quadros pintado por Eduardo de Martino, um oficial da Marinha Italiana que renunciou a sua carreira castrense para se dedicar a atividade artística após chegar a América do Sul.

Carlos Cesar de Lima Veras, em seu artigo, “Deus e o Diabo em Bacurau” tem por objetivo realizar uma análise acerca dos usos da história em duas produções cinematográficas brasileiras: Deus e o Diabo na Terra do Sol, filme de 1964 dirigido por Glauber Rocha, e Bacurau, filme de 2019 dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles.

Continuando com a leitura, Carlos Conte Neto realiza um relato da recepção de Uivo e de outros textos beats na sociedade norte-americana dos anos 50 e 60, em seguida, aponta indícios de como essa literatura reverberou em Portugal durante a ditadura do Estado Novo, onde também provocou reações adversas, mas inspirou poetas. O artigo tem o objetivo de evidenciar aproximações entre a poesia ginsberguiana e os textos de alguns poetas portugueses da segunda metade do século XX.

Deivid Fernando Franco, em seu artigo “Do desencanto a desilusão: Rock e política nos anos 80” discorre sobre a relação entre rock e política, por meio da análise de letras de músicas e de entrevistas cedidas por artistas às mídias da década de 80. Buscou-se perceber se existem posicionamentos políticos nesses discursos e como se deram as relações entre política e rock nos quadros da redemocratização brasileira.

Em “Tancredo em Charges: A representação do humor gráfico na redemocratização (1985)”, Fábio Donato analisa charges publicadas em um conjunto de periódicos durante o período de transição da ditadura civil-militar no Brasil, selecionando periódicos da chamada grande imprensa.

A pesquisadora Fernanda Arouca, se propõe a analisar os trabalhos dos caricaturistas Calixto e Storni, integrantes da revista O Malho, que tiveram como tema a Grande Guerra, e a identificar o discurso sobre o conflito veiculado em um contexto no qual a propaganda e a censura da imprensa foram determinantes para o desdobramento do conflito.

Continuando a leitura, o autor Fernando Cardoso, pretende articular a memória visual e a política cultural imbricadas no painel figurativo “Capela dos fundadores” do artista curitibano Sérgio Ferro, com o que Fraçois Hartog denomina de os sintomas presentistas: memória e patrimônio.

Em seguida, Indaiá Demarchi Klein, busca compreender a presença da obra O Lago dos Cisnes (1887), originaria do período czarista, durante o regime soviético até o seu uso em turnês internacionais, como propaganda ideológica.

Janine Figueiredo de Souza Justen em seu texto “Imagens como tomadas de posição: Uma análise da caricatura política na revista O Malho (1902-1906)” propõe-se investigar as relações editoriais, ideológicas e estilísticas estabelecidas entre as imagens publicadas n’O Malho e seus produtores no contexto do “Bota-Abaixo” (1902-1906).

Leandro Martan Bezerra Santos faz uma reflexão sobre disputas de poder, narrativa, espaço e proeminência no campo musical, a partir da análise das composições do cantor Belchior. Para isso relaciona os trabalhos de Belchior com outros artistas da Tropicália e Pessoal do Ceará, além de tratar sobre a relação deste com a indústria musical.

No artigo “Arte, política cultural e cooperação teuto-italiana no Rio de Janeiro da Era Vargas”, Liszt Neto tem como base os interesses e estratégias comuns utilizados pela política cultural alemã e italiana no Rio de Janeiro ao se estabelecerem nas Américas. A partir disso, o autor estuda como a colaboração no campo artístico e cultural teve influência direta nas atividades da Pro Arte, associação de artistas e amantes das artes alemãs no Brasil.

Já Luciana da Costa de Oliveira realiza um estudo sobre o artista Pedro Weingärtner (1853-1929), atentando-se principalmente as pinturas sobre os espaços da imigração no Rio Grande do Sul e as atividades dos gaúchos, procurando problematizar as indagações que estiveram no entorno da construção da pintura Rodeio, finalizada no ano de 1909 e produzida a partir de uma encomenda do governo do Estado do Rio Grande do Sul.

Em “Napoleão como Filoctetes: Apropriação de um mito grego em uma caricatura antinapoleônica”, Mateus Dagios apresenta um caso de reapropriação do mito de Filoctetes na caricatura antinapoleônica, Nicolas Philoctète dans l’Îsle d’Elbe (1814-1815), que compôs um Napoleão ferido e abandonado, a partir da mistura da antiguidade, discurso nacional e caricatura.

O artigo escrito por Mikaela Moreno Vasconcelos Araujo, “Pintura Histórica na Amazônia: O vernissage de 1908 como Hauptmomente da história na Amazônia”, reflete sobre a Amazônia enquanto capital da borracha, na qualificação de uma Petit Paris. A autora destaca o projeto artístico-civilizador do intendente e mecenas que idealizara uma representação épica da história da nação, aos olhares pintores-historiadores da Europa do século XIX. A partir deste contexto, o artigo salienta a narrativa visual pintada por Theodoro Braga e Antônio Parreiras acerca da Amazônia.

Com intuito de analisar as representações do presidente Ronald Reagan (1911-2004) na história em quadrinhos “Batman, o Cavaleiro das Trevas” (1986), roteirizada por Frank Miller, Millena Barbosa de Carvalho, traz uma discussão sobre as possíveis relações entre este gênero textual e o contexto de sua produção, a década de 1980 nos Estados Unidos.

Em tempos de pandemia do vírus Covid 19, Pablo Lemos Lucena se propôs a pensar sobre as condições precárias dos entregadores que trabalham com aplicativos. O autor associa as imagens e vídeos feitas destes entregadores com autores como Achille Mbembe e Vladimir Safatle ou sobre arte política, arte como tomada de posição a exemplo de Georges DidiHuberman e Hall Foster, a fim estabelecer um diálogo sobre diversos aspectos, como o tempo, a impermanência, além das contradições e fraturas presentes em nossa sociedade.

A autora Paola Pascoal apresenta uma abordagem sobre a relação entre a criação de uma arte nacional e a própria formação da nação brasileira, a partir da análise da ressignificação dos resquícios da cerâmica arqueológica Marajoara, na primeira metade do século XX, que foram utilizados como fonte original da verdadeira arte brasileira.

A fim de realizar uma discussão sobre a consagração da baiana e dos balangandãs como um elemento da identidade nacional na Era Vargas, a autora Sura Souza Carmo faz uma análise das ações de fortalecimento do Estado, que na década de 1930, valorizaram as atividades artístico-culturais para reforçar o nacionalismo e unidade nacional.

No trabalho “Ingênua e frouxa substância humana: A Moreninha na encruzilhada entre Miroel Silveira e João Apolinário (1969)”, Thales Reis Alecrim, busca investigar o programa da peça A Moreninha, baseada no romance de Joaquim Manuel de Macedo (1844) e encenada em 1969, relacionando esta com uma crítica teatral escrita por João Apolinário, visto que este apresenta uma leitura diferente do romance.

Encerrando a sessão do dossiê temático, Wagner Pires da Silva, apresenta um diálogo com base na literatura, para mostrar como os russos se esforçaram na construção de uma Rússia comunista com melhor infraestrutura de ferrovias, estradas e fábricas, após a destruição destes, devido anos de conflitos.

A próxima edição da Revista Faces de Clio também terá o tema de Arte e Política. Felizmente recebemos muitos artigos de alta qualidade e resolvemos dividir a edição em duas partes, o segundo dossiê será lançado no início de 2021. Desejamos a todos e todas uma boa leitura e um 2021 mais leve e de muita luta!

Bárbara Ferreira Fernandes – Editora-chefe da Revista Faces de Clio, doutoranda em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: barbaraffernandes@outlook.com

Carolina Martins Saporetti – Editora-chefe da Revista Faces de Clio, doutoranda em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: carolinamartinssaporetti@gmail.com


FERNANDES, Bárbara Ferreira; SAPORETTI, Carolina Martins. Editorial Faces de Clio, Juiz de Fora, v.6, n.12, jul / dez, 2020. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Nação, nacionalidade e nacionalismo na América Latina: séculos XIX-XX / História – Debates e Tendências / 2013

Desde a última década do século XX, os estudos sobre a nação, a nacionalidade e o nacionalismo, como fenômenos históricos, sofreram verdadeira impugnação de seus enfoques por parte de uma literatura conservadora ancorada no pensamento único e nas propostas de pós-modernidade e do fim da História, hoje já desarticulados pelo presente cenário global. Mais do que nunca, podemos dizer que as visões originais sobre nação, nacionalidade e nacionalismo contribuíram – e ainda contribuem – a explicar de maneira eficaz o devir da história contemporânea, desde fins do século XVIII até nossos dias.

No referente ao estritamente historiográfico, podemos identificar algumas correntes referenciais que contribuíram para enriquecer, desde diferentes enfoques e perspectivas, os conceitos de nação, nacionalidade e nacionalismo, desde suas origens. Um primeiro corpus fundacional foi encarnado pelas revoluções liberais. Foi a Revolução Francesa que nos proporcionou uma concepção política de nação, de soberania popular, de liberdade política e de nacionalidade. Para os revolucionários franceses, a nação era uma união de vontades – eleitas livremente –, constituída sobre os cimentos de um contrato social do qual resultava a adesão voluntária de seus membros associados em suas condições de cidadãos livres. A contraposição dessa noção de nação foi proporcionada pelo romantismo alemão, que a associou a um direito natural “essencialista”, apoiado em critérios raciais, culturais e espirituais. Leia Mais

Nacionalismo, Internacionalismo e Ideologias / Projeto História / 2008

O conjunto de traduções, artigos e notícias de pesquisa que aqui se encontra disposto nesse novo número da Projeto História, apresenta um leque bastante variado, plural e com temporalidades distintas acerca da natureza histórica das ideologias, formas específicas do nacionalismo e do internacionalismo. O leitor encontrará em nossas páginas temas complexos que investigam as tradições culturais, as personagens históricas, os protagonistas históricos, grupos sociais e frações de classe que se empenharam na defesa e consolidação dessas ideologias. Da relação entre nacionalismo e internacionalismo na Argentina dos tempos da primeira guerra mundial ao massacre dos estudantes em Tlatelolco, no México no emblemático ano de 1968, das canções folclóricas de Atahualpa Yupanqui apropriada pelo peronismo aos sentidos dissonantes do hino dos trabalhadores “A Internacional” na guerra civil espanhola, do papel do futebol brasileiro na pena de Nelson Rodrigues às posições nacionalistas de Leonel Brizola, nos episódios que antecedem a instauração de golpe de estado de 1964, expressas no periódico O Panfleto – o jornal do homem da rua. Pesquisas que desnudam as tradições culturais, formas específicas do nacionalismo e sua barragem pela força da ideologia neoliberal e a mundialização do capital.

Desde os processos revolucionários desencadeados no século XVIII, a burguesia francesa introjetou a concepção das “fronteiras nacionais”, almejando vingar suas concepções e diretrizes contra o ordenamento societal do “Antigo regime”. Todavia, é sabido que se o iluminismo elaborou uma visão do mundo que preparava o processo revolucionário, após os intentos dos trabalhadores nas revoluções de 1848, a contra-revolução desenvolveu medidas corretivas e preventivas para a manutenção da ordem que, no plano filosófico, cristaliza o positivismo.

A ideologia não se reduz a mera “falsa consciência”, mas numa sociedade classista se manifesta como consciência ontoprática que nasce dos embates e conflitos sociais. Os nacionalismos buscaram coesão e harmonização de interesses antagônicos a fim de manter o controle do metabolismo social. Ao discutir a ideologia nacionalista, Ernest Gellner enfatizou a função manipuladora da realidade que ela opera, em especial por sua fabricação de mitos e ilusões sociais, seja por se apresentar como defensora da cultura popular ou mesmo se apoiar num passado idilicizado. “A Alemanha pré-nacionalista estava formada por uma multiplicidade de comunidades autênticas, muitas delas rurais. A Alemanha pós-nacionalista unificada foi uma sociedade de massas e preponderantemente industrial”.[1]

O historiador Eric J. Hobsbawm advertiu que não devemos considerar a nação como uma forma social originária ou imutável. “A ‘nação’ pertence exclusivamente a um período particular e historicamente recente. Ela é uma entidade social apenas qundo relacionada a uma certa forma de Estado territorial moderno, o ‘Estado-nação’; e não faz sentido discutir nação e nacionalidade fora desta relação. (…) Em uma palavra, para os propósitos da análise, o nacionalismo vem, antes das nações. As nações não formam os Estados e os nacionalismos, mas o oposto.”[2]

Uma das perspectivas que se tornaram mais disseminada e não menos polêmica no mundo acadêmico encontra-se nas concepções de Benedict Anderson na obra intitulada Comunidades Imaginadas [3] . Numa perspectiva antropológica, intentando esclarecer as raízes históricas do nacionalismo, Anderson propõe uma definição de nação como o próprio estilo como ela é imaginada, “uma comunidade política imaginada – e imaginada como sendo intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo, soberana”. Porquanto, “Imagina-se a nação limitada porque mesmo a maior delas, que agregue, digamos, um bilhão de habitantes, possui fronteiras finitas, ainda que elásticas, para além das quais existem outras nações. Nenhuma delas imagina ter a mesma extensão da humanidade. Nem os nacionalistas mais messiânicos sonham com o dia em que todos os membros da espécie humana se unirão à sua nação, como por exemplo na época em que os cristãos podiam sonhar com um planeta totalmente cristão”.[4] Germinada na época do iluminismo, soterrando a legitimidade do reino hierárquico de conformação divina, como sustenta Anderson, na nação soberana imaginada “a garantia e o emblema dessa liberdade é o Estado Soberano”.

Arquiteta-se uma comunidade imaginada, porque “independentemente da desigualdade e da exploração efetivas que possam existir dentro dela, a nação sempre é concebida como uma profunda camaradagem horizontal. No fundo, foi essa fraternidade que tornou possível, nesses dois últimos séculos, tantos milhões de pessoas tenham-se não tanto a matar, mas sobretudo a morrer por essas criações imaginárias limitadas”.[5]

Este tipo de análise, todavia, desconsidera as determinações histórico-concretas das formações nacionais na modernidade por conta da anatomia do sóciometabolismo do capital em seu processo de universalização. É uma conquista ontológica do desvendamento da lógica do capital que este em sua expansividade, em sua mundialização, se processa de forma desigual e combinada. Marx de posse da crítica histórico-imanente decifrou dentre singularidades societárias formas particulares do ser e ir sendo do capital. Por esta razão, ao diferenciar as determinações concretas da “miséria alemã” com relação à classicidade do caso inglês e francês, o filósofo alemão apontou para as diferenças específicas da constituição nacional alemã no século dezenove, que desconheciam a revolução democrática e cujo êmulo de modernização era empuxado pelos junkers, a nobreza rural do norte germânico, que detendo o controle do poder estatal impingiu determinados traços prussianos que balizou uma transição pelo alto sem a radicalidade humanista e democrática que facetou as burguesias de via clássica.

As formações nacionais que se entificaram pela particularidade da via prussiana, assistiram aos enfrentamentos de categorias sociais que buscavam projetos alternativos na disputa por hegemonia. “E assim, como conseqüência da derrota da primeira onda revolucionária (da Reforma e da guerra dos camponeses), o mesmo se dá na Itália por outras razões, Alemanha se viu convertida num impotente conglomerado de pequenos Estados e, como tal, em objeto ou botim da política do mundo capitalista e da época nascente, das grandes monarquias absolutas”. Pois, como escreve Georg Lukács, “Os poderosos Estados nacionais (Espanha, França, Inglaterra), a dinastia dos Habsburgos na Áustria, de vez em quando, transitoriamente, algumas grandes potências incipientes como Suécia e, desde o século XVIII, a Rússia tsarista, dispõem a seu próprio capricho acerca dos destinos do povo alemão. E, como Alemanha, é objetivo da política destes países, e, ao mesmo tempo, um butim útil para eles, procuram (todos eles) manter o desmembramento nacional do país”.[6]

Lukács em seu livro A Destruição da Razão (1954) destrinçou a ideologia irracionalista que foi forjada nas margens da miséria alemã. Das representações ideológicas do segundo Schelling a Rosenberg, passando por Schopenhauer, Kierkegaard, Nietzsche, Dilthey, Scheler, Heidegger e Jaspers, entre outros, examinando o darwinismo social, a medula rácica do nazismo, Lukács demonstra como o nacionalismo alemão se converte no “campeão das ideologias reacionárias”.

Recorde-se a glorificação do germanismo por Chamberlain, segundo o qual “o mais sagrado dos deveres é servir ao germanismo”. A afinidade desse ideólogo com a filosofia da vida, com o pangermanismo, revela-se por inteiro em sua concepção reacionária sobre a cultura patológica de sua época. Pois, “O que nela não é germânico é um elemento patológico (…) ou é mercadoria estrangeira que navega sob bandeira alemã e que seguirá navegando sob esse estandarte enquanto não levemos a pique esses barcos corsários”.[7]

A ideologia nazi-fascista foi uma ideologia nacional de mobilização para a guerra. Formou crenças e sentimentos que arregimentou parcelas da população alemã para uma empreitada de talhe imperialista. Tratava-se de fazer uma nova partilha do mundo já dividido entre as principais potências capitalistas. Daí a necessidade da guerra de rapina, guerra imperialista que mediada por uma ideologia nacionalista expansionista e agressiva põe em marcha os famosos “soldados-artistas-propagandistas” do III Reich.

Lukács buscou por meio da crítica imanente, da determinação histórico-social das ideologias e sua função regressiva nos embates sociais, a historicidade da formação social e do nacionalismo alemão. Os alemães buscaram a sua unidade nacional por outro caminho, o caminho contrário, ingênito à particularidade histórica da via prussiana. Salientava que “Os grandes povos europeus se constituíram como nações em princípios da época moderna. Plasmaram sua unidade territorial como nações, sobrepondo-se à dispersão feudal. Nelas surgiu uma economia nacional única, que enquadrava a todo o povo e a uma cultura nacional única, em que pese a divisão de classes. No desenvolvimento da classe burguesa, em sua luta contra o feudalismo, vemos atuar a monarquia absoluta por todo lugar transitoriamente, como órgão executivo desta unificação”.[8]

Entretanto, esse desenvolvimento específico não se separava da totalidade histórica que estava imerso, o desenvolvimento desigual e combinado do mundo europeu. Marx chamou a atenção para o fato de que a história alemã “orgulha-se de um desenvolvimento que nenhuma outra nação anteriormente realizou ou virá alguma vez a imitar no firmamento histórico. Participamos nas restaurações de nações modernas, sem termos tomado parte nas suas revoluções. Fomos restaurados, primeiro, porque houve nações que ousaram fazer revoluções e, em segundo lugar, porque outras nações sofreram contrarevoluções; no primeiro caso, porque os nossos governantes tiveram medo e, no segundo, porque nada temeram. Conduzidos pelos nossos pastores, só uma vez nos encontramos na sociedade da liberdade, no dia do seu funeral”.[9] Recorde-se também que na precisa formulação marxiana, “Em política, os alemães pensaram o que outras nações fizeram. A Alemanha foi a sua consciência teórica. (…) Mas se a Alemanha acompanhou o desenvolvimento das nações modernas apenas através da atividade abstrata do pensamento, sem tomar parte ativa nas lutas reais deste desenvolvimento, experimentou também as dores deste desenvolvimento sem participar nos seus prazeres e parciais satisfações. (…) E um belo dia, os alemães encontrar-se-ão ao nível da decadência européia, antes de alguma vez ter atingido o nível da emancipação européia”.[10]

Recorde-se que a tradição cultural que foi apropriada e condensada pela ideologia nacional-socialista, o “modernismo reacionário” expressava um paradoxo cultural na modernidade alemã. Essa ideologia buscou conciliar idéias antimodernistas, românticas e irracionalistas que vicejaram no nacionalismo alemão. A própria guerra nutriu a “revolução conservadora” com seu protesto contra o iluminismo, a apologia do irracionalismo, o culto romântico da violência com o culto da técnica. Muito distante, portanto, das concepções de Adorno e Horkheimer, segundo as quais o surgimento do nazismo se deveu ao projeto iluminista levado à saturação. Paradoxo cultural tão bem detectado por Jeffrey Herf [11] e sintetizado por Thomas Mann: “Embora eu os chame de modernistas reacionários estes pensadores se viam como revolucionários culturais que buscavam sepultar o materialismo no passado. Na opinião deles, materialismo e tecnologia não era de forma alguma idênticos. Thomas Mann captou a essência do modernismo reacionário quando escreveu: ‘O aspecto verdadeiramente característico e perigoso do nacional-socialismo era a mescla que fazia de robusta modernidade com uma postura positiva rumo ao progresso associadas a sonhos do passado: um romantismo altamente tecnológico’. Este livro apresenta aquilo que Mann entendia como a interpenetração da Innerlichkeit (interioridade) alemã com a tecnologia moderna”.

Não sem razão Herf aproximou-se da análise de Lukács sobre a via prussiana. “A via da Alemanha rumo à modernidade estava por detrás da intensidade de sua revolta antimodernista. Comparada com a da Inglaterra e da França, a industrialização alemã foi tardia, rápida e completa. As unidades econômicas eram grandes e a intervenção do estado, extensa. E o mais importante: a industrialização capitalista aconteceu sem uma revolução burguesa bem-sucedida. A burguesia, o liberalismo político e o iluminismo permaneceram fracos”.[12]

O segredo das revoluções do trabalho no século dezenove e o fenômeno da decadência ideológica com o abandono das “ilusões heróicas” da burguesia, o rechaço da dialética hegeliana pelo fortalecimento da ideologia positivista, colocaram para a humanidade uma divisa: socialismo ou barbárie! A emancipação política, forma que se apresentou como solução positiva para as desigualdades do “antigo regime”, desde suas origens se manifestou como solução parcial que se estruturava sob a lógica das “taras sociais”: a nova escravidão do trabalho alienado e estranhado. A nova classe emergente forcejou uma nova forma social que se alimenta das energias humanas de indivíduos destituídos de meios de produção, da riqueza genérica produzida e do controle social do mundo produzido. “O contínuo revolucionamento (Umwälzung) da produção, o abalo constante de todas as condições sociais, a incerteza e a agitação eternas distinguem a época burguesa de todas as precedentes”, especificou Marx em seu célebre Manifesto. [13] Ao demonstrar como a burguesia cria um mundo à sua imagem e semelhança, Marx apontou para o reacionarismo da defesa nacionalista dos interesses burgueses, haja vista que nasce da própria lógica expansionista do modo de produção do capital um intercâmbio universal, uma universal interdependência das nações. Como seria possível a superação do conflito entre nações, nações espoliadoras e nações oprimidas? Certamente não pela lógica da concorrência entre nações, tornando-se cada uma mais poderosa do que a outra. Mas a lógica onímoda do trabalho com sua orientação metapolítica deve rasgar os veios que sustentam o antagonismo estrutural. “Na medida em que é abolida a exploração de um indivíduo por outro, é abolida também a exploração de uma nação por outra. Com o desaparecimento do antagonismo das classes no interior das nações, desaparece também a posição de hostilidade entre as nações”.[14] A emancipação humana geral é, desse modo, uma perspectiva extraída desse próprio mundo regido pelo capital, mas que “Em lugar da velha sociedade burguesa, com suas classes e seus antagonismos de classes, surge uma associação na qual o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos”.[15]

Da perspectiva humano-societária do trabalho, o internacionalismo se viu derrotado em seus intentos de fazer valer o humanismo radical. As lutas que foram encetadas pelas Internacionais tiveram fôlego curto. Marx advertiu que “A Internacional só poderá afirmar se a marcha da história destruir as seitas. O desenvolvimento das sitas socialistas e o do movimento real estão constantemente em relação inversa. Enquanto as seitas se justificarem (historicamente), a classe operária não estará madura para um movimento histórico autônomo. À medida que ela atinge tal maturidade, todas as seitas serão, por essência, reacionárias”.[16]

Em 2008, completam-se em setembro 70 anos da criação da IV Internacional por León Trotski. Após a falência da II Internacional, em 1914, com sua guinada rumo à “sagrada aliança” com as burguesias nacionais no estalar da I Guerra Mundial, rompendo com o posicionamento de – caso a guerra irrompesse – imediatamente os comunistas fomentariam o movimento pela paz, denunciando-a como guerra intercapitalista e – no insucesso desse movimento – a derrubada dos poderes constituídos. Com essa cisão promovida pela Social Democracia alemã, com os desenlaces da Revolução Russa, em 1919, é formada a III Internacional Comunista. Com a ascensão de J. Stalin, a Comintern passa a ser manipulada para os interesses da burocracia soviética. Papel desastroso a IC terá nos episódios em que se envolve. É o caso da política para os comunistas alemães. Já no exílio, Trotski agirá no sentido de torpedear a ação nefasta do PC alemão em sua luta contra a Social Democracia, não agindo para a formação de uma Frente Única dos Trabalhadores, o que acarretou o fortalecimento do partido nacional-socialista alemão. Nas páginas da Projeto História, Osvaldo Coggiola reconstitui os passos e o contexto histórico da luta do líder bolchevique contra a usurpação e papel contra-revolucionário do stalinismo, uma forma específica de nacionalismo, na manutenção de seus privilégios, com métodos terroristas que culminam nos Processos de Moscou e no desarme dos processos revolucionários, caso gritante da revolução social espanhola nos anos de 1936 a 1939.

Ao tracejar o perfil dos nacionalismos na segunda metade do século XX, Benedict Anderson dispôs dos acontecimentos mais relevantes, “ao menos simbolicamente, na década de 1960, marcada pelas reverberações globais do nacionalismo em dois Estados pequenos, pobres e periféricos. A luta heróica do minúsculo Vietnam contra os colossais Estados Unidos, plasticamente retratada no mundo inteiro através do novo meio de comunicação televisivo, ajudou a precipitar, de um modo como não fora feito por nenhum outro nacionalismo ‘periférico’, convulsões não somente na América, mas também na França, Alemanha, Japão e outros lugares, fazendo de 1968 uma espécie de annus mirabilis, no estilo de 1848. Ao mesmo tempo, os tanques de Brezhnev destruíram brutalmente a primavera nacionalista na Tcheco-Eslováquia dominada pelos comunistas, com conseqüências equiparáveis, a longo prazo, para o projeto soviético. Nos Estados Unidos, a mesma década assistiu à ascensão, primeiro, do movimento dos direitos civis, seguido por um nacionalismo negro que em pouco tempo cruzou as fronteiras nacionais; aos primórdios de um movimento feminista em novo estilo, de alcance cada vez mais global; à revolta de Stonewall, que deu início ao primeiríssimo movimento transcontinental pela emancipação dos gays e das lésbicas – no caso, a ‘nação homossexual’. Também na Velha Europa, o desenvolvimento de uma comunidade supranacional caminhou de mãos dadas com o surgimento dos nacionalismo militantes, opostos a estados nacionais já estabelecidos – Irlanda do norte, escócia, Bélgica, Catalunha, terras bascas e assim por diante.”[17]

A realimentação de ideologias nacionalistas, no tempo presente, em plena mundialização do capital, na qual há a secundarização dos Estados-nacionais, florescem “mudanças políticas, com tamanha rapidez e em tantos lugares, ou na qual tenha havido tanta incerteza quanto ao futuro.”[18]

Continuam a ser, dessa maneira, estarrecedoras as pretensões imperialistas dos Estados Unidos no mundo atual pós o ataque contra as Torres Gêmeas de 11 de setembro de 2001. A fustigação dos “inimigos da pátria” por métodos terroristas, a ampliação do controle e vigilância dos movimentos sociais que passam aser criminalizados por quaisquer reivindicações que sejam apresentados como ameaça à ordem. A manutenção de suas bases militares que cobrem desde territórios europeus a países latino-americanos, as guerras contra o Iraque e o Afeganistão, realimentam a ideologia segundo a qual o mundo deve ser regido pela política destrutiva de George W. Bush. O nacionalismo norte-americano cumpre, pois, a sua função essencial. Mesmo sob a regência do democrata Bill Clinton, a fórmula imperialista ficou evidente ao reafirmar e ecoar de modo incessante que havia “apenas uma nação necessária: os Estados Unidos da América”. Todavia, como assevera Mészáros, “(…) tanto a permanência do neoliberalismo (muitas vezes associada à grotesca pseudoteoria que prega um ‘fim da história’ quando da feliz chegada do neoliberalismo) quanto a proclamada necessidade absoluta da eterna auto-acomodação dos trabalhadores não são mais do que ilusões ópticas enganadoras, desenhadas para a conveniência da ordem instituída”.[19]

Mesmo que se possa discordar da defesa do nacionalismo “bolivariano”, tomado como projeto político radical, como a que faz István Mészáros, não há como desconhecer as determinações essenciais que se desenvolvem no mundo contemporâneo: “A nova condição histórica não pode ser desfeita pelo fato de os antigos poderes imperialistas, e acima de tudo o mais poderoso de todos, os Estados Unidos da América, estarem tentando fazer as rodas da história andarem para trás e recolonizar o mundo. Seu desígnio para esse fim já é visível na forma como empreenderam recentemente algumas aventuras militares devastadoras sob o pretexto da chamada ‘guerra contra o terrorismo’. Com efeito, a nova panacéia dos poderes mais agressivos é afirmar que embarcar no que de fato representa uma grosseira aventura recolonizadora – na África e no Sudeste da Ásia, assim como na América Latina – é uma condição essencial para o êxito de sua virtuosa ‘guerra contra o terrorismo internacional’ na ‘nova ordem mundial’. Mas estão condenados a fracassar”.[20]

Perda irreparável para o mundo acadêmico, Dea Fenelon sempre sonhou perspectivando o futuro. Desde jovem, seu espírito combativo a conduziu à militância colada aos interesses dos trabalhadores contra a barbárie da ditadura militar. Empenhou-se na construção do Partido dos Trabalhadores, mulher revolucionária de espírito público combateu o conservadorismo que reinava em nossas universidades, apresentando formulações para a reforma do ensino e denunciando os rumos que o neoliberalismo apresentava para o sistema educacional brasileiro. Figura talentosa que soube reunir numa só pessoa, a historiadora, a educadora, a gestora pública e empreendedora; em nossa instituição, dedicou-se ao fortalecimento da Pós-graduação, à formação de historiadores e historiadoras com pesquisas genuínas. Seguidora da História Cultural, desenvolveu linhas de pesquisa ancoradas no talhe e vigor de E. P. Thompson. Apaixonada pela Projeto História, seu legado se mantém vivo, este número sobre “Nacionalismo, internacionalismo e ideologias” é dedicado a nossa historiadora.

Notas

1. Gellner, Ernest. Naciones y Nacionalismo. Tradução Javier Sató. Madri, Alianza, 1991, 161.

2. Hobsbawm, Eric J. Nações e Nacionalismo desde 1780. Tradução Maria Célia Paoli e Anna Maria Quirino. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990, p. 19.

3. Anderson, Benedict. Comunidades Imaginadas. Tradução Denise Bottman. São Paulo, Companhia das Letras, 2008.

4. Idem, pp. 33-34.

5. Idem, p. 34.

6. Lukács, G. El asalto a la Razón. 3.ª Edição. Tradução Wenceslao Roces. Barcelona / México, Grijalbo, 1973, p. 32.

7. Chamberlain apud Lukács. El Asalto a la Razón. 3.ª Edição. Tradução Wenceslao Roces. Barcelona / México, Grijalbo, 1972, p. 573.

8. Lukács, G. El Asalto a La Razón. In: op. Cit., p. 29.

9. Marx, K. Introdução à Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. In: Manuscritos Económico-Filosóficos. Tradução Artur Morão. Lisboa, Edições 70, 1989, p. 79.

10. Marx, K. Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. In: Op. cit., p. 88.

11. Herf, Jeffrey. O Modernismo Reacionário. Campinas / SP, Editora da Unicamp; São Paulo, Ensaio, 1993, p.14.

12. Idem, pp. 17-18.

13. Marx, K & Engels, F. Manifesto do Partido Comunista. Tradução Marco Aurélio Nogueira e Leandro Konder. Petrópolis, Vozes, 1996, p. 69.

14. Idem, p. 85.

15. Idem, p. 87.

16. Marx apud Tragtenberg, Maurício. Reflexões sobre o Socialismo. São Paulo, Moderna, 1986, p. 21.

17. Anderson, Benedict. Introdução. In: Balakrishnan, Gopal (org.). Um Mapa da Questão Nacional. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, Contraponto, 2000, pp. 12-13.

18. Idem, p. 13.

19. Mészáros, István. Bolívar e Chávez: o espírito da determinação radical. In: Revista Margem Esquerda n.º 8. São Paulo: Boitempo Editorial, 2006, p. 99.

20. Idem, p. 108.

Antonio Rago Filho

Vera Lucia Vieira

Editores Científicos


FILHO RAGO, Antonio; VIEIRA, Vera Lúcia. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 36, 2008. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê