Consonâncias entre História e Música/Caminhos da História/2022

História e Música não são apenas dois campos disciplinares, mas também dois universos de saberes e de experiências inseparáveis. Não por acaso tem se revelado nas últimas décadas uma vasta profusão de trabalhos e reflexões; desde teses, dissertações, artigos, debates, ensaios, dossiês em periódicos, livros, até cursos específicos sobre o tema. Realizar um balanço desse processo, sobretudo a partir das conquistas temáticas e metodológicas ofertadas pelas experiências interdisciplinares é um dos desafios que se coloca com o intuito de avançar para além do “estranhamento” com essa sugestiva interface entre campos de conhecimento. Em outras palavras, já não cabe pensar ou se surpreender com fronteiras, pois as práticas de pesquisa e de redação que envolvem temas de história e de música estão suficientemente amalgamadas para que possamos naturalizar e expandir suas consonâncias. Leia Mais

Música para além da música/ArtCultura/2022

Uma canção, a rigor, é um artefato cultural que mobiliza, muitas vezes, toda uma extensa rede de sujeitos que operam de distintas formas no seu processo de fabricação. São variados os anéis da cadeia de criação artística que se enlaçam desde a composição de uma obra, sua produção, as performances vocais, visuais, instrumentais, passando pela sua divulgação e, por fim, pela recepção, responsável, em última análise, pelos sentidos que acabam sendo incorporados socialmente a ela. Lugar de coabitação de diferentes linguagens, a canção popular não se oferece necessariamente ao público, de imediato, como um objeto de fácil decifração. Leia Mais

História e música na América Latina: interlocuções historiográficas | História e Cultura | 2021

A proposição do dossiê “História e Música na América Latina: interlocuções historiográficas” foi feita com o intuito de ampliar as oportunidades de publicação acadêmica nos estudos que articulam Música e História. Nesse quesito, a revista História e Cultura, da UNESP Franca, tornou-se uma importante parceira, proporcionando um novo espaço depois de ter lançado um dossiê semelhante em 2013.

Passados oito anos, inúmeras pesquisas no Brasil e no exterior dedicaram-se a aprofundar as diferentes dimensões da relação entre História e Música, sempre envolvida nas tensões entre as especificidades da linguagem musical e as características dos contextos históricos. Desde então, novas fontes, temas e abordagens ampliaram consideravelmente a ocupação desse território híbrido entre a musicologia e a historiografia. Leia Mais

História e música / História – Debates e Tendências / 2018

Sófocles [1], logo no início de sua tragédia mais famosa, introduz um personagem crucial para explicar as atribulações que cercam Édipo. O personagem é Tirésias, um velho adivinho (e figura recorrente na mitologia grega) que chega conduzido por um menino. Interessado em descobrir o assassino do Rei Laio e salvar Tebas, Édipo interpela Tirésias sobre o que sabe a respeito. O diálogo é ríspido e logo tira a paciência de Édipo, pois Tirésias se recusa a revelar qualquer coisa. É então que Édipo usa um argumento surpreendente, acusando Tirésias de ser o articulador do crime, dada sua recusa em colaborar: “Pois bem. Não dissimularei meus pensamentos, tão grande é minha cólera. Fica sabendo que em minha opinião articulaste o crime e até o consumaste!”. Depois da acusação, Tirésias “vira o jogo”; de “encurralado” pelas insinuações maldosas passa a assumir a condição de agente da “impávida verdade” e põe “na mesa” aquilo que Édipo jamais sonhara: “Pois ouve bem: és o assassino que procuras!”; e, na sequência, referindo-se ao casamento incestuoso com Jocasta: “Apenas quero declarar que, sem saber, manténs as relações mais torpes e sacrílegas com a criatura que devias venerar, alheio à sordidez de tua própria vida!”. Leia Mais

História & Música | ArtCultura | 2013

Edição especial: Ano XV

Como quem participa de uma corrida de obstáculos – o pão nosso de cada dia de todos os que têm pela frente a edição de periódicos universitários –, a ArtCultura 27 comemora o Ano XV da revista. Para nossa satisfação, as dificuldades encontradas ao longo do caminho foram em grande parte superadas graças ao esforço e colaboração de um sem-número de pessoas e agências. No caso destas, ressaltamos a injeção de recursos que, em diferentes momentos, recebemos do CNPq, da Capes e da Fapemig, bem como da Edufu.

Ao retomarmos as pegadas de sua caminhada, constata-se que uma publicação que nasceu ancorada num projeto relativamente tímido adquiriu, com o passar do tempo, adquirindo maior musculatura intelectual. Abriu-se, por assim dizer, para o mundo a ponto de acolher contribuições de distintos países das três Américas e da Europa (neste número, por exemplo, contamos com colaboradores radicados na Alemanha, Estados Unidos, França e Inglaterra). Ao convocarmos igualmente colegas brasileiros para juntarem-se a nós, a resposta obtida foi a mais positiva. Centenas e centenas de textos assinados por pesquisadores de todos os cantos do país chegaram até nós, o que nos possibilitou procurar manter a qualidade dos artigos publicados, algo atestado por nossos quase mil assinantes. Leia Mais

História e Música / História e Cultura / 2013

É com grande satisfação que nos unimos ao corpo discente do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH), da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, para lançar o primeiro número do segundo volume da revista História e Cultura, publicação semestral online do Programa.

O dossiê temático desta edição traz em foco as discussões interdisciplinares entre História e Música, tema que apenas recentemente despertou interesse dos pesquisadores nas universidades brasileiras. Datam dos anos 1960 os primeiros estudos sistemáticos acerca do tema, que só então passou a configurar objeto de interesse entre os pesquisadores e a ser tratado como relevante objeto de estudo e reflexão acadêmica. Desde então, o número de trabalhos envolvidos com as relações entre História e Música cresceu vertiginosamente, não apenas no que se refere à produção historiográfica, mas também aos trabalhos desenvolvidos em outros departamentos acadêmicos. Os primeiros trabalhos dedicados à música nessa década de 1960 são desenvolvidos nos departamentos de Letras e compreendem particularmente análises da canção popular, destacando o conteúdo literário de seus versos. É a partir da década de 1980 que as contribuições mais significativas aos estudos musicais se farão notar na área de História e também nas áreas de Sociologia e Antropologia.

Cabe ressalvar que, em sua grande maioria, as pesquisas acadêmicas das Ciências Humanas dedicadas à música estarão predominantemente voltadas à música popular ou, mais especificamente, à canção popular. Uma das possíveis razões para essa preferência poderia ser apontada na dificuldade do pesquisador diante da não-simples decodificação da notação musical.

A historiografia promove diálogos bastante significativos com os estudos musicais desenvolvidos nas áreas de Letras, Antropologia, Sociologia, mas ainda tímidas são as articulações promovidas com a área da Musicologia ou de Etnomusicologia. Assim, os diálogos interdisciplinares envolvendo os estudos acadêmicos dedicados à música têm sua importância plenamente reconhecida pelos pesquisadores, embora seja ainda necessário algum avanço em direção aos áridos terrenos das fronteiras entre as disciplinas. Tal intercurso certamente trará novos importantes contributos às pesquisas historiográficas, tanto no que diz respeito às fontes quanto aos métodos de abordagem desse material. Frente a tal cenário, procuramos organizar um dossiê que integrasse pesquisadores de distintas áreas do conhecimento e que tratassem de diversos assuntos, dentro do horizonte de possibilidades dos estudos sobre História e Música.

O texto que abre o Dossiê é a conferência ministrada pelo Professor Doutor José D’Assunção Barros no XI Encontro de História da Educação do Ceará, realizado na cidade de Baturité, em setembro de 2012, intitulada “A Imaginação Musical como um modelo possível para repensar a Teoria da História”. A formação de Barros nas áreas de História e de Música permite colocar o discurso sobre a interdisciplinaridade na prática de sua produção acadêmica, refletindo sobre as possibilidades de uma “imaginação musical” aplicada à prática do historiador.

O Dossiê conta também com artigos sobre a música popular brasileira, como o do arquiteto e urbanista Marcos Virgílio da Silva, intitulado “O todo e a parte: nomeando espaços e vivências urbanas em São Paulo (décadas de 1950 e 1960)”, que traz um interessante diálogo interdisciplinar em sua investigação ao recorrer aos sambas de Adoniran Barbosa como ponto de partida para captar o olhar dos excluídos do processo de urbanização da cidade de São Paulo, e o artigo do cientista social Lucas Marcelo Tomaz de Souza, intitulado “Raul Seixas e o cenário musical brasileiro na década de 1970”, que aborda a inserção do cantor e compositor Raul Seixas no mercado fonográfico durante a década de 1970, refletindo sobre este tema importante para os estudos sobre música que é a estruturação do mercado fonográfico.

São variadas as possibilidades de reflexão acadêmica a partir da música. Interessantes, nesse sentido, são os estudos que têm como objeto a música erudita, como o dos músicos Álvaro Luiz Ribeiro da Silva Carlini e Alan Rafael de Medeiros, “A modernidade em questão: música de concerto em Curitiba – coexistência e especificidades entre a SCABI e SPMC”, sobre o papel das instituições culturais na difusão da música de concerto em Curitiba. Ainda refletindo sobre a música erudita temos o artigo “Aspectos vanguardistas na música de John Cage”, do historiador Vinicius Cranek Gagliardo, que apresenta os conceitos de vanguarda, instituição e obra de arte a fim de estabelecer relações entre as vanguardas artísticas europeias e a obra do compositor norte-americano John Cage.

Outros estudos que têm como objeto a música erudita são os dos historiadores Leandro Couto Carreira Ricon, “Por uma História Social da Música: uma metodologia aplicada à produção operística”, no qual o autor discute novas metodologias para uma abordagem problematizada da prática musical na História por meio da produção operística, e “O período joanino e as transformações no cenário musical no Rio de Janeiro”, de Renato Aurélio Mainente, que aborda as principais linhas de desenvolvimento da atividade musical no Rio de Janeiro a partir da fundação da Capela Real, em 1808, e do Real Teatro São João, em 1813.

Na intersecção entre estes dois objetos, a música erudita e a música popular brasileira, há o trabalho do comunicólogo Rafael Lage Pereira, intitulado “Artista artesão ou artista igual pedreiro: de Mozart a Macaco Bong, uma história de lutas por autonomia”, que traz uma reflexão instigante a respeito das possibilidades de reapropriações de antigas estratégias da indústria fonográfica e de que forma elas retornam reconfiguradas com jovens oriundos da indústria musical do século XXI.

A fim de evidenciar possibilidades de estudos que reflitam diretamente sobre as relações entre a música e a política trazemos as pesquisas de dois historiadores interessados na música latino-americana da segunda metade do século XX: o artigo “‘Canto porque la guitarra / tiene sentido y razón’: folclore e política na música de Víctor Jara (1966-1973)”, de Natália Ayo Schmiedecke, que considera o discurso político-musical identificado com o movimento da Nova Canção Chilena por meio da obra de Víctor Jara, e “‘Por toda América soplan vientos que no han de parar hasta que entierren las sombras’: anti-imperialismo e revolução na canção engajada latinoamericana (1967-69)”, de Caio de Souza Gomes, que analisa o ano de 1967 e o quanto ele significou um momento de ruptura importante no processo de consolidação dos movimentos de canção engajada na América Latina por conta da realização em Cuba do I Encuentro de la Canción Protesta.

Esperamos que os artigos publicados neste Dossiê possam contribuir para o campo dos estudos sobre História e Música, evidenciando que vários são os caminhos de pesquisa e que quanto maior a interação dos distintos profissionais e domínio de diversas perspectivas teórico-metodológicas, mais ricas serão as reflexões e escutas sobre o tema.

Lígia Nassif Conti

Mariana Oliveira Arantes

Organizadoras do Dossiê História e Música.


CONTI, Lígia Nassif; ARANTES, Mariana Oliveira. Apresentação. História e Cultura. Franca, v.2, n.1, 2013. Acessar publicação original [DR]

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Música e Artes / Projeto História / 2011

O universo das obras e manifestações artísticas e, nele, a arte dos sons, tem recebido atenção crescente dos historiadores e historiadoras a fim de desvelar os vários elementos que constituem culturas híbridas, culturas hegemônicas, como enfatizava Raymond Williams, modos determinados de viver, estruturas de sentimentos particulares e os processos infinitos de objetivação criativa nas experiências vividas que apontam para engates entre passado e presente e que remetem às questões humano-societárias. A arte tem a potencialidade de revelar os determinantes sociais que situam destinos individuais e criticam formas sociais de controle e agenciamentos humanos. Está claro que a esfera da arte em sua processualidade histórica, em especial no mundo da modernidade, alcançou uma autonomia estética que, muitas vezes, opõem a obra produzida às posições políticas dos criadores. O que não contradiz, de forma alguma, que as obras de arte possam simplesmente flutuar sobre a vida cotidiana sem ter quaisquer condicionamentos histórico-culturais. Não se trata de absolutizar o seu âmbito, mas sim de recusar uma perspectiva utilitarista, pragmática, e por que não referir o seu desfibramento, concepção e prática que mutila a obra de arte, segundo seu modelo redutor e mecanicista, que dilui o específico do estético e a função social da arte, tornando-a um transmissor politicista, como mero reflexo passivo de uma dada situação social. Isto não significa a anulação do partidarismo da arte, mas a recusa de uma arte impregnada dos contornos da política. Lukács fez desse combate um bom combate. As orientações do fenômeno do stalinismo, os equívocos do proletkult simplesmente, em sua época, vitimizaram artistas e seus produtos.

O fato de as obras de arte – sejam em suas expressões mais grandiosas, sejam daquelas menores ou mesmo sem qualquer aferição de autenticidade – ficarem submetidas à lógica do grande capital, às necessidades do mercado, não implica que a arte desapareça do horizonte. “Mas o que faz com que a arte seja autêntica? O que constitui a liberdade do verdadeiro artista? […] André Gide constatou certa feita que toda literatura autêntica de nosso tempo nasceu em oposição à sua época. Isso é totalmente verdadeiro tanto para a forma quanto para o conteúdo”, escrevia Lukács.[1] Esta forma de combate não se restringe, é certo, apenas à sobrevivência do artista e de sua arte, ao escape dessa subordinação, mas diz respeito ao modo determinado da vida cotidiana, aos fenômenos coisificadores que a cercam, aos produtos das próprias relações sociais regidas pelo capital. Hegel supôs que esse fenômeno de dessubstancialização da arte decorria de uma forma social decadente. Algo que se movia nas contradições de seu presente impediam a arte de ser uma plenificação consciente. Para o filósofo idealista,

O pensamento e a reflexão sobrepujaram a bela arte. Se nos comprazemos com queixas e recriminações, podemos tomar tal fenômeno por uma decadência e imputá-lo ao excesso de paixões e interesses pessoais, que tanto afugentam a seriedade quanto a serenidade da arte; ou podemos lamentar a miséria do presente, o estado intrincado da vida burguesa e política, que não permite que o ânimo aprisionado a interesses mesquinhos possa libertar-se para os fins superiores da arte.[2]

Nicolas Tertulian aclarou essas determinações do plano estético ao mostrar que arte em seu poder mimético não significava de modo algum uma mera reprodução mecânica da vida, uma apreensão neutral e indiferente, mas, ao revés, sua tônica está na própria vocação da arte em intensificar a subjetividade. A substância revigorante da subjetividade realçada nas obras de arte é a humanitas, a essência humana que barra os estranhamentos e ancora a integridade humana contra os aviltamentos e toda sorte de efeitos reificadores. Súmula lukacsiana: grandeza artística, realismo autêntico e humanismo estão indissoluvelmente unidos. A negação da intervenção transformadora do artista em nossos tempos tem revelado um traço de impotência e uma natureza postiça de sua visão da arte. O filósofo romeno assegura que para o autor da Estética: “a arte tem por missão propor uma representação plenamente objetiva do mundo olhado da perspectiva única de sua conformidade com as aspirações humanas.”[3] Recorde-se que para Lukács, a criação artística é, ao mesmo tempo, descobrimento do núcleo da vida e crítica da vida. A maneira mais adequada, expressiva e elevada da produção da autoconsciência da humanidade.

Mesmo reconhecendo que a música tenha a “divina finalidade” de mover os afetos e paixões humanas promovendo a decantação de nossa alma numa elevação humanista, sua capacidade de nos envolver e tomar por inteiro, como também o de apontar o dever-ser no interior das tramas históricas dos destinos individuais; todavia, a arte dos sons pode ser destinada a servir a outras finalidades, a outros atributos históricos. Usos sociais que motivaram teleologias vis e infames, como a de insuflar atos de barbárie, de monstruosidades como a guerra, de violência, de tortura e de outras finalidades irracionais. Assim como o nazismo se valeu da música para afirmar a sua pretensa superioridade rácica, sua identidade germanista, outras ditaduras – como as que vicejaram no Cone Sul – também se valeram do uso da música na prática da tortura, mesclando os sons dos martírios e tormentos de suas vítimas com a audição de músicas; músicas, inclusive, de autores de grandiosa relevância para a humanidade, como as de Bach. Podemos fazer referências a inúmeras situações nas quais a música foi utilizada de forma torpe, pragmática, distorcida, transformando canções em hinos patrióticos, guerreiros, que além da coesão que articula de modo indistinto classes sociais antagônicas, produzem cantos de guerra, desencadeando sentimentos violentos, servindo de molde para indivíduos conformistas que apodrecem sob a própria pele e se tornam apologéticos da ordem social. Os processos culturais reificadores – como aqueles disseminados em tempos de paz pela indústria cultural, simplesmente, despojam a arte de sua função desfetichizadora, reduzindo seu papel humanista à mera reprodução da crosta aparencial da vida social coisificada, aderindo aos estranhamentos humanos, se amoldando a atos de conformismo, de humilhação e até mesmo agindo no fortalecimento dos sentimentos religiosos.

Num trabalho pioneiro, recém-lançado, intitulado Música e Humilhação, Susan Forster analisou cerca de duzentos e vinte acórdãos proferidos pelos Tribunais Regionais do Trabalho para identificar os conteúdos específicos que motivaram os trabalhadores e trabalhadoras a solicitarem indenização por afronta à dignidade humana, por danos morais, por humilhações. Ao não cumprimento das metas propostas pelas empresas, os funcionários eram humilhados, devendo passar por sessões musicais; “músicas” que os colocavam em situações bizarras, por vezes rebolando e fazendo micagens em torno de uma garrafa, zombeteados por seus colegas, obrigados a “cantar” e a “dançar”, num nítido caráter depreciativo da imitação com motivos sensuais e eróticos; ou até mesmo eram obrigados a enfrentar papéis de subalternidade, como os de se passar por “escrava Isaura”. Baseando-se numa formulação de A Montanha Mágica – que a princípio nos causa suspensão –, Forster cita uma passagem de Thomas Mann que diz: “Há na música um elemento perigoso, senhores. Insisto no fato da sua natureza ambígua. Não exagero ao declarar que ela é politicamente suspeita”.[4]

Para entender esse aviso do grande romancista, há que relembrar as formulações de um dos principais compositores do século XX, ante a tragédia do desabamento das torres gêmeas e suas conseqüências genocidas. Karlheinz Stockhausen, o célebre músico reconhecido por levar “às últimas conseqüências a idéia da composição com séries. Queria trabalhar com os 12 sons da escala cromática, límpidos, filtrados de qualquer conteúdo ou ranço do passado, raciocínio esse que estendeu à organização rítmica e às intensidades […]”. Em sua maturidade, “criou obras grandiosas que contavam com participação de quatro helicópteros; outras, como a da Exposição de Osaka, onde a música era distribuída pelos espaços da mostra com sonoridades específicas para cada local”. Todavia, este músico que buscava romper com todas as tradições, com o nosso passado musical, acabou por se voltar a uma espécie de arte indesejada, idêntica àquela que Walter Benjamin inscreveu em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica e combateu uma manifestação de arte concebida na máxima: “A guerra é bela!”. O maestro Júlio Medaglia relembrou que após os acontecimentos da implosão das Torres Gêmeas, no dia 11 de setembro de 2001, em Nova York, Stockhausen “disse que naquela cidade ocorreu o maior de todos os espetáculos e que nós, músicos, que pretendemos conduzir pessoas a delírios estéticos ‘não somos nada perto daquilo’.”[5]

Recorde-se também, apenas como dimensão de exemplaridade, o arrepio dos germanistas puristas à sonoridade provinda dos negros, como o blues e o jazz! A superioridade racial ditando também aqui a sua superioridade, imputando a outras culturas meros “sintomas de arte degenerada”, e sua mescla traduzindo impurezas! Por outra parte, em contraste flagrante a essa visão do mundo nazi-fascista, há que qualificar os esforços do maestro argentino Daniel Barenboim e do escritor Edward W. Said (1935-2003) – origem judaica e palestina, respectivamente –, que juntos esgrimiram com seus aríetes, escritos e, fundamentalmente, com suas músicas, desarmaram os espíritos, fortalecendo-os na solidariedade, a fim de juntar povos em permanente estado de guerra. São esforços poéticos, alguns dizem, mas gigantescos. Barenboim teve a ousadia e coragem de reger Wagner – considerado um músico por excelência “nazista”, em plena Jerusalém. Claro está que foi hostilizado. Num teatro para se ouvir música e ser hostilizado significa ser amplamente vaiado. E, mais tarde, cobrado! Em Diálogos sobre música e teatro – Tristão e Isolda, o condutor argentino deixa transparente sua posição:

Não acredito no nacionalismo cultural nesse sentido. Percebi que na expressão da música wagneriana existe alguma coisa que se adapta de modo mais natural à sensibilidade alemã do que à sensibilidade latina ou eslava, sem dúvida. Mas ao mesmo tempo acho que a essência de Wagner é plenamente acessível a um italiano, assim como a essência de Verdi é plenamente acessível a um alemão.[6]

Conforme se lê nas primeiras páginas deste número da Projeto História, intitulado “Música e Artes”, esta área da produção humana é tomada enquanto expressão da correspondência entre “fenômenos singulares e pressupostos universais que outorgam à obra de arte sua peculiaridade enquanto esfera autônoma e normativa”. Para expressar concretamente como tais aspectos se manifestam na produção acadêmica, os textos que compõem este volume abarcam o universo da música, do teatro e do cinema, bem como a análise de romances e de poesias, cujas funções sociais se alteram conforme o particular desenvolvimento do capitalismo, assim como se alteram seus significados culturais.

Embora tais dimensões não esgotem a campo da arte enquanto estética, ou seja, enquanto essencialidades particulares que expressam a universalidade humana, tais artigos permitem ao leitor dimensionar um campo de reflexões inéditas e renovadoras na historiografia.

A começar pela objetivação da música como metonímia que revela a exclusão na ordem escravocrata ainda em fins do Império. No caso em tela, trata-se dos escravos cuja vida na capital do Império, efetivamente, era “regada de muita música”, expressas nos batuques e cânticos que ecoavam pela noite adentro, escondidos dos olhos, mas soando aos ouvidos, conforme relatos dos viajantes.

A música como expressão da insatisfação popular, como denunciadora dos problemas cotidianos da população pobre, também urbana, aparece novamente na análise de outro autor centrado em revelar como na década de 1940, os sambas tratavam de temas como guerra e racionamento de gêneros alimentícios. Mas tal analista vai além ao demonstrar como tal musicalidade revela “um combate sem tréguas, a favor da regeneração social do samba”,[7] expressando também uma contraposição a postura de intelectuais brasileiros que, na época, o queriam “civilizar”. Ainda neste texto adentra o autor na análise do humor enquanto crítica social e à ideologia do trabalho predominante naqueles anos do estadonovismo. Não por acaso, ressalta, um dos maiores sucessos deste gênero musical em fins dos anos de 1940, se denominava: “Trabalhar, eu não”.

Mesmo quando a subjetividade está mais à vontade, o respeito pela objetividade é uma condição prévia e sine qua non, o que possibilita aos autores reconhecer a arte como constituinte de um “mundo”, um “microcosmo”, e reveladora das essencialidades espirituais a que se refere Lukács, em nossa seção de traduções.

Assim é que, tomando-se músicos e compositores por sua expressão subjetiva, como o faz o autor que analisa a musicalidade de um Pixinguinha e de um Caymmi, reconhece-se como esta realiza o “ponto de fuga de uma interpretação dualista e genérica – onde – Música Negra, seria a expressão do conhecimento oral e, Música Ocidental- a expressão do conhecimento escrito”. Conforme enfatiza o historiador aqui presente, “com Pixinguinha, esse esquemão é demolido”. Com Caymmi, esclarece, não só observa-se o início de “canções praieiras que anteciparam os jovens músicos urbanos e burgueses da bossa nova”, como se observa o experimentar de possibilidades harmônicas através de seu violão, traçando “temporalidades distintas instituídas nos saberes, vivências e memórias afro-indígenas no espaço da Bahia”.[8]

Outro exemplo de como a subjetividade “se faz e se realiza pelo reconhecimento da realidade objetiva”, está na análise dos versos de Ernesto Nazareth, cotejada com a produção literária de um dos mais eminentes modernistas, Mário de Andrade. Neste texto se demonstra como este músico e compositor carioca de fins do século XIX e começo do XX, soube traduzir o comportamento da sociedade carioca, a urbe carioca dos idos de 1871 a 1934, período em que viveu. Conforme ressalta o historiador,

a análise de aspectos da vida e da obra de Ernesto Nazareth traz pontos importantes para o debate, tais como: linhagens da música carioca; a estética pela determinidade histórico-social e expressão dos modos de vida; dimensões ideológicas aparentemente pares mas que pulsam em diferença quanto ao nacional e o nacionalismo no início do século XX; a função social do músico e sua arte. [9]

Tal objetivação é reconhecida também por outro autor cuja análise ressalta a trajetória do violonista Aníbal Augusto Sardinha,[10] fazendo menção ao rádio como o grande meio de comunicação de massas. Apesar do reconhecimento histórico da importância da música e de outras manifestações artísticas como expressão da concretude social brasileira em cada particularidade, a produção historiográfica sobre o tema ainda está em seu estágio inicial, resumindo-se a análises que recuperam apenas aspectos aparentes de tais manifestações, faltando-lhes a capacidade de revelá-las enquanto “construção de uma objetividade corpórea plena de significado concreto, individualizada como mundo”, ou mesmo analisar os limites que as impedem de serem reconhecidas enquanto arte. É o que se deduz da análise da autora que trata da historiografia sobre a história da música no Brasil. Conforme afirma, apesar da produção literária musical ser vasta do ponto de vista quantitativo, “obras dedicadas à história da música brasileira são poucas […] ao longo do século XX”. A partir de uma vasta retrospectiva sobre a historiografia da musica, a autora conclui que o enquadramento desta como disciplina escolar e sua análise por docentes vinculados à área, sem preocupações em situá-la enquanto produto histórico resulta, principalmente a partir da segunda metade do século XX, em uma analítica que “raramente se utiliza de procedimentos analíticos vigentes no campo da história”, isentas de aproximações com teorias ou sem abordar documentos originais, “permanecendo quase que como um gênero literário”0.[11]

Também o olhar sobre a historiografia produzida sobre o cinema no país, demonstra que poucos se debruçaram em uma análise que descortine a sua importância enquanto expressão das particularidades sociais ao longo do século XX. A maior parte da produção que analisa, pouco aborda sobre o cinema silencioso das primeiras décadas do século XX, “permanecendo os documentários e toda uma produção nacional de não ficção praticamente desconhecidos do publico em geral.”[12] Mesmo a crítica cinematográfica que foi ganhando, ao longo do século XX contornos distintos, seja pelas severas críticas, seja por seus adeptos, também se mantêm no ostracismo enquanto objeto de estudos acadêmicos. Assim, conclui o autor, “a estética deste gênero cinematográfico ainda está para ser descoberta pelos estudiosos do nosso cinema”. Sequer o reconhecimento de que foi tal tipo de cinematografia, o da não ficção em suas mais variadas expressões (os filmes naturais ou de cavação, os cinejornais ou filmes atualidades e os documentários), o responsável por sustentar o cinema nacional por mais de cinco décadas, dando até subsídios para a produção de filmes de enredo neste período. Em seu artigo, o autor resgata ainda os primeiros críticos de cinema, considerando-os responsáveis pela fixação de preceitos que até os dias atuais norteiam as considerações de tais profissionais. Neste sentido, destaca que tais críticos, já no começo do século XX, evidenciaram a percepção da importância da “sétima arte” como veículo de propaganda nacionalista, acompanhando o diapasão de muitos militares e intelectuais que, naquele momento da primeira guerra mundial, enfatizavam a importância de proteger o cinema nacional e sua utilização para a propaganda patriótica, “contribuindo para edificar a nação”. Assim defendiam a organização de uma indústria cinematográfica no Brasil, sob os auspícios do Estado, conforme entendiam que ocorria nos Estados Unidos, Alemanha e Itália, o que perdura até por volta da década de 1950. A partir da década de 1960, em que pese a concorrência com o cinema estrangeiro presente desde a década anterior, observa-se, deduz o autor pautado na análise de farta documentação, a “construção de uma nova cultura cinematográfica no Brasil”. A história do cinema ganha novos contornos a partir deste momento, diz ele, “mais independente de padrões estrangeiros e voltado para a reflexão em torno da estética”. Tomando-se a história como categoria central são

publicados os primeiros livros sobre o cinema nacional […] que mapeiam a produção, escrita a biografia dos homens e mulheres que deram início à atividade no país, organizadas as informações sobre as salas de exibição e seu público, feito os primeiros balanços sobre a política e a legislação adotadas para o setor.

Mas nem neste momento ou nos seguintes, reconheceu-se, por exemplo, a estética das chanchadas. Estas são analisadas em outro artigo, tomadas enquanto expressão de uma industria cultural de divertimentos, que “lutava por uma hegemonia político – cultural do país, protagonizada pelos cinemas carioca e paulista nas suas versões da Atlântida e da Vera Cruz”.[13] Nesta sua empreitada, a autora resgata as similitudes entre a figura do malando, do palhaço e a do caipira sintetizados nas chanchadas são entendidos como expressão de “uma visão carnavalizadora” do mundo em que “pilantras” (o típico malandro virador da chanchada), “jecas” e “palhaços” interagem a partir das relações de trocas simbólicas entre a cultura erudita e a cultura popular, entre o folclore e o cinema, entre o circo e o teatro, “entre a música e o rádio, e assim por diante, revelando-se, portanto, uma estrutura imaginária da sociedade brasileira”.

Em contraposição à perspectiva da arte que expressa a tragédia humana pelo riso, mesmo que seus autores não se dêem conta disto, temos o cinema novo que, na expressão do entrevistado Carlos Diegues, assume objetivamente a função social de sua produção cinematográfica:

a gente queria mudar a história do cinema, mudar a história do Brasil, mudar a história do planeta. Com a ditadura militar a gente viu que isso era impossível. A ditadura militar, na minha opinião, enterrou o Cinema Novo. Entre outras coisas porque a matéria prima do cinema brasileiro era a realidade brasileira e naquele momento a realidade brasileira ficou proibida pela ditadura.[14]

O cinema está presente também no artigo que aborda a trajetória cinematográfica nos anos 1950.[15] No mesmo período, “em que qualquer expressão musical indicava, pela própria conjuntura, a posição pró ou contra a ditadura”, no dizer de outra autora, outras expressões artísticas assumem a dimensão da denúncia social à política vigente. É o que fica demonstrado na análise do Movimento que ficou conhecido como o MPB. É o que conclui o texto no qual a autora observa o panorama da música popular no Brasil dos anos 60 e 70 do século passado.

Cada um a seu modo, esses artistas pareciam ter um recado a dar, e serviam-se da música (assim como outros serviram-se de tintas, pincéis, máquinas de escrever…), para passar seus recados, posicionamentos, esperanças. Essa ânsia em dizer algo está presente no que encontramos nos repertórios de Elis Regina e Taiguara, por exemplo, mas também naqueles voltados ao excitamento de uma revolução comportamental, visíveis na experiência da Jovem Guarda assim como na do grupo musical Mutantes. Nos quatros exemplos aqui lembrados, o que temos são diversificadas formas de posicionamento crítico e político frente ao instituído.[16]

O vínculo entre a concretude social e a criação estética transparece também, embora com outro foco, em outro texto, no qual se aborda o impacto da difusão de novas tecnologias na cultura musical, inclusive atribuindo-se à esta produção humana, finalidades práticas. Concomitantemente à introdução de fonógrafos, gramofones, máquinas de escrever, mimeógrafos, estereoscópios, cinematógrafos e mais um grande sortimento de aparelhos e apetrechos de comunicação, que expressavam o advento da modernidade, à música se atribui poderes terapêuticos que iam desde a cura de doenças, cicatrizando ferimentos, acalmando crianças, até a “catequese de selvagens” e ao “incentivo para soldados em guerra”.[17] Desta forma, a autora demonstra como a revista Echo “busca criar um mercado de consumo no Brasil para as novidades industriais importadas – principalmente para as máquinas de reprodução sonora – no início do século XX”, disseminando novas práticas culturais. Até mesmo os problemas resultantes dessa insipiente tecnicidade, eram considerados benéficos, como se observa curiosamente, que tal veículo de informações sobre variedades divulga que choques elétricos faziam bem à saúde.

A continuidade das reflexões que enfatizam o impacto da tecnologia na produção cultural do país, encontra-se no artigo de outro colaborador presente nesta edição da revista, o qual resgata a importância do rádio enquanto meio predominante de comunicação de massa até o advento da TV já em fins da década de 1950. Analisando programas musicais da década de 1940 e 1950, os autores destacam a importância de “mestros e instrumentistas como personagens” centrais “deste universo musical da Era do Rádio, não só por atuarem ao lado dos cantores, mas também pelo fato de trabalharem nas mais importantes emissoras de rádio do período”, como foi a Rádio Nacional do Rio de Janeiro, a Tupi do Rio de Janeiro e São Paulo e a Gazeta de São Paulo, particularmente nas décadas de 1940 e 1950”, à exceção de um “Heitor Villa-Lobos, provavelmente pelo fato de estar a frente do projeto do canto orfeônico, por quase todo o primeiro governo Vargas (1930-1945)”.[18]

A literatura poética, a ficcional e a teatral são outras dimensões da arte presentes neste tomo da Projeto História que, com este número, completa 27 anos de lançamentos ininterruptos. Conforme salienta uma autora centrada em objetivar o estreito entrelaçamento entre a realidade, a criação e a narração na obra literária de Lima Barreto, sua “obra literária está inseria e é inseparável do mundo real” de modo indissociável.[19] Neste sentido, contrapondo-se à historiografia que trata desse literato, o artigo apresenta como Lima Barreto dá forma literária às personagens do mundo urbano, redimensionado pelas novas relações de trabalho e pela violência da ditadura daquele momento. A trajetória de personagens pobres que, advindos do mundo rural, tracejam sua ascensão social no urbano e para os quais tais esforços incluem aproveitar-se do jogo de influências vigente no interior dos segmentos dominantes no poder político. Um jogo que incorpora alguns em detrimento dos milhares que “não recebiam as graças do Estado” e que têm que enfrentar a burocracia quando se lhes impõem a necessidade de resolver problemas na esfera pública. A presença “pobresremediados, pretos-brancos, mulheres-crianças, moços-velhos” nos romances deste autor dá um “quadro geral dos grupos que compunham a realidade social do início do século”. Tais grupos sociais compõem o quadro da exclusão revelado pelo romancista, cuja revelação do social não se resume a eles. Conforme salienta a analista, Lima Barreto também incorpora na condição de excluídos os “beneficiários por extensão desse poder”, os “remediados”, pois esse os apresenta humilhados e falsos, pois “precisavam dissimular tanto a situação de subalternidade quanto a percepção de que eram diariamente mortificados pelo medo e pelos humores daqueles ‘sagrados’ que ocupavam momentaneamente um cargo superior”. Assim, conclui a autora do artigo, evidencia-se que era o Estado que havia se transformado no “mais forte desmoralizador do caráter”.

Daí a associação que o romancista faz entre os vícios e o Estado como corrosivos do caráter: “mais que os vícios, o álcool, o jogo, a morfina, a cocaína, o tabaco”, era o Estado que tirava a “dignidade, todo o nosso amor-próprio, todo o sentimento da realeza de nós mesmos”. O papel da corriola, dos adeptos e admiradores do candidato era “provar dedicação”, porque para isso eram pagos, e o excesso de bajulação – “pugilato de bajulações” na expressão do escritor – fazia parte do pacote.

A perspectiva de revelar como o romance recria a historia se encontra em outro artigo cujo autor analisa a obra Iracema, de José de Alencar.20 A originalidade do texto está não apenas em situar tal obra no interior da produção de intelectuais cearenses do fim do século XIX, os quais demonstram a preocupação em “compor narrativas sistematizadas sobre o passado” daquela região, destacando sua importância naquele presente e “conferindo-lhe legitimidade para o futuro”. Fundam assim, conforme se revela destes romancistas, a “pátria cearense”. Em outro artigo a relação entre o romance e concretude social, se revela ainda, mas em outros termos. Conforme salienta sua autora, que analisa a produção de intelectuais brasileiros de fins daquele século XIX, “as palavras, no romance e na história, tinham a ambição de colocar a terra, o homem e a luta numa trama temporal”. Salienta o autor que tais intelectuais demonstram o cotidiano vigente no Brasil, mas perpassado por sentimentos vicejantes na Europa: “a melancolia, o pessimismo, a morbidez, […] a solidão”. Assim, diz a analista, os cronistas finisseculares, afeitos aos problemas da época, registraram, em seus escritos, um Brasil que, na esteira do capitalismo, tentava ser moderno, adotando idéias vindas da Europa. Como contadores de histórias, eles reconstruíram “os acontecimentos com suas sensibilidades, com sua capacidade imaginativa e seus sentimentos de solidão”.[21]

O tema da relação entre a produção estética e a realidade, aparece mais uma vez em outro artigo que retoma uma questão já identificada nos artigos deste numero da Revista: o do engajamento por alguma causa política, agora revelado pelo teatro. Com a preocupação principal de analisar a atuação de grupos teatrais da década de 1960 e 1970, revelando suas formas de confronto com a ditadura no Brasil, este demonstra como dramaturgos “intervêm criticamente na esfera pública, trazendo consigo não só a transgressão da ordem e a crítica do existente, mas também a crítica do modo de sua inserção no modo de produção capitalista e, portanto, a crítica da forma e do conteúdo de sua própria atividade”. Apesar dos reveses que sofreram com o advento da ditadura de 1964 “as experiências do teatro operário do Arena, dos Centros Populares de Cultura (CPCS), do Oficina e do Opinião, em busca do político e do popular, carrearam um amplo movimento cultural que envolveu grupos, diretores, autores e elencos”, confrontando pela arte, a ditadura que oprimia a maioria da sociedade.[22]

Com a junção de música e do teatro atuaram enquanto protesto contra o regime e expressaram tanto a tristeza dos retirantes fugindo da seca quanto souberam gestar metáforas que mostravam a relação entre tal miserabilidade humana e os algozes do poder, de que a canção Carcará foi a mais emblemática.

A incorporação dos marginalizados e a perspectiva da participação igualitária transparece, conforme a visão desse artigo, na construção quase que coletiva das apresentações teatrais do grupo Opinião, denotando que todos estavam irmanados “de maneira inescapável, à mesma realidade opressiva”. Tal engajamento é reconhecido na produção teatral ao longo de toda a ditadura, sendo também analisado como isto contribuiu para o movimento que se articulou visando a recuperação da democracia no pais, já em fins da década de 1970 e seguinte, através dos metalúrgicos que as “leram e representaram de acordo com seu repertório sociocultural” e as demandas daquele momento histórico, ressalta a analista. A este, informa ainda, veremos associado o teatro produzido na “periferia urbana” que indica a incorporação de “novos públicos, novas temáticas, novas linguagens e a dinamização de canais não convencionais de comunicação que transgrediam as normas do sistema, na década de 90”.

A perspectiva analítica do engajamento do teatro é reconhecida ainda em outro artigo, este agora de um colaborador estrangeiro. Recuperando uma peça teatral elaborada por José Martí, o autor demonstra como tal peça se propõe unificar de forma massiva os mais diversos setores sociais em torno das independências unificadas das regiões latino americanas, conforme o ideal de Simon Bolivar e o do próprio Martí. O autor do artigo recupera como Martí recebeu das autoridades cubanas, em 1877, a incumbência de escrever uma peça teatral que pudesse ser encenada por ocasião das comemorações da independência daquele país e de “toda a America Central”.[23]

O resultado foi a peça cujo título já demonstra quais eram os principais problemas enfrentados por aqueles povos: como denominação principal temos Patria y libertad, e como subtítulo: Drama indio. Conforme salienta o analista “desde ese encabezamiento queda claro que para el joven exiliado cubano la independencia era asunto también de los pueblos originarios, no sólo de los blancos, durante el desarrollo de la trama”e que mais do que protagonistas, estes eram os principais. Nota ainda o autor do artigo que os personagens não são fictícios, ou seja, Martí recuperou personagens atuantes nas lutas daqueles idos de 1821, assim como fatos históricos dos quais foram protagonistas, como que comprovando sua tese do protagonismo dos povos originários na confecção da trama real das independências. Os vencidos na trama ficcional são, não por acaso, os representantes do colonialismo, identificados como um sacerdotes, um nobre e os funcionários da coroa espanhola. Na peça também está presente outro problema enfrentado por aqueles povos: o do racismo que, calcado em preceitos escravocratas, denuncia como o medo aos negros era usado para manter a divisão entre os cubanos de origem étnicas distintas.

Marshall Berman, ao comparar as produções espirituais em nossa modernidade, alinhou-as em suas múltiplas formas da sensibilidade moderna no interior de um “turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambigüidade e angústia”,[24] e que se ancora numa unidade paradoxal, numa “unidade de desunidade”, onde mal o novo se manifesta e tudo parece se volatizar, o que se vivifica imediatamente desaparece, torna-se caduco, petrificado, porque sob a ordem humano-societária do capital, essencialmente destrutiva e corrupta, particularmente em nossos tempos sombrios, “em nossos dias, tudo parece estar impregnado do seu contrário”.[25]

Notas

1. LUKÁCS, György. “Arte livre ou arte dirigida?”. In: Marxismo e Teoria da Literatura. Tradução Carlos Nelson Coutinho. São Paulo, Expressão popular, p. 274.

2. HEGEL, G. W. F. Cursos de Estética – vol. I. Tradução Marco Aurélio Werle; Revisão técnica Márcio Seligman-Silva. São Paulo: Edusp, 1999, p. 34-35.

3. TERTULIAN, Nicolas. Georg Lukács – Etapas de seu pensamento estético. Tradução Renira Lisboa de Moura Lima. São Paulo: Editora UNESP, 2008, p. 240.

4. MANN, Thomas apud SUSAN C. FORSTER. Música e humilhação: uma visão através das ações de indenização por dano moral. São Paulo: Blucher Acadêmico, 2011, p. 9. Na parte 4, conclusiva, a autora elucida essa máxima de forma sintética: “A execução de música durante episódios de violência institucionalizada é fenômeno recorrente na história. A música foi utilizada nos campos de concentração da Alemanha Nazista e nas salas de tortura e interrogatórios dos centros de detenção da ‘Guerra contra o Terror’, para citar os acontecimentos recentes mais representativos. Em tais centros de detenção, foram utilizadas inclusive técnicas destinadas a atingir suscetibilidades de cunho cultural e de gênero e a causar humilhação sexual. E, não custa lembrar que, apesar da imensa variedade de música disponível e a facilidade de acesso em decorrência das modernas tecnologias, o repertório utilizado pelos militares norte-americanos foi bem restrito. As músicas mais executadas nestes episódios são produtos da Indústria Cultural norte-americana e incluem algumas músicas infantis”. FORSTER, S.C. op. cit., 2011, p. 169.

5. MEDAGLIA, Júlio. Karlheinz Stockhausen, 1928-2007. In: Concerto – Guia mensal de música erudita, janeiro / fevereiro, 2008, p. 12.

6. BARENBOIM, Daniel & CHÉREAU, Patrice. Diálogos sobre Música e Teatro. Tristão e Isolda. Tradução Sérgio Rocha Brito Marques. São Paulo, Martins Fontes, 2010, p. 121.

7. Cf. neste volume: Adalberto de Paula Paranhos. Espelhos partidos: samba e trabalho no tempo do Estado Novo.

8. Cf. neste volume: Amaílton Magno Azevedo. Elogio das Ritmas negras e mestiças: tropicalismos acústicos na contemporaneidade.

9. Cf. neste volume: Henri de Carvalho. A obra de Ernesto Nazareth: síntese da particularidade histórica e da música brasileiras.

10. Cf. neste volume: Sérgio Estephan: Aníbal Augusto Sardinha: O Garoto e a Era do Rádio no Brasil.

11. Cf. neste volume: Carla Blomberg. Histórias da Música no Brasil e Musicologia: uma leitura preliminar.

12. Cf. neste volume: Cássio Tomaim. Entre Insultos e Nacionalismos: o documentário na crítica cinematográfica brasileira (1920-1950).

13. Cf. neste volume: Gilmar Rocha: “Eternos Vagabundos”: malandros, palhaços, e caipiras no mundo da Chanchada.

14. Cf. a seção Entrevista, neste volume.

15. Cf. nesta seção: Meize Regina Lucena Lucas. Por amor ao cinema: História, Crônica e Memória na invenção de um certo olhar.

16. Cf. neste volume: Eleonora Zicari Brito. A Música Popular Brasileira nos Conturbados Anos de Chumbo: entre o engajamento e o desbunde.

17. Cf. neste volume: Daniela Palma. Gramofones e Gadgets para os lares do Brasil: consumo, cultura e tecnicismo na Revista O Echo.

18. Antonio Maurício Dias da Costa e Edimara Bianca Corrêa Vieira. Na periferia do sucesso: rádio e música popular de massa em belém nas décadas de 1940 e 1950.

19. Cf. neste volume: Rita de Cássia Guimarães Melo. Lima Barreto: a criação da identidade dos remediados.

20. Cf. neste volume: Francisco Regis Lopes Ramos. José de Alencar: entre o romance e a história.

21. Cf. neste volume: Marina Haizenreder Ertzogue. Solidão, Narrativa e Imaginação no Fin-de-Siècle: história e sensibilidade através de crônicas.

22. Cf. neste volume: Kátia Rodrigues Paranhos. Arte e Experimentação Social: o teatro de combate no Brasil contemporâneo.

23. Cf. neste volume: Pedro Pablo Rodriguez. El Poema de 1810: José Martí ante las independencias hispanoamericanas.

24. BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar. 19.ª reimpressão. Tradução Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo, Companhia das Letras, 2003, p. 15.

25. Idem, Ibidem.

Antonio Rago Filho

Vera Lucia Vieira


VIEIRA, Vera Lúcia; FILHO RAGO, Antonio. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 43, 2011. Acessar publicação original [DR]

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História, Cinema e música / Tempos históricos / 2011

Ao propor o dossiê com essa temática – HISTÓRIA, CINEMA E MÚSICA – tivemos por objetivo, em primeiro lugar, apresentar nesta revista trabalhos que permitissem estabelecer diálogos os mais diversos, primeiramente a partir do encadeamento de cada um desses termos – História e Música, História e Cinema, Cinema e Música, História, Cinema e Música. Com isso, visamos também estabelecer um diálogo com estudiosos dos campos os mais diversos, que pudessem trazer novos aportes e abrir campos de reflexão para os historiadores.

Nos últimos anos, tem havido um grande interesse por parte dos profissionais da História de buscar o cinema e a música como fontes para a proposição de pesquisas. Nos congressos que têm sido levados a cabo principalmente na última década, muitos historiadores têm tido a possibilidade de compartilhar reflexões sobre essas fontes com profissionais de outras áreas, com resultados bastante significativos. Isso tem propiciado que uma mesma temática seja objeto do olhar de diferentes estudiosos a partir de perspectivas teóricas distintas, de preocupações as mais diversas, ampliando o conhecimento desses campos para além das fronteiras do nosso país.

O resultado aqui apresentado sinaliza algumas questões. De início, destacamos o caráter interdisciplinar presente no conjunto dos textos. As preocupações com as questões propostas são compartilhadas por diferentes pesquisadores a partir das diferentes disciplinas e áreas de estudos. São diversos, portanto, os olhares direcionados para o cinema e a música, para os filmes e os gêneros musicais ou as músicas e músicos.

Por outro lado, o conjunto sinaliza possibilidades de trocas, ou seja, de compartilharmos metodologias, formas de análise, para as discussões das problemáticas apresentadas. Ou seja, não existem limites entre as especialidades aqui presentes. Um olhar para si também implica um olhar para ao outro.

Walter Benjamin, no texto A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica (1993: 165-196), enfatiza o caráter revolucionário da invenção da fotografia – e do cinema – exatamente porque ambos trazem no seu cerne a necessidade da sua difusão. Essa invenção propiciou a emancipação da obra de arte, pela primeira vez na história, do seu caráter parasitário: destacada da sua função ritual, ela se relaciona, cada vez mais, com as massas. Mais: ela modificou a relação da massa com a arte: “Retrógrada diante de Picasso, ela se torna progressista diante de Chaplin” (1993:187). O cinema, portanto, permite uma nova abertura, ou novas formas de fruição do que é novo.

O que vale para o cinema também vale para a música, assim como para a música inserida no cinema. A reprodutibilidade dos sons, aliada ou não à da imagem, também propiciou um alargamento das formas de expressão dos grupos sociais, dos indivíduos, das comunidades, das nações.

Por isso mesmo, apresentamos nesse Dossiê tanto artigos que discutem a relação Música / Cinema, quanto aqueles que especificamente discutem o Cinema e outros que se voltam especificamente para a Música. Mas o fazemos na perspectiva de que os limites entre essas diferentes linguagens são fluidos e permeáveis, de que facilmente se pode passar de um a outro.

Os quatro primeiros artigos problematizam a relação do cinema com a música que constitui a trilha sonora do filme. Guilherme Maia parte do cinema, para examinar, com base nas premissas metodológicas adotadas pelo Laboratório de Análise Fílmica (Facom / UFBA), as estratégias musicais dominantes no contexto do filme noir clássico (Ensaio sobre a música do cinema noir clássico: um panorama de O Falcão Maltês e A Marca da Maldade). Já Julio Ogas, valendo-se inclusive da semiótica, problematiza o trabalho do compositor Charly Garcia na realização do filme Púbis Angelical, trabalhando em colaboração com o diretor Raúl de la Torre, abordando tanto a temática do cinema nas gravações desse músico, quanto a relação estabelecida pelas canções com a temática do filme, no artigo Canções, filmes e divas de Pubis Angelical na música de Charly Garcia (1972-1982). Segundo o autor, a música em certo sentido se torna independente do filme, mas ao mesmo tempo não se separa dele, e dialoga com as temáticas sobre o feminino ali evidenciadas. Hernán D, Perez analisa, em Narrative Cueing: a música como elemento de conotação na tradição cinematográfica norte-americana, a incorporação da música ao cinema hollywodiano clássico, a partir da migração aos Estados Unidos de compositores europeus, os quais estabeleceram alguns parâmetros que definiram, por muitos anos, essa relação. Já Rodrigo Carreiro aborda o trabalho do compositor Ennio Morrricone na passagem do cinema clássico para o moderno, atuando na realização dos spaghetti westerns, do diretor Sérgio Leone, introduzindo novos referenciais musicais para os filmes em Notas sobre o papel da música de Ennio Morricone na passagem do cinema clássico para o moderno.

Num segundo bloco estão artigos que dialogam prioritariamente com a questão do cinema, seja para discutir temas como o colonialismo (Ana e o Rei ou a justificação do colonialismo através do cinema , de Susana Guerra) ou o incesto (Das utopias e revoluções: representações sobre o incesto em Le Souffle Au Coeur de Louis Malle , de Débora Breder). Outros três artigos abordam as realizações do cinema brasileiro nos anos 1960 e os caminhos do Cinema Novo, um dos quais se refere especificamente à relação com a bossa nova, aproximando-a das produções de Domingos de Oliveira (Todos os desafios do mundo: a geração de 1964 no Cinema Novo, de Carlos Eduardo Pinto De Pinto); a ele seguem-se Carlos Diegues, entre o CPC e o Cinema Novo: uma reflexão sobre a função do artista no início da década de 1960, de Mariana Barbedo, e Arte e política no cinema de Glauber Rocha: uma análise do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, de William Vaz De Oliveira e Eduardo Nunes Álvares Pavão. André Luiz dos Santos Franco, em O movimento armado de 1930: a representação fílmica da história, tematiza a produção do audiovisual “A Revolução de 1930” por Sylvio Back cinqüenta anos depois desses acontecimentos, problematizando a relação do documentário com a ficção. Finalmente, em Construções e reconstruções: uma ressignificação do olhar para com as musas, Shirley Elias Vilela parte da elaboração de determinadas imagens da mulher pelo cinema para discutir depois a produção de estereótipos sobre a beleza feminina que perduram por décadas.

Num último bloco, situam-se artigos que abordam especificamente questões relacionadas ä música. Mariana Oliveira Arantes aborda os movimentos musicais que se processaram no Chile nos anos 1960, ou seja, o Neofolclore, a Nova Onda e a Nova Canção Chilena, e discute o engajamento dos músicos que se ligaram à campanha e ao governo da Unidade Popular (Sonoridades urbanas e engajamento juvenil no Chile dos anos de 1960); Manuela Areias Costa aborda a questão das bandas de música, que foram tão comuns em determinadas épocas, problematizando especialmente a formação de bandas civis a partir de apropriações de elementos marcantes nas bandas militares (Música e história: um estudo sobre as bandas de música civis e suas apropriações militares), e Iolanda Macedo aborda o RAP nas vinculações do cenário nacional com o internacional, argumentando sobre a ocorrência de um processo de reapropriação deste gênero musical no Brasil após sua introdução via mídia e indústria fonográfica (A linguagem musical RAP: expressão local de um fenômeno mundial). O dossiê se encerra com o artigo de Manoel Dourado Bastos abordando os posicionamentos teóricos do pesquisador José Ramos Tinhorão, presentes nos seus inúmeros trabalhos, sempre citados por pesquisadores que discutem questões musicais, mesmo apresentando discordâncias com suas afirmações (Um marxismo sincopado: método e crítica em José Ramos Tinhorão).

Referência

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas – Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1993.

Geni Rosa Duarte – Professora do Colegiado de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Unioeste


DUARTE, Geni Rosa. Introdução. Tempos Históricos, Paraná, v.15, n.1, 2011. Acessar publicação original [DR]

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História e Música / Revista de História / 2007

Sons e música na oficina da história

O volume Modinhas Imperiais compilado por Mário de Andrade apresenta uma composição – O coração perdido – de autoria do engenheiro Frederico Luis Guilherme de Varnhagen (1782-1842). O autor teria escrito ainda outras modinhas, entre elas A saudade, de valor musical questionável e, por isso, não incluídas na coleção pelo musicólogo1. O sobrenome do compositor é revelador: aponta que se tratava do pai do historiador Francisco Adolfo Varnhagen que, certamente, iniciou seus primeiros contatos com a música no ambiente familiar. Esta proximidade e interesse musical de certo modo permaneceram ao longo da carreira intelectual do historiador. Na sua infatigável procura por fontes para construir uma história do Brasil, o Visconde de Porto Seguro encontrou e comentou documentos híbridos entre a poesia e a música, com os sugestivos nomes de Trovas e cantares de um códice do XIV° século: ou mais provavelmente, o livro de cantigas do conde de Barcelos e Cancioneirinho de trovas antigas colligidas de um grande cancioneiro da biblioteca do Vaticano. No seu Florilégio da poesia brasileira, obra de 1850 destinada a destacar os principais poetas brasileiros, o historiador apresentou a biografia do poeta, mas também compositor e cantor, Domingos Caldas Barbosa, o mestiço “cantor de viola” 2. Claro que na produção historiográfica conservadora do historiador, voltada essencialmente à história política e administrativa, a música aparece de maneira muito marginal. De qualquer modo, é curioso conhecer essa proximidade pessoal e intelectual do tradicional historiador oitocentista com a música.

É interessante notar que Capistrano de Abreu – que manteve permanente relação de profundo respeito e conflito com a obra de Varnhagen – ao esboçar um tipo de história social e cultural do povo brasileiro no início do século XX, também fez referências à música na obra Capítulos de História Colonial. Nela a música surge de maneira tangencial, presente nas festas populares, nas irmandades religiosas da região mineradora e nos cantos de trabalho no Rio de Janeiro3. Já a produção historiográfica da geração imediatamente posterior ao historiador cearense teve relação bastante refratária com os sons e a música. Na obra de Caio Prado Jr., são totalmente inexistentes. Sérgio Buarque de Holanda, embora convivesse no cotidiano com músicos e poetas, em Raízes do Brasil fez apenas pequena referência à música na festa de Bom Jesus de Pirapora, em São Paulo, quando Jesus Cristo “desce do altar para sambar com o povo” 4. O contraponto foi a obra em três andamentos de Gilberto Freyre sobre a formação e decadência da sociedade patriarcal no Brasil, em que desponta uma abundância de sons, ritmos, músicas e canções. No primeiro volume, Casa Grande e Senzala, os ritmos africanos se misturam às canções infantis e de ninar, às músicas das festas profanas e religiosas, e aos lundus e modinhas. No volume Sobrados e Mocambos surgem as modinhas tocadas ao piano pelas moças, as músicas dos salões e também as das ruas, feitas pelo violão e batuques. Em Ordem e Progresso a música aparece de forma destacada com comentários sobre modinhas, polcas e dobrados, entre outros gêneros, e surge até documentada em forma de partituras. Mas Gilberto Freyre é exceção no quadro historiográfico brasileiro. Infelizmente o esboço, ainda que rarefeito, das relações entre música e trabalho historiográfico proposto por ele teve continuidade muito dispersa e limitada entre os historiadores de ofício. Nas gerações seguintes, a generalizada “surdez dos historiadores” – apontada pela musicóloga Myriam Chimènes no artigo traduzido neste volume da Revista de História – permaneceu e muitas vezes se aprofundou.

Ecoando essa dinâmica da historiografia, a Revista de História, assim como outras publicações especializadas, seguiu o mesmo ritmo e as publicações relativas à música são episódicas. O número de artigos publicados relacionados ao tema ao longo dos seus cinqüenta anos não soma os doze sons da escala cromática: foram somente onze textos, sendo oito deles de autoria de apenas três autores5. Claro que esse relativo silêncio revela também a rarefação das investigações em torno da música e as dificuldades em desenvolver pesquisas na oficina da História até pelo menos a década de 1990. Essa situação repleta de obstáculos é perfeitamente visível na trajetória docente e de pesquisador do professor Arnaldo Contier. Em depoimento exclusivo para a Revista de História ele apresenta e comenta as dificuldades enfrentadas pelo historiador de ofício em tratar com o objeto sonoro. Durante anos ele foi uma espécie de solista na formação de pesquisadores e na evolução deste novo campo de pesquisa. É preciso salientar, no entanto, que as dificuldades não eram exclusivas dos historiadores. Artistas contemporâneos e musicólogos passaram por conflitos e angústias semelhantes durante o mesmo período. Embora tenham ocorrido profundas transformações nos meios de registro e difusão da música, pesquisar, compor e difundir trabalhos com propostas e linguagens renovadoras tornouse cada vez mais difícil, como nos revela o texto também publicado neste volume, em chave dissonante mahagonnense e tom claramente brechtiano de manifesto, do pesquisador e compositor Willy Correa de Oliveira.

A relativa surdez historiográfica não era, porém, uma situação exclusiva da produção brasileira. O referido artigo da musicóloga francesa mostra situação semelhante no contexto europeu, sobretudo o francês, das décadas de 1980 / 90. Antes deste período, raros foram os historiadores de ofício, como HenryIrenée Marrou, que se arriscaram nesta área de pesquisa. Nos anos ‘40 ele publicou alentada obra de tonalidades folcloristas6 – recheada de músicas, letras de canções, análises melódicas e harmônicas – e um pequeno tratado sobre a música em Santo Agostinho7. Em ambos os livros ele utilizou o pseudônimo de Henri Davenson, recurso também usado por Eric Hobsbawm para publicar sua história social do jazz, em 1959, com o nome de Francis Newton8. Esse fato não pode passar despercebido, pois na verdade revela que dois importantes historiadores do século XX procuraram resguardar, por algum motivo, seus nomes em obras que tratavam da música, mais especificamente a popular. Em tom diferente da sociologia e da antropologia, poucos foram os historiadores que realizaram pesquisas tendo a música como objeto ou fonte documental antes dos anos ‘90. Foi somente nesta década que começaram a surgir alguns trabalhos, como destaca o artigo de Myriam Chimènes. Provavelmente, esse contexto favorável permitiu ao historiador francês Alain Corbin, por exemplo, realizar inusitada obra sobre como os sons dos sinos que presidiam o ritmo da vida rural se transformaram no século XIX, implicando mudança de sensibilidade e de escuta9. Nela, Corbin usou o conceito de paisagem sonora como uma forma de ampliar os horizontes de discussão de sua história das paisagens e das sensibilidades10. Nesta mesma linha seguiu Jean-Pierre Gutton que, além dos sinos, incluiu nessa nova “paisagem sonora” – já se referindo claramente ao conceito de Murray Schafer11 – os sons das cidades, das oficinas, entre outros12.

Foi nesta década que ocorreram também as principais mudanças na produção historiográfica brasileira relativa à música, condição salientada no artigo de Marcos Napolitano. Seu texto aborda especificamente a evolução dos estudos sobre a música popular brasileira que ocorreu neste período, tendo como ponto de partida sua própria trajetória e a de sua geração. Na realidade, a historiografia entrou tardiamente nesse tradicional debate sobre a música popular e suas relações centrais na construção da “cultura nacional”. As discussões em torno do tema ampliaram-se, deixando para trás tanto as concepções folcloristas como a percepção adorniana da indústria cultural e a noção de “cultura de massas” presentes ainda em certa sociologia dos anos ‘70 / ‘80. Porém, sem cabedal teórico acumulado e limitada em sua tradicional surdez, a História colocou em marcha mais uma vez sua vocação interdisciplinar como forma de aprofundar seus contatos com o universo sonoro e musical. Neste passo, Elizabeth Travassos mostra em seu artigo como a história se aproximou da etnomusicologia em mudança, e vive-versa, no mesmo compasso da (re) aproximação de ambas com a antropologia. Ela destaca justamente que “os tempos são propícios à ‘mistura de gêneros’” e que, portanto, os diálogos entre os diversos campos do conhecimento devem continuar sendo observados e aprofundados.

O debate em torno da música popular se aprofundou na América Latina ao longo das duas últimas décadas numa clave bem mais dinâmica e criativa que a européia, provavelmente revelando a riqueza e o hibridismo de nossos gêneros musicais. O texto do musicólogo chileno Juan Pablo Gonzáles e também sua militância como presidente da seção latino-americana da International Association for the Study of Popular Music em favor de uma “musicologia da música popular” revelam essa cadência. A valorização estética e cultural da música popular é eixo importante de sua concepção, assim como do musicólogo argentino Diego Fischerman, cuja obra é resenhada no final do dossiê. Além disso, seu artigo escrito em conjunto com o historiador chileno Claudio Rolle oferece uma discussão sobre as possibilidades de diálogo teórico e metodológico entre essa “outra musicologia” e a História, apontando para a necessidade de se pensar uma história social da música popular. O artigo escrito em dueto revela grande preocupação com a prática historiográfica e, consequentemente, com as fontes escritas, fonográficas, performáticas, memorialísticas, mas também com o universo da criação e da recepção musical. Essa discussão sobre fontes, arquivos e criação musical, com variação de tom mais próximo da música erudita, também é apresentada pela musicóloga Flávia Toni. Para ela, a parceria entre Biblioteconomia, Arquivologia, Música e História é central para acompanhar a dinâmica crescente da produção acadêmica, como também para facilitar a pesquisa criadora dos compositores. Num quadro precário e disperso de centros de referência, discotecas, bibliotecas e arquivos especiais – os existentes ainda sob controle de instituições privadas ou em mãos individuais –, o tema ganha importância adicional e contornos de urgência.

As discussões realizadas ao longo destas décadas – algumas delas reveladas neste dossiê – apresentaram diversas características e tonalidades, entre elas a dificuldade em operar com os tradicionais conceitos de música erudita e popular e as abordagens que eles determinaram. Tornou-se cada vez mais difícil pensar a música e as investigações sobre ela nessas fronteiras tradicionais, sobretudo porque a prática musical, em boa parte de nosso continente, permitiu historicamente as mais inusitadas formas de misturas, fusões, hibridizações, circulação e difusão entre variadas culturas musicais. O texto de José Miguel Wisnik nos mostra como esses limites na cultura musical brasileira, entre os anos ’20 e ’50, foram completamente devassados, produto de uma prática cultural singular, repleta de conflitos e diálogos. Tendo esse tom como eixo, o texto historiciza a criação musical do período, relacionando-a no quadro cultural mais abrangente com a literatura, o cinema e até o futebol. Assim, a tradição de aproximar literatura e ciências sociais transborda também para a música e a história. Na realidade, suas obras procuram a todo o momento esse difícil equilíbrio entre as análises estéticas e musicais e o universo cultural e social que fazem parte delas. E é essa dinâmica que lhe permite ensaiar interpretações de longa e média duração da cultura brasileira, como faz na mesma clave em Machado Maxixe: o caso Pestana 13. Essas criativas contribuições, originadas da área de Literatura, associadas posteriormente à Semiótica e à Lingüística, como nos revela a resenha sobre o livro de Luiz Tatit, tornaram-se referência para aqueles que pretendem justamente ultrapassar as tradicionais fronteiras analíticas e aprofundar as discussões da presença crucial da música na nossa cultura.

A apresentação deste dossiê da Revista de História pretende justamente colaborar para a ampliação e o aprofundamento do debate, mas, sobretudo, tirar a História e os historiadores do relativo silêncio a que estiveram submetidos desde os contatos residuais de Varnhagen com a música. Quem sabe indique que provavelmente a “surdez dos historiadores” está em processo de cura e que esse volume da Revista de História contribui para o seu tratamento. Além disso, ele quer discutir qual o papel que a História pode desempenhar de modo específico, com seus instrumentos analíticos e interpretativos, para ampliar a discussão e criar seu próprio campo de investigação. Mas isso significa estabelecer permanente diálogo com outras disciplinas – como revelam os textos do dossiê – e exercer claramente nossa vocação interdisciplinar intrínseca. E se, ao final, o leitor julgar que nenhum desses objetivos foi alcançado, esperase ao menos que compreenda a música, “mais que um objeto de estudo, (…) um meio de perceber o mundo”, e que nela às vezes repousam as novas formas sociais e culturais que virão14.

Notas

  1. ANDRADE, Mário de. Modinhas imperiais. Modinhas de salão brasileiras, do tempo do Império, para canto e piano. São Paulo: Casa Chiarato Ed., 1930, p.13.
  2. VARNHAGEN, F. A. Florilégio da poesia brasileira, 3 vols. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 1946, p. 42. O texto foi republicado no ano seguinte, com algumas modificações, na seção “Biografias” da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (vol. 14, 1851), com o título “Domingos Caldas Barbosa”.
  3. ABREU, Capistrano. Capítulos de História Colonial. Belo Horizonte / São Paulo: Ed. Itatiaia / Edusp, 1988, capítulo XI, “Três séculos depois”.
  4. HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 8ª ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1975, p. 110.
  5. Três do historiador e musicólogo Régis Duprat: “Música nas Mogis Mirim e Guassú”, nº. 58, abril-junho, 1964; “A música na Bahia colonial”, nº 61, janeiro-março, 1965; “Música na matriz de São Paulo colonial”, nº 75, julho-setembro, 1968. Três do musicólogo alemão Francisco Curt Lang: “Um fabuloso descobrimento”, nº 107, julho-setembro, 1976; “O progresso da musicologia na América Latina”, nº 109, janeiro-março, 1977; “Os primeiros subministros musicais do Brasil para o Rio da Prata”, nº 112, outubro-dezembro, 1977. Dois do historiador Arnaldo Contier: “Música e História”, nº 119, julho-dezembro, 1985- 88; “Villa Lobos, o selvagem da modernidade”, nº 135, 2º semestre 1996. Os três restantes são “O Samba em Itu”, de Otávio Ianni, nº 25, janeiro-março, 1956; “As óperas de Puccini”, Antonio Almeida Prado, nº 58, abril-junho, 1964; “Rádio e música popular nos anos 30”, de José Geraldo Vinci de Moraes, nº 140, 1º semestre, 1999.
  6. DAVENSON, Henri. Introduction à la connaissance de la chanson populaire française. Le livre des chansons. Neuchâtel : Ed. de la Baconnière, 1982.
  7. Idem, Traité de la musique, selon l’espirit de saint Augustin. Paris : Seuil, 1942.
  8. NEWTON, Francis. História social do jazz. São Paulo: Paz e Terra, 1990.
  9. CORBIN, Alain. Les cloches de la terre. Paysage sonore et culture sensible dans les campagnes au XIX siècle. Paris : Flammarion, 1994.
  10. Idem, “Du Limousin à les cultures sensibles”. Jean-Pierre Rioux e Jean-François Sirinelli (dir.), Histoire culturelle de la France. Paris : Seuil, 1997.
  11. SCHAFER, R. Murray. A afinação do mundo. São Paulo: Ed. Unesp, 2001.
  12. GUTTON, Jean-Pierre. Bruit et sons dans notre histoire. Paris: PUF, 2000.
  13. WISNIK, José Miguel. “Machado, Maxixe: o caso Pestana”. Teresa 4 / 5. Revista de Literatura Brasileira, São Paulo: USP / Ed. 34, 2004, pp. 13-79.
  14. ATTALI, Jacques. Bruits. Essai sur l´économie politique de la musique. Paris: PUF, 1977, p. 9.

José Geraldo Vinci de Moraes


MORAES, José Geraldo Vinci de. Apresentação. Revista de História, São Paulo, n. 157, 2007. Acessar publicação original [DR]

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História e Música | ArtCultura | 2004

Foi-se o tempo de uma História enclausurada em si mesma, às voltas apenas com seus objetos tradicionais. Com a desmontagem de muitos dos andaimes nos quais ela se apoiava, a cada dia mais e mais se perde a nitidez dos contornos fixos. Um número crescente de historiadores, não mais presos às cadeias narrativas e às temáticas mais ou menos convencionais, lançam-se, por vezes até com sofreguidão, à procura de outros territórios a serem mapeados. Ao tatearem caminhos pouco ou nada explorados, alargam as margens do possível e valorizam novos objetos, o que nem de longe deve desestimular a retomada de temas tornados clássicos.

É aí que se inscreve este dossiê. Nele música e História se dão as mãos. Até um período relativamente recente, os estudos em torno da música constituíam um objeto marginal, menos, é claro, para os especialistas de seu campo de incidência específico. Já há algum tempo, porém, assiste-se à ampliação de seu raio de alcance. Eles vêm conquistando, aos poucos, o seu espaço na academia. Historiadores e cientistas sociais, em particular, acabaram se beneficiando do diálogo entretido com profissionais de outra procedência, incluídos aqueles de formação estritamente musical. Leia Mais